SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número2A mulher é mãe por natureza? As técnicas de procriação medicalmente assistidas, à luz da psicanálise, no contexto francêsO sujeito entre psicanálise e ciência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.2 Belo Horizonte dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Lacan e a debilidade mental de Platão e Ernest Jones

 

Lacan and Plato’s and Ernest Jones’s mental weakness

 

Lacan y la debilidad mental de Platón y Ernest Jones

 

 

Márcia Rosa*

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Em 1972, o psicanalista Jacques Lacan interpreta Platão e, depois, Ernest Jones como débeis mentais. Tais interpretações são inusitadas e, até mesmo, paradoxais. Como falar em debilidade no caso do filósofo grego, conhecido exatamente por sua extensa e expressiva produção teórica e, pouco depois, no caso de um dos conhecidos teóricos da psicanálise, biógrafo de Freud? De que “debilidade” se trata nesses dois casos? Depois de retomar cada uma dessas interpretações, este artigo indica três momentos cruciais nas elaborações de Lacan sobre o tema da debilidade mental: como inibição intelectual, como incapacidade de colocar o desejo do Outro em questão e, finalmente, como incapacidade de instalar-se solidamente em um discurso. Com as suas formulações, Lacan se afasta de uma concepção da debilidade mental como um deficit cognitivo, concebendo-a como uma deficiência da linguagem em dar conta do gozo.

Palavras-chave:Lacan, Platão, Ernest Jones, Debilidade mental.


ABSTRACT

In 1972, the psychoanalyst Jacques Lacan interpreted Plato and, then, Ernest Jones as mentally weak. Such interpretations are unusual and even paradoxical. How can one speak about mental weakness in the case of the Greek philosopher, known exactly for his extensive and expressive theoretical production, and in the case of a well-known psychoanalyst, Freud’s biographer? What does ‘weakness’ mean in those two cases? After resuming each interpretation, this paper summarizes three of Lacan’s crucial formulations on the subject of mental weakness: as intellectual inhibition; as an incapacity to question the Other’s desire and, finally, as an incapacity to install oneself steadily in a discourse. With his formulations, Lacan rejects the conception of mental weakness as a cognitive deficit and defines it as a deficiency of language in dealing with jouissance.

Keywords : Lacan, Plato, Ernest Jones, Mental weakness.


RESUMEN

En 1972 el psicoanalista Jacques Lacan interpreta a Platón y, a continuación, a Ernest Jones como débiles mentales. Estas interpretaciones son inusuales e incluso paradójicas. ¿ Cómo se puede hablar de debilidad en el caso del filósofo griego conocido precisamente por su amplia y expresiva producción teórica y, poco después, en el caso de un conocido psicoanalista, biógrafo de Freud? ¿ De qué “debilidad” se trata en estos dos casos? Este artículo indica tres formulaciones de Lacan sobre el tema de la debilidad mental: como inhibición intelectual, como una incapacidad de cuestionar el deseo del Otro y, por último, como una incapacidad de instalarse sólidamente en un discurso. Con sus formulaciones, Lacan se distancia del concepto de debilidad mental entendido como un déficit cognitivo y lo define como un déficit de la lengua para hacer frente a la jouissance.

Palabras chave: Lacan, Platón, Ernest Jones, Debilidad mental.


 

 

No início dos anos 70, mais precisamente no primeiro semestre de 1972, o psicanalista Jacques Lacan interpreta Platão e, depois, Ernest Jones como débeis mentais. Tais interpretações são surpreendentes, inusitadas e, até mesmo, paradoxais. Como falar em debilidade no caso do filósofo grego, conhecido exatamente por sua extensa e expressiva produção teórica, e, logo após, no caso de um dos conhecidos teóricos da psicanálise, biógrafo de Freud? De que debilidade se trata nesses dois casos? Como Lacan a concebe? Em que isso esclarece e formaliza a clínica psicanalítica? São essas as questões que dão o fio condutor deste artigo.

