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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.2 Belo Horizonte dez. 2008

 

ARTIGOS

 

O momento da saída do abrigo por causa da maioridade: a voz dos adolescentes

 

Leaving the shelter after reaching full legal age: the adolescents’ voice

 

El momento de salir del orfanato debido a la mayoría de edad: la voz de los adolescentes

 

Ana Laura Moraes Martinez*; I Ana Paula Soares-Silva**

IUniversidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O que significa para um adolescente crescer num abrigo? E o que significa para ele ter que deixá-lo por causa da maioridade legal? Na tentativa de compreender essas questões, a presente pesquisa foi construída junto com dois adolescentes que vivenciavam a saída do abrigo, após terem permanecido na instituição por 12 anos. Partindo de uma perspectiva histórico-cultural, utilizou-se para a construção do corpus, observações participantes, entrevistas com os adolescentes e equipe técnica, além de produções narrativas de um dos adolescentes. O eixo norteador da análise foram os sentidos produzidos sobre a saída do abrigo. Entre os apontamentos finais, verificou-se a ausência de práticas sistemáticas de auxílio aos adolescentes no enfrentamento da saída e a existência de atuações individualizadas, permeadas pelos estereótipos construídos pela instituição. Enquanto um dos adolescentes (o adolescente ativo) construiu arranjos próprios para sua saída, o outro (o adolescente problema) foi intensamente tutelado pela instituição nesse processo de desligamento.

Palavras-chave: Adolescência, Abrigo, Direitos à infância e à adolescência, Desenvolvimento humano.


ABSTRACT

What does it mean to a child to be brought up in a children’s shelter? What does it mean when he is forced to leave it once he turns 18? As an attempt to understand such matters, this study was based on the story of two teenagers who were faced with leaving the shelter after being there for 12 years. Starting from a historical and cultural perspective, it used participating observation, interviews with the adolescents and the shelter staff, and narrative stories from one of the adolescents to build the corpus. Our guiding lights for the analysis were the meanings that leaving the shelter had to the adolescents. There was no support service of any kind to assist the adolescents in coping with their departure. There was some individualized assistance permeated by stereotypes created by the institution. Although one of the teenagers – of the active type – had paved his own path when preparing himself to leave, the other one – of the problematic type – was exhaustingly tutored by the institution in the exit process.

Keywords: Adolescence, Shelter, Children’s and adolescents’ rights, Human development.


RESUMEN

¿ Qué significa para un adolescente crecer en un orfanato? ¿ Y qué significa tener que dejarlo porque alcanzó la mayoría de edad? Para intentar comprender estas cuestiones, la presente investigación fue co-construida con dos adolescentes que vivían la salida del orfanato, después de haber permanecido en la institución durante doce años. A partir de una perspectiva histórico-cultural, fueron utilizadas para la construcción del corpus, observaciones participantes, entrevistas con los adolescentes y equipo técnico, además de producciones narrativas de uno de los dos adolescentes. El eje referencial del análisis fueron los sentidos producidos acerca de la salida del orfanato. Entre los apuntes finales, se verificó la ausencia de prácticas sistemáticas de auxilio a los adolescentes que enfrentan la salida y la existencia de actuaciones individualizadas, penetradas por los estereotipos construidos por la institución. Mientras uno de los adolescentes – el adolescente activo – construyó preparativos propios para su salida, el otro – el adolescente problema – fue intensamente amparado por la institución en este proceso de desligadura.

Palabras clave: Adolescencia, Orfanatos, Derechos de la infancia y adolescencia, Desarrollo humano.


 

 

A prática do abrigamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente

realidade dos abrigos que acolhem crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial é bastante complexa e multifacetada já que conta com uma multiplicidade de discursos e práticas que se originam no passado e se entrelaçam com as construções presentes sobre esse contexto. De acordo com Marcílio (1998), é possível identificar, no Brasil, três principais funções que foram assumidas pelos abrigos e que se justapõem ao longo da história, configurando três fases de sua existência: 1) lar para enjeitados (Período Colonial até início do século XIX) 2) escola corretiva para pobres (até 1960); 3) local de proteção (de 1990 até a atualidade).

Historicamente as crianças e adolescentes pobres foram alvos de atuação ora do poder da Igreja, ora do Estado. Na origem dos abrigos, justificadas pela necessidade da proteção do menor, as atuações pautavam-se num ideário que era informado pela associação entre pobreza e delinquência, concebendo-se a primeira como fator de risco para o envolvimento com o crime (Mendez & Costa, 1994).

Durante um longo período da história de atendimento à infância, o Estado, inspirado pelo modelo médico-higienista, promoveu a reclusão das crianças e jovens em grandes instituições como forma de prevenção de possíveis condutas desviantes, mantendo-as, durante muito tempo, afastadas de suas famílias de origem. É somente a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei Federal 8069/1990) que o abrigo ganha outro status. Com o novo ordenamento legal, que tem como um dos princípios o direito à convivência familiar, o abrigamento é estabelecido como uma medida protetiva a ser adotada somente quando a criança ou o adolescente tem seus direitos ameaçados ou violados. No parágrafo único do artigo 101, o abrigo é definido como “medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”.

Contudo, pesquisas vêm demonstrando que as práticas que regem a complexa realidade que envolve abrigo, poder público e sociedade não acontecem apenas em função do que propõe a lei. O afastamento da família biológica ainda é um procedimento bastante utilizado pelos órgãos de proteção à infância bem como a permanência de crianças e jovens por longos períodos na instituição.

