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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.1 Belo Horizonte abr. 2009

 

ARTIGOS

 

A legenda dos genes e os leitores do cérebro

 

The genes legend and brain readers

 

La leyenda de los genes y los lectores del cerebro

 

 

Miquel Bassols*

Instituto do Campo Freudiano de Barcelona

 

 


RESUMO

Entre psicanálise e cognitivismo, entre psicanálise e neurociências, não há ponto de interseção, são campo disjuntos, sem convergência nem objeto comum possível. Isso por uma razão simples que o leitor encontrará argumentada de várias formas, precisadas nas páginas que seguem: a psicanálise e o cognitivismo, assim como a psicanálise e as neurociências, frente a frente, tratam de reais distintos, radicalmente heterogêneos. O real próprio da psicanálise, esse real que Sigmund Freud abordou com o conceito de inconsciente e que Jacques Lacan escreveu com a letra do objeto a, esse real sem lei que não atende à probabilidade nem ao azar e que definimos, finalmente, como o impossível, como o que não deixa de não se escrever, é um real que não superpõe nem poderá localizar-se, jamais, no real objetivável das neurociências. Nesse real onde a ciência supõe um saber escrito, já constituído, a psicanálise lê a página em branco do sujeito do inconsciente.

Palavras-chave: psicanálise; neurociências; real.


ABSTRACT

Between psychoanalysis and cognitivism, between psychoanalysis and neurosciences, there is no intersection point, as they are disjunctive fields, without convergence or a common object. The reason for that, a very simple one, is expressed in different ways in the pages that follow: when compared, psychoanalysis and cognitivism, just as psychoanalysis and neurosciences, deal with distinct and radically heterogeneous realities. The real characteristic of psychoanalysis, the real that Sigmund Freud approached with the concept of the unconscious and that Jacques Lacan wrote with the letter of object a, that lawless real that does not attend to probability nor to chance and that is defined, at last, as the impossible, as that which does not fail to write itself, is a real that does not overlap nor can it ever be found in the object-to-be real of neurosciences. In that real in which science presupposes a written knowledge, already constituted, psychoanalysis reads the blank page of the unconscious subject.

Keywords:psychoanalysis; neurosciences; the real.


RESUMEN

Entre el psicoanálisis y el cognitivismo, entre el psicoanálisis y las neurociencias, no hay un punto de intersección, son campos disjuntos, sin convergencia ni objeto común posible. Y ello por una razón muy simple que el lector encontrará argumentada de varias formas, precisadas en las páginas a continuación: el psicoanálisis y el cognitivismo, así como el psicoanálisis y las neurociencias, frente a frente, tratan de reales distintos, radicalmente heterogéneos. Lo real propio del psicoanálisis, ese real que Sigmund Freud abordó con el concepto de inconsciente y que Jacques Lacan escribió con la letra del objeto a, ese real sin ley que no atiende ni a la probabilidad ni al azar y que definimos, finalmente, como lo imposible, como lo que no deja de no escribirse, es un real que no se superpone ni se podrá localizar jamás en lo real objetivable de las neurociencias. En ese real donde la ciencia supone un saber escrito, ya constituido, el psicoanálisis lee la página en blanco del sujeto del inconsciente.

Palabras clave: psicoanálisis; neurociencias; real.


 

 

O recurso à ciência como garantia de uma prática, de um tratamento ou de uma experiência tornou-se hoje uma forma de exigência em campos tão diversos como o da publicidade, dos “experts” na avaliação das diferentes práticas, o da homologação de produtos de consumo, bem como o das práticas que visam ao sujeito da educação, da saúde mental, da economia ou da política. Portanto, não seria exagerado dizer que a ciência se tornou, assim, o Outro de um saber, que tem efeitos maciços de sugestão, conforme ele promete a completude desse saber para tratar o real.

