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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.14 no.2 Belo Horizonte Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

Marcas do amor romântico e violência conjugal: uma análise a partir do “sequestro” do ônibus 499

 

Traces of romantic love and conjugal violence: an analysis based on the kidnapping of bus 499

 

Marcas del amor romántico y la violencia conyugal: un análisis a partir del “secuestro” del autobús 499

 

 

Teresa Cristina O. Carreteiro * I ; Cristine Monteiro Mattar** II

IUniversidade Federal Fluminense
IIUniversidade Estadual do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Este texto analisa a violência conjugal por meio de um fato de grande repercussão na imprensa: o sequestro de um ônibus no Rio de Janeiro. Acompanhando as notícias de vários periódicos do Estado, o acontecimento é apresentado, e a análise se detém sobre as formas de interpretar, sob duas perspectivas, o episódio: a do íntimo, em que se destacam os ideais românticos a respeito do amor, e do público, a qual se remete à necessidade de intervenção institucional sobre a violência. Alguns meses após a ruptura com a violência, por intermédio da separação conjugal e da intervenção institucional, o casal reaparece nas manchetes, desta vez para anunciar a sua reconciliação motivada pelo amor. Essa trajetória mostra-nos toda a complexidade e ambivalência desse fenômeno, impedindo-nos de lançar mão de fórmulas prontas ao buscarmos compreendê-lo.

Palavras-chave: Mulher, Violência conjugal, Amor romântico, Íntimo, Público.


ABSTRACT

This is an analysis of conjugal violence based on a fact of great repercussion in the press: the kidnapping of a bus in Rio de Janeiro. Following the news on various newspapers in the State, one notices that, as the fact is presented, the analysis focuses on ways of interpreting it in the perspective of private life, with emphasis on the romantic ideal of love, as well as of public life, with the need of institutional intervention on violence. Some months after the rupture with violence, through conjugal separation and institutional intervention, the couple reappeared on the headlines, this time to announce their reconciliation motivated by love. This path points out all the complexity and ambivalence of the phenomenon, preventing us from using ready-made formulas in our attempt to understand it.

Keywords: Woman, Conjugal violence, Romantic Love, The private, The public.


RESUMEN

Este texto analiza la violencia conyugal a través de un hecho de gran repercusión en la prensa: el secuestro de un autobús en Río de Janeiro. Si observamos las noticias de varios periódicos (del estado), el evento se presenta y el análisis se sostiene sobre las formas de interpretar el episodio desde dos perspectivas: la de lo íntimo, en la que se destacan los románticos ideales de amor, y la de lo público, en la que se remite a la necesidad de una intervención institucional ante la violencia. Pocos meses después de la ruptura violenta, a través de la separación matrimonial y de la intervención institucional, la pareja vuelve a aparecer en los titulares, esta vez para anunciar su reconciliación motivada por el amor. Esta trayectoria nos muestra toda la complejidad y ambivalencia de este fenómeno, que nos impide echar mano de formulas preconcebidas cuando tratamos de comprenderlo.

Palabras clave: Mujeres, La violencia conyugal, Amor romántico, Íntimo, Público.


 

 

Há fatos que rompem o cotidiano das cidades e nos levam a refletir sobre os elementos que nele se condensam. Pretendemos aqui discutir um destes fatos, ou seja, o sequestro ocorrido no Rio de Janeiro com o ônibus 499.1 Propomos colocá-lo em análise, por um lado, porque ele faz falar publicamente da violência conjugal contra a mulher, e, por outro, por inscrever-se nas perspectivas de estudo das autoras (Carreteiro & Mattar, 2003, Carreteiro & Mattar, 2004/2005, Mattar, 2003). Nosso modo de aproximação desse fato consistiu em acompanhá-lo durante todo o dia em que informações ao vivo eram veiculadas por um canal fechado de TV2 e, nos dias subsequentes, pela repercussão na imprensa escrita.3 O recorte, por intermédio da imprensa, nos permitiu aquinhoar a importância e as formas de apresentação do episódio. Percebemos, em alguns momentos, a ambiguidade das falas, ora mantendo a violência em âmbito privado, ora exigindo que fosse pública e se tornasse alvo de intervenções institucionais mais eficazes.

A metodologia para analisar as falas foi a Análise do Discurso. Esta, diferentemente da Análise de Conteúdo, problematiza a discursividade, deixando de procurar no texto um sentido profundo, estável, positivo, para propor “um plano discursivo que articula linguagem e sociedade, entremeadas pelo contexto ideológico” (Rocha & Deusdará, 2005, p. 5). As falas citadas ao longo deste texto foram destacadas na intenção de mostrá-las como produtoras do contexto social e histórico. Consideramos que, no momento mesmo em que são enunciadas, revelam “uma concepção de linguagem que se afasta da ótica meramente representacional segundo a qual a produção da realidade se dá em um momento anterior ao da produção das práticas linguageiras” (Rocha & Deusdará, 2005, p. 15). Ao serem pronunciadas, as falas dos envolvidos no “sequestro” do ônibus 499 participam na construção da complexa realidade social, contribuindo para delinear o cenário da violência conjugal contra a mulher.

