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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.2 Belo Horizonte dez. 2008

 

ARTIGOS

 

O sujeito entre psicanálise e ciência

 

The subject between psychoanalysis and science

 

El sujeto entre el psicoanálisis y la ciencia

 

 

Hilana Erlich,I*; Sonia AlbertiII**

ISecretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

A postulação segundo a qual “o sujeito com o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência” (Lacan, 1966), conhecida nos meios lacanianos é, no entanto, de desenvolvimento delicado quando se trata de desdobrá-la na articulação com outros discursos. Em particular, quando estes se submetem, justamente, às referências de cientificidade. De um movimento comum, o sujeito da ciência e o da psicanálise se entrecruzam em diversos aspectos, ao mesmo tempo em que têm diferenças radicais diante do real, do simbólico e do imaginário da clínica. Fazemos um levantamento da articulação entre tais aspectos, tendo como referência as obras de Freud, Lacan e outros autores, buscando examinar e afinar a noção do sujeito em psicanálise. Desse modo, pensamos fornecer mais um instrumento àqueles que sustentam o lugar da psicanálise na pólis, no intercâmbio com outros discursos. Concluímos que, muitas vezes, a psicanálise sustenta o surgimento do sujeito onde ninguém esperava.

Palavras-chave: Psicanálise e ciência, Sujeito do inconsciente, Cogito Cartesiano, Ética.


ABSTRACT

Lacan`s idea that ‘the subject psychoanalysis deals with is the subject of science’ (1966), though well known in his milieu, requires skillful handling when it comes to articulating it with other discourses, specially when those discourses are submitted precisely to scientific references. Derived from a common movement, the subject of science and that of psychoanalysis interact in many aspects, but they also differ radically when confronted with the real, the symbolic and the imaginary of the clinic. This article verifies the link between those aspects, referring to Freud, Lacan and other authors, in order to examine and sharpen the concept of subject in psychoanalysis, so as to offer one more instrument to those who sustain the political function of psychoanalysis in the world, in the interchange with other discourses. We conclude that psychoanalysis may sustain unexpected appearances of the subject.

Keywords: Psychoanalysis and science, Subject of the unconscious, Cartesian cogito, Ethics.


RESUMEN

El postulado lacaniano según el cual “el sujeto con el cual el psicoanálisis opera es el sujeto de la ciencia” (1966), conocido en los medios lacanianos tiene, sin embargo, un desarrollo delicado cuando se trata de prodigarlo en articulación con otros discursos. En particular, cuando estos se someten, justamente, a las referencias de cientificidad. De un movimiento común, el sujeto de la ciencia y el del psicoanálisis se entrelazan en diversos aspectos, al mismo tiempo en que tienen diferencias radicales frente a lo real, a lo simbólico y a lo imaginario de la clínica. Hacemos un examen de la articulación entre tales aspectos, teniendo como referencia las obras de Freud, Lacan y otros autores, tratando de examinar y perfeccionar la noción del sujeto en el psicoanálisis. De este modo, pensamos en proporcionar un instrumento más para aquellos que sostienen que el lugar del psicoanálisis está en la pólis, en el intercambio con otros discursos. Concluimos que muchas veces el psicoanálisis sostiene el surgimiento del sujeto donde nadie esperaba.

Palabras clave: Psicoanálisis y ciencia, Sujeto del inconsciente, Cogito cartesiano, Ética.


 

 

No trabalho que desenvolvemos em serviços tais como o hospital e o posto de saúde, marcados prioritariamente pelo discurso médico, verificamos que a psicanálise, por colocar seu acento no sujeito, contrapõe-se, às vezes, a outros discursos que também transitam nesse espaço clínico. No entanto, e por isso mesmo, ela pode ser capaz de transmitir sobre o sujeito um saber desconhecido por outros discursos, qual seja, o de este ser marcado pelo inconsciente. A subjetividade excluída do discurso médico é privilegiada no discurso psicanalítico, já que é a possibilidade de articulação entre o sintoma e a história do sujeito. Tais observações que nos vieram de uma clínica desenvolvida em instituição nos levam a propor uma verificação rigorosa da concepção de sujeito em psicanálise.

A psicanálise nasce no seio da Medicina e adquire como herança da clínica médica o ponto fundamental de seu método: a clínica como lugar de investigação e terapêutica. Se, por um lado, a história da psicanálise se inicia a partir da prática médica, por outro, é efeito de uma ruptura com este discurso para instaurar um discurso próprio, outra clínica, numa outra cena. Esse rompimento ocorre quando Freud percebe que seu instrumento de saber não dá conta das manifestações de suas pacientes. Porque as histéricas escaparam ao saber da Medicina é que algum enigma se constituiu das manifestações que apresentavam.