 

A debilidade mental de Platão

Se abrirmos uma das lições de O Seminário, Livro 19 ...ou pior, percebemos que Lacan mostra como Platão fica flutuando entre dois discursos, fica “à cote de la plaque” e, “tal como um débil mental, mostra-se incapaz de se instalar solidamente em um discurso” (Lacan, 1972, s.p.). Depois de colocar entre parênteses as concepções psicológicas que concebem a debilidade mental como um deficit cognitivo, com o seu comentário, o psicanalista indica a noção de debilidade com a qual opera nesse momento. Para ele, o sujeito débil é aquele que fica flutuando entre dois discursos devido à incapacidade de instalar-se solidamente em um deles, concepção que, tal como veremos, em vez de conceber a debilidade como um deficit cognitivo se propõe a pensá-la a partir da deficiência da linguagem em dar conta do gozo.

No caso de Platão, quais seriam esses dois discursos entre os quais o sujeito “flutua”, e qual discurso é esse no qual esse sujeito oscilante não consegue se instalar solidamente? Para respondê-lo é preciso um comentário, ainda que breve, sobre o pensamento de Platão. Lacan interroga a debilidade do filósofo grego quando ele introduz uma separação entre as Idéias e as coisas, separação que torna problemática a relação entre as palavras (os significantes) e as coisas (os objetos). Ao deixar de afirmar que as coisas participam do mundo das Idéias, Platão indaga se não haveria apenas uma relação das coisas entre si e das Idéias entre si? Se as Idéias são entre si, se as coisas são entre si, quem poderá conhecê-las?1

Onde estaria a debilidade de Platão? Em que ele se torna um “caso clínico”, ou seja, em que ponto Lacan o interpreta? Para Lacan, é preciso ler o Diálogo “Parmênides” não como o fazem os filósofos (como um exercício particularmente brilhante), mas com inocência; é preciso, de vez em quando, deixar-se tocar por alguma coisa (Lacan, 1972). Nesse sentido, pode-se dizer que o psicanalista se deixou tocar por Platão exatamente quanto a essa separação que mantém as Idéias entre si e as coisas entre si, sem que se estabeleça uma relação entre elas. Teríamos, de um lado, o simbólico e, de outro, a realidade das coisas e dos objetos. Nesse sentido, de um lado, estão as Idéias (os significantes), e, do outro, as coisas (os objetos), e o sujeito flutua, oscila, entre elas.

Onde estaria a interpretação de Lacan a Platão? A meu ver, ela não reside na localização da posição subjetiva de Platão como débil, mas na consequência a que essas formulações do filósofo levam. Vejamos: a consequência, diz Lacan, é que, ao construir a sua dialética do Senhor e do Escravo, Platão acredita que a essência do Mestre (a Idéia de Mestre) e a essência do Escravo (a Idéia de Escravo) não têm nada a ver com aquilo que é realmente o Mestre e o Escravo. Em que pese o fato de que, na época de Platão, quando os mestres eram feitos prisioneiros, eles se tornavam escravos, e quando os escravos eram libertados, eles se tornavam mestres, o psicanalista mostra que é precisamente nesse ponto que Platão fica “flutuando entre dois discursos, incapaz de se situar solidamente em um”. Um passo a mais e o psicanalista interpreta a inocência do sujeito Platão: separando as Idéias e as coisas, a Idéia de Senhor daquela de Escravo e a realidade do Senhor daquela do Escravo, Platão chega ao “somos todos irmãos!”. E a gente sabe a que serve essa fraternidade. Com a sua habitual ironia, Lacan sugere que ela serve à segregação. Na sua interpretação, ele leva em conta o fato de que Platão, assim como Aristóteles, julgava injusto tornar escravo um “irmão” grego, mas natural e correto escravizar um bárbaro. Tal como afirma um comentarista da filosofia grega: “Eles se limitaram a uma posição que, [...], na realidade, tem uma marca extremamente racista, pressupondo, justamente, a superioridade da raça grega” (Reale, 1992, p. 99).