Existe uma forma de hegelianismo implícita na promessa de um saber absoluto que habita no horizonte da incidência da ciência sobre o real. Isso chega a ponto de fazer confundir esse real e esse saber numa única figura: o saber real, um real que sabe, seja ele o gene ou o neurônio, por exemplo, sempre será habitado por um saber. Existiria, então, um saber escrito no real, nas leis que determinam seu funcionamento, e a ciência seria o método que nos permite seu deciframento absoluto, tal como se anuncia, por exemplo, pelo deciframento do código genético. A eficácia prática da qual se nutre essa promessa, assim como os efeitos fascinantes que ela exerce sobre o imaginário contemporâneo, tiveram antes um efeito de retorno sobre a própria ciência, pela figura de um saber real, transformado em poder sobre o real. Na formalização lacaniana, diremos que o S2 do saber suposto no real acabou sendo assimilado ao S1, significante mestre do poder, o significante que marca a partir de sua identidade, mesmo enquanto o significante subsume o sujeito do inconsciente e do gozo: $. Esse efeito de retorno sobre a própria ciência é o que havíamos observado, desde a metade do século XX, como sendo a transformação da ciência em tecnociências, as quais não têm o saber como horizonte da sua ação, mas o poder sobre o real.1

Mas de que real se trata? Lembremo-nos, de início, da definição de real que Jacques Lacan tinha formulado para a psicanálise: o real como impossível é “isto que não cessa de não se escrever”. Essa definição supõe, inicialmente, o lugar de uma escritura, uma espécie de página branca que não cessa de não se escrever, mas supõe também o lugar daquele que, em todo caso, poderia ler... o que cessaria de não se escrever. Tal é o real, colocado como impossível de ser representado ou mesmo imaginado, que a psicanálise obtém em sua experiência e que o próprio Lacan havia enunciado: não existe relação sexual que possa escrever-se.

A questão agora é de saber se o real da ciência, esse real que ela encontra já simbolizado, já significantizado pelo aparelho do qual ela se arma para calculá-lo, ou modificá-lo, escreve-se enquanto se o encontra, como a cara ou a coroa na série de lançamentos da moeda. A questão é saber se esse real da ciência será eclipsado de maneira mais ou menos parcial, ou mesmo de maneira total, pois sabemos que o real que a psicanálise coloca como irredutível é central no sujeito da fala e do gozo. É esse sujeito, enfim, que estará sempre na aposta e no efeito do lançamento em questão.

A hipótese é a de que esse real e esse sujeito, forcluídos no campo da ciência, retornam numa série de fenômenos, e deles podemos dizer que, ao menos, oferecem à psicanálise a ocasião de aí ler os novos sintomas contemporâneos. Essa hipótese ganha sua importância se consideramos o fato de que essa “forclusão” do sujeito (termo que Lacan usou para designar essa operação inerente à constituição da ciência moderna) deixa justamente esse real da psicanálise em estado de página branca no campo da ciência, ela mesma não cessando de não se escrever. É, portanto, a título de um retorno desse gênero que o real da psicanálise supõe alguém que possa lê-lo como um sintoma do sujeito contemporâneo, em todo caso, o melhor de que dispomos para tornar os outros [sintomas] mais suportáveis.

Visando a contribuir para emergência do valor fecundo dessa página branca do sujeito do inconsciente, na ciência atual, atraímos a atenção do leitor para dois livros que podem ajudá-lo a lê-la. Isso, em dois registros e em duas maneiras diferentes: o primeiro, sem quase mencioná-la, mas deixando-a entrever-se entre as linhas da leitura do código genético; o segundo, observando-a de maneira explícita na interseção vazia entre a psicanálise e as ciências cognitivas.

 

A legenda dos genes

O primeiro livro é intitulado como A legenda dos genes, do doutor em Medicina, Gerard Lambert (2006), prefaciado pelo prestigioso cientista Henri Atlan. Seu tom manifestadamente jornalístico não compromete em nada o efeito de verdade produzido por sua leitura. Trata-se, para o autor, de compreender como uma mitologia moderna impregna o pensamento científico contemporâneo e orienta os programas de pesquisa. E é uma mitologia que se apoia sobre o poder de uma legenda. Pois uma legenda é, de fato, algo que se presta à leitura sempre com um grão de verdade. O gene seria então uma legenda? Para nela ler o quê?

Se quisermos remeter-nos, de início, a uma definição do termo “gene”, encontramos hoje uma situação paralela àquela que o psicanalista Edward Glover tinha encontrado na comunidade analítica nos anos 30, no momento de passar um questionário sobre os princípios da técnica psicanalítica:

Afinal de contas, é impossível fornecer uma definição unívoca de um termo ao qual os cientistas, tal como os profanos, têm, cotidianamente, recursos. Ninguém sabe exatamente o que é um gene. O periódico mensal La Recherche ilustrou essa ambiguidade contemporânea interrogando dezoito especialistas para fornecerem sua própria definição sobre o gene. A variedade de respostas testemunha a dificuldade para precisar uma noção que parecia adquirida por todos (Lambert, 2006, p. 106-107).