Dessa forma, pode-se dizer que a psicanálise surge dos furos do saber médico, ou seja, de um ponto limite da Medicina. Freud inaugurou com a psicanálise uma clínica, por meio de um novo método para tratar do sofrimento psíquico, acrescentando um saber ainda não sabido. Contudo, se trouxe uma luz a essa clínica, permitindo alívio de sintomas, jamais quis com isso dar conta dos mesmos furos. De outro modo, são justamente esses furos que passam a vigorar em sua teoria e prática, uma vez que a marca da incompletude do sujeito e, para o discurso psicanalítico, uma marca absolutamente operante.

No início de sua obra, Freud (1895) busca conferir estatuto aos processos psíquicos, representando-os como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, à imagem dos neurônios. O uso de termos neurológicos, com os quais Freud descreve as ideias em seu Projeto para uma Psicologia, explicita a marca de sua formação e a preocupação em, nesse momento, alinhar a esse saber sua proposta.

Segundo Foucault (2001), a Medicina ganhou cunho científico por conta do aparecimento da anatomia patológica. Ao localizar no corpo biológico a lesão, cuja investigação e observação poderiam suscitar estudos para sua terapêutica, a Medicina passa a funcionar a partir dos mesmos pressupostos da ciência. “A ciência moderna surge quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se os critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico” (Marcondes, 1998, p. 150).

A afirmação de que a Medicina pode ser classificada no campo da ciência convoca ao estudo da relação inicial entre psicanálise e ciência. Segundo Lacan, a psicanálise deve à ciência seu aparecimento, enquanto esta instalou uma marca fundamental ao campo inaugurado por Freud. Por sua vez, em “A ciência e a verdade” (1966), Lacan diz que o sujeito com o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência, sugerindo uma aproximação entre os dois campos e instigando a um exame mais apurado no que concerne à definição desse sujeito.

Vários autores acompanham o debate sobre a cientificidade da psicanálise (cf. Cezimbra, 2004), o que proporciona repensar as peculiaridades de ambos os discursos e sua possível interseção. Muitas pesquisas que vêm sendo desenvolvidas nos campos da Medicina e das neurociências buscam fazer avançar o conhecimento sob a forma de um discurso neurocomportamental. O que se percebe ao lado desses estudos que têm sua importância ao investigar imagens, funcionamento cerebral e circuitos neuroquímicos, é um risco da supressão do sujeito. Pois, em nome desse discurso, a subjetividade passa despercebida, de modo que o sujeito do inconsciente, que especifica a psicanálise, pode sofrer um apagamento, por ser situado na visão de alguns autores como uma localização cerebral, em detrimento do que aposta a psicanálise: um efeito do discurso. Ao substancializar o inconsciente, perde-se de vista que a subjetividade humana, como aponta a psicanálise, é marcada pela linguagem que é material. Mas isso não implica em partilhar mente e corpo. Ao contrário, a subjetividade de que se fala só pode ser enunciada a partir de um corpo real, que também é subjetivado de modo singular por cada sujeito. Não há melhor lugar da clínica para verificá-lo do que o hospital.

Considerando as consequências clínicas que o discurso psicanalítico pode acarretar, pois implica uma posição do analista frente ao sujeito e à direção do tratamento, cabe avaliar como fazer valer o discurso psicanalítico no intercâmbio com outros discursos com os quais cruza, no âmbito dos serviços de saúde. Se não é possível substancializar o inconsciente, de que modo sustentar os efeitos que produz?

A ciência moderna é fundamental para a aparição do campo psicanalítico, enquanto, com o cogito de Descartes, nasce o sujeito. Se o cogito inaugura o sujeito reduzido ao significante, fato que justifica a dívida da psicanálise ao campo da ciência, a psicanálise, ainda que o reconheça como efeito do significante, confere, a partir da clínica, que o sujeito não se resume a ele. O sujeito só se representa parcialmente, sendo na não-representação que a vertente real pode comparecer. A fim de avançar nessa tentativa de afinar o que é esse sujeito para a psicanálise no debate com outros discursos presentes nos serviços de saúde, sugerimos articular a noção de sujeito aos registros do real, simbólico e imaginário.

Se psicanálise e ciência são o cenário ou contexto que nos instiga, são também ponto de partida, “pré-texto”, para uma investigação acerca da noção de sujeito. Seja como contexto ou “pré-texto”, são as aproximações e afastamentos entre a psicanálise, a ciência e o sujeito que lhes concerne que nos debruçamos na construção deste texto.