Para Lacan, a dialética do Senhor e do Escravo não tem chance de subsistir senão com a condição de que se veja precisamente aquilo que Platão descarta, a saber: o escravo não é escravo senão da essência do mestre, do Significante Mestre (S1); e quanto ao mestre, se não houvesse o saber do escravo (S2), o que é que se faria dele? (Lacan, 1972)2

Portanto, a debilidade mental de Platão torna evidente a relação do sujeito a um modo de gozo, modo de gozo segregador, e é nesse ponto que incide a interpretação de Lacan: ele interpela a relação de Platão ao gozo, interpelação que é eminentemente ética. Penso termos aí algo que é, no mínimo, surpreendente: em vez de segregada, tal como no discurso social, a debilidade surge, ela própria, como um modo de segregar.

 

A debilidade mental de Ernest Jones

Em um texto intitulado “O aturdito”, cuja redação Lacan data de 14 de julho de 1972 (isto é, quatro meses após o anterior), encontramos outra referência de Lacan à debilidade mental. Nesse momento, a menção à debilidade mental surge no contexto de uma discussão sobre a sexualidade feminina em sua relação ao falo. Lacan retoma aí o debate dos anos 30 sobre a fase fálica, debate no qual estiveram envolvidas os psicanalistas Karen Horney, Helen Deutsch e Ernest Jones (não é sem interesse observar que Lacan já abordara essa questão no final dos anos 50 no texto “A significação do falo” – 1958/1998 – e em As formações do inconsciente, O Seminário, livro 5 – 1957-1958/1999).

Ao colocar em discussão o caráter paradoxal da existência de uma fase fálica na mulher (como poderia ela estar girando em torno de algo que não tem?), os autores acima mencionados acabam desconhecendo exatamente o valor de significante do falo, o que os leva a ler a noção de falo em uma perspectiva culturalista e até mesmo naturalista. Ao fazer uma leitura culturalista, Karen Horney, por exemplo, acabará por sustentar uma posição feminista, interpretando a relação do sujeito à linguagem como um fenômeno social. O falocentrismo freudiano estaria, assim, sustentado em valores de uma sociedade machista e não em algo que é estruturante da posição do sujeito.

Ao acentuar que, embora aparente dizer a mesma coisa que Freud (ou seja, que as mulheres têm a ver com o falo e com a castração), Jones diz exatamente o contrário, Lacan ironiza o fato de Freud tê-lo escolhido como seu biógrafo: está aí, sem dúvida, “A obra prima pela qual Freud reconheceu que, no tocante ao cervilismo esperável de um biógrafo, esse era seu homem certo” (Lacan, (1972) 2003, p. 464). Lacan faz então o seu comentário sobre a “debilidade mental” de Jones: “Acrescento que a sutileza lógica não exclui a debilidade mental, a qual, como demonstra uma mulher de minha escola, resulta mais do dizer parental que de uma obtusão nata. Foi a partir daí que Jones mostrou-se o melhor entre os goym 3 já que, com os judeus, Freud não tinha certeza de nada.” (Lacan, (1972) 2003, p. 464)

O comentário de Lacan é surpreendente, e por vários motivos:

(1) Encontra-se aí uma definição de debilidade mental que, referindo-se à Maud Mannoni, coloca em questão o dizer dos pais, mais do que uma obtusão de nascença, isto é, chama atenção para a importância da transmissão simbólica e para o modo como o sujeito se localiza em relação a ela, mais do que para uma insensibilidade ou estupidez de nascença.

(2) Lacan é profundamente irônico no seu comentário, não só porque Jones defendeu exatamente uma posição naturalista (“E Deus os fez homem e mulher!”), mas porque a “debilidade mental” de Jones não tem como ser assinalada sem que se toque no “dizer dos pais”, no caso, no desejo de Freud. Afinal, o que queria Freud ao escolher como seu biógrafo logo Jones, que não sabia lê-lo? Se, entre os judeus, Freud nunca estava seguro, que tipo de segurança é essa que surge ao fazer de Jones “o melhor entre os não-judeus”? Logo, este ponto me parece importantíssimo: se a debilidade intelectual depende do dizer dos pais é necessário, ao abordá-la, interrogar o desejo do Outro.