Conforme pesquisa realizada na cidade de São Paulo, a principal motivação para o abrigamento está na pobreza da família de origem da criança (NCA/PUC SP, 2002). Do total de 4 847 crianças e adolescentes abrigados, 67% tinham algum tipo de vínculo com a família biológica contra apenas 33% que não tinham família ou o paradeiro dela era desconhecido. Essa constatação é recorrente também em âmbito nacional. A pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Cabral, 2003) aponta que, do universo de 80 mil crianças e adolescentes, foram abrigados 24,2% por causa da pobreza, enquanto que 18,9% dos abrigamentos ocorreram por abandono, ausência ou perda do vínculo familiar. Para os profissionais dos abrigos ouvidos na pesquisa, a condição de extrema pobreza vivida pelas famílias desses adolescentes e crianças justifica ainda a dificuldade para a reinserção familiar, o que, por sua vez, favorece o prolongamento do tempo de permanência da criança no abrigo. De acordo com a pesquisa nacional do IPEA, verificou-se que o tempo de permanência das crianças na instituição chegava a dez anos. No contexto da cidade de São Paulo (NCA/PUC SP, 2002), constatou-se que esse tempo variava de dois a quatro anos. Conforme pesquisa de Weber e Gagno (1995), em abrigo na cidade de Curitiba, a maioria das crianças estava na instituição há mais de três anos, e algumas delas chegaram a permanecer abrigadas por 15 anos.

Diante dessas constatações, fica evidente que, para algumas crianças e adolescentes, o abrigo caracteriza-se menos como espaço de passagem e mais como lugar de moradia, território de referência para o cotidiano de suas vidas e para a construção de suas identidades.

A discrepância entre a realidade e o ordenamento jurídico na área vai acentuando-se quando somada a outros indicadores do uso não provisório do abrigo. Na pesquisa realizada na cidade de São Paulo (NCA/PUC SP, 2002), 1) apenas 10% das crianças e adolescentes se encontravam em condições legais de ser adotada; 2) a maioria das instituições não tinha profissionais qualificados para o trabalho com as famílias biológicas visando à reintegração; 3) a faixa etária de maior concentração das crianças encontrava-se entre os 6 e 16 anos, perfil que contrasta com aquele buscado pelos adotantes, quer seja, bebês; 4) da população abrigada entre 15 e 18 anos, somente 20% cursavam o ensino médio, 52%, o ensino fundamental (5ª a 8ª série), e 11%, o ensino básico (1ª a 4ª série) (NCA/PUC SP, 2002).

Este último dado merece melhor aprofundamento, uma vez que toca na violação do direito à educação e na preparação para a saída da instituição. O índice de escolarização encontrado na pesquisa é menor do que aquele dos jovens brasileiros de mesma idade. De acordo com o Inep (2001), no ensino médio, no mesmo período, 30% dos jovens entre 15 e 17 anos frequentavam a escola, o que fala a favor de uma defasagem idade-série para os abrigados ainda maior do que a já existente para os jovens em geral. Esse dado é particularmente preocupante, uma vez que esses jovens, ao completarem a maioridade, serão desligados do abrigo ainda sem condições de pleno enfrentamento da nova situação de vida que exigirá autonomia e, principalmente, independência financeira. Se para os jovens em geral, a garantia do acesso à educação significa instrumento necessário “para a qualificação da sua força de trabalho quando na idade adulta” (Cohn, 2004, p. 161), para os jovens dependentes de programas de proteção especial, a violação desse direito radicaliza o processo de marginalização. No caso dos adolescentes que estiveram sob a tutela do Estado, significa dizer que a própria política, que deveria ter agido para dirimir possíveis efeitos da vitimização das crianças, produziu ou ao menos reforçou processos de desigualdade social.

A saída do abrigo por causa da maioridade, num contexto de ausência de programas de reintegração familiar, de longo vínculo com a instituição e de pouca escolaridade dos adolescentes, vai constituindo-se assim como um momento que faz aflorar as contradições históricas, a falência das políticas de proteção e o não cumprimento da função do abrigo, tal como assegura o ECA.

De acordo com Bernal (2004), o longo período de institucionalização de crianças e adolescentes e a não preparação para o momento da saída acompanham a sociedade brasileira desde o Período Colonial. Desde essa época, para a autora, os processos de entrada e saída do abrigo sempre foram desconhecidos por parte da criança. Se a criança não sabia seu destino quando entrava na instituição, o desconhecimento sobre a saída era ainda maior. Chamando a atenção para o ritual burocrático e tutelar do Estado, Bernal informa que o período da desinternação nem sempre correspondeu à data da saída do jovem, ou seja, muitos fugiam da instituição antes dos 16 anos ou permaneciam clandestinamente após os 18, mas o prontuário era encerrado quando o adolescente completasse a maioridade legal. A saída formalizada, quando acontecia, dava-se de um modo improvisado e despreparado (nos mesmos moldes da entrada). Sem condições materiais e sociais de assumir uma vida autônoma, o jovem passava por uma série de dificuldades para se sustentar, além, é claro, das implicações psicológicas deixadas pelo longo período na instituição (Bernal, 2004). Para Pereira (2003), constitui-se uma categoria de crianças e adolescentes “institucionalizados e esquecidos”, que crescem nos abrigos privados das duas possibilidades oferecidas por lei: o retorno à família biológica ou a adoção.