 

Do ideal de ciência à subversão do sujeito

A afirmação lacaniana de que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1966, p. 873) é não só o ponto de interseção selecionado como também ponto de partida. Para Freud, a ciência representava um ponto ideal. Segundo Milner (1996), Freud se entregara à busca da ciência ideal ao retomar o conjunto das características da ciência proposta por aqueles a quem reconhecia um trabalho científico como Helmholtz, Mach e Boltzman. A Física tornara-se o critério da ciência ideal, de modo a orientar Freud na constituição de uma ciência conforme o modelo da época. Mas já não se pode dizer o mesmo quanto à posição de Lacan. Ele não acredita num ideal de ciência para a psicanálise, uma vez que, para ele,a ciência é essencial à existência da psicanálise, não se colocando, portanto, como ideal. A ciência não é exterior à psicanálise, “ao contrário, ela estrutura de maneira interna a própria matéria de seu objeto” (Milner, 1996, p. 31). Desse ponto de vista, por não existir um ideal de ciência para a psicanálise, não há para ela ciência ideal a seguir. “A psicanálise encontrará em si mesma os fundamentos de seus princípios e métodos” (Milner, 1996, p. 31).

De acordo com Lacan, Freud foi conduzido pelas referências do cientificismo de sua época a abrir a via para a psicanálise, preservando, pela marca essencial advinda deste, seu crédito, apesar dos desvios que o campo sofreu.

Para tentar verificar de que marca essencial se trata, Lacan destacou um momento historicamente definido do sujeito, que considerou ser o correlato da ciência, o do cogito inaugurado por Descartes quando este se opôs ao saber existente e se pôs a duvidar de tudo, sendo apenas sustentável o que resistisse à dúvida. Quando tudo passava pela dúvida, como condição metódica, como adquirir alguma certeza? Angustiado pelo efeito da pergunta por ele instalada, Descartes produz, como ancoragem à sua condição subjetiva, a seguinte resposta: “Só posso estar certo de que penso, pois mesmo que disto duvide, ainda assim continuarei pensando” (Elia, 2000, p. 21). O pensamento passa a ser assim aquilo que resiste à dúvida, tornando possível a formulação do cogito. É interessante notar que tal formulação só foi possível a Descartes justamente por causa da angústia por ele vivida diante da perda de toda certeza. Foi, pois, como sujeito frente à falta da resposta no Outro que Descartes se pôs a buscar aquilo que então se tornaria o fundamento da ciência moderna.

O sujeito, tal como definido pela psicanálise, é inaugurado pelo cogito, conforme ele implica uma destituição subjetiva, cuja origem está na experiência feita por Descartes de um despojamento do saber. A destituição subjetiva por ele vivenciada veio como efeito da dúvida que, ao ser usada como método, permitiu o questionamento das ideias estabelecidas. Como consequência, a imagem que definia Descartes como sujeito, conservada pelo saber existente, esvazia-se.

O cogito funda a ciência moderna, no sentido de uma ruptura com o pensamento dominante até aquele momento. Se Galileu criou a ciência moderna, cujo modelo é a Física matematizada, Descartes o fez pelo viés da subjetividade. É por isso que Lacan sustenta a ideia de um sujeito da ciência inaugurado por Descartes, e é desse modo que, por sua interpretação, podemos dizer hoje que há, na fundação da ciência, também a invenção de uma nova concepção de sujeito. E como a psicanálise é moderna, uma vez que só aparece a partir do corte inaugurado pela ciência moderna, o sujeito freudiano não pode ser outro senão o sujeito cartesiano.

Milner (1996) sugere que uma teoria do sujeito que pretenda seguir as determinações científicas deve, tal como a operação da Física matematizada, despojar seu objeto de qualquer qualidade. Quanto a esse sujeito, pode-se dizer:

Ele não é mortal nem imortal puro nem impuro, justo nem injusto, pecador nem santo, condenado nem salvo; não lhe convirão nem mesmo as propriedades formais que durante muito tempo havíamos imaginado constitutivas da subjetividade como tal: ele não tem nem Si, nem reflexividade, nem consciência. (Milner, 1996, p. 33)

O cogito traz à tona a emergência de um pensamento qualquer sem qualidades, que é apropriado tanto à ciência quanto à psicanálise, sendo assim a marca fundamental que a psicanálise herda da ciência. Desse modo, Freud deve à ciência não ter se tornado humanista, já que a psicanálise não trata do homem, mas do sujeito. A ciência foi a primeira a falar de coisas sem homem, ainda que pelo preço de também eliminar o sujeito que Freud então recupera.

Visto que o inconsciente apresenta-se como um pensamento sem qualidades, faz sentido que Freud tenha colocado apenas uma regra de valor fundamental a seus pacientes: falar tudo o que vier à cabeça, pois as manifestações inconscientes aparecem no discurso do sujeito, revelando pensamentos ainda desconhecidos.