(3) A debilidade surge aí no contexto de uma interrogação sobre o feminino e o falo e ela coloca em questão a posição do sujeito em relação a ele. Estão implicados aí não apenas o sujeito em sua relação ao gozo (caso Platão), mas também o sujeito em sua relação ao Outro, ao desejo do Outro (caso Jones).

De modo a desdobrarmos essas formulações, interessa-nos fazer um breve percurso quanto ao tema da debilidade no ensino de Lacan no qual ela encontra pelo menos três elaborações cruciais.4 No terceiro tempo, a debilidade é tomada como uma flutuação do sujeito entre dois discursos, sem que ele possa instalar-se solidamente em um. Ela implica não apenas um modo de gozo, mas também o dizer do Outro (Lacan do início dos anos 70).

Em uma concepção intermediária, a debilidade é concebida, tal como o fenômeno psicossomático, a partir da holófrase, isto é, do fato de não haver intervalo entre um primeiro e um segundo significantes, entre S1 e S2. Ela não deixa de evocar um ser falante que, tal como o cão de Pavlov, não tem como colocar o desejo do Outro em questão. Quanto a isso, Lacan observa que:

É na medida em que [...] a criança débil toma o lugar [....] em relação a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo obscuro, que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico. É precisamente o que nossa colega Maud Mannoni [...] tenta designar àqueles que, de um modo qualquer, podem ser comissionados a levantar sua hipoteca. (Lacan, (1964) 1988, p. 225)

O que se observa é que, ao colocar em questão o desejo do Outro, no intervalo entre S1 e S2, surgiria o objeto “a”, causa do desejo. Isso é precisamente o que não ocorre nos casos mencionados nesse contexto (Lacan dos anos 60).

No ponto de partida da investigação de Lacan sobre a debilidade mental, não parece inadequado localizar a inibição (intelectual) tal como é possível lê-la na abordagem feita por Lacan da problemática trazida por Hamlet. Tal leitura é precedida, a meu ver, exatamente pela releitura da querela do falo e pela introdução do valor de significante do falo, valor que surge como solução para os impasses nos quais se debateram os pós-freudianos (Lacan dos anos 50).

 

Caso Hamlet: to be or not to be, that’s the question!

Lacan abre a sua discussão do “caso Hamlet” em O desejo e sua interpretação, O Seminário, Livro 6 (1958/1959), retomando um caso clínico apresentado por uma psicanalista de língua inglesa, Ella Sharpe. No caso relatado por ela, antes de entrar no consultório de sua analista, o analisante a imagina masturbando e tosse para preveni-la a fazer desaparecer as marcas de qualquer desejo, de modo a que ele não tenha que colocá-las em jogo. A propósito, Lacan afirma: “O sujeito quer manter o falo da mãe. Ele denega, ele recusa a castração do Outro, o que expresso dizendo que ele não quer perder sua dama. Neste caso, ele coloca Ella Sharpe na posição de falo idealizado, e é disso que a avisa através de uma pequena tosse antes de entrar na sala – que ela faça desaparecer as marcas” (Lacan, (1959) 1986, p. 1).

Valendo-se de uma metáfora do jogo, “ele não quer perder sua dama”, Lacan evidencia que é do lado da dama que esse sujeito coloca toda a potência e que é desse lado que nada deve ser mudado. Para ele, a mulher não deve ser sem ter o falo, e é por isso que ele não quer que ela o arrisque. Ele não consente em perceber que a mulher é castrada. Em vista disso, pode-se indagar: para esse sujeito, atrapalhado com o falo, a mulher ocupa o lugar de um sintoma ou de uma inibição? Penso poder afirmar que a mulher vem no lugar da inibição e que isso contribui para mantê-la no lugar de falo idealizado. Lacan localiza em um lapso cometido pelo sujeito, “fazer uma viagem com minha mulher em volta do mundo”, o fato de que para ele “sua mulher é seu falo” (Lacan, 1958-1959).

