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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

Resumo de dissertação

 

 

Laura Lamas Martins Gonçalves*

 

 

A função de publicização do Acompanhamento Terapêutico na clínica: o contexto, o texto e o foratexto do AT

(The function of publicizing Therapeutic Assistance in the clinic: context, text and foretext)

(La función de la publicización del Acompañamiento Terapéutico en la clínica: el contexto, el texto y el fueradetexto del AT)

 

Essa pesquisa investigou o Acompanhamento Terapêutico (AT) como dispositivo clínico-político e suas implicações na atenção à saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Construímos o trabalho em três momentos: num primeiro, traçamos o contexto em que tem se dado as experiências de AT; num segundo, trouxemos à cena os textos sobre AT e, num terceiro, incluímos o foratexto, ou seja, problematizamos e fizemos interceder no texto e no contexto as funções que tal dispositivo faz funcionar.

No contexto que traçamos, mostramos que foi num cenário de Reforma Psiquiátrica que surgiu o Acompanhamento Terapêutico, tendo adquirido no Brasil uma inflexão das singularidades do Movimento brasileiro. Apresentamos algumas experiências que se destacam no cenário nacional, em estados como Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco e Santa Catarina. Certamente, existem especificidades na implementação do AT nos diferentes estados apresentados, as quais colocam também diferentes questões para o Movimento de Reforma e para a implementação das políticas de saúde mental. Entretanto, não nos propusemos a aprofundar tais singularidades, já que isso implicaria uma proximidade maior com o contexto político de cada estado, inviável no percurso da pesquisa. Tomando o AT como dispositivo clínico-político, o que se colocou como questão fundamental foi a investigação das relações de forças que se estabelecem quando o AT se insere no campo da saúde pública brasileira, mais especificamente na chamada rede de serviços de saúde mental.

Acompanhamos o dispositivo AT com base nos contextos e vetores que o constituem, atentando sempre para a indissociabilidade radical entre a clínica e a política que ele opera. A partir desse percurso, realizamos alguns contornos, delimitamos algumas questões que se colocavam para nós como pulsantes e produtoras de inquietação. Tais questões tornaram-se ponto de referência, guias em nossa trajetória e, ao mesmo tempo, outras delas derivaram, instigandonos a seguir nesse “caminhando” ao qual nos propusemos, através de novas problematizações.

Sabemos que o AT surgiu num movimento de desinstitucionalização da loucura, num processo de desmantelamento e rearranjo da trama de saberes e práticas construídas em torno da experiência de sofrimento, que vai forçando uma desinstitucionalização da própria clínica. Nesse contexto, aliado a outros dispositivos que se pretendem substitutivos ao modelo manicomial, o AT experimenta, paradoxalmente, um processo de institucionalização pela via de um especialismo e de uma privatização da clínica.

Acompanhando o dispositivo em suas variações e em sua articulação com a rede de saúde mental brasileira, atentamos aos agenciamentos que estabelece com a Psiquiatria, com a Psicanálise, com as Universidades e com a cidade e os efeitos políticos que tais agenciamentos produzem. A partir de articulações com a Psiquiatria e a Psicanálise, identificamos um grande investimento dos acompanhantes terapêuticos em compartilhar suas experiências e construir um “fazer-saber” que compõe e articula saberes da clínica e de fora da clínica. Nesse sentido, há uma aposta na construção coletiva de sentidos para a produção de conhecimento, o que pressupõe sempre um importante tensionamento de forças. No Brasil, a articulação do AT com a Universidade tem permitido a desmontagem de clichês e de saberes consagrados, alargando os espaços de atuação clínica, os trânsitos e intercruzamentos entre diferentes áreas na produção de conhecimento. Percebemos que as experiências de AT, através de alianças entre Universidade e os serviços da rede pública de saúde, vêm produzindo necessárias problematizações a respeito daquilo que no próprio movimento de desinstitucionalização da loucura se coloca como desafio a ser enfrentado, tanto pelas universidades quanto pelos serviços de saúde. A cidade, por sua vez, insere-se como linha de subjetivação do dispositivo, sendo experimentada em sua dimensão de rede, de circulação de fluxos, abrindo espaços e tempos para a vida acontecer. Coloca em evidência a necessária criação de projetos clínico-políticos capazes de produzir novas redes de sociabilidade.

