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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.14 no.2 Belo Horizonte Dec. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

RESENHA

 

 

Valéria Freire de Andrade*

 

Educação inclusiva: por um devir minoritário em uma escola para todos

(The Inclusive education: for a minority transformation in a school for everyone)

(Educación inclusiva: por un devenir minoritario en una escuela para todos)

 

 

Esta pesquisa procurou identificar e entender as configurações sociais, políticas, culturais e econômicas que atravessam e constituem a proposta da escola inclusiva e, consequentemente, modelam os processos de subjetivação nesse contexto.

Através dos tempos, a educação firmou-se como uma das principais instituições sociais na Modernidade. Assim, o campo educacional em um sentido amplo, tendo a escola pública como seu locus específico, instituiu-se como um lugar importante para a construção e propagação da ordem social dominante no Ocidente. Dessa forma, o âmbito escolar é também um potente modelador de formas de subjetivação, uma vez que, na escola, não se aprendem somente os conteúdos escolares, mas, sobretudo, formas de estar no mundo.

Assim sendo, o âmbito educacional se constitui em um espaço privilegiado para práticas e ações relativas à inclusão social.

A partir dos anos 90, a proposta relativa à convivência entre crianças com deficiência e crianças normais se constituiu como o segmento principal no projeto da chamada escola inclusiva, que tomou corpo e adquiriu força no contexto contemporâneo, juntamente com outros movimentos sociais em prol da aceitação e inclusão de grupos minoritários e discriminados socialmente. Isso porque vivemos atualmente uma tensão expressada pelo binarismo inclusão/exclusão social, engendrada pela afirmação e propagação do sistema capitalista como a forma hegemônica de civilização na contemporaneidade.

Tal binarismo, porém, é extremamente paradoxal, pois o próprio sistema capitalista impulsiona uma globalização contundente e irreversível. Vivemos uma intensificação de trocas econômicas e culturais, uma fluidificação absoluta das fronteiras, dos mercados, das informações e o desmoronamento dos muros das instituições de confinamento: escolas, prisões, manicômios e fábricas. Tais acontecimentos aproximam universos de toda espécie, numa disparidade e densificação cada vez mais intensas. Existe assim uma intensificação na produção de subjetividades. O funcionamento das instituições é, ao mesmo tempo, mais intensivo e mais disseminado. A lógica proposta é a lógica da inclusão. O capitalismo contemporâneo prospera incluindo cada vez mais os que, na Modernidade, ficavam às margens, nas sobras, nos restos, pois o que interessa é crescer, espalhar suas redes em uma tentativa de englobar tudo, de crescer em ondas de incorporação de diferenças em um processo de modelização a partir de um modo de subjetivação dominante. No entanto, essas mesmas densificação e aproximação dos universos de todas as espécies disseminam, ao mesmo tempo, padrões de modelização e controle das configurações de existência.

A proposta da escola inclusiva constitui-se nesse contexto. Portanto é atravessada pelo mesmo paradoxo que, por um lado, afirma a lógica de fluidificação e misturas das diferenças, mas, por outro, acena com uma padronização globalizada de formas hegemônicas de existência.

O discurso da escola inclusiva é: todos na escola sem nenhuma distinção, que a escola se transforme radicalmente para todos receber. Propõe a derrubada dos muros excludentes das escolas especiais e também a derrubada dos muros seletivos das escolas regulares. De acordo com a proposta inclusiva, na escola regular conviveriam diferenças de todos os tipos. Pluralidades, supostas possibilidades de misturas, de encontros, de afetamentos múltiplos, de processos de subjetivação singulares... Que todos os alunos entrem para a escola regular. Todos: pobres, loucos, deficientes físicos e mentais, minorias étnicas, todos. Para isso a criação de um novo termo no qual caibam todas essas existências, todas essas diferenças: portadores de necessidades educacionais especiais. Não mais deficientes. Não mais excepcionais, ou cegos, ou surdos, ou débeis, ou loucos, ou mesmo meninos de rua. Não. O termo atual é Portadores de Necessidades Educacionais Especiais. Amplo. Estão todos contemplados nesse termo, nesse discurso, nessa escola, nessa sociedade. Sem distinção. Sem distinção? Homogeneamente? Estranho... Confuso e paradoxal... Armadilhas, artimanhas da inclusão.1

O método utilizado para identificar e analisar as forças presentes na proposta da escola inclusiva foi o da cartografia (Rolnik, 2006), que procura entender e expressar mundos, paisagens, acontecimentos. Cartografar não significa organizar ou classificar por identidade e semelhança, nem impor uma sequência e uma linearidade aos acontecimentos e paisagens. Uma cartografia se faz ao acompanhar os movimentos de transformação da realidade pesquisada. Assim, o que se pretendeu foi cartografar os processos de inclusão e de integração social no espaço escolar, investigando modos de subjetivação que ora pendem para a reprodução e cristalização de formas hegemônicas e padronizadas de existir, pensar e viver, ora para a criação de diferentes maneiras de pensar e viver.

Para tal, a tese usou todo o material disponível acerca da questão trabalhada: anotações de meus diários de campo de quando eu era professora, de quando fui consultora educacional, entrevistas com coordenadores de núcleos de inclusão, depoimentos de professores de escolas inclusivas, documentos nacionais e internacionais relativos à proposta de inclusão, leis norteadoras dessa proposta, enfim, tudo o que permitiu cartografar as forças que compõem e atravessam a questão da inclusão escolar.

O sentido do menor (por uma escola minoritária) foi buscado em Deleuze (1977), para quem o menor é relativo a uma forma de resistência às formas dominantes e padronizadoras da existência. O menor diz sempre de um coletivo minoritário, não dominante e não padronizado, e é situado em relação a um contexto social e político maior, dominante. Dessa forma, a noção de menor, de minoritário, interroga a escola em sua própria tradição, em suas formas padrão, em sua cultura dominante. Nesse sentido, a proposta de inclusão de crianças com deficiência na escola comum pode contribuir para a transformação de formas de pensar e fazer educação. As misturas de diversas formas de pensamentos (deficientes mentais e normais), de olhares (cegos, videntes e deficientes visuais), de escutas (surdos, ouvintes e deficientes auditivos) possibilitam a emergência de uma escola menor. Uma escola na qual os pensamentos menores, as linguagens menores, os corpos menores possam construir, dentro da própria escola, outras linguagens, outros olhares e outras escutas, instaurando formas singulares de criação, de expressão, de pensamento, de conhecimento, de relações: novas formas de vida.

 

Referências

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1977). Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago.

ROLNIK, S. (2006). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS.

 

*Doutor em Psicologia Clínica pela PUC São Paulo, orientadora: Prof. Dra. Suely Rolnik, e-mail: valeriafreireandrade@gmail.
1Referência ao livro Artimanhas da exclusão, de Bader Sawaia (Org.).

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