O cogito inaugura a possibilidade de tratar os objetos pelo simbólico, através da linguagem. Em, “penso: ‘logo sou’” (Lacan, 1966, p. 879), o que está entre aspas, além de ser o conteúdo do pensamento, é uma fala. Com isso se demonstra que o que funda o ser é o dizer, o ser só é fundado pelo pensamento porque ali se vincula à fala. Não há ser fora da possibilidade de dizer “logo sou”, afirmando a existência por meio da linguagem, a ponto de o pensamento depender da fala para se fazer valer no dito. Donde o aforisma lacaniano: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Fazer existir no simbólico é a única forma pela qual o ser humano pode apreender, presentificar qualquer objeto, fazendo-o existir, por exemplo, no papel e no cálculo científico, substituindo metaforicamente o objeto que o conceito representa. Dessa forma, privilegiando o simbólico, cogito faz existir o sujeito como objeto do pensamento, o que é radicalmente distinto do sujeito em sua vertente real e imaginária.

As determinações científicas criadas por Descartes dizem respeito à existência de um pensável e um impensável, um dizível e um indizível, um conceituável e um impossível de conceituar. Dessa forma, pode-se dizer que a ciência testemunha o fato de que há um impossível em jogo de dar conta, ainda que se debruce sobre o estudo do pensável, dizível e conceituável, ou seja, daquilo que pode se apreender pelo simbólico. A psicanálise tem como referência as mesmas determinações da ciência, no entanto, diferente desta, ocupa-se também do impensável, indizível, que diz respeito ao lado real do sujeito.

Dizer que o sujeito sobre quem operamos é o sujeito da ciência já admite em si a especificidade psicanalítica, qual seja, a de tratar do sujeito por meio de uma determinada operação. A ciência exclui o sujeito por ela inaugurado, enquanto a psicanálise o inclui em seu campo operatório pela subversão que o reconhece como sujeito do inconsciente.

Dizer que a psicanálise compartilha do mesmo método que a ciência é dizer que “tratar o real pelo simbólico é a démarche científica por excelência” (Elia, 1999, p. 42). No entanto, se a psicanálise, por um lado, inscreve-se nesse método, por outro, ela rompe para criar um método próprio, particular a ela. Pode-se dizer que um sujeito vem buscar análise ali onde, pela emergência do real, seu recurso simbólico falha. O real implicado na experiência da análise exige ser tratado pelo simbólico da teoria.

Mas, se tanto a ciência quanto a psicanálise tratam o real pelo simbólico, há uma diferença em seus recortes. A tentativa da ciência é de fazer um recorte ali onde o simbólico possa nomear os fenômenos e, uma vez que o campo da ciência é o das representações, o que não pode ser nomeado fica fora de seu campo. No caso da psicanálise, se o simbólico serve ao sujeito a nomear, ao mesmo tempo ele falha, permitindo com que o furo real da estrutura psíquica apareça e seja cuidado. Essa distinção é exatamente o ponto crucial que faz da psicanálise um método particular, já que é a única que opera sobre o real nesse sentido, ou seja, incluindo-o sem tentar dar conta dele. O trabalho analítico é o de constatar esse furo no simbólico, impossibilidade constituinte do ser falante. A operação de castração é uma operação simbólica do fato de que há um real em jogo.

Tomar o simbólico como incompleto, furado, é o que dá o norte à ética da psicanálise. Em seu ,Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960), Lacan indica a dimensão real como fundamental para orientar a prática clínica do analista. A referência à dimensão da experiência real do sujeito direciona a escuta do psicanalista. É o furo no simbólico entendido como algo que constitui o sujeito que vai orientá-lo na condução do tratamento.

Em sua conferência XXXV, Freud (1933) conclui que a Weltanschauung científica não é capaz de abranger tudo, que é incompleta e não pretende ser autossuficiente, nem construir sistemas. Essa incompletude, que desenha a Weltanschauung científica, pode ser considerada como um ponto do qual a psicanálise se aproxima

A ciência oferece apenas fragmentos de suas descobertas, colecionando observações de constâncias no curso dos eventos, aos quais dá o nome de leis. Os achados científicos permanecem como provisoriamente verdadeiros, já que podem ser substituídos por outros a que se confira maior grau de certeza. A possibilidade de refutar ideias, colocando-as em dúvida, levando em conta fatores inesperados, dando andamento às pesquisas, permite uma revisão de alguns pontos para aprimoramento e progresso do trabalho. Esse método empregado pela ciência tem grande semelhança à forma de investigação proposta por Freud, na qual enfatiza que “o progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise” (1933, p. 160). Sugere que devemos conter nossas expectativas para permitir o surgimento de alguma coisa nova por meio da observação. Também pela via de conjecturas, da renúncia a convicções precoces, o analista jamais deve negligenciar fatores inesperados. Mas termina com a seguinte observação: “Na análise, porém, temos de prescindir da ajuda fornecida à pesquisa, mediante a experimentação” (Freud, 1933, p. 161).

Se o real escapa a qualquer teoria, sistema, ou forma de pensamento, é porque aponta em sua condição um limite, então a própria impossibilidade seria, na realidade, inerente à própria constituição da ciência. Mas nem todo aquele que se diz cientista leva em conta essa impossibilidade... Com efeito, na atual posição que o discurso da ciência ocupa de forma perfeitamente idealizada, é justamente tal assunção da impossibilidade que falta. Como Lacan já o observava em seu Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963), nesse contexto, a falta falta. Mas a psicanálise, por não visar a nenhuma Weltanschauung, pretende-se incompleta, fundada no vazio, no buraco do real e, enquanto discurso do singular, abre espaço para questionar o que se apresentaria senão de maneira fechada.

De acordo com Freud, a ciência estaria muito incompleta sem a psicanálise. Isso nos remete ao apontamento feito por Lacan sobre o sujeito da ciência. Se a ciência, como diz Freud, fica incompleta sem a psicanálise, é porque ela exclui o elemento que somente a psicanálise, por seu método, reintroduz. O sujeito do inconsciente, recolocado em cena pela psicanálise, atesta um ponto limite da ciência. Isso se destaca, já que a ciência procura evitar fatores individuais e influências afetivas, ou seja, as variáveis que, advindas do sujeito, podem atrapalhar o desenvolvimento de algum raciocínio.

Colocando o sujeito no lugar do próprio endereçamento do discurso psicanalítico, Freud operou uma subversão disso, e os pensamentos, sejam eles quaisquer, passaram a situar-se no campo do inconsciente, lugar de onde fazem valer, pela fala do analisando, a clínica psicanalítica.

 

A linguagem e a fala

Ao atender ao pedido de suas pacientes histéricas, que preferiam falar a que lhes falassem, Freud priorizou a fala dessas mulheres, dando-lhe um lugar destacado. É a fala do sujeito que funda a psicanálise, por conseguinte, aquilo que lhe constitui o fundamento, o alicerce. Assim, Lacan ressalta a fala do analisando como meio de que o analista dispõe para tratá-lo, visto que o discurso revela o lugar de onde o sujeito fala. Define da seguinte maneira o método psicanalítico:

Seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real. (Lacan, 1953, p. 259)

A função da linguagem, considerada primordial para a psicanálise, não é a informação, mas a evocação. O que se busca na fala é a resposta do Outro. É preciso ressaltar que o analista não é idêntico ao Outro, ainda que o sujeito possa atribuir-lhe esse lugar, o que exige do analista um manejo da transferência. Pode-se dizer que um sujeito busca análise por apostar que o analista detém o saber sobre algo que lhe falta. O sujeito supõe que, se ele nada sabe, alguém deve saber, o que indica a própria suposição de estrutura do inconsciente. A atribuição ao analista de um saber do qual ele, sujeito, não sabe caracteriza a transferência cujo pivô Lacan nomeou de sujeito suposto saber. O sujeito se dirige ao analista, acreditando que é ele quem sabe, desconhecendo, desse modo, que o saber que não se sabe mora em Outro lugar.

De acordo com Lacan, a transferência vai aparecer ali onde há linguagem, já que o funcionamento desta última coloca, de um lado, o emissor e, de outro, um ouvinte. “É justamente essa assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve como fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de psicanálise” (Lacan, 1953, p. 258).

Considerando que cada sujeito é sujeito da sua história particular, cada qual será marcado por um determinado texto. Mas nele há lacunas. Esses capítulos em branco podem ser em parte resgatados, já que se encontram escritos em outro lugar. Lacan aponta alguns desses lugares como o corpo enquanto núcleo do sintoma histérico, documentos, arquivos, lembranças infantis, além de tradições que veiculam a história particular de cada sujeito. Em suas palavras: “O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história” (1953, p. 263). Pode-se colocar então que o inconsciente é um texto próprio a cada sujeito, portanto com determinações particulares a cada um.

A tese de que a linguagem estrutura o inconsciente, isto é, de que a outra cena que determina o sujeito é feita de linguagem, tornou possível a compreensão de resoluções de questões e sintomas pela via da análise já que, se o sintoma, por exemplo, é da ordem do inconsciente, então ele se estrutura como uma linguagem, podendo desfazer-se por meio dela. As modulações do discurso que se dão pelas operações de linguagem velam e revelam, ao mesmo tempo, o desejo.

A linguagem, para Lacan, é não só o tema com que impulsiona seu ensino como também o que ele eleva ao estatuto de lei que rege o psiquismo humano. A lei de que se trata é a lei do Outro, como determinante para o sujeito, na mesma proporção em que aponta para o lugar onde o desejo habita. Assim, a lei do ser falante é a lei do desejo, que só pode aparecer por meio da mediação simbólica, manejada pela linguagem, o que coloca a indissociável relação entre desejo e linguagem. Dizer que o desejo é o desejo do Outro implica situar, num lugar exterior ao sujeito, o desejo que lhe afeta, de onde advém sua lei. A linguagem tem um funcionamento automático, operando independente do sujeito. No entanto, requer leis, regras, operações, construções que aparecem na modulação do discurso do sujeito. A linguagem como lei remete ao simbólico, ao passo que somente pelas palavras é que o homem faz valer sua lei. A lei que superpõe a cultura ao reino da natureza é da ordem da linguagem, como no caso das estruturas de parentesco. Aqui se introduz o complexo de Édipo como orientador de certa lógica subjetiva, fazendo reconhecer em seus efeitos a estrutura da linguagem que, mesmo não toda, coloca limites, impossibilidades para o sujeito: a proibição do incesto aparece como eixo subjetivo, conforme interdita certos objetos, fazendo valer a impossibilidade, logo a lei, que é a da linguagem.