Ainda que Mendel tenha dado uma definição inicial do gene como caráter hereditário, existe um acordo sobre aquilo que não é um gene. Apesar de tudo, essa noção permaneceu na linguagem corrente como um mal-entendido irredutível: fala-se da transmissão hereditária do gene do diabetes, do gene dos olhos azuis ou do gene da homossexualidade como algo que pertence a si... E é justamente a equação gene = caráter, no sentido pleno do termo “caráter”, que é questionada pela biologia genética atual. Nadamos nesse mal-entendido, e os geneticistas não sabem muito bem o que fazer com ele.

Mas, é também nesse mal-entendido que já podemos ler o que se transmite na legenda. Trata-se da ideia de que há, em alguma parte, um caráter que se transmite, uma letra, uma escritura, uma mensagem mais ou menos codificada que representa, no mínimo, um atributo do ser, qualidade ou doença. É aí, de fato, que alguma coisa cessa de não se escrever para tornar-se uma mensagem que se oferece à leitura. Mas, prestemos atenção, é a lógica do significante, em tudo o que ela deve à estrutura simbólica da linguagem, que governa essa operação. É uma operação que supõe no real um efeito de significado pela força de aí ter introduzido significantes. É um passo enorme, e é o passo no qual a psicanálise observa, por seu turno, um real que não cessa de não se escrever do qual o sujeito será sempre uma resposta como efeito de significado.

Pois nesse efeito de linguagem que é o “caráter hereditário”, existe enfim um sujeito que permanece como a página branca que não cessa de não se escrever e que decide, finalmente, o sentido disso que aí cessa de não se escrever.

De outra forma, a comparação do genoma com o “grande livro da vida” advém de uma metáfora que impregna, de fato, todo o pensamento científico contemporâneo, metáfora que produziu um efeito maciço em seu imaginário. Ela vai dividir-se com a concepção determinista da genética que sustenta que todos os acontecimentos da vida de um organismo estão escritos nos seus genes. É necessário, por outro lado, concluir que o genoma humano não existe como um livro escrito, mas como tantas versões distintas quanto singulares. Existe, em todo caso, reescrita constante, devido às contingências dessa singularidade, sem possibilidade de estabelecer, aliás, um programa exaustivo que mostraria o limite entre normalidade e patologia. Essa metáfora do texto escrito (mesmo se ela é mais flexível do que aquela outra, cada vez mais abandonada, do “programa genético”) permanece coagulada no determinismo de um “está tudo escrito”, que não deixa lugar para a inscrição do sujeito.

Vejamos agora o que é suposto aí se escrever. São as quatro letras com as quais simbolizamos as quatro bases constitutivas das moléculas de DNA: A, G, C, T (adenina, guanina, citosina, timina). A sequência dos genes, ou seja, as bases que a compõem, é suposta “escrever” a informação genética transmitida de uma geração a outra. Uma concepção bem determinista quis fixar, assim, a transmissão dessa informação numa única linha causal: as moléculas de DNA em sua transcrição integral no nomeado “RNA mensageiro”, até a sua tradução em proteínas, que transmita no organismo o caráter em questão. Seria bom encontrar esse aparelho linguajeiro funcionando assim no real, como “o grande livro da vida” promete, não somente decifrado, mas também podendo ser reescrito de acordo com a vontade do homem. Raymond Lulle, no elã da história da Idade Média, da revelação divina do livro da vida, teria feito seu éden.

No entanto, as objeções aparecem. A descoberta, bem antes, “da ausência de linearidade dos genes” (Lambert, 2006, p. 105), linearidade existente num texto, já indicou que não existe a relação direta que supomos num segmento de DNA com as características de um organismo, o que se designa como fenótipo. Não existe tal determinismo do gene, disso que se designa como genótipo, sobre o fenótipo. Assim, como indica Craig Venter, biotecnicista fundador do Projeto genoma e criador da primeira forma de vida no laboratório, “O homem deve sua complexidade não a uma bateria rica de genes, mas à interação deles, às combinações de suas funções, às interferências entre o DNA e o desenvolvimento celular” (Lambert, 2006, p. 24). A questão se coloca, então, sobre o lugar e a função desse desenvolvimento que começa, de fato, no citoplasma e que mostra que a linha de separação entre organismo e desenvolvimento será sempre arbitrária. O real tomado no organismo se mostra, assim, totalmente distinto do real do corpo, em torno do qual se construiu o desenvolvimento imaginário e simbólico do sujeito. Aliás, a linha de causalidade que iria do genótipo ao fenótipo mostrou suas fraturas desde que se esclareceu a função da síntese das proteínas nesse processo: “Entre a proteína e o caráter herdado, persiste uma forma de buraco negro, uma zona sem lei que não parece responder a nenhuma regra definida; a relação perdeu toda a linearidade” (Lambert, 2006, p. 100). É justamente nesses buracos negros que a página branca do sujeito vem alojar-se para mostrar o lugar de um real que é sempre sem lei e requer a hipótese de uma causa que só insiste em agir na sua descontinuidade, na falta intermitente do inconsciente.