Essas relações que se estabelecem entre os vetores (linhas) que compõem o plano de experimentação clínica do AT possibilitaram-nos perceber algumas funções que dispositivo AT opera: função micropolítica, função de transversalização, função rizomática, função deslocalizadora e analisadora da clínica, função de resistência aos modelos centrípetos e analisadora do Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, função de territorialização, função inclusiva e função de publicização, ou de geração de um plano comum na clínica.

A condição minoritária do trabalho do AT, sustentada na proposta de um trabalho no território, sem uma rígida sistematização teórica e sem um contorno identitário vem sendo confundida com uma condição de menoridade. Tal condição diz de uma atitude que se diferencia daquilo que na clínica é um padrão majoritário e que radicaliza uma aposta na intercessão entre diferentes saberes (função micropolítica: devir minoritário). Por constituir-se como um dispositivo híbrido, operando no trânsito entre diferentes disciplinas, o AT não tem seus contornos delimitados, não podendo ser reduzido a um saber, seja ele médico, psicológico, psicanalítico, filosófico ou qualquer outro. Apresenta-se operando um movimento transversal na clínica, desestabilizando os limites identitários e colocando em questão a própria noção de disciplina (função de transversalização).

Além disso, também podemos ressaltar que o AT insere-se no contexto das trocas sociais estabelecidas com a cidade, a partir dos elementos próprios à vida cotidiana dos acompanhados. Sendo assim, ele desloca a clínica do consultório, seu território por excelência, e “invade” outros territórios, desterritorializando e equivocando-a naquilo que nela comparece como instituído. À medida que toma a cidade como campo de experimentação, tensiona constantemente a clínica em seus limites, evidenciando que ela se dá no limiar da própria experiência. O AT coloca em questão “aquele que sabe” sobre o sofrimento do outro, pois as intervenções não partem apenas do acompanhante, mas da rede (função deslocalizadora e analisadora da clínica).

Conectando-se com os fluxos da cidade, o AT tece redes de cuidado produtoras de saúde, constituindo-se numa clínica rizomática, com contornos mínimos, operada nos percursos e nos encontros que a cidade produz. Apresenta-se, então, como uma operação em rede implicada na desconstrução das cronicidades. Diferente do funcionamento do capitalismo que produz redes produtoras de homogeneização, opera um funcionamento das redes produtoras de diferenciação, de novas formas de existência, através de experiências sempre públicas e coletivas (função rizomática ou limiar).

Como efeito da conjugação com a noção de território, vemos a ampliação da própria clínica e a produção de outros modos de habitar a cidade. O AT problematiza então, a um só tempo, a doença mental e sua relação com os espaços urbanos. A circulação e a operação em rede configuram-se, assim, como resistência aos modelos centrípetos de poder, colocando em evidência a importância da desinstitucionalização da clínica no próprio Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira (função de resistência aos modelos centrípetos: o AT como um analisador da Reforma).

A partir de sua ação no território, os AT acompanham pessoas em suas moradias, em seus bairros e pelas ruas da cidade, em viagens, nos seus trabalhos, nos serviços em que são atendidas, nos espaços em que a vida acontece. Por isso, podem traçar os percursos que seus acompanhados fazem nesses espaços, ajudando-os a dar consistência àqueles que se apresentam como possibilidade de construção de um novo jeito de experimentar a vida (função de territorialização). A partir da possibilidade de produção de modos de subjetivação autônomos e singulares, os próprios acompanhados passam a decidir sobre aspectos que dizem respeito à sua saúde e (re)posicionam-se como sujeitos protagonistas e co-responsáveis de suas próprias trajetórias (função inclusiva).

O AT empenha-se contra as políticas do enclausuramento e de privatização da saúde e da vida através da invenção de novas saídas para nossas sempre novas perguntas e da proposta de uma gestão comum da clínica. Nesse sentido, comparece como função publicizante da/na clínica, colocando para ela um estatuto, uma dimensão não privada e não especialista, que diríamos pública. O AT indica um modo de fazer funcionar a clínica mais do que a identificação com um cargo ou um papel, comparecendo como um mobilizador de forças capazes de consolidar um estatuto público para a clínica.

 

 

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, orientadora: Prof. Dra. Regina Duarte Benevides de Barros. E-mail: lauralmg@terra.com.br

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