A análise nos levou a destacar duas categorias, a do íntimo e a do público, por nos embasarmos em Sennett (2001), em sua análise do processo de intimização moderno. O autor evidencia a presença, no espaço público, do “espectador passivo e silencioso”, o “paradoxo da visibilidade e do isolamento” e o “segredo”. Retomamos essas expressões por considerá-las apropriadas à análise do olhar intimista que cerca a violência conjugal, a qual é vista, porém mantida no isolamento, frente à espectação silenciosa de indivíduos e instituições, no segredo que se espera manter em uma relação amorosa.

Classificamos as falas emitidas e registradas pelos jornais dentro de duas categorias analíticas: falas do íntimo, aquelas que remetem a violência a soluções de âmbito privado e que a explicam ou justificam pela ótica romântica; falas do público, aquelas que veem a violência como um problema social, que diz respeito a todos e exige intervenção institucional.

 

Violência conjugal contra a mulher

A Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela OEA em 1994) definiu a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Durante a Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em 1993, em Viena, essa violência foi reconhecida formalmente como uma violação aos direitos humanos

Saffioti e Almeida (apud Almeida, 1998, p. 18) definem a violência de gênero como um padrão específico de violência mais ampla que a doméstica, pois “visa à preservação da organização social de gênero, fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados [...]” que subalternizam as mulheres.

Uma pesquisa de âmbito nacional (Fundação Perseu Abramo, 2001) revelou que uma em cada cinco brasileiras (19%) declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem: 16% relatam casos de violência física, 2% citam alguma violência psíquica e 1% lembra do assédio sexual. Quando estimuladas pela citação de diferentes formas de agressão, o índice de violência ultrapassa 43%. Um terço das mulheres (33%) admite já ter sido vítima, em algum momento da vida, de alguma forma de violência física (24% de ameaças com armas ao cerceamento do direito de ir e vir, 22% de agressões propriamente ditas e 13% de estupro conjugal ou abuso); 27% sofreram violência psíquica e 11% afirmam já ter sofrido assédio sexual. Um pouco mais da metade das mulheres brasileiras declara nunca ter sofrido qualquer tipo de violência por parte de algum homem (57%).

O marido ou parceiro surge como o principal agressor, entre 53% (ameaça à integridade física com armas) e 70% (quebradeira) das ocorrências de violência em qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio. Outros agressores comumente citados são o ex-marido, o ex-companheiro e o ex-namorado, que, somados ao marido ou parceiro, constituem sólida maioria em todos os casos, o que mostra que as mulheres correm mais risco de serem agredidas por aqueles que lhes são íntimos, com os quais convivem ou já conviveram no dia-a-dia em relações afetivas.

A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica dados assustadores: pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram ter sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no País, 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.

Os casos de denúncia pública são raros, ocorrendo principalmente diante de ameaça à integridade física por armas de fogo (31%), espancamento com marcas, fraturas ou cortes (21%) e ameaças de espancamento à própria mulher ou aos filhos (19%). O órgão público mais requisitado para denúncias é a delegacia de polícia. A Delegacia da Mulher é mais procurada nos casos de espancamento com marcas, fraturas ou cortes, mas, ainda assim, por um pequeno índice de mulheres (5%). Esses dados indicam que a violência contra a mulher ainda continua sendo vista muito mais como um problema particular do que uma violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública. A reação mais frequente perante tais situações ainda é silenciar ou comentar a partir de padrões socialmente estabelecidos, sem interferir, como relata Soares (1999, p. 27) sobre sua experiência ao testemunhar episódios de violência:

Minha reação foi típica. Apenas ouvi e lamentei o episódio. Não tomei qualquer atitude e pensei, provavelmente, que aquelas pessoas que gritavam, choravam, quebravam objetos, batiam portas e, em alguns casos, clamavam por socorro eram radicalmente diferentes de mim. Talvez pessoas vulgares, sem escolaridade. Talvez doentes. Também, tipicamente, imaginei que as mulheres que ouvi gritar gostassem e talvez merecessem ou fossem responsáveis pelas surras que vinham levando, já que se mantinham e as cenas se repetiam. Conheci algumas. Outras jamais cheguei a identificar. Eram apenas vozes que nunca soube exatamente de que apartamento partiam. Contribuí, algumas vezes, com a farsa que o casal tentava construir, para si próprio e para a vizinhança, fingindo nada ter escutado.

A reação da autora é emblemática do modo usual de interpretar a violência conjugal.

No fato que analisaremos a seguir, um caso concreto dá vida às estatísticas apresentadas: a violência conjugal é presenciada na cena pública, produzindo respostas diversas.

 

O acontecimento

No dia 10 de novembro de 2006, sexta-feira, às 8h, no Município de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, uma mulher foi sequestrada por um homem armado. Arrastada pelos cabelos, foi obrigada a entrar em um ônibus e mantida refém durante dez horas, junto com os passageiros. Com uma arma apontada para sua cabeça, foi ameaçada de morte, sofreu ofensas e foi espancada. A cena fez todos recordarem o sequestro do ônibus 174, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 2000, e culminou com a morte da refém e do sequestrador. Desta vez, no ônibus 499, o sequestrador era o ex-marido, e a vítima, sua ex-mulher. A violência praticada há muito no espaço privado era agora transmitida em cadeia nacional e ocuparia, na manhã seguinte, as manchetes dos principais jornais; tornara-se pública.

Cristina, 36 anos, auxiliar de enfermagem, foi seguida pelo primo e ex-marido, André, 35 anos, vendedor ambulante, que armado, a abordou obrigando-a a acompanhá-lo. Uma pessoa viu a cena e avisou a um policial. Ao perceber, André fez parar o ônibus 499, forçou Cristina a entrar, e, apontando a arma para o motorista, ordenou que seguisse viagem. O veículo foi cercado por volta das 8h20min em uma rodovia, iniciando-se uma operação policial que contou com cerca de 200 policiais, bombeiros, helicóptero e carros blindados. Os reféns, cerca de 55 passageiros, além de Cristina, foram sendo liberados aos poucos. Dentro do ônibus, Cristina era espancada e acusada de traição, enquanto André pedia desculpas aos passageiros pelo “transtorno”, anunciando que mataria a ex-mulher e se suicidaria. Familiares do sequestrador foram chamados a fim de auxiliarem nas negociações. Às 18h25min, André decidiu render-se, exigindo a presença da irmã e de um promotor do Ministério Público. Entregou a arma e foi levado para a 52ª Delegacia de Polícia de Nova Iguaçu. Ela, depois de libertada, mal conseguia andar, apresentando escoriações e a mandíbula fraturada devido às agressões.

No dia seguinte, o fato ocupou as manchetes dos principais jornais. Na perspectiva de Cristina, podemos considerar esse fato como um acontecimento (Legrand, 1995). Este é uma categoria biográfica composta por eventos marcantes em uma trajetória de vida operando uma disjunção no cotidiano, criando uma descontinuidade, uma ruptura na vivência dos sujeitos. Produz na narrativa de vida uma inflexão temporal clara, conotando um antes e um depois. O acontecimento caracteriza-se por ser imprevisível, improvável, acidental, singular. Talvez Cristina nunca houvesse pensado que a violência que antes sofrera na cena privada, naquela ocasião, tornar-se-ia também um acontecimento público.

Nosso objetivo, neste trabalho, foi duplo: por um lado, acompanhar, a partir dos relatos nos jornais, o antes e depois da ruptura na vida de Cristina e André; por outro, analisar o modo como as notícias foram veiculadas.

 

Notícias de um “sequestro”

A imprensa noticiou o fato usando a expressão “sequestro”. Esse termo tem como sentidos etimológicos: isolar, insular, tomar com violência. Pensamos que o sequestro em pauta permitiu dar visibilidade a outro sequestro, maior, aquele que mantém no insulamento do privado a violência conjugal.

Pelos textos da imprensa escrita, pudemos acompanhar algumas falas e opiniões sobre o “sequestro”. Destacaremos trechos dos jornais: O Globo, Jornal do Brasil, Extra e O Dia, tentando mostrar como as falas, seja dos passageiros envolvidos, ou de policiais, jornalistas e especialistas chamados a opinar, ora promovem a “intimização” do fenômeno da violência conjugal contra a mulher, ora exigem que seja pública por meio de medidas institucionais mais eficazes.

Dividimos os relatos em dois grupos, nos quais destacamos as “falas do íntimo” e as “falas do público” entre os discursos que serviram de moldura ao fato.

 

As falas do íntimo

Em um texto jornalístico4, o sequestro foi denominado de “tragédia passional”, causada pelo fim de um casamento de dez anos entre um homem ciumento ao extremo e uma mulher cansada de suas desconfianças. O ciúme, a desconfiança, a paixão, o “amor destrutivo” surgem como uma espécie de explicação para a violência. André, serralheiro desempregado, que sobrevive como vendedor ambulante, inconformado com a separação conjugal, teria arrastado a ex-mulher até o ônibus, iniciando o sequestro. A narrativa dos passageiros diz que, desde o início, ficou claro que o ódio de André era direcionado “apenas” à ex-mulher. Um deles diz: “Achei que fosse assalto, mas depois vi que era briga de marido e mulher5. Ele se disse traído. Não ameaçou passageiros”. Enquanto alguns ficavam mais incomodados com o que acontecia à Cristina, outros, vendo que o episódio dizia respeito ao casal, se afirmaram “tranquilos”, pois André afirmara “que não maltrataria ninguém”. Os que se solidarizaram com ele, viram-no como um homem apaixonado e desesperado, que estaria com câncer de próstata. Um passageiro diz não ter deixado o ônibus por “solidariedade” a André, temendo que este “sofresse represálias”. Outro chegou a abraçá-lo, pois sentiu que ele “só estava transtornado, não queria fazer mal a ninguém”, isto é, a nenhuma outra pessoa que não fosse a ex-mulher, a ninguém fora do contexto privado. Essas reações, a nosso ver, são um reflexo do horizonte social maior, representam a divisão entre os que veem a violência contra a mulher como um problema de todos e os que a mantêm como algo privado, que só diz respeito aos que a vivenciam.

Em outro trecho do mesmo jornal, a matéria intitulada “Reféns do amor e do ódio” traz como epígrafes as falas de um passageiro e da cunhada de André. O primeiro afirma que André dizia haver sido traído: “Ele já entrou com ela e com a arma nas mãos dizendo que tinha sido traído. Ele batia tanto nela que chegava a dar dor na alma da gente”. A segunda ressalta o ciúme do cunhado em relação à ex-mulher: “Ele sempre foi muito ciumento. Quando Cristina foi embora para a casa da mãe, ele ficou transtornado”. Ou seja, ao perseguir e sequestrar a ex-mulher, André parece não ver outra possibilidade a não ser eliminar aquela que não o quer mais e dar fim à própria vida.

É como se não houvesse, para ele, uma diferenciação entre o seu desejo e o da mulher, impossibilitando-o de continuar a existir uma vez que a mulher tinha ido embora. Segundo relato dos familiares, um mês após a separação, ele teria tentado o suicídio. Agora, decidira matar a ex-mulher antes de matar-se.

A suspeita de traição e o ciúme são temas frequentes em situações de violência conjugal, usados como justificativa para as agressões, ameaças e homicídios perpetrados.6 Nessas situações, as temáticas do amor romântico se fazem presentes, como, por exemplo, na crença de que não se pode viver sem o outro, de que o amor é um sentimento universal e natural, presente em todas as épocas e culturas, surdo à voz da razão e incontrolável pela vontade. Além disso, é valorizado como condição máxima de felicidade, que se dirigiria eternamente ao mesmo “objeto”, independente de ser correspondido. O amor romântico, na forma como o vivenciamos, é uma construção histórico-cultural que dá origem a essas vivências emocionais nos relacionamentos afetivos (Costa, 1998). O limite do amor romântico é justamente não sobreviver ao confronto com o real, uma vez que se nutre da idealização. Dessa forma, percebemos que, para André, é tão insuportável a realidade de que a ex-mulher não o queira mais, que ele se nega a reconhecê-la, procurando uma “Cristina” que corresponda às suas idealizações amorosas. Não a encontrando, recusa-se a abrir mão da fantasia romântica, e decide que ambos devem morrer. Na morte, o amor romântico pode ser imortalizado.

A leitura do fato pelas lentes românticas fica bem clara em algumas falas transmitidas pela mídia.7 Na opinião do cobrador do ônibus que colaborou com as negociações, André é um homem apaixonado, que age por desespero e se arrepende: “Não houve heróis. Todos contribuíram para que ele se livrasse do problema. Ele é um homem apaixonado e se arrependeu da situação que provocou. Ele demonstrou preocupação de não ferir nenhum dos passageiros durante todo o tempo”. 8 Podemos pensar que André, mesmo violento, parece ser visto aqui como uma espécie de herói romântico arrebatado e impulsivo. Essa imagem apareceu também em manchetes9 como: “Polícia usou tática do cansaço para vencer marido traído” e “Amor desprezado motiva sequestro de ônibus e acaba na delegacia”.10 Mais uma vez, os temas da traição conjugal e do amor frustrado surgem na tentativa de justificar a violência conjugal contra a mulher. No entanto, percebe-se uma contradição entre os fatos e o enunciado desse jornal: a cena não se configura como resposta a uma traição, uma vez que Cristina já havia se separado de André há seis meses, assim como não se trata de um amor desconsiderado, visto que ela rompera com um marido que a agredia. Na enunciação dessas manchetes, o amor é uma construção que deve sustentar-se independente das circunstâncias.

Em outro momento da reportagem André é descrito como um homem “desequilibrado”, “enciumado”, que demonstrava ódio e autopiedade, e dizia que se mataria por vergonha. Ele mesmo se definiu ao dirigir-se aos passageiros: “Sou trabalhador. Ela me traiu, desgraçou minha vida. Hoje, moro de aluguel”.11 A mãe de André, ao ser entrevistada, disse orgulhar-se muito do filho, que sempre foi trabalhador e ajudou a criar os irmãos. Afirmou também que ele tinha ciúmes da “própria sombra”, e que sua vida eram os filhos e a mulher, tendo implorado muito para que Cristina voltasse. E concluiu: “Era uma paixão louca”. Por essa paixão, André teria lutado contra a reprovação das famílias, pois eram primos em 1º grau, para ficar com “o grande amor de sua vida”. A figura do homem trabalhador, esforçado, que vive para a família e deve ser valorizado e obedecido, parece marcar fortemente uma identificação com um determinado papel masculino, justificando, aos olhos do próprio André, atitudes como a sua, baseadas na crença de que um homem que se integra no papel de trabalhador não merece deixar de ser objeto de investimento para sua mulher e tem o direito de defender sua “honra”. Mais tarde, ao dizer-se arrependido, André afirmará que tudo o que fez foi por “amar demais” sua mulher.

Em um texto jornalístico,12 a temática do amor é evocada novamente para explicar o fato. A manchete fala em “amor doentio” e “amor demais atrapalha”, chamando-nos a atenção para a visão paradoxal que transmuta a violência em um sentimento que a inviabilizaria, ou seja, o amor. Porém, parece que o ideário romântico permite essa contradição em seu discurso, uma vez que qualquer tipo de exaltação, gesto impensado ou “loucura”, são válidos, desde que praticados em nome do amor. André é chamado de “camelô apaixonado”, descrito como um homem de 35 anos que abandonou os estudos na 5ª série e ganhava a vida vendendo bichos de pelúcia nas ruas. Ele teria levado 10 horas para mostrar ao País que “um grande amor não tem limites”. Aqui parece que a cena privada desaparece, e o “amor” transborda e avassala qualquer barreira.

“Transtornado pela dor” e “disposto a lavar sua honra” são outros atributos com os quais André é descrito. Alba Zaluar 13 atribuiu a atitude de André a uma construção social milenar a defesa da honra, onde a mulher é considerada propriedade masculina. Nessa perspectiva, a honra deve ser defendida a qualquer custo, para afirmar a masculinidade e estar à altura dos ideais de virilidade. Vale lembrar que o argumento da “legítima defesa da honra” foi muitas vezes utilizado para absolvição de homens que assassinaram suas mulheres e ex-mulheres, naturalizando a violência praticada e transformando a vítima em responsável pelo crime.14

Ainda no sentido da intimização da violência, as reportagens registram os avanços e recuos na atuação de instituições que lidam com violência conjugal.

As denúncias de violência feitas por Cristina anteriormente à polícia não evitaram que quase fosse morta pelo ex-marido. Três meses antes do ocorrido, ela ficou desaparecida durante quatro dias. Conseguiu telefonar para uma colega e avisar que estava sendo mantida em cárcere privado pelo ex-marido em um motel. Na ocasião, foi violentada sexualmente por ele. Libertada, registrou ocorrência na Delegacia de Atendimento à Mulher de seu município. Um mês depois foi ameaçada com a mesma arma usada no sequestro, para que retirasse a queixa, efetuando então o segundo registro policial. Podemos questionar se, nessa ocasião, a instituição policial não poderia ter tido uma atitude mais eficaz para proteger Cristina. Sabemos, desde Freud (1974), que uma das funções das instituições é a de barrar a violência, protegendo os sujeitos. As instituições deveriam fortalecer a função de proteção, atuando como um terceiro elemento, introduzindo mediações que contribuiriam para afastar a violência do âmbito dual. Pode-se perguntar, na situação analisada, se a instituição chamada a intervir encontrou meios legais para quebrar a dualidade conjugal que detinha a violência do casal nos limites estreitos da intimidade. O que temos observado em outros trabalhos é que, apesar de alguns avanços institucionais, continua-se a perpetrar condutas que delegam a violência à perspectiva privada (Mattar, 2003). O fato que estamos analisando é um exemplo desse fenômeno. No mês em que ocorreu, via-se, nas ruas do Rio de Janeiro, um outdoor com o seguinte texto: “Tem gente que tem medo de andar na rua, tem gente que tem medo de voltar para casa. No Brasil em cada 15 segundos uma mulher é agredida e mais de dois milhões são espancadas. Não à violência contra a mulher. A paz do mundo começa em casa”. Esse painel, ao nosso ver, embora pretenda tornar público o fenômeno da violência e poder evitá-lo, acaba por sustentar a ênfase no âmbito privado.

Ao mesmo tempo em que alerta para a necessidade de combater a violência doméstica em nossa sociedade, não propõe nenhum tipo de estrutura de apoio. Não veicula, por exemplo, nenhum número de telefone ou um lugar aonde possam se dirigir os interessados. A mensagem final do painel é exemplar pelo seu cunho altamente privatista. Ao afirmar que a paz do mundo começa em casa, parece tornar responsáveis pela transformação apenas os indivíduos que vivem no espaço privado. Ora, se pensarmos nos casos de violência extrema como o discutido aqui, o que existe é o imperativo dual. Portanto, o que a atitude privatista propõe implicitamente é a negação da mediação no plano da realidade. Atuar na função de mediação implica escutar, acolher, interdizer a violência, fazendo valer a função de proteção. Implica ainda ter condições de propor uma rede de apoio (abrigos, empregos, escolas) que deem subsídios no plano da realidade para barrar a violência.

Os jornais pesquisados resgatam a memória de outros casos, antigos e atuais, que ganham maior visibilidade neste momento, quando mulheres foram mortas por seus maridos, companheiros, ou ex-maridos e ex-companheiros. Na mesma semana do sequestro, uma professora foi morta por ordem do ex-marido, poucos dias antes de casar-se novamente. Outra mulher, grávida, foi atropelada pelo marido, na frente dos filhos, porque se recusava a entrar no carro durante uma discussão.

Quando há outros que discutem o tema da violência, esta pode deixar de ser um problema privado, que diz respeito apenas ao casal, e que, por vezes, acaba por responsabilizar apenas a mulher pela denúncia e resolução. No entanto, mesmo as tentativas de “publicização” da violência acabam, muitas vezes, por mantê-la em âmbito privado, pois se atêm apenas ao sensacionalismo da notícia no momento em que ocorrem as situações de violência, as quais, porém, caem logo no esquecimento, tornando-se banais, antes que sejam geradas mudanças efetivas nas políticas e práticas institucionais.

 

As falas do público

Ao lado das falas da intimização, observamos relatos incitando à publicização da violência, enquadrando-a como crime e não como problema conjugal. Para Hanna Arendt (2000), o termo público se refere, em primeiro lugar, ao que pode ser visto e ouvido por todos, tendo a maior divulgação possível. Aquilo que aparece aos nossos olhos e ouvidos e dos demais constitui a realidade. Paixões e pensamentos vivem uma existência incerta e obscura até que sejam desprivatizados na aparição pública. As situações experimentadas na privacidade, ao serem trazidas para outra esfera, poderão assumir uma espécie de realidade, na presença de outros que “veem o que vemos e ouvem o que ouvimos, garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos [...]” (Arendt, 2000, p. 60). Em segundo lugar, público significa o próprio mundo comum a todos nós e diferente do lugar que ocupamos nele. Já o privado é o lugar da privação, da ausência de outros, privação da existência política que implica relação com outros pela palavra e pela ação na construção de um mundo comum. De acordo com Arendt (2000, p. 68):

Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros [...]. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, e, portanto, é como se não existisse.

A violência, ao ser reconhecida como tal por terceiros, pode levar à ruptura do olhar privatizante, possibilitando ser tratada como uma questão política, uma vez que diz respeito a todos.

Muitas falas de “publicização” foram acompanhadas de atos. Alguns passageiros permaneceram no ônibus não por solidariedade à “paixão” do ex-marido e sim para evitar que ele cumprisse a promessa de assassinar Cristina. Um deles diz: “Decidimos ficar mais tempo para tentar evitar que ele cumprisse a ameaça de matar a mulher e depois se suicidar”. Nesse momento, ele se situa como sujeito implicado com o mundo e com os fatos sociais, atuando como um “terceiro” que interfere sobre a situação dual de violência.

Há também notícias que rompem15 com a lógica intimista, referindo-se à atuação preventiva policial. Ressaltam que André já tinha três registros16 na Delegacia de Atendimento à Mulher, uma delas por manter Cristina em cárcere privado. Destacam um “casamento marcado pela violência”, “cenas de constrangimento” e “falta de respeito”. Aqui não há emprego de termos privatizantes como “traição”, “ciúmes” e “amor desprezado”, mas de outras expressões que vinculam o fato à necessidade de discussão pública. Nesse sentido, destaca-se a divergência entre o promotor e o delegado responsável pelo caso, em que o primeiro reluta em admitir o crime de sequestro, afirmando que André permitia aos passageiros saírem do veículo, enquanto o segundo defende a condenação de até 20 anos pelo crime de sequestro, pois privou os passageiros do direito de ir e vir, exerceu porte ilegal de arma e cometeu ameaça de morte, além de lesão corporal.

O Instituto de Segurança Pública17 aponta o município onde residem Cristina e André como sendo um dos que têm maior incidência de ocorrências de lesão corporal dolosa contra mulheres, cerca de 4.400 casos por ano. Em 85,6% dos casos, a agressão foi praticada pelo companheiro ou ex-companheiro. Aos poucos, o contexto social mais amplo vai delineando-se como pano de fundo para a cena protagonizada por ambos. A preocupação de André era a de impedir que seu nome fosse divulgado, o que se tornou impossível nas circunstâncias provocadas por ele mesmo.

Outro periódico18 chama a atenção para a necessidade de publicização da violência. Ressalta que Cristina já registrara ocorrências policiais por sete vezes em cinco anos, mudara de endereço duas vezes em um intervalo de três meses e chegara a ser “escoltada” por colegas de trabalho até o ponto do ônibus, permanecendo “sem namorado” para evitar problemas com o ex-marido. André é caracterizado como “agressor armado”, que teria entrado no ônibus agredindo Cristina com “socos, coronhadas e puxões de cabelo”, e a manchete expõe que os reféns viveram horas de “angústia e medo”.

A história protagonizada por Cristina e André desdobra-se em outros acontecimentos, onde se faz presente a atuação institucional. No dia 14 de novembro, três dias após o ocorrido, ela compareceu à 52ª D.P. de seu município para depor. Em um dos poucos jornais onde aparece falando sobre o que lhe aconteceu,19 Cristina surge em fotos carregada por policiais, pois andava e falava com dificuldade. Ela conta: “Passei mal à noite com muita dor de cabeça. Vim depor para servir de exemplo para mulheres que são agredidas”. Durante cinco horas, prestou depoimento, confirmando as agressões sofridas. Em seguida, embora ainda não tivesse registrado queixa de estupro, confirmou ter sido violentada pelo ex-marido, quando já estava separada há dois meses, ocasião em que foi levada, sob a ameaça de um canivete, e mantida em cárcere privado durante quatro dias, até conseguir telefonar para uma amiga.

Cristina, ao revelar ter como estímulo para depor a consciência de que outras mulheres poderiam fazer o mesmo, reflete uma mudança no olhar sobre a violência conjugal. Nessa situação, ela não se inscreve mais como indivíduo isolado que deveria lidar sozinha com questões ditas particulares, mas como alguém que se reconhece membro de um corpo social.

 

Ampliando o debate público: a Lei Maria da Penha

Embora tenhamos separado, no texto, as falas vinculadas ao privado e aquelas ligadas ao público, percebe-se o seu entrelaçamento permanente, tanto para os sujeitos que vivenciam ou praticam a violência quanto para as instituições e a sociedade. Passamos de um período em que as trincheiras entre o espaço público e o privado eram bem demarcadas a outro no qual há labilidade entre suas fronteiras. Aqui parece difícil ver com clareza quando uma atitude é pertinente a uma relação conjugal privada e quando, por outro lado, ela ultrapassa esse limite, configurando-se como pública, demandando uma atuação na esfera institucional. A labilidade construída sócio-historicamente reforça os limites que mantêm no isolamento a violência conjugal contra a mulher. Isso nos faz pensar na importância da construção de políticas que possibilitem desconstruir esses limites. Uma das conquistas mais importantes até o momento foi a promulgação da Lei Maria da Penha (2006), que oferece um respaldo na prevenção e punição da violência contra a mulher, tratando-a como violação de direitos e não um problema privado. Essa lei abre para a mulher a possibilidade de falar e agir junto aos pares sociais, ser vista sem estar isolada, fazendo com que saia do lugar de privação, que é o da violência, para alcançar uma existência política.

Histórias como a de Cristina e de tantas outras mulheres nos remetem à que deu ensejo à lei, a trajetória de uma mulher que também escapou da morte, porém que ficou marcada por sequelas que a acompanharão para o resto da vida. Em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, 38 anos, farmacêutica, foi baleada pelas costas pelo marido, enquanto dormia, ficando paraplégica. Duas semanas depois, sofreria nova tentativa de assassinato, quando ele tentaria eletrocutá-la durante o banho. Foi nesse momento, após um casamento permeado por ameaças e agressões, no qual teve três filhas, que Penha decidiu separar-se. Seu caso motivou protestos porque, 15 anos após a tentativa de homicídio, nenhuma medida penal efetiva havia sido tomada por não haver sentença que finalizasse o processo, tornando-se emblema de um padrão sistemático de omissão e negligência no tratamento da violência doméstica e familiar contra mulheres no Brasil. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu Informe nº 54 de 2001, responsabilizou o Estado brasileiro por omissão, negligência e tolerância em relação à violência contra as mulheres. O caso Maria da Penha foi o primeiro em que foi aplicada a Convenção de Belém do Pará, instrumento internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres, o que foi decisivo para que o processo fosse concluído e para que o agressor fosse preso em outubro de 2002, quase 20 anos após o crime. Penha, hoje com 62 anos, tornou-se militante na luta pelos direitos das mulheres e narra sua história no livro “Sobrevivi, posso contar”, publicado em 1994. Atualmente é uma das coordenadoras da Associação dos Parentes eAmigos de Vítimas de Violência (APAVV), com sede em Fortaleza. Em fevereiro de 2005, Maria da Penha recebeu do Senado Federal o Prêmio Mulher Cidadã Bertha Lutz, que homenageia mulheres que se destacam na luta pelos direitos das mulheres.

A recente conquista jurídica é uma homenagem a ela e propõe fazer com que as ações de violência praticadas contra mulheres sejam tratadas com rigor e rapidez. A lei demarca, a nosso ver, de forma nítida, a diferença entre aquilo que, em uma relação conjugal, pode ser considerado como da esfera do íntimo e o que se configura como crime, a violência conjugal, e que, portanto, diz respeito à esfera pública. A promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340 de 7/ 8/2006), que entrou em vigor em outubro de 2006, representa, sem dúvida, um avanço no tratamento de um tema historicamente negligenciado, uma vez que aumenta as penas para crimes de violência doméstica. Ainda assim, nos encontramos distantes da sua plena aplicação, à qual se opõem inúmeros obstáculos. No entanto, a Lei Maria da Penha veio trazer esperança às mulheres vítimas de violência. Em seu artigo 3º, parágrafo 1º, ela deixa clara a importância da atuação do poder público e sua responsabilidade: “O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Há nessa lei um avanço ao considerar a violência praticada contra a mulher como uma violação dos direitos humanos, o que a torna uma questão de todos. Outras mudanças importantes são conferidas pela lei: a pena por crime de violência doméstica que era de seis meses a um ano de prisão passa a variar de três meses a três anos de prisão; esse crime deixa de ser considerado de menor potencial ofensivo. O texto, em seu artigo 5º, afirma ainda: “Configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe causa morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. A Lei determina também o afastamento do agressor da casa e a proibição de aproximar-se da mulher por ele agredida, o que possibilita à mulher denunciar sem que precise sair de casa, fator que muitas vezes a faz desistir de procurar ajuda, por não ter para onde ir, principalmente quando tem filhos. Apesar do avanço legal introduzido pela lei, consideramos arriscada a concentração dos esforços em torno apenas da criminalização da violência e da punição do agressor, sob pena de nos submetermos a um Estado penal, em lugar de um Estado de direito. Uma vez que a violência conjugal se constitui sobre bases sócio-histórico-culturais, qualquer intervenção jurídico-institucional deverá vir associada a outras políticas que visem a interferir sobre essas bases.

Neste sentido, o artigo 8° da Lei Maria da Penha deveria contar com grande concentração de esforços políticos, pois ele se refere a “medidas integradas de prevenção”, que propõem, dentre outras: a integração entre o Poder Judiciário e as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; a produção de pesquisas e estatísticas que deem visibilidade ao fenômeno; ocuidado dos meios de comunicação, procurando coibir papéis estereotipados que legitimem a violência; a promoção de campanhas educativas de prevenção da violência contra a mulher, nas escolas e na sociedade em geral; a capacitação de policiais; o destaque, nos currículos escolares, de temas como direitos humanos, equidade de gênero, raça ou etnia e o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

A nosso ver, é justamente a importância dada à implantação de políticas na garantia de direitos que permitirá ir além da exigência de punição pura e simples.

 

Novos acontecimentos relançam o episódio

Quando concluíamos este trabalho, um fato novo nos surpreendeu. No dia 2 de julho de 2007 o “sequestro” do ônibus 499 voltou a ser alvo das manchetes jornalísticas, que, desta vez, noticiavam que Cristina e André haviam se reconciliado. Nove meses após a cena pública de violência que mobilizou todos que a assistiram, o argumento romântico é fortemente usado mais uma vez, porém, aparece não mais na voz dos passageiros ou dos jornalistas, mas da própria Cristina. Ela atribui sua decisão de “perdoar” o ex-marido ao amor por ele e à preocupação com os filhos, que estariam sentindo falta do pai. A crença em que o marido mudou também se faz presente em sua fala. Assim, afirma: 20 “Perdoei por amor. Não aguentava mais ouvir meus filhos perguntando quando poderiam voltar a dormir com o pai. Sei também que ele sofria muito com a nossa ausência. Acredito que foi um ato impensado e que vamos retomar a nossa vida em paz”. Ao mesmo tempo, mostra preocupação com as críticas daqueles que irão considerar sua decisão um retorno à rotina de violência. “Sei que vou receber muitas críticas. Peço desculpas às pessoas, só não quero ter que enfrentar gente intolerante me chamando de sem-vergonha. A responsabilidade é toda minha.Quando falei que pretendia aceitá-lo de volta, ouvi de algumas pessoas o alerta de que ele voltaria a fazer tudo de novo. Mas conversamos, fui amadurecendo a ideia e decidi voltar”. Mais adiante, na mesma reportagem, outra fala de Cristina é citada: “Voltei para o André por vários motivos. Não queria que ele tivesse feito aquilo, eu gosto dele. Meus filhos pediram que a gente tentasse outra vez. Eu sei que ele mudou”. Diz ainda que pretende refazer a vida conjugal e familiar, adquirindo uma casa com o marido para, juntos, cuidarem dos filhos de 9, 7 e 5 anos. A reportagem ressalta também a aprovação de Cristina para a graduação no curso de Enfermagem.

Embora tenhamos relatado nossa surpresa diante do novo desdobramento dessa história, sabemos ser frequente a reconciliação em relações conjugais permeadas pela violência. São situações muito complexas, que podem envolver razões econômicas, manutenção dos ideais românticos ou mesmo o temor do companheiro. Uma escolha como a de Cristina, porém, não deve calar o contexto social mais amplo, mesmo se o desfecho apresentado por ela valoriza o seu papel no espaço privado de esposa e mãe, que deve cumprir sua missão “de manter a família unida”.

Não há como sabermos neste momento qual será o desfecho dessa história, mas está ao nosso alcance manter a necessária tematização do horizonte sócio-histórico-cultural no qual nos encontramos, a fim de que os discursos e práticas que nele circulam sejam alvo de um questionamento capaz de desnaturalizá-los, deslocá-los, permitindo o surgimento de novas formas de ser e relacionar-se.

 

 

Referências

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*Texto recebido em janeiro/2008.
Aprovado para publicação em setembro/2008.

 

*Doutora em Psicologia Social Clínica pela Universidade de Paris, pós-doutorado em Sociologia Clínica pela Universidade de Paris, professora titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF, psicanalista, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, bolsista de Produtividade do CNPq E-mail: tecar2@uol.com.br
**Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, professora do curso de Especialização em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro, E-mail: cristinemattar@ig.com.br
1Ônibus intermunicipal que faz a linha Cabuçu-Central do Brasil, entre o Rio de Janeiro e Nova Iguaçu./p>
2Globo News
3Jornais: O Globo, Extra, O Dia, Jornal do Brasil, O Globo on-line. Agências internacionais de notícias como Reuters, AP e EFE também acompanharam o episódio, que foi noticiado ainda pela rede CNN em sua versão eletrônica e nas edições on-line dos jornais El Clarín e La Nación.
4Jornal O Globo de 11-11-2006.
5Grifo nosso
6Essas afirmativas são baseadas em nossa experiência em um centro especial de orientação a mulheres em situação de violência
7Jornal O Globo de 11-11-2006.
8Grifo nosso
9Jornal do Brasil de 11-11-2006
10Grifo nosso
11Jornal do Brasil de 11-11-2006, p. A18.
12Jornal Extra de 11-11-2006
13Jornal O Globo de 11-11-2006, p. 16.
14Em 2005, foi sancionada a lei que derrubou o artigo 240 do Código Penal Brasileiro, que considerava crime o adultério. Esse artigo embasava a tese de legítima defesa da honra para absolver os que assassinavam mulheres, então acusadas de traição. Um dos casos mais conhecidos foi o assassinato da mineira Ângela Diniz pelo ex-namorado Doca Street, em 1976, que foi absolvido no primeiro julgamento com o uso dessa tese, alegando que a ex-namorada tinha conduta “promíscua”.
15 Jornal Extra de 11-11-2006.
16Em outros relatos, aparecem sete registros.
17Citado pelo jornal O Globo de 11-11-2006.
18 Jornal O Dia de 11-11-2006.
19Jornal Extra de 14-11-2006.
20“Casal do ônibus 499 se reconcilia”, Disponível em: < http://www.oglobo.com.br >. (Acessado em: 2/7/2007).

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