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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.1 Belo Horizonte abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Beleza, identidade e mercado

 

Beauty, identity and market

 

Belleza, identidad y mercado

 

 

Rodrigo P. A. de SampaioI*; Ricardo Franklin FerreiraII**

IUniversidade Paulista
IIUniversidade São Marcos

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender um fenômeno contemporâneo aqui denominado de supervalorização da beleza: a intensa busca por atender a padrões de beleza corporal. Pela análise de contingências favorecedoras do surgimento e manutenção desse fenômeno, articulada com os conceitos de identidade e estigma, procura-se compreender a relevância desse fenômeno na construção da identidade de pessoas submetidas à sua pressão. Assim, o trabalho busca uma compreensão do universo simbólico em que essa supervalorização da beleza se dá e suas possíveis implicações na construção da identidade pessoal. Como possibilidades de posicionamento diante da demanda por beleza, o trabalho sugere quatro posições: submissão, rejeição, vias não emancipatórias de ação, e as posições de conformidade ou inconformidade, possíveis vias emancipatórias de relação com a supervalorização da beleza.

Palavras-chave: identidade; beleza; estigma; emancipação; discriminação.


ABSTRACT

The purpose of this research is to examine a current phenomenon, known as overvaluing beauty, and characterized by an intense attempt to comply with patterns of physical beauty. It aims to understand the relevance of that phenomenon in the formation of the personal identity of individuals under its pressure, by analyzing contingencies favorable to its emergence and maintenance, as well as the concepts of identity, stigma, and a model of social trans-evaluation. Thus, the research focuses on understanding the symbolic universe in which that overvaluing of beauty takes place, and its possible implications in the construction of the individual’s identity. It suggests four positions as possibilities to face the demand for beauty: submission and rejection as non-emancipating forms of action, and compliance and non-compliance as ways to emancipate the relationship with overvaluing beauty.

Keywords: identity; beauty; stigma; emancipation; discrimination.


RESUMEN

Este artículo trata de entender un fenómeno actual, llamado de súper valoración de la belleza: la búsqueda activa para alcanzar patrones de belleza corporal. A través del análisis de las contingencias que ayudan a surgir y mantener este fenómeno, conjuntamente con los conceptos de identidad y estigma, se trató de entender la importancia del fenómeno en la construcción de la identidad de personas sometidas a su presión. De esta manera el trabajo trata de comprender el universo simbólico en el que esa súper valoración acontece y sus posibles implicaciones en la construcción de la identidad personal. Como posibilidades de colocarse frente a la exigencia de la belleza, el trabajo sugiere cuatro alternativas: sumisión, rechazo, caminos no emancipativos de acción y las posiciones de conformidad o inconformidad, posibles caminos libertadores de la relación con la súper valoración de la belleza.

Palabras-clave: identidad; belleza; estigma; emancipación; discriminación.


 

 

1. Introdução

A beleza corporal tem se tornado algo a ser conquistado pelos indivíduos contemporâneos, principalmente nos grandes centros urbanos. Hoje, as celebridades são valorizadas por serem consideradas belas, independentemente de terem outras competências. As academias de ginástica, os consultórios dos cirurgiões plásticos e os centros de tratamento estético fazem parte de um mercado em franca expansão, considerados fábricas produtoras de um corpo ideal. A explosão de produtos voltados para o emagrecimento ou aumento da massa muscular vem diariamente colocar em cheque nossa satisfação com nossos corpos, por meio de campanhas publicitárias ostensivas nos meios de comunicação. Como afirma Malysse (2002), “Essas imagens-normas se destinam a todos aqueles que as veem e, por meio de um diálogo incessante entre o que veem e o que são, os indivíduos insatisfeitos com sua aparência são cordialmente convidados a considerar seu corpo defeituoso” (p. 93).