À analogia que faz localizar a insuportável leveza do gene no caráter de uma escritura se acrescenta também a correspondência do gene ao caráter, nos sentidos múltiplos do termo. Essa analogia segue a mesma lógica da falsa causalidade contínua entre genótipo e fenótipo:

Está ultrapassada a questão dos genes dos olhos brancos, mas o crédito se encontra nos títulos que fazem sucesso, assim distinguindo no homem um gene da obesidade, outro da esquizofrenia, da inteligência, da linguagem, da dislexia e, por que não, da fidelidade conjugal ou da ocasião; e poderíamos multiplicar os exemplos de acordo com o mais atraente (Lambert, 2006, p. 124).

A correspondência causal entre um microcosmo genético e um macrocosmo feito de organismos vivos é muito sugestiva e preenche tanto as primeiras páginas dos jornais como também os buracos negros dessa causalidade. Uma descontinuidade fundamental é retida: nisso, o DNA não é feito senão de uma molécula morta, em meio aos menos reativos de outrora, e não poderá jamais conseguir explicar a razão do vivente. É esse vivente que só podemos admitir como gozo do ser induzido pelo significante e pela linguagem. Essa “molécula morta” só teria então seu lugar pela inclusão de outra metáfora, aquela que faria da pulsão de morte o nó da vida, a morte transmitida pela linguagem.

Evoquemos, aqui, seguindo uma lógica que vai bem além da simples analogia com os efeitos da forclusão do sujeito pela ciência, o delírio de uma mulher que encontramos num hospital psiquiátrico. Essa mulher consagrou-se ao estudo sistemático da genética para encontrar a letra que, na opinião dela, faltou no DNA para justificar a origem da vida. Ela afirmava tê-la encontrado na letra “A”, letra que já estava lá, à vista de todos, para soletrar o nome que, em sua língua, o espanhol, nomeava o primeiro homem: ADAN (Adão). Poesia involuntária? Contingência do significante quando ele encontra seu suporte no caráter da letra, é aí onde o sujeito encontra o seu lugar, ou sua inscrição, para aí ler o seu destino.

O determinismo que traz recurso para a ciência fala, de toda forma, da “transmissão de informação”, seguindo nisso outra analogia, que reduz a resposta do sujeito do significante e da linguagem a uma reação biológica. De fato, desde suas primeiras publicações na revista Nature, em 1953, James Watson e Francis Crick, nomeados como “os pais do DNA”, não tomaram a precaução de colocar aspas no termo de informação aplicado à genética. E a ideia de que existe uma intenção significativa, uma demanda e uma resposta nos mecanismos celulares tomou seu lugar na mitologia do geneticismo. Existiria então transmissão de ordens e de significações na causalidade animista em seu fundamento nesse autômato programado pelas letras do gene. A proximidade finalista e teológica fez assim sua entrada nisso que podemos designar, seguindo a célebre fórmula de Althusser, como a “filosofia espontânea do científico”. Quanto a nós, vemos aí o efeito da irredutível presença do gozo do vivente introduzido pela linguagem.

E é por essa razão, como o indica o autor da Legenda dos genes que, contrariamente à Física e à Química, as ciências do vivente permanecem profundamente impregnadas de um vocabulário finalista [...]. Nesse vocabulário misturando determinismo genético e sintaxe bíblica, alguns falam de reescrita da gênese enquanto outros pensam em prosseguir a obra divina retomando o trabalho deixado inacabado na noite do sexto dia (Lambert, 2006, p. 256 e 284).