Lacan (1958-1959) lerá a inibição desse sujeito, na abordagem do objeto feminino, valendo-se do conceito de afânise, formulado por Ernest Jones. No entanto, o psicanalista francês interpreta a afânise não como um medo de que o desejo falte (tese de Jones), mas como um modo que o sujeito encontrou para “guardar o desejo no bolso”, assim como se diz de um jogador que ele “guarda uma carta na manga”. Poderíamos indagar se, nesse sentido, não haveria uma associação entre a inibição e a impotência.

Ao localizar a posição do paciente de Ella Sharpe em relação ao falo, Lacan (1958-1959) retoma a oposição entre “ser” e “ter” o falo, ressaltando que para esse sujeito a questão seria “ser ou não ser o falo”, posição que ele define como feminina, ou seja, ser o falo sem, no entanto, tê-lo. Ser ou não ser, to be or not to be, essa fórmula, que nos dá o estilo da posição de Hamlet, tornou-se quase uma piada. Se o paciente de Ella Sharpe se inibe para abordar uma mulher, Hamlet se inibe diante de um ato a realizar, ou seja, inibe-se em executar a tarefa que lhe encomendou o fantasma (ghost) de seu pai, “morto na flor de seus pecados”: matar o tio Claudius, que está lá ocupado em satisfazer o desejo insaciável de Gertrudes, sua mãe.

Nota-se que, na teoria psicanalítica, essa oscilação, essa flutuação entre esses dois lugares, entre ser ou não ser o falo da mãe, anuncia o segundo tempo do Édipo no qual a criança é introduzida ao registro da castração, de modo incontornável, pela intrusão paterna. A criança é intimada pelo pai a colocar em questão a sua identificação ao falo e, no mesmo lance, a renunciar em ser o objeto do desejo da mãe. A intervenção paterna, mediada e consentida pela mãe, a priva de ter a criança como falo e, ao mesmo tempo, frustra a criança de ser esse falo que a sua mãe tem em falta. Se essa mediação não ocorre, o sujeito permanece assujeitado à mãe, assujeitamento que é fonte de angústia e do surgimento de sintomas, tal como no caso do pequeno Hans (Lacan, (1957-1958) 1999).

Por um lado, podemos perceber que Hamlet oscila, flutua entre esse ser ou não ser o falo, e que isso, essa inibição, digamos assim, não favorece qualquer abordagem do objeto feminino: Ofélia é, portanto, um objeto recusado. No entanto, a inibição em Hamlet pode também ser lida a partir da idéia de que a debilidade diz respeito ao dizer dos pais, isto é, depende do desejo do Outro, e, em Hamlet, principalmente do desejo do Outro materno.

O pai faz uma injunção a Hamlet de que ele “se interponha entre a sua mãe e a alma dela que está cedendo” (Lacan, (1959) 1986, p. 36) diante da insaciabilidade do desejo, cedendo diante do gozo; o trabalho de luto pela morte do marido não foi sequer iniciado por ela. No entanto, Lacan mostra como aí, devido à oscilação, o apelo paterno desaparece, se evapora. Hamlet entrega as armas frente ao desejo da mãe, que se lhe apresenta como “inelutável, impossível de sublevar” (Lacan, (1959) 1986, p. 36). Inibido, ou melhor, debilizado, Hamlet oscila entre a injunção paterna e o desejo materno, e só deixará de fazê-lo, saindo da inibição, na medida em que algo do luto (do falo) efetivar-se. O pranto de Laerte pela morte de sua irmã Ofélia cumprirá aí a sua função. Se, como mostra Lacan ((1959) 1986), ao ler Hamlet, o mais certo e o mais evidente é que ele está fixado em sua mãe, aquilo com que ele se debate é um desejo que está bem longe do seu. Não é o seu desejo por sua mãe, é o desejo de sua mãe. Diante desse desejo, ele entrega as armas e a fixação no desejo do Outro materno não é sem consequência sobre o ato.

 

Para concluir

Depois de termos mostrado que Lacan trata o tema da debilidade mental como inibição intelectual (anos 50), como incapacidade de colocar o desejo do Outro em questão (anos 60) e como incapacidade de instalar-se solidamente em um discurso (início dos anos 70), é importante assinalarmos que, nos últimos momentos de seu ensino, ele conclui que não há outro modo de lidar com o real senão a elucubração de saber própria ao inconsciente (Lacan, 1976-1977), portanto é o simbólico mesmo que nos torna débeis (Rosa Vieira, 2005). À vista disso, tanto o filósofo (Platão) quanto o psicanalista (Jones) estariam, em última instância, inseridos naquilo que Lacan formula como uma espécie de debilidade mental generalizada decorrente da constatação de que é impossível desvencilhar-se completamente do aparelho da linguagem para tratar o real.

 

Referências

Jones, E. (1979). La fase precoz del desarollo de la sexualidad femina. In: La feminidad como mascara. Barcelona:Tusquet Ediciones, s.p.         [ Links ]

Lacan, J. (1958-1959). O Seminário, Livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1972/1973). O Seminário, Livro 19:... ou pior. Lições de 8/3/1972 e 15/3/1972. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1976-1977). Le Seminaire, Livre 24: l’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre. Inédito        [ Links ]

Lacan, J. (1986). Hamlet por Lacan (1959). Campinas: Liubliu.         [ Links ]

Lacan, J. (1988). O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar. p. 223-226.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). A significação do falo (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. p. 692-703.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. p. 591-652.         [ Links ]

Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Zahar. p. 166-220.         [ Links ]

Lacan, J. (2003). O aturdito (1972).In: Outros escritos Rio de Janeiro: Zahar. p. 448-497.         [ Links ]

Reale, G. (1992). História da filosofia antiga. 1983. São Paulo: Loyola. v. 5.         [ Links ]

Rosa Vieira, M. M. (2005). Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Literatura Comparada, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.         [ Links ]

____________. “Um Platão lacaniano – um estudo sobre o Parmênides de Platão e o ‘y a d l’un’ de Lacan”. Estudos Lacanianos, Ano I, n.2, julho-dezembro 2008, p. 239-253.         [ Links ]

 

 

*Texto recebido em dezembro/2007.
Aprovado para publicação em agosto/2008.

 

 

*Professora recém-doutora do Departamento de Psicologia UFMG/FAPEMIG, psicóloga, doutora em Literatura Comparada (UFMG), pós-doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ), psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
E-mail: marcia.rosa@globo.com
1 Conferir a 5º hipótese do Diálogo Parmênides, de Platão. Desdobrei a leitura feita por Lacan deste diálogo de Platão sob o título “Um Platão lacaniano – um estudo sobre o Parmênides de Platão e o ‘y a d l’un’ de Lacan” na revista Estudos Lacanianos, Ano I, n.2, julho-dezembro 2008, p. 239-253.
2OPercebe-se que aqui Lacan faz uma alusão à sua teoria dos quatro discursos concebidos como modos de laço social. De um discurso para outro muda o elemento que faz o enlaçamento: no Discurso do Mestre, é a relação de um significante (S1) a outro (S2) que enlaça; no Discurso da Histérica, é o sintoma (S dividido); no Discurso do Analista, o objeto (a); e, no Discurso Universitário, o saber (S2). No comentário acima, Lacan deixa implícita uma referência aos Discursos do Mestre e ao Discurso Universitário.
3Modo como os judeus designam os não-judeus.
4Embora fuja da proposta deste artigo examiná-lo, cabe lembrar que, a partir de meados dos anos 70, quando retoma a questão da debilidade, Lacan propõe que é o simbólico, como único aparelho de que dispomos para tratar o real, que nos faz débeis. Não apenas esse, como outros comentários posteriores, nos permitiria desdobrar a teoria da debilidade mental em Lacan em um quarto momento, no qual incluiríamos as formulações de seminários como o RSI, o L’insu que sait de l’une bevue saile a mourre etc.

Creative Commons License