Esse fenômeno, que definimos de supervalorização da beleza, tem feito com que pessoas se dediquem de uma forma tão obstinada à busca da beleza, que chegam, muitas vezes, a colocar a vida em risco, como nos casos de transtornos alimentares (Cordás, 2004; Cordás & Claudino, 2002; Pinzon & Nogueira, 2004), e ao desenvolverem efeitos colaterais irreversíveis na maioria dos sistemas do organismo (sistemas hepático, cardiovascular e endócrino), em decorrência do uso de esteroides anabolizantes (Assunção, 2002; Iriart & Andrade, 2002; Mello et al., 2005; Silva, Danielski & Czepielewski, 2002), além da probabilidade do desenvolvimento de câncer pela exposição prolongada à radiação ultravioleta dos bronzeamentos artificiais (Fonseca, 2005; Normas e Recomendações do INCA, 2002; Souza, Fischer & Souza, 2004).

Acreditamos ser importante salientar que a pressão exercida por esse fenômeno não incide exclusivamente sobre aqueles empenhados na busca por uma estética ideal, mas atinge a todos nós, de forma mais ou menos intensa, ao tentarmos atingir ou manter determinada aparência, ao encobrirmos possíveis imperfeições, ou na obstinação pela valorização pessoal por não sentirmos que expressamos o padrão esperado e desejado publicamente.

Esse fenômeno pode favorecer o estabelecimento de um grupo de pessoas estigmatizadas. A atitude de disfarçar a real aparência sugere que tais pessoas, que constituem um possível grupo de desacreditáveis, tentam, como pontua Goffman (1988), manipular sua identidade social virtual, para assim aumentar suas chances de aceitação social.

As repercussões geradas pelo status instrumental adquirido pela aparência corporal, que a eleva à posição de qualificadora ou desqualificadora de pessoas, levaram-nos a refletir como a exigência estética que permeia o dia a dia nos grandes centros urbanos influencia a construção da identidade da população submetida à sua pressão. Além disso, procuramos desenvolver uma melhor compreensão do processo de valoração do corpo, no qual está embutido o processo de legitimação da instituição corpo-capital, como define Baudrillard (1991), além da ideia de sua eficácia na conquista de uma ascensão social, seja financeira, ou referente ao status pessoal.

 

2. Supervalorização da beleza

Ao introduzirmos o termo beleza na definição do fenômeno a ser estudado, o conceito passou a constituir um novo problema. A que beleza estamos nos referindo?

Uma resposta quase que imediata seria a descrição das qualidades estéticas entendidas e enaltecidas atualmente como belas, explicitadas nos atributos físicos dos indivíduos tidos como belos pela sociedade em geral, constantemente veiculados pela mídia. Nesse sentido, beleza equivaleria à menor porcentagem de gordura corporal possível, nádegas e seios grandes e empinados, músculos definidos, pele bronzeada, lábios grossos, ausência de celulite, de estrias, de qualquer mancha ou espinha na pele (por menores que sejam), e de qualquer característica que denote idade, como rugas, vincos no rosto, marcas de expressão e flacidez.

Entretanto, ao observarmos a história humana, ainda que muito superficialmente, salta-nos aos olhos a diversidade de qualidades estéticas enaltecidas, cada qual em seu tempo e cultura. Seria então de fato bela essa aparência cultuada atualmente? Em suma, o que é beleza?

Adotamos, neste trabalho, o conceito proposto por Duarte Jr. (1998), que conceitua beleza como um produto da relação sujeito e objeto. A beleza diz respeito à forma como nos relacionamos com os objetos. Assim, são retirados dessa categoria os pressupostos de qualidades mensuráveis, quantificáveis e normatizáveis, fazendo com que a “essência” da beleza se dê na relação. Nas palavras de Duarte Jr., “Beleza é uma maneira de nos relacionarmos com o mundo. Não tem a ver com formas, medidas, proporções, tonalidades e arranjos pretensamente ideais que definem algo como belo” (p. 13). Não caberá a nós, neste trabalho, arbitrar pró ou contra pretensas definições do conceito filosófico e estético de beleza, o que não nos isenta de termos parâmetros e referências próprios de beleza como categoria, por certo intensamente influenciadas pelos padrões de nosso tempo e cultura.