 

Lost in cognition. Enquete sobre a dislexia dos leitores do cérebro

O segundo livro, que propomos aos leitores da página branca do sujeito do inconsciente, é o de Eric Laurent (2008)2. Tive a honra de fazer o prefácio do livro em espanhol, que tem o mesmo título, em inglês, daquele que veio a ser publicado em francês, ou seja, Lost in cognition. Eu reconhecia então a vocação translinguística desse livro, vocação que me parece seguir a própria lógica do objeto que ele circunscreve, entre a psicanálise e a ciência. É esse objeto pequeno a, formalizado por Lacan, que desliza entre as línguas para fazer-se a causa do sujeito, do seu desejo e da sua própria existência, e é esse sujeito que a psicanálise deve defender, hoje, uma vez mais, contra seu apagamento sistemático operado pelo cientificismo.

O livro tem, de fato, o mesmo título em espanhol e em francês. Não é necessário traduzir esse título que, assim, faz função de objeto translinguístico, quase como um matema que passaria, sem modificação, de uma língua à outra, guardando totalmente a sua identidade. Poderíamos supor, então, que se trata do mesmo livro em espanhol e em francês. Mas não, não totalmente. Não é uma tradução no sentido habitual do termo. Há textos que faltam, outros que são acrescentados para delimitar de maneira mais precisa o sujeito em questão. De toda forma, há algo que se perdeu e algo que se ganhou nesse semblante de tradução. De fato, uma tradução é sempre um semblante, um semblante de dizer o mesmo em outra língua. Há algo do Lost do objeto perdido, e do Lost do objeto de prazer, para retomar o equívoco que o próprio Éric Laurent introduziu na edição em espanhol com o termo Lust, dessa vez em alemão, que está em Lustprinzip, o princípio do prazer freudiano. Há então uma perda e um ganho nessa passagem entre as línguas. Há algo que passa, que não cessa de escrever-se, e algo que não passa, que não cessa de não se escrever. Por esse viés, portanto, já estamos no cerne do nosso debate: disso que se estende naquilo que se escreve e naquilo que não se pode escrever.

O título proposto para debate sobre essa publicação, Enquete sobre a dislexia dos leitores do cérebro, nos convida, assim (a considerar um dos pontos centrais do debate entre psicanálise e ciências cognitivas), ao estatuto que é preciso dar à leitura, à letra, e seu lugar no sujeito. É o que Éric Laurent designa, no prefácio (dessa vez na edição em francês, e somente nessa edição, na página 14), como “o regime das certezas” da ciência e de seu modo de produção do sujeito. Há, de fato, a certeza científica de um fato de leitura, a certeza de que existe no cérebro algo para se ler. Inicialmente, era no código genético em que devíamos ler o destino do ser do sujeito; agora é também nos neurônios onde nos é proposto ler um novo capítulo do assim chamado “grande livro do mundo”. É um princípio partilhado, em quase todas as referências das ciências cognitivas, às neurociências: existe escritura para se ler nos neurônios. Por exemplo, Christof Koch ou Eric Kandel ou James Watson, nas correntes mais localizadoras da memória e da aprendizagem, fazem desse princípio partilhado o princípio mecânico de um determinismo do sujeito. Outras correntes são muito mais flexíveis na deslocalização da experiência do sujeito. Gerald Edelman e Giulio Tononi colocam em questão, por exemplo, o conceito reducionista de uma memória representacionista inscrita no cérebro, falando de um “sistema degenerado” em que o equívoco faz parte de toda possível leitura de um traço no sistema neuronal. Se existe traço de um acontecimento, não existe somente um significado inscritível com ele. Estamos sempre na equivocidade do traço. Nessa concepção, como naquela aberta por Pierre Magistretti e François Ansermet com a “plasticidade neuronal”, há, de fato, um lugar para colocar a questão de um sujeito e de uma contingência que não seria redutível à suposição de “o que já está escrito”.

É necessário lembrar, aqui, o famoso projeto pré-freudiano, ou seja, o próprio Freud em seu incrível “Projeto de uma Psicologia para os neurólogos”. Nele tomou como ponto de partida essa fabulosa ficção científica de uma escritura neuronal, projeto que havia deixado na gaveta por considerá-lo como uma “confusão” científica, tal como diria a seu colega Wilhem Fliess.

