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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.1 Belo Horizonte jun. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

Resumo de tese

 

 

Luciana Kind*

 

 

Morte e vida tecnológica: a emergência de concepções de ser humano na história da definição de morte cerebral

(Technological death and life: the emergence of conceptions of the human being in the history of the definition of brain death)

(Muerte y vida tecnológica: la emergencia de concepciones del ser humano en la historia de la definición de la muerte cerebral)

 

O desenvolvimento de tecnologias de suporte de vida em meados do século XX materializou o sonho de estender a vida e conduziu a mais experimentações médicas, a infindáveis debates éticos e novas concepções de ser humano, de morte e de vida. Esse trabalho tem por objetivo analisar a história da definição de morte cerebral nesse período e suas conseqüências para a própria concepção de ser humano. A pesquisa explicita uma rede de saberes concorrentes presentes em textos científicos, a construção de argumentos, o intercâmbio internacional de práticas e idéias e a proliferação de procedimentos médicos que se apóiam em distintas concepções de ser humano. Foram recuperados, num primeiro momento, antecedentes sobre o avanço de tecnologias médicas que tornaram possível a definição de morte cerebral e os transplantes de órgãos, trabalhando principalmente com publicações do campo da medicina. Na literatura sobre morte cerebral, foram identificados periódicos de destaque nos campos da medicina e da filosofia, que entre as décadas de 1960 e 1980 tornaram-se palco privilegiado das discussões sobre o assunto.

A partir do final dos anos de 1950, a redefinição da morte colocou-se de forma imperativa tendo como ponto central uma definição de ser humano compatível com intenções explícitas de se investir nas tecnologias de transplantes. Em nada conciliável com os avanços da tecnologia médica, a correlação da alma humana com o coração sofreu um golpe decisivo com o transplante cardíaco em seres humanos, no final da década de 1960. Uma nova sede para o humano, mais moderna e coerente, pretendendo-se solidamente construída com evidências como o EEG isoelétrico para a determinação da morte cerebral, consolidou-se da década de 1960 em diante.

São discutidas também algumas contribuições da literatura das ciências humanas na produção de estudos críticos que comparam a definição de morte cerebral estadunidense com o desenvolvimento das tecnologias de transplante em outros países. Ao investigar a recepção da nova definição de morte em países como o Japão e a Alemanha, esses estudos abrangem uma discussão sobre os “novos artefatos médicos”, em decorrência da maleabilidade do corpo em tempos de alta tecnologia: corpos mortos com partes vivas; corpos vivos com partes de mortos; mortos-vivos conectados a máquinas. Observa-se, em diálogo com esses autores, que a interpretação da nova definição de morte é crivada por representações culturais sobre a morte e a vida humana.

No Brasil, a análise da história da definição de morte cerebral e do transplante de órgãos ainda está por se construir. A despeito da escassez de publicação acadêmica sobre a história da morte cerebral no país, iniciou-se uma discussão sobre as concepções de ser humano, presentes nos documentos sobre o contexto brasileiro que versam sobre o assunto. Nos Estados Unidos, no Japão e na Alemanha, a definição de morte cerebral convocou ao debate não só uma gama de campos de conhecimento, mas a sociedade de maneira geral, num esforço coletivo ampliado de lidar com um ser humano redesenhado. Uma questão central nesses contextos culturais foi identificar que atores sociais teriam competência para determinar quando um ser humano está de fato morto, ou quem determina a fronteira entre humano e não-humano. No Brasil, médicos e juristas ganharam rapidamente esse posto, estabelecendo desde o final da década de 1960 uma descrição médico-forense para a morte cerebral. A aproximação da definição de morte cerebral com a doação de órgãos foi imediata no país. Ao contrário dos outros países mencionados, com a importação da tecnologia de transplante cardíaco, veio a definição de morte cerebral igualmente aceita como um prodígio da medicina. Aqui, portanto, a morte cerebral foi desde o início apresentada como uma questão exclusiva de poucos especialistas.

O mergulho feito na literatura científica sobre a morte cerebral permitiu evidenciar conexões e rupturas entre vozes coletivas, ora dissonantes, ora convergentes. Ao longo do século XX, médicos, juristas, filósofos, teólogos e antropólogos teceram uma rede imbricada de idéias e estilos de pensamento coletivo que apresentamos ao longo do trabalho. Parte desse coletivo conquistou para a definição de morte cerebral o status de fato médico-científico. Outra parte exprimiu seu posicionamento contrário à redefinição da morte. Muitos matizes entre esses pontos da trama de artigos de periódicos, relatórios, coletâneas, edições especiais de periódicos, livros e capítulos de livros, insinuam que esse não é um debate de consensos absolutos. Ao acompanhar o debate acadêmico, compreendemos o quão errático ele é. A história da redefinição da morte se apresenta como uma composição em que, muitas vezes, as práticas se anteciparam aos argumentos. Edificadas no terreno pantanoso de fronteira entre a vida e a morte, as práticas médicas que tornaram possíveis os transplantes de órgãos forçaram a ciência a se justificar. Essas tecnologias reforçaram a construção de uma morte moderna, medicalizada, ligada a aparelhos, produtora de cadáveres funcionais. Nesse percurso, a medicina parece ter alcançado a invenção de seres humanos híbridos, com variações multifacetadas em torno do homem-máquina e do homem-homem.

 

 

*Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), orientador: Francisco Javier Guerrero Ortega. E-mail: lukind@gmail.com

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