Em meio a todas essas contradições, encontramos as crianças e adolescentes que vivenciam cotidianamente as limitações e dificuldades impostas por uma condição historicamente determinada e localmente reproduzida nos abrigos. Na tentativa de dar voz aos próprios adolescentes, na construção de sentidos para o enfrentamento dessa nova fase de suas vidas, o presente trabalho buscou compreender como eles significam o momento da saída e quais as formas de enfrentamento que usam nesse momento de transição em suas vidas.

Para tanto, serão apresentadas as histórias de dois adolescentes: Carlos e Vitório. Ambos permaneceram em um abrigo durante muitos anos e enfrentavam, na época da pesquisa, o momento de sair da instituição por causa da chegada da maioridade.

A perspectiva da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva & Carvalho, 2004) orientou teórica e metodologicamente o trabalho. Do ponto de vista teórico, concebe-se que o desenvolvimento humano se dá imerso nas significações construídas em interações sociais concretas, mediadas por parceiros que carregam a cultura de grupos específicos e que negociam sentidos sobre o mundo e sobre si mesmos. Esses processos, longe de serem planos, materializam e atualizam construções históricas, marcadas por contradições e relações de poder e de dominação de classe, gênero, raça e etária. Nossa perspectiva compartilha com Vygotsky a concepção dramática do sujeito, que admite que a origem e as bases dos processos psicológicos são relações sociais. Tal como nas relações e interações reais das pessoas, as funções psicológicas se caracterizam por interações do tipo drama, repletas de luta interna (Vygotsky, 2000). Metodologicamente, defende-se utilização de instrumentos variados, a fim de reconstruir a complexidade das significações presentes na situação investigada.

Nessa pesquisa, foram usados como fonte de produção do corpus: observação participante, entrevistas em profundidade e material autobiográfico gravado por um adolescente. As observações totalizam 20 horas de visita ao abrigo, com posterior registro em notas de campo. As visitas foram feitas aos finais de semana, quando era mais fácil encontrar os adolescentes na instituição. Foram realizadas duas entrevistas com cada um dos adolescentes (uma entrevista antes e outra após a saída do abrigo), que foram audiogravadas e transcritas na íntegra. A produção do material autobiográfico foi feita por meio da gravação em fita cassete por um dos adolescentes. Foram disponibilizados ao adolescente fitas e um gravador. Nesse material, o adolescente relata sua história de vida e grava músicas preferidas. Também foi realizada uma entrevista com a assistente social do abrigo.

No momento de análise, o material foi tratado a partir dos seguintes momentos: 1) mapeamento das principais zonas de sentidos expressas no corpus em relação à temática “Saída do Abrigo”; 2) levantamento, a partir do contato com o corpus de outras temáticas que apareceram no material, sendo elas “Adoção” e “Família Biológica”; 3) demarcação, em todo o material, dos trechos referentes a cada um desses temas, por meio do recurso de cores; 4) análise dos sentidos construídos pelos adolescentes em relação a cada um dos temas bem como análise dos sentidos produzidos pelo abrigo em relação aos mesmos temas.

No que se refere às entrevistas, é válido ressaltar que as compreendemos como narrativas produzidas num contexto particular e na relação dialogada com a pesquisadora, num processo que articula o caráter representacional (ou referencial) e o interacional (ou performático) da experiência de falar sobre si para alguém. Desse modo, entendemos que, no momento da entrevista,o participante não apenas relata ou faz referência a um passado, mas sim constrói sentidos sobre si e sobre sua história, num movimento que articula as experiências passadas, a construção presente e as expectativas futuras (Silva, 2003).

 

Contexto de investigação

O abrigo

O abrigo em que se realizou o estudo localiza-se numa cidade de porte médio da Região Nordeste do Estado de São Paulo. Foi inaugurado na década de 1990 por uma família tradicional da cidade. Mantido por doações feitas pela comunidade (abrigo privado), tem como finalidade básica oferecer cuidados a crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial. Contava, no momento da pesquisa, com uma equipe técnica formada por psicólogo, assistente social e coordenadora, além das educadoras responsáveis pelo cuidado das crianças.

Na época da coleta, havia um total de 34 crianças abrigadas para 2 a 3 educadoras por turno, dependendo do dia da semana e da escala feita pela equipe. A idade das crianças variava de 0 a 18 anos. As crianças frequentavam escola em um período do dia e, no período alternativo, permaneciam no abrigo. Já os adolescentes trabalhavam o dia todo como estagiários em um projeto social e, à noite, frequentavam a escola. A maior concentração de crianças e adolescentes ocorria aos finais de semana.

Há alguns anos, o abrigo passou a ter um contato estreito com a equipe técnica do Fórum e a receber recursos municipais. Em relação à família biológica, não havia trabalho sistemático de reinserção familiar. Também não havia um programa específico no sentido da preparação para o desligamento dos adolescentes aos 18 anos, sendo o futuro dos adolescentes decidido caso a caso.

 

Os adolescentes

Carlos – Estava com 17 anos e 10 meses quando da realização da primeira entrevista. Mostrou-se, desde o início, um rapaz tímido, retraído e quieto. Tem uma paralisia na mão direita (não sabia explicar se nasceu com a paralisia ou não) e por isso sempre estava com a mão escondida atrás do corpo. Cursava, na época, a oitava série e dizia ter vergonha de estar atrasado na escola. Justifica o atraso pelas dificuldades encontradas quando passou a estudar no período noturno e a realizar, durante dia, um estágio profissionalizante. Raramente saía aos finais de semana, exceto para visitar o seu padrinho (um dos diretores do abrigo). Gostava muito de jogar futebol e ouvir músicas de rock. Foi para o abrigo aos 6 anos junto de seus dois irmãos mais velhos, Joaquim e Paulo. Em dezembro de 2004, Paulo (irmão mais velho) morreu em uma briga que envolveu troca de tiros. Seus pais morreram na prisão e foram descritos como traficantes. Seu único parente na cidade era a avó materna, mas ele não podia visitá-la porque ele era muito parecido com os irmãos, e os traficantes podiam confundi-lo. O restante da família morava em outro Estado, e ele não conhecia ninguém. Seu sonho era ter uma família e morar com seu irmão. Carlos saiu do abrigo aos 19 anos e 3 meses para morar no fundo de um salão de cabeleireiro da cidade, onde pagava um aluguel de R$ 350,00. Ressalta-se que a primeira entrevista foi feita em 27 de novembro de 2004. A segunda entrevista foi feita em 1º de maio de 2006, um mês após sua saída da instituição.

Vitório – Estava com 17 anos e 7 meses quando da realização da primeira entrevista. Era muito alegre, vivia cantarolando pela casa e carregando os pequenos. Saía muito aos finais de semana. Visitava vizinhos, tia ou a casa de algum amigo da escola. Cursava Inglês e Computação aos finais de semana. Entrou no abrigo com 6 anos de idade. Seus pais são vivos, moram na mesma cidade do abrigo e são separados. Tem cinco irmãos, sendo ele o mais velho e o único abrigado. Uma irmã foi adotada, a outra é casada, e os mais novos moram com a mãe. Os pais já tentaram se aproximar, mas ele dizia que não queria contato. Fazia estágio desde os 16 anos. Trabalhou com reprografia e com exportação em uma empresa bastante reconhecida na cidade. Foi convidado pelo chefe para fazer um estágio nos Estados Unidos. Aos 18 anos, foi morar numa “república de trabalhadores” com seus colegas de emprego, sendo todos mais velhos que ele. Na segunda entrevista, conta que tinha planos de mudar de república e ir morar com colegas da escola. A primeira entrevista foi feita em dezembro de 2004, e sua saída ocorreu em fevereiro de 2005. A segunda entrevista foi feita em agosto de 2005, ou seja, seis meses após sua saída.

 

Resultados e discussão

O processo de saída para Carlos

A saída do abrigo é significada por Carlos como um momento ambíguo, que comporta, ao mesmo tempo, um desejo de maior liberdade de ação e um receio de perder os cuidados que o abrigo lhe oferece. Na iminência de sua saída, Carlos avalia o abrigo num movimento que transita entre suas insatisfações e a gratidão e o reconhecimento da centralidade da casa em sua vida. Essa negociação de sentidos aparece em vários trechos de sua primeira entrevista:

Se num aparecesse o orfanato na minha frente eu... nós três teria morrido. Porque... se num fosse o orfanato, eu num... eu num taria aqui hoje, né. Aí tem vez que nós reclama: “Ah, tudo dia só dá a mesma coisa”. Começa a xingar as funcionária, começa... é... bater boca com eles. Mas nós sabe que nós estamos errados, né, mas só que tem que... depois acaba compreendendo. Aí depois que nós sai, vê que nós vai ter que se virar na vida, sente falta delas. (1ª entrevista, linhas 89-96)

[ E como é pensar em sair do abrigo?] Ah, pra quem já se acostumou é muito triste... Aí quando... aí, quando chega a hora de sair, você quase começa a chorar né, porque faz bastante anos que nós... que eu tô aqui. Aí você se arrepende do que fez. A hora que você vê, né, porque você já ganhou tudo, aqui nós tem tudo de mão beijada. Aí quando a senhora vem pedir alguma coisa nós reclama, né. Aí quando chega a hora de nós sair daqui nós fala: “Ah, é bom. Quero ir embora mesmo”. Aí, quando chega a hora da verdade mesmo, você se arrepende [...]. Aí, quando você sai, fica pensando nos moleque, fica pensando nas tias. Quando eu sair daqui, eu acho que vou sentir falta de todo mundo. (1ª entrevista, linhas 123-134)

Esse movimento de aproximações e recuos em relação ao abrigo emerge também quando Carlos é convidado a imaginar-se fora do abrigo. Ressalta que, mesmo estando “sozinho” lá fora, tem na instituição o seu ponto de apoio e referência:

[ Como você imagina que vai ser lá fora?] Bom, eu espero que seja do jeito que está, né. Porque, chego lá fora, vou tentar me virar. Que eu tô sozinho. Bom, eu num tô sozinho, eu tô... mesmo assim, quando eu sair daqui, eu vou estar em contato com o orfanato, porque eu vou estar precisando de muita ajuda. Porque num dá pra mim morar com os meus irmãos [...]. Aí eu vou tentar morar sozinho, né... aí, se eu não conseguir, eu vou dá uma ligada aqui pra diretora e vou falar que tá muito difícil, muito complicado, aí ela vai me dar uma mão. (1ª entrevista, 140-149)