A constatação de que o que é da ordem do inconsciente se apresenta no discurso levou Lacan à seguinte colocação: “[...] Para-além da fala é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (Lacan, 1957, p. 498). O que está em jogo numa análise é o problema da relação no sujeito entre a fala e a linguagem. A fala pode ser definida como a forma com que cada sujeito vai utilizar-se da linguagem. Da relação que se estabelece entre ambas decorrerão três paradoxos: o primeiro aparece na loucura, onde há uma fala que recusa a fazer-se reconhecer, aparecendo como obstáculo à transferência. Além disso, há formação de delírio, podendo ser de natureza fabulatória, cosmológica, idealista, etc. Enfim, seu efeito é de objetivar o sujeito numa linguagem estanque, sem relativização, sem dialética, o que indica um comprometimento da dimensão simbólica. De modo que fica no lugar de objeto; o sujeito é mais falado do que fala. O segundo paradoxo trata dos sintomas, inibições e angústias na economia das diferentes neuroses. O que ocorre aqui é que a fala é expulsa do discurso concreto que ordena a consciência, sendo recalcada. O terceiro diz respeito ao sujeito que perde seu sentido nas objetivações do discurso, ficando excluído o que é da ordem da subjetividade. Como no homem moderno, cuja marcação da ciência ejeta o que é da ordem do sujeito.

Para enfrentar tal risco, Lacan dá relevo ao significante no tocante ao sujeito: é do significante a função de representar o sujeito para outro significante. Mas tal representação não reduz o sujeito a ela, ao contrário, aponta o seu próprio limite, deixando ao sujeito um lugar êxtimo ao do registro significante. Como nos ensina Jorge ao comentar o par de significantes, “[...] Não apenas a coisa está inteiramente ausente da representação significante, mas também que o outro significante, ausente, é o que está ato contínuo sendo referido pelo primeiro” (2002, p. 82).

Lacan (1957) designa por letra o suporte material que o discurso toma da linguagem. Ela mantém uma relação de extimidade com o significante, isto é, se, de um lado, ela está presente em sua estrutura, de outro, mantém-se fora, não sendo possível apreendê-la. A letra sozinha, isolada, não permite nenhuma simbolização, é da ordem do real fazendo o que Lacan chama litoral, utilizando-se, de um lado, do jogo com a palavra literal e, de outro, com a palavra litter– rebotalho, conforme o uso que dele faz James Joyce (Lacan, 1970-1971, p. 117). Por exemplo, a letra “a”, desarticulada, não significa nada, no entanto, ao ligar-se a outras letras, pode vir a produzir algum sentido. A questão da letra remete pensar na relação entre real e simbólico, uma vez que, sendo o simbólico não-todo, tudo o que a ele se refere, como o significante, apresentará essa face de incompletude. Assim, seria possível dizer que a letra é a face da linguagem que, ao mesmo tempo em que permite que se formem significantes, mantém-se fora destes em sua vertente real. Se o significante é o que representa o sujeito, portanto, no simbólico, a letra permanece do seu lado real, não abordável. A letra é aquilo que esvazia o significante, ou seja, separa-o de sua função de significar: “Se Lacan chama atenção para o aspecto literal do significante, é porque a letra é o significante em sua materialidade,isto é, por ser irredutível às formações significantes, ela funciona como um operador assemântico que engendra a significação” (Freire, 1996, p. 30).

O sujeito, desse modo, está sujeito ao significante. Ele é intervalar, pontual e aparece no “entre” dos significantes, tendo o “real encravado no coração de sua prática” (Souza, 1996, p. 13).

 

A destituição subjetiva e o eu

O valor do cogito para a psicanálise não está na dúvida, enquanto instrumento tal qual funcionou para Descartes, mas no efeito de sujeito que esta acarreta. Trata-se do sujeito que emerge e se constitui como resíduo na incerteza do saber, no instante pontual em que duvida. Lacan nomeia de sujeito do inconsciente esse instante em que algo de sua verdade irrompe, desorganizando a estrutura do eu. A desfiguração da imagem instalada por esse momento de aparição de sujeito provoca imediatamente uma operação que busca a constituição de uma síntese que reorganize o saber. E, como efeito dessa tentativa de compor uma unidade, surge aquilo que Freud nomeou como o lugar do eu. Ressaltamos que o eu não se reduz ao imaginário, sendo também atravessado pelos registros, real e simbólico:

O eu não é o sujeito e ambos são, de fato, absolutamente heterogêneos, pois o eu (corpo próprio) se forma a partir da matriz imaginária produzida no estádio do espelho como um verdadeiro rechaço da pulsão (corpo espedaçado). O eu é essencialmente imagem corporal, ao passo que o sujeito é efeito do simbólico, do Outro, da linguagem. (Jorge, 2002, p. 23)

Pode-se dizer que o sujeito do inconsciente e o eu são operações que se dão na linguagem, guardadas suas particularidades. Na visão de Descartes, o eu é identificado à consciência. A noção de o eu ser em sua maior parte inconsciente adveio com Freud. Pelo cogito, o eu conclui que existe, toda vez que diz: “eu penso”. É preciso repetir essas palavras para convencer-se disso. Assim, tal como o sujeito do inconsciente, o eu também aparece, numa formulação linguajeira, num instante.

A destituição subjetiva promovida pelo cogito faz aparecer a noção de divisão do sujeito entre saber e verdade. Uma vez que interroga a certeza do saber estabelecido, o cogito faz surgir a verdade disjunta do saber:

Esse fio (cogito) não nos guiou em vão, já que nos levou a formular, no fim do ano, nossa divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade, acompanhando-a de um modelo topológico: a banda de Moebius, que leva a entender que não é de uma distinção originária que deve provir a divisão em que esses dois termos se vêm juntar. (Lacan, 1966, p. 870)

O sujeito da ciência, assim chamado por Lacan, equivale ao eu (sujeito) dividido entre saber e verdade. No entanto, apesar de Lacan dizer tratar-se do mesmo sujeito, situamos uma diferença crucial: ao incluir o sujeito do inconsciente que aparece para revelar uma verdade, a psicanálise se distingue da ciência, já que esta nada quer saber do que é específico à psicanálise

É no lugar do conflito e da divisão que Freud coloca o eu, descentrando-o assim do lugar de unidade e saber, tal como concebido por Descartes. Por conseguinte, a consciência e a razão passam a representar o lugar do engano. Freud comenta o que se verifica em algumas neuroses:

Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes parecem até ser mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do eu. Resistem a todas os recursos de coação utilizados pela vontade, permanecem imutáveis pela refutação lógica, indiferentes frente às afirmações contraditórias da realidade. Ou os impulsos surgem, como se fossem de alguém estranho, de modo que o eu os rejeita; mas, ainda assim, os teme e adota medidas preventivas contra eles. O eu diz para consigo que isto é uma doença, uma invasão estrangeira e aumenta sua vigilância, mas não pode compreender por que se sente paralisado de uma maneira tão rara. (Freud, 1917, p. 133)

A subjetividade à luz da psicanálise é essencialmente clivada, e o inconsciente, como verdade desconhecida pelo eu, é o que a constitui fundamentalmente. “O lugar que ocupo como sujeito do significante, em relação ao que ocupo como sujeito do significado, será ele concêntrico ou excêntrico?” (Lacan, 1957, p. 520). Se referirmos o sujeito do significante ao momento em que o inconsciente surge num intervalo, apontando uma verdade, fazendo vacilar as bases do eu, o sujeito do significado pode então ser referido à sua vertente imaginária, que dá sentido, consistência ao sujeito do significante. O eu em sua vertente imaginária aponta para esse lugar de identidade, reconhecimento, constituído pelas qualidades que o sujeito atribui a si mesmo enquanto um saber. É um lugar em que imaginariamente o sujeito acredita saber tudo de si, porém a emergência do inconsciente aponta o furo que essa vertente tenta tamponar.

Se o sujeito, do ponto de vista da psicanálise, divide-se entre saber e verdade, como situá-lo a partir desses termos? Lacan aponta que é em virtude da relação de um significante com outro significante, que resulta a emergência do sujeito,

[...] No instante mesmo em que S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, na medida em que eles já se articulam entre si

A articulação dos elementos S1 e S2 é fundamental no que tange à questão do sujeito para a psicanálise. No próprio desenvolvimento que faz Lacan dessa problemática, começa falando de um e chega a outro, apontando a indissociável relação desses. No que tange a S1 diz: “Ele intervém numa bateria de significantes que não temos direito algum, jamais, de considerar dispersa, de considerar que já não integra a rede do que se chama um saber” (Lacan, 1969-1970, p. 11). Esse saber, constituído pela associação da bateria de significantes, é o que Lacan chamou S2. Trata-se do saber do Outro, que aparece enquanto encadeado por significantes, num conjunto que é faltoso. E, como efeito dessa organização que dá lugar ao saber, surge o eu.

A fim de articular a questão do saber e da verdade, precisamos lançar mão daquilo que Lacan nomeou de A (o campo do grande Outro), lugar do significante. O sujeito não se identifica com o Outro, porém precisa dele para aparecer. Constatar que a linguagem fala em “mim” é privilegiá-la frente ao sujeito. É formular que o discurso não é meu, mas sou dele o efeito. Isso aponta a alteridade da linguagem, uma vez que ela não é propriedade do sujeito. O sujeito é determinado por marcas que advêm do Outro, independente de sua vontade, ele já nasce banhado na linguagem, recebendo dela suas representações.

Enquanto constituído pela linguagem, na rede tecida pela cadeia significante, o saber, por esse aspecto, diferencia o simbólico de sua parte que lhe escapa. Para a psicanálise, o saber diz respeito à parte estruturada do inconsciente, no entanto, enquanto não-todo, ele também comporta um ponto que é de não-saber, que abre espaço para o aparecimento da verdade.

A virada que Lacan dá no cogito, em 1957, é formulada da seguinte maneira: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso” (p. 521). Ao introduzir o que é da ordem do inconsciente no cogito, aponta uma separação entre ser e pensar, como se dando em lugares distintos. A experiência psicanalítica se opõe ao cogito conforme atribui o que é da ordem do pensamento ao Outro que determina o sujeito.

Se o que move o sujeito, determinando suas ações, habita-o sem que ele saiba, assim o faz de modo imperativo e inconsciente. O eu é determinado por algo que lhe é excêntrico e, ao mesmo tempo, inteiramente familiar, do qual ele nada quer saber, posto que pode abalar sua síntese. “Pois esse eu, inicialmente distinguido pelas inércias imaginárias que concentra contra a mensagem do inconsciente, só funciona revestindo o deslocamento que é o sujeito de uma resistência essencial ao discurso como tal” (Lacan, 1957, p. 524).

Ainda que o eu do neurótico se concentre no esforço de recusar as determinações inconscientes, elas ainda assim aparecem e, ao tirá-lo minimamente de lugar, o convocam ao trabalho de elaboração. Esse trabalho acompanha a finalidade da descoberta do inconsciente, qual seja: “Wo Es war, soll Ich werden. Là où fut ça, il me faut advenir. Lá onde isso foi, ali devo advir” (Lacan, 1957, p. 528). Essa passagem aponta justamente para o processo do que chamamos de mudança de posição subjetiva. Se, no instante em que o sujeito do inconsciente aparece, coloca algo da ordem da verdade, é preciso ainda uma operação para se tomar lugar nela. Ela requer um reposicionamento do eu na direção de assumir o lugar onde o isso se encontrava, ou seja, de apropriar-se da verdade que o sujeito coloca. Trata-se de aceitar aquilo que interrompe como uma determinação que lhe diz respeito. Esse movimento aponta para um componente ético do sujeito tal como pensado por Lacan, um sujeito que deve assumir a responsabilidade pelo inconsciente.

Apesar de excluído e calado pela ciência, o sujeito não deixa de se manifestar, de modo que, justo por isso, fez-se possível à psicanálise reconhecê-lo e acolhê-lo. Eis o trabalho do psicanalista nos serviços de saúde: acolher o sujeito cuja manifestação o discurso do psicanalista permite vetorizar (à proporção que se dirige ao sujeito no lugar do outro) e, por que não, promover seu reconhecimento na equipe multidisciplinar. Se esta identifica, por formação, o paciente em seu engano imaginário de eu, a ponto de classificar seus sintomas como fenomenologias desse mesmo eu, a função da psicanálise na instituição é justamente sustentar a divisão em que o sujeito marcado por um saber surpreende-se com a aparição de um saber não sabido. Ali onde muitos creem poder identificar o sujeito (e é frequente como surge, então, toda espécie de psicologismos até mesmo em enfermarias de doenças graves), ali mesmo a psicanálise pode sustentar o surgimento do sujeito onde ninguém esperava, aliás, nem ele mesmo, o psicanalista. Sustentado no discurso da ciência para fazer a sua manobra, trabalhando com a equipe na tentativa de demonstrar, incansavelmente, que um significante representa o sujeito para outro significante, ou seja, que identificar um sujeito a partir de uma impressão clínica é sempre, necessariamente, redutor, a função do psicanalista tem como visada abrir as brechas para que a verdade possa surgir tal que, como meio dizer, descompleta o saber todo que muitas vezes se quer ter de um paciente, de seu sofrimento, de seus sintomas, enfim, de sua situação.

 

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*Texto recebido em junho/2008.
Aprovado para publicação em agosto/2008.

 

 

*Doutora em Psicologia Clínica (PUC SP), pós-doutorado na Université de Paris XIII (França), professora visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: nanaerlich@hotmail.com
**Professora adjunta do (IP/UERJ), procientista da UERJ, pesquisadora do CNPq 1C, doutora em Psicologia pela Universidade de Paris X – Nanterre e Pós-doutorado no IPUB/UFRJ, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, e-mail: alberti@fcclrio.org.br

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