Vamos então diretamente ao equívoco que se aloja nessa confusão e que somente Lacan saberá extrair em sua justa medida. O sujeito do inconsciente não se constitui no traço deixado no órgão, mas justamente em seu apagamento e nisso que não cessa de não se escrever nesse apagamento. Eis o real da psicanálise tal como Lacan o formula para distingui-lo de modo radical do real já significantizado, já tomado no simbólico, em que a ciência faz seu percurso sem o saber. Esse real e seu sujeito não são inscritos em nenhum sistema de traços, mas se constituem no próprio apagamento desses traços. Eric Laurent o destaca de uma maneira tão delicada quanto precisa na parte do livro intitulada “Qual inscrição para o sujeito?” Eu o cito:

Existe a impossibilidade radical de reduzir a inscrição subjetiva em um sistema de traços na medida em que o lugar entre o traço e a experiência não cessa de se reescrever. É exatamente porque o lugar com a experiência biológica se perde que uma identificação não biológica, significante, pode se produzir. O sistema linguajeiro funciona como suplência desse hiato. É porque não existe memória biológica que se pode ter aí uma memória do inconsciente (Laurent, 2008, p. 36).

O inconsciente freudiano se torna, então, uma “memória do impossível” (Laurent, 2008, p. 41), o que quer dizer, justamente, uma memória do real, se lemos, e eu disse, se lemos esse impossível como o real de Lacan e da psicanálise, ou seja, o que não cessa de não se escrever. É justamente nessa perspectiva que podemos compreender a leitura lacaniana do trauma freudiano. O cerne do traumático não é o que restou inscrito no aparelho psíquico como o traço de uma experiência mais ou menos dramática em seu suposto significado. O que se torna traumático, nós o constatamos cada vez em que o sujeito o testemunha, por exemplo, no não dito da mãe diante da cena de sedução, ou naquilo que o próprio sujeito não conseguiu dizer ou fazer logo antes ou logo depois da explosão da bomba que semeou a morte de seu círculo social. Tanto num caso como no outro, o que se torna traumático é sempre o que não cessa de não se escrever desse acontecimento, o que permanece como o inconsciente real que espera ser realizado pelo sujeito na análise, a não ser que ele o passe ao ato no mais verdadeiro de sua vida. É nessa lógica que se esboça uma “memória dos pontos de corte” (Laurent, 2008, p. 42), em que se inscreve o objeto da psicanálise, o objeto a, o objeto feito do corte e da sua queda do corpo. E esse objeto, Lacan insiste, é uma letra.

E se vocês me permitem acrescentar ainda uma língua a essa leitura translinguística do Lost in cognition, eu assinalaria que, em minha própria língua, a letra – lletra – se torna justamente corte – retall – por um anagrama que faz torção de uma língua em outra.

Então, a psicanálise deverá sempre lembrar aos leitores do cérebro, como também aos leitores dos genes, o lugar exato da letra que convém ler, o lugar acentuado pela máxima que Jacques-Alain Miller (2002) tinha enunciado há algum tempo para a opinião esclarecida: “Mas lê sobretudo seu inconsciente, esse livro extraído em um único exemplar, esse texto virtual que você carrega para todo lugar e onde está escrito o cenário da sua vida, ou ao menos seu rough draft”. É, de fato, nesse rough draft, nesse rascunho de texto, no “borrador” como se diz curiosamente em espanhol, indicando isso que apaga e deve se apagar, em sua ocasião, nesse rascunho impossível de traduzir, que o sujeito poderá escrever, por sua vez, a letra desse objeto que o atravessa em silêncio.

 

Referências

Lacan, J. (1975). O seminário: livro 20: mais ainda. Paris: Seuil. (Edição francesa).         [ Links ]

Lambert, G. (2006). La légende des genes: anatomie d’un mithe moderne. Prefácio de Henri Atlan. Paris: Dunod.         [ Links ]

Laurent, É. (2008). Lost in cognition: psychanalyse et sciences cognitives. Nantes: Cécile Defaut.         [ Links ]

Miller, J. A. (2002). Lettres à l´opinion éclairée. Paris: Le Seuil.         [ Links ]

 

 

Texto recebido em fevereiro/2009.
Aprovado para publicação em março/2009.

 

 

Tradução: Samira Assad.
* Doutor pelo Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris 8, psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise e da Escola da Causa Freudiana (Associação Mundial de Psicanálise), professor da Seção Clínica do Instituto do Campo Freudiano de Barcelona.
1 Veja por exemplo: Echeverria, Javier. (2003). La revolución tecnocientífica. Madri: Fondo de Cultura Econômica
2 Retomamos aqui nossa intervenção na noite da Biblioteca da Escola da Causa Freudiana, em 22 de outubro de 2008, sobre Psicanálise e Ciências Cognitivas, em torno desse livro de Eric Laurent. Participaram também É. Laurent, F. Ansermet e G. Briole.

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