A vivência do medo em relação ao desligamento do abrigo parece estar ligada particularmente a dois fatores: a indefinição do novo lugar que lhe acolherá, o que não lhe permite uma avaliação calcada em elementos concretos sobre sua nova morada; o modo como ele é descrito e significado pelos seus parceiros relacionais dentro da instituição. O total desconhecimento sobre o seu destino é vivido por Carlos por mais de um ano, até a sua mudança para um cômodo alugado do cabeleireiro que realizava trabalhos junto ao abrigo. O abrigo não conseguia encontrar alternativas para que Carlos pudesse deixar a instituição. Essa dificuldade deu-se pela ausência de um programa de desligamento que, no caso de Carlos, adquiria um peso grande frente aos recursos pessoais disponíveis e aos modos como ele era descrito e posicionado pela equipe técnica e administrativa do abrigo. Tanto a coordenadora do abrigo como seu padrinho afetivo e a assistente social o posicionavam como um adolescente fragilizado e com dificuldades para enfrentar a saída do abrigo. Esse posicionamento fica expresso na seguinte fala da coordenadora:

Carlos é um adolescente que me deixa muito preocupada. Ele não sabe fazer nada sozinho. Outro dia se perdeu no Centro da cidade e a gente teve que ir buscar ele. Além disso, ele é muito depressivo e queixoso. Se queixa tanto de tristeza que a gente não dá mais nem bola pra ele. Ele vai fazer isso com você também viu. Ele tem dificuldades cognitivas confirmadas por testes psicológicos feitos pela psicóloga da instituição e exatamente por isso a gente fica muito preocupada com ele porque sabe que não vai dar conta de sair daqui e se cuidar sozinho. (Nota de campo, 13/9/2004)

A proteção excessiva realizada pelo abrigo, que procura oferecer amparo, antagonicamente, acaba por privá-lo de determinadas experiências que seriam importantes num processo de transição e preparação para o desligamento. A pouca autonomia de Carlos é por ele trazida também numa avaliação que contrapõe os desejos próprios da juventude às regras da instituição, que, muitas vezes, não preveem negociação. Assim, ao mesmo tempo em que manifesta o desejo de permanecer no abrigo pela segurança que este lhe oferece, também menciona que gostaria de gozar de uma maior liberdade de ir e vir:

[ Depois que fizesse 18 anos, você preferia sair ou ficar aqui dentro?] Eu preferia ficar porque assim é mais seguro pra mim, eu acho. Mas eu preferia ficar sem as regras pra mim, né. Porque tem muitas regras. Tem regras que nós não gosta. Tipo assim: “É, num pode ir em boate, num pode ir... no show de rodeio, num pode, num pode”. Essas coisas aí, a maioria das coisas que nós gosta num podem ir né. Deixar nós sair sozinhos, assim. (1ª entrevista, linhas 223-230)

Nas observações participantes, foi possível notar que Carlos era encorajado a não sair, diferentemente dos demais adolescentes que, mediante alguma negociação, conseguiam permissão para sair à noite, inclusive dormir fora da instituição. A atitude de protegê-lo mais do que a outros, associada à timidez de Carlos, dificultava seu exercício de busca ativa da saída, o que fazia com que, geralmente, passasse o final de semana no próprio abrigo.

Contrariando esse posicionamento de fragilidade de Carlos, destaca-se o fato de que ele fazia estágio desde os 17 anos como office boy e permanecia grande parte do seu dia transitando pela cidade e levando documentos importantes de um lugar para outro e que era considerado um bom profissional, inclusive, sendo contratado pela empresa após sua maioridade. Também em relação ao manejo de seu salário, Carlos sentia haver certa limitação, particularmente quando ele queria comprar alguma coisa para si próprio. Vale ressaltar que todo o salário recebido ficava numa poupança sob os cuidados de seu padrinho afetivo, e tudo o que ele precisava ou desejava comprar precisava ser solicitado a este.

A ambiguidade de Carlos também pode ser encontrada no abrigo, que vive a tensão de, legalmente, mediar a saída do adolescente e, concretamente, defendê-lo de situações que o colocariam em risco. O envolvimento de seus dois irmãos com o tráfico de drogas, logo após terem deixado o abrigo, aos 18 anos de idade, gerava o temor na coordenação e equipe técnica de que os traficantes pudessem se vingar da família de Carlos. Vale ressaltar que um dos seus irmãos foi morto por um traficante, e a semelhança física entre eles já era suficiente para identificá-lo como um membro daquele grupo familiar.

Nessa complexa negociação de papéis e de limitações presentes na história de vida do adolescente e no abrigo, Carlos permanece bastante dependente da instituição, algo que atrasa e dificulta decisivamente seu processo de desligamento do abrigo. Esse fato faz com que Carlos veja distante de si a possibilidade real da saída. Tensionando com o abrigo, Carlos reivindica uma maior proximidade com a família biológica, embora esse desejo também seja permeado por medo. Seja refletindo sobre seu passado, seja imaginando-se no futuro, a família de Carlos é bastante presente em seu discurso.