Centrando a questão da definição de padrões estéticos no universo da beleza corporal, Queiroz e Otta (1999) explicitam a premência das especificidades culturais envolvidas na eleição de parâmetros para análise estética inscritas em diferentes sociedades. Tomando o corpo humano como um artefato cultural, afirmam que “Respeitando certos limites, cada cultura define a beleza corporal à sua própria maneira, ocorrendo o mesmo com a classificação e a avaliação das diferentes partes do corpo e as decorrentes associações estabelecidas entre tais partes e determinados atributos, positivos ou negativos” (p. 22).

Os limites a que os autores se referem são de natureza bioevolutiva. Nesse sentido, Nancy Etcoff (1999) acredita haver um substrato biológico determinante no estabelecimento de parâmetros estéticos de atratividade que, pelo processo evolutivo da raça humana, universalizaram-se. Ao referir-se a tais condicionantes psicobiológicos universais, o fator saúde ganha especial destaque. Os defensores dessa visão biologicista sustentam suas ideias em um raciocínio evolucionista. Para eles, em um dado momento histórico, o homem, ainda primata, tinha suas mais bem sucedidas proles com indivíduos possuidores de determinadas características estéticas. Dessa forma, desenvolveu-se uma espécie de condicionamento psicobiológico de atratividade por essas características, as quais seriam evidências de boa saúde, e que incluiriam cabelos espessos, corpo viril, pele saudável e, no caso das mulheres, quadris largos, pois seriam assim boas parideiras, dentre outras.

Ainda assim, ao olharmos a vasta polimorfia de estéticas enaltecidas em tempos e culturas diferentes na história humana, fica evidente, em contraponto à visão biologicista, a enorme relevância, e por que não dizer a primazia, de aspectos históricos e culturais na composição dos padrões estéticos vigentes; uma vez que, não raramente, padrões enaltecidos em diversas culturas quebram com essa possível relação saúde-beleza. Malysse (2002) evidencia esse fato ao afirmar que, na atualidade, “Mesmo gozando de perfeita saúde, seu corpo não é perfeito e deve ser corrigido por numerosos rituais de autotransformação, sempre seguindo os conselhos das imagens-normas (padrões) veiculadas pela mídia” (p. 93-94).

Assim, neste trabalho, alinhados com as ideias de Queiroz e Otta (1999), assumimos que, em grande parte, são os processos culturais que definem tanto os padrões estéticos como os da própria beleza corporal.

Com a objetivação do padrão de beleza como uma instituição, a adoção da ideia de determinação biológica pode acabar por naturalizar o padrão de beleza atualmente cultuado e, dessa forma, criar um universo de significações cada vez mais escasso de possibilidades de novas construções estéticas por parte dos indivíduos. Como afirmam Berger e Luckmann (1999), em relação às significações, quanto mais se julga a conduta como certa e natural tanto mais se restringem “as possíveis alternativas dos programas institucionais, sendo cada vez mais predizível e controlada a conduta” (p. 89). Com isso, a naturalização da beleza implica uma conceituação ideológica, potencialmente a serviço de um grupo dominante, levando-nos, assim, a um grande risco de incidirmos em afirmações preconceituosas em relação às pessoas que não reflitam o padrão considerado natural.

A partir dessas considerações, beleza é considerada como um constructo social, produzido por um grupo específico, localizado em um determinado lugar, em um momento histórico situado (Spink & Menegon, 1999).

Ao considerarmos a beleza como um constructo social, produto da cultura e relevante para a compreensão das relações humanas, alguns aspectos desse fenômeno ficam ressaltados: por que o corpo passa a ser tão valorizado na perspectiva de sua aparência? Por que a aparência corporal, exaltada pelos meios de comunicação, é aquela validada e compartilhada pelos indivíduos como a mais bela?

Nesse sentido, cabe identificar qual é a função desse corpo que tende a ser valorizado, conforme se aproxima da estética veiculada pelos meios de comunicação e que demanda um grande investimento, pessoal e econômico, para que seja atingida.

Jean Baudrillard (1991), ao discutir a questão do corpo na atualidade, distingue três momentos em que o corpo foi visto sob diferentes concepções. No período medieval, em que a sacralização do corpo o reduzia a simples carne e era então ostensivamente negado e omitido no trato social; na lógica industrial, quando o corpo era associado e tomado como força de trabalho; e na atualidade, momento em que o corpo assume a qualidade de elemento de tática e ritual social numa ordem capitalista, em que “o estatuto geral da propriedade” aplica-se igualmente a ele, “à pratica social e à representação mental que dele se tem” (p. 136).

Introduzindo a questão da ideologia capitalista como o universo em que o corpo adquire seu atual significado, esse corpo atinge então o status de objeto de consumo, “O mais belo, precioso e resplandecente de todos os objetos, ainda mais carregado de conotações que o automóvel” (Baudrillard, 1991, p. 136). O corpo, para Coelho e Severiano (2007), passa então a ser capturado pela indústria cultural, “transformando o corpo-produtor em corpo-consumidor, e assim tornando-o uma rentável especiaria a se vender no mercado” (p. 91).

Assim, o corpo passa a sujeitar-se à exploração econômica da erotização e dos produtos embelezadores, que submete as pessoas a uma forma de poder controlador que se dá não mais pelo controle-repressão, mas pelo controle-estimulação, de maneira a favorecer determinados comportamentos, em condições rigidamente estipuladas, processo esse que pode ser exemplificado pela seguinte ideia: “fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado” (Foucault, 1979, p. 147).

Em um mundo orientado pelo mercado, não ficaria à parte do sistema de produção um objeto de tal resplandecência. Assim, o corpo passa a ser objeto de manipulação por parte do mercado, com suas atuais estruturas de produção e consumo, por meio de um aparelho ideológico alimentado pela mídia de massa, o que favorece que o indivíduo desenvolva representações acerca de seu próprio corpo: o corpo como capital e como objeto de consumo. De tal processo decorre a necessidade de se investir no corpo com toda a determinação, tanto no sentido econômico como na acepção psíquica do termo (Baudrillard, 1991).

Ainda no que se refere a esse investimento, Vincent (1999) afirma que o culto ao corpo exige sacrifícios, tanto financeiros quanto éticos, pois os meios de comunicação veiculam reiteradamente que “a pessoa tem o corpo que merece, o que leva a um novo sentido de responsabilidade. Esse corpo a ser produzido, desnudado, na praia, deve estar de acordo com os cânones do momento” (p. 311-312). Tal processo gera, consequentemente, um padrão que serve de pretexto para a criação e difusão de necessidades corporais novas, cuja satisfação requer o consumo de um número sempre crescente de produtos e de bens (Boltanski, 1979).

Torna-se flagrante, portanto, a importância da mídia. Mais do que uma disseminadora de informações, ela constrói realidades, como bem analisa Guareschi (2004). Malysse (2002) explicita o fato da mídia apresentar o corpo como um objeto a ser reconstruído, configurando-o como uma superfície virtual em que identidades sociais são cultivadas. Isso tristemente nos mostra que a atual pluralidade de meios de comunicação e de vias de informação, que poderíamos pressupor como um caminho para a valorização de uma polissemia cultural, acaba por sucumbir a um discurso monista e perverso “que encontra alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põe ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal” (Santos, 2001, p. 18).

Entendendo o corpo como elemento de tática e ritual social, inserido em um mundo orientado pela atual lógica capitalista, e nos defrontando com a busca desenfreada por uma determinada aparência, surge uma nova questão. Por que essa aparência enaltecida é a que valoriza esse corpo?

Dada a devoção capitalista ao valor de uso dos objetos, a necessidade de que tais objetos ofereçam certo gozo funcional, e tendo nesse valor de uso o discriminante de valoração de seus produtos, poderíamos até pensar numa possível concepção de corpo própria da lógica industrial, que legitimaria os investimentos voltados a uma melhora do desempenho físico e na sua repercussão na produção do trabalho. Mas, os avanços tecnológicos e o galopante esvaziamento dos campos de trabalhos braçais favorecem que o corpo não seja valorizado nessa dimensão. Ao discutir essa questão, Boltanski (1979) afirma: “À medida que decresce a parte relativa da força corporal no conjunto de fatores de produção, o corpo torna-se a ocasião ou o pretexto para uma quantidade sempre crescente de consumos” (p. 180).

Dessa forma, para não deixar corpo fora do universo do consumo, a estética passou a ser a dimensão valorizada. E, para uma maior eficácia do empreendimento de valorização do corpo pela estética, foi agregada, como sua oferta de gozo funcional, a realização sexual.

Essa beleza-instrumental, a nosso ver, tem um caráter primordialmente sexualizado. Conforme se vincula um ideal de estética corporal ao erotismo ou a uma maior eficácia na conquista ou oferta de prazer sexual, produz-se uma fusão de duas dimensões distintas de relacionamento do indivíduo com o objeto corpo. Como sugerido por Duarte Jr. (1998), há a dimensão da experiência estética, em que a forma é o fundamento; e a dimensão da experiência prática, em que a função e a utilidade dos objetos é que legitimam seu valor. Dessa forma, ao fundir experiência estética, a beleza, à experiência prática, eficácia sexual, oferece-se um estimulo imediato ao mercado. Como afirma Vincent (1999), “Cabe aos meios de comunicação estimular essa caçada ao orgasmo, tendo este se convertido na ‘prova’ de uma sexualidade realizada” (p. 365). Essa intensa campanha de vinculação de uma dada estética à plena realização sexual, veiculada pelos meios de comunicação no decorrer das ultimas décadas, acabou por tornar-se uma via consistente e eficaz de legitimação do atual padrão de beleza, uma vez que essa veiculação acaba por incutir a convicção desse entrelaçamento, beleza/realização sexual, nas novas gerações. Isso se dá uma vez que, ao depararem com esse fenômeno desde o início de sua socialização, a percepção tida por elas sobre a instituição beleza passa a ser entendida como uma realidade objetiva, que tende a ser naturalizada (Berger & Luckmann, 1999), e não como uma construção social, como um dos significados possíveis do corpo. Dizendo de outra forma, as gerações, socializadas na presença da supervalorização da beleza, não têm como uma possibilidade ofertada, a princípio, a adoção de padrões estéticos diversos daquele divulgado como superior e nem mesmo de uma realização sexual fora dos padrões enaltecidos de beleza.

Frente à crença na imediata possibilidade de obtenção de prazer sexual, oferecida pela intensa vinculação dessa estética ao erótico, essa aparência é rapidamente adotada como a mais desejada e, consequentemente, a mais cara e valorizada, que desperta o desejo de quem não a tem e outorga poder a quem a possui.

Portanto, “a retórica do selecionado e da autodeterminação culmina com a possibilidade de corresponder à expectativa dominante e aparentá-la em público: o corpo torna-se vitrine” (Silva, 2001, p. 79). Está então implantada uma dinâmica social. O corpo passa a ser um instrumento capaz de gerar mudanças nos papéis adotados e atribuídos a uma pessoa, possibilitando uma elevação da sua posição social ao que se refere à condição financeira, uma vez que este corpo pode influir diretamente em seus rendimentos (oportunidades de emprego, venda da própria imagem, relações amorosas interclasses permitidas em virtude dessa beleza e até mesmo prostituição). Além disso, há a influência sobