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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.14 n.2 Belo Horizonte dez. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

RESENHA

 

 

Ana Cristina Figueiredo*

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). 1968 e a saúde mental. Coleções IPUB/UFRJ – Fundação José Bonifácio. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008, 92pp

1968: o ano em que vivemos perigosamente

 

E assim se passaram 40 anos. Agora, neste maio de 2008, celebramos o que foi fomentado dos anos dourados aos anos de chumbo, na contramão da ditadura que, paradoxalmente, fez avançar o trabalho intelectual nas universidades públicas (a UFRJ é um bom exemplo), a formação política e a afirmação das ciências humanas e sociais. Ano em que vivemos perigosamente, entre barricadas, protestos e ações clandestinas, mas também no ritmo da inesquecível tríade do “sexo-drogas-e-roquenrol”. Entre um engajamento militante e uma suposta alienação, que desaguou na chamada “geração AI-5”, com direito a “padre de passeata” e “esquerda festiva” (críticas bem-humoradas que, mesmo com sua face de “direita”, não nos deixavam levar tudo a sério demais), forjávamos uma nova ética em meio à moral vigente. Era uma ética da solidariedade, mais da frátria do que da pátria; da valorização do “diferente”, não pela via do individualismo, mas pela via do direito a manifestar ou expressar livremente algo de si que certamente causaria estranhamento. Era também um certo ethos hedonista, que questionava, de modo ácido, o bem viver burguês, este sim cultivado no individualismo e na família nuclear moderna, que, na época, já vislumbrava o emergente “milagre econômico”.Era ainda uma sensação de fazer parte de algo maior, de um movimento internacional socialista, da festa ruidosa e rebelde dos estudantes apoiados nos intelectuais de vanguarda, que nos faziam respirar e ter novos sonhos. Algo disso tudo ficou, algo se perdeu. Sem saudosismo, mas com sabedoria para retomar e relançar adiante o que aprendemos e vivemos, fazemos nossa homenagem a 1968, quando muita coisa apenas começou...

E na saúde mental, o que conquistamos? Quais os reais impasses e desafios que enfrentamos? O que foi gestado nessa época que nos deixou o caminho aberto até os dias de hoje? Esse é o mote do livro que agora se lança, e ousa nos apresentar uma trajetória cheia de história e coisas para contar do que foi feito da loucura em seu drama, que, às vezes, dá em tragédia, dos jovens (conhecidos como “menores”), dos casais e das relações entre os sexos. Tomemos alguns exemplos:

Começando com a loucura, Pedro Gabriel nos indica, em seu texto, o que permanece:

Os distantes anos 60, e especialmente 68, permanecem como o gérmen do componente mais transformador do projeto da Reforma [psiquiátrica]. Não a origem, não o fundamento, não o determinante, mas o gérmen, como a Grécia é o gérmen da utopia democrática moderna, na expressão de Castoriadis.

Em outro texto, João Ferreira nos alerta sobre como prosseguir no campo da psiquiatria e da saúde mental:

Para o momento atual de consolidação do campo da saúde mental o revigoramento da articulação entre discursos e práticas ganha sentido apenas se considerarmos que não existe um saber acabado sobre os fenômenos do humano e sua organização societária pautada por marcas diversas de igualdade e diferença entre seus integrantes.

E quanto aos costumes? O que o movimento de 68 desencadeou que não teve volta nem reacionarismo que pudesse contê-lo? Nas palavras de Ana Pitta:

Como negar que foi um movimento extraordinário que mudou o mundo e nossas vidas? Direitos das mulheres, autonomia dos filhos, aceitação da homossexualidade, sociedades mais equânimes, democracia de fato e algum tempo depois de direito! Quanta luta... quantas utopias herdadas daqueles trezentos de Nanterre que protestaram contra a guerra do Vietnam e contagiaram o mundo com seus gritos...

Continuando, entre a ousadia de criar novos pensamentos e ideias e a tragédia da loucura que não se explica num saber pretensamente científico, a história de Althusser não poderia deixar de comparecer. Mestre de uma época, formador de toda uma geração de jovens intelectuais, Althusser teve seu auge nos anos 60, participante ativo de maio de 68, marxista apaixonado pela psicanálise, no entanto sucumbiu ao inexplicável, mas não de todo incompreensível, ato que o obrigou a calar por muito tempo, tendo sido decretado “impronunciável”. Mas retomou sua força e escreveu para nos contar sua história. E entre os demais textos, Marci Doria nos leva até ele e sustenta que:

Fazer de uma produção, um legado é tarefa necessária para que fique de um homem, uma obra. Assim, retomar Althusser e “maio de 68” torna-se oportunidade de reafirmar valores defendidos com veemência naquele tempo tão rico e “tornar nossa a herança”, como advertiu Goethe

Essas e outras histórias, como a situação dos jovens e seu estatuto legal de 68 como “menores” até as conquistas atuais, ou os novos dispositivos de acolhimento e cuidado dos pacientes psiquiátricos nas moradias terapêuticas, ou ainda a formação e as origens do Hospício Nacional dos Alienados e da Universidade do Brasil como a nossa pré-história, complementam o tema e nos põem a trabalhar sobre o que temos hoje como legado do ano em que vivemos perigosamente. Pois é, 1968 nos deixou sua marca na ousadia de insistir em ter como lema a liberdade de inventar novas formas de vida.

 

 

* Professora Associada do Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, psicanalista, e-mail: anacrisfigueiredo@gmail.com

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