Então, eu sinto muita falta, né, porque eu vejo tudo... tudo mundo com família aí. E eu fico pensando na minha. Aí eu fico pensando no meu irmão que tá lá no Goiás. Agora num sei. Fico pensando se eu vou ver o meu irmão de novo ou não. Porque eu num quero voltar pro meu irmão quando eu já tiver uns 30 e poucos anos. Eu quero... quero ver ele... se tiver jeito né. Porque agora vai ser complicado. (2ª entrevista, linhas 60 a 66)

Vale destacar que o lugar marginal ocupado pelas famílias dentro das instituições de cuidado é uma herança histórica e cultural difícil de ser rompida. O caso de Carlos demonstra o quanto o retorno à família biológica fica dificultado e distante, uma vez que o que medeia a relação entre ele e sua família é o receio de que haja prejuízo ao adolescente. Sem desconsiderar os riscos reais envolvidos no caso de Carlos, verifica-se que a postura do abrigo de afastamento da família (seja do irmão vivo ou da avó materna) era fonte de imenso sofrimento para ele. Essa evitação parece dificultar a própria relação de confiança em si mesmo, bem como a autoestima, uma vez que suas raízes e sua história passam a ser, senão negadas, ao menos silenciadas

Aos 19 anos, Carlos sai do abrigo já bastante ansioso, inclusive porque seus colegas de idade já haviam deixado a instituição:

[ Como surgiu essa ideia de você vir pra cá?] Eu não lembro. A ideia de vir pra cá é que... teve um dia que eu vim cortar o cabelo, aí ele me perguntou se eu já tinha lugar pra morar. Eu falei que a coordenadora estava arrumando. Aí ele se ofereceu, né, esse lugar. Aí eu falei pra Joana (assistente social) e ela começou a espalhar a notícia. Aí elas gostaram da ideia, veio visitar aqui, comunicaram o juiz. Aí deu certo [...] Tem que ter um pouco de paciência também porque eu tava ansioso pra sair de lá. (2ª entrevista, linhas 21-29)

Nesse momento, Carlos descreve-se como alguém feliz, tanto pelo fato de poder vivenciar situações de maior liberdade, como pela possibilidade de conviver com uma família. Carlos fazia suas refeições na casa e com toda a família do cabeleireiro de quem ele alugava um cômodo. Conviver com isso concretiza e intensifica a falta de sua própria família:

[ E que que você tá achando de morar aqui?] Ah, eu to... to achando legal, né. To me sentindo feliz. Por um lado, né. Pelo outro não [...] Ah, pelo lado que eu to feliz é que... é que eu posso ter mais um pouco de liberdade do que eu tinha no lar, né. E to feliz por mim tá... achei uma família aí que me acolheu. Por isso e... pelo outro lado, é que... eu sinto muita falta da minha família também. Aí eu fico nos canto, parado, pensando. Fico desligado. (2ª entrevista, linhas 87 a 94)

Tentar adaptar-se a uma família e a um novo espaço, assim como “ficar nos canto, parado”, desligado, caracteriza esse momento do processo de saída de Carlos como uma situação que poderíamos chamar de desenraizamento, quando sai de um lugar seguro (abrigo) para um lugar ainda não conhecido. No contexto da adolescência vivida na periferia de Salvador, Bastos e Santos (2005) descrevem esse sentimento como desterro. Definem o desterro como uma forma violenta de desterritorialização do jovem de seus contextos socialmente relevantes. Sem referências significativas, o jovem fica excluído de “transitar em espaços por onde ele transitava com liberdade e conhecimento” (Bastos & Santos, 2005, p. 264). O desligamento de Carlos do abrigo representa, em parte, um momento que o leva a ter que construir novas referências e a embarcar num mundo estrangeiro.

 

O processo de saída para Vitório

Vitório vivencia a saída do abrigo como a possibilidade de ter maior liberdade, autonomia e independência, algo que parecia não lhe assustar, mas sim funcionar como um desafio às suas potencialidades de jovem empreendedor. Ao mesmo tempo, significando o abrigo como um lugar que lhe dá algumas facilidades na organização do cotidiano, Vitório já se prepara para perdê-las quando sair do abrigo. Essas duas significações sobre a saída ficam expressas, respectivamente, nos trechos a seguir:

[ Como você imagina que vai ser lá fora?] Assim, modo de dizer, lá fora é diferente porque, quando você sair daqui, num vai ter comida, essas coisas, van pra levar onde quiser. Tem que ir, levar de pé, num é? Se quiser ir de pé, vai. Roupa, você quiser, compra. Apesar que, agora, quando nós quer, já começa a trabalhar, a tia fala pra nós comprar nossa roupa. (1ª entrevista, linhas 365-370)

[ E tem muitas discussões entre vocês e as educadoras?] Ah, só reclamação: “Oh, você ta fazendo um negócio. Oh, aqui não é pra fazer isso”. Aí os moleques começam a reclamar, começam a xingar. Essas coisas. Aí depois que sair daqui é fazer faculdade, né, arrumar uma casa, a faculdade, tirar carta e aí já era. (1ª entrevista, linhas 194-199)

Vale ressaltar que Vitório era um dos adolescentes que mais tempo permanecia fora da instituição, particularmente aos finais de semana, quando cursava Inglês e Computação (no período da manhã) e visitava os amigos (no período da tarde). Provavelmente, esse contato mais intenso com pessoas de fora do abrigo auxiliou o seu desligamento. Assim, deixou o abrigo dois meses após sua maioridade, indo morar numa república com colegas do seu trabalho, algo que foi negociado por ele próximo antes de completar 18 anos.

[E sair daqui como é que vai ser?] Ah, tem que ver. Eu vou procurar pensar um mês antes de mim completar 18 anos. Que vai ser em março. Eu vou pensar em março ainda. Aí eu fico abril completo. Aí eu falo pra tia me dar mais uns... um mês mais ou menos pra ficar até arrumar uma casa pra mim. (1ª entrevista, linhas 150-154)

A procura por um novo local de moradia, na iminência da maioridade, aponta para a ausência de políticas e programas globais do abrigo para o enfrentamento dessa situação. Graças à capacidade de negociação de Vitório e de interação com figuras externas ao abrigo, além de seu bom contato com pessoas do trabalho, fora convidado para morar na república. Já fora da instituição, ele conta como foi a chegada à república e como estava sendo a “administração” de sua vida:

[ E depois que você foi pra república, primeiro dia assim... como foi?] Ah, foi normal, sossegado. Arrumei tranquilamente a mala... tipo indo viajar. Aí peguei e fui. Despedi, falei tchau e fui. Quando eu cheguei lá, não tinha ninguém na república. Os cara tava todo viajando. [...] [ E teve alguma dificuldade?] Não. Momentos difíceis... não teve não. Procuro num fazer contas, nada. Se for comprar uma coisa, pagar à vista, que é melhor, né. (2ª entrevista, linhas 301 a 307)

Além da sua preocupação com o controle financeiro, Vitório retoma sua dificuldade em relação a acordar cedo sozinho e seu medo de perder a hora:

[ Você se adaptou em relação a acordar cedo sem alguém para te chamar?] Adaptei. Ah, perder a hora, eu perco, né. Tem dia que eu perco, tem dia que não. Aí quando eles vê, os cara também me chamam. Às vezes, eu pego carona com eles. [...] Mas, se Deus quiser, vou me adaptar. Porque eles vão embora né. Aí tem que sair correndo. [...] Aí tem que acordar bastante cedo porque... Lá não. Lá o tio esperava, né. A van esperava. Ali não. Os caras já vai. Eles chamam. Se não acordar, eles vão. (2ª entrevista, linhas 128-136)

Apesar de contar com o auxílio dos colegas da república no que se refere ao acordar de manhã, Vitório aponta para o fato de que, no abrigo, o tio da van esperava, enquanto que os caras não esperam, ou seja, começa a dar-se conta de como o universo das relações adultas é muito diferente do universo mais protegido que vivenciava no abrigo.

Vale destacar que essa rede de apoio que Vitório encontrou no ambiente de trabalho e da república funcionou como um suporte a ele nesse momento de transição. E, em grande parte, isso se deu por causa da estima que essas pessoas tinham por ele, particularmente pelo seu bom desempenho profissional, o que o levou a ser promovido na empresa em que trabalhava.

No abrigo, Vitório também negocia alguns posicionamentos diferenciados em relação aos demais adolescentes da casa. Nas observações participantes, foi possível verificar muitas interações entre ele, a assistente social e as educadoras. Notava-se, nesses momentos, como Vitório conseguia “quebrar” algumas regras da casa graças, em parte, à sua capacidade de comunicação e simpatia, bem como aos seus conhecimentos em Informática. Assim ele era o único adolescente que tinha acesso ao computador da sala da assistente social, sendo frequentemente chamado para consertar o computador ou ajudá-la em algum relatório. Além disso, era um dos únicos adolescentes que saíam do abrigo sem grandes conflitos e sem a necessidade de permissões por escrito.

O Vitório é um caso que vem negar aquilo que dizem: “que todo mundo que tem este tipo de vida se dá mal”. Ele está morando numa república com o pessoal do trabalho e está adorando. São pessoas mais velhas que cuidam dele, dando muito apoio. Me contou semana passada que está de viagem marcada para os Estados Unidos pela empresa. O chefe gosta muito dele e investe bastante nele. Eu fico despreocupada com ele porque ele sempre foi um menino de garra, que se agarra nas oportunidades que a vida deu pra ele, embora eu sinta que ele tem muita mágoa do passado, de ter sido o único dos irmãos que ficou tanto tempo aqui. (Entrevista com a assistente social, linhas 97 a 107)

Acredita-se que esse lugar ocupado por ele no abrigo configurava-lhe um universo de relações mais amplas e menos cerceadoras de sua liberdade, já que conseguia negociar seus desejos e necessidades de lazer, passeios tanto com as educadoras como com a equipe técnica que, em relação a ele, não necessitavam ficar presos às normas da casa.

 

Considerações finais

As experiências vividas por Vitório e Carlos apontam para a necessidade de que a preparação gradativa para o desligamento (ECA, art. 92, inciso VIII) de fato deixe de ser um preceito legal e faça parte dos projetos de acompanhamento dos adolescentes.

Essa preparação assume características bastante peculiares quando o desligamento se dá em virtude da maioridade de adolescentes que viveram longos períodos na instituição. Os relatos de Carlos e Vitório apontam que, se por um lado, o processo de desligamento tem relação com ações que permitam orientar o jovem em direção ao seu futuro, por outro, essas ações também dependem muito do passado e da história de relação desse jovem com o abrigo. Com certeza, o empenho na construção de redes sociais fora do abrigo, extremamente necessária quando o adolescente deixar a instituição, resulta em uma maior ou menor efetividade a depender da capacidade do abrigo de trabalhar esse processo. Contudo, o resultado desse empenho também dependerá da capacidade da instituição de ajudar a criança e o adolescente a, cotidianamente, construírem o sentimento de confiança, autonomia e pertencimento ao grupo cultural mais amplo do que o próprio abrigo. Nos casos analisados, o fato de os adolescentes estarem engajados em programas de estágio mostra um esforço do abrigo em inseri-los em atividades que os preparassem para o mundo do trabalho e para a independência econômica. Contudo, demais aspectos da vida adulta não tiveram o mesmo tratamento ou, no mínimo, não conseguiram repercutir da mesma forma, dependentes que estavam dos modos como o abrigo significava o adolescente e lhe permitia, na rotina diária, lidar com seus limites. Carlos vivencia o desligamento como um momento doloroso e prolongado em função da dificuldade em estabelecer um vínculo fora do abrigo, dificuldade essa construída ao longo de toda a sua permanência na instituição e de sua complexa história de vida. Vitório, por sua vez, vivencia um processo de certo modo bem sucedido, mas, ainda assim, destaca receios quanto à organização cotidiana de sua vida.

Pensar esses aspectos significa, do ponto de vista do abrigo, assumir de fato a função que lhe atribui a lei, quer seja, caracterizar-se como um espaço provisório e excepcional, com objetivo de transição para o retorno à família biológica ou a colocação em família substituta. Significa fazer dessas características o norteador de todo o trabalho. Reconhecer seu caráter provisório requer uma radicalização no sentido de que todas as ações sejam orientadas para a relação do abrigo com o mundo e, consequentemente, a relação da criança com sua família e a comunidade. A saída, nessa perspectiva, deixa de ser um momento e passa a ser pensada como um argumento, um eixo que atravessa todas as ações junto às crianças. A saída torna-se, portanto, objeto de trabalho desde o momento em que a criança entra na instituição, orientando as ações cotidianas no sentido de garantir que a criança construa sua autonomia em conexão como seu grupo social.

Nesse sentido, destaca-se a importância de que as instituições tenham projetos e programas de acompanhamento sistematizados e avaliados frequentemente. A inexistência desses projetos conduz a ações emergenciais, focalizadas e fragmentadas. No máximo, são ações restritas ao momento de deixar a instituição e com pouca contribuição para o enfrentamento da complexidade e da abrangência dos desafios que esse momento impõe ao jovem. Nessas condições, o processo de deixar o abrigo é fomentado não pela propalada preparação gradual, mas, fundamentalmente, pelas contingências do momento. No caso de Carlos, deixar o abrigo se concretiza por meio de uma conversa com o cabeleireiro. Em relação a Vitório, adolescente mais engajado e proativo, seu desligamento foi negociado em grande parte por ele mesmo, sendo os seus recursos pessoais o principal instrumento de enfrentamento desse momento de vida.

A saída, quando não assumida como eixo do trabalho e, portanto, como parte do programa individualizado de toda criança ou todo adolescente, corre o risco de constituir-se em torno a processos produtores de desigualdade. Há que se respeitar diferenças individuais sem, contudo, deixar de articulá-las às necessidades coletivas dos adolescentes, dentre elas, a de terem seus direitos igualmente respeitados.

T er o direito a um desligamento bem conduzido, em certa medida, é algo que precisa se efetivar plenamente. Essa realidade em vez de ser ocultada, necessita ser compreendida num contexto mais amplo. Conforme nos alerta Bobbio (1992, p. 18), as contradições evidenciadas no momento das lutas e conquistas dos direitos “renascem quando se passa do momento da enunciação puramente verbal para o da aplicação”. Nesse sentido, o ECA “tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar força às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para outros a satisfação de novos carecimentos materiais” (Bobbio, 1992, p. 10). As proposições do ECA de que o abrigo tenha um caráter provisório e de que haja um programa gradual de desligamento, iluminadas pela realidade dos dois adolescentes investigados, emprestam-nos força à reflexão sobre a qualidade dessas instituições e a necessidade de que se criem mecanismos de supervisão, fiscalização e acompanhamento das atividades e programas dos abrigos. Como nos situamos no fim da linha da problemática, ou seja, quando todas as prerrogativas do ECA já falharam, é ainda imprescindível que, no momento de desligamento por causa função da maioridade, haja projetos de repúblicas que busquem o engajamento do jovem com seu próprio futuro e abram campos de discussões e reflexões com os adolescentes. Espaços que sirvam para que os jovens elaborem, criem e pratiquem novos sentidos sobre sua saída e sobre essa etapa em suas trajetórias. Espaços que reconheçam que o desligamento do abrigo é algo inclusive desejado por esses jovens, como um meio para a conquista de maior liberdade.

Os casos analisados nos fazem ver que as trajetórias de vida desses adolescentes são marcadas pela dramaticidade característica do sujeito vygotskyano e pela complexidade e multiplicidade das significações que esses sujeitos e seus contextos constroem. Nos dois casos, apesar de bastante diferentes, tensões e sofrimentos de algum modo foram mencionados, seja pela dificuldade própria de enfrentar a transição em suas vidas, seja na relação com a família biológica e com o fato de não serem adotados. Contudo, como nos afirma Ogden (2002), também em sua visão de sujeito dialético, que comporta contrários em si mesmo, esses mesmos casos ainda nos indicam que há também resistência nestes jovens e capacidade de se adaptarem à sua nova condição de vida.

 

Referências

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*Texto recebido em abril/2008.
Aprovado para publicação em setembro/2008.

 

*Mestre em Psicologia pela FFCLRP-USP, psicóloga clínica, membro do Cindedi (Centro de Investigações do Desenvolvimento Humano e Educação Infantil), e-mail: E-mail: p_usp@yahoo.com.br.
**Professora do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP, membro do Cindedi (Centro de Investigações do Desenvolvimento Humano e Educação Infantil), E-mail: apssilva@ffclr.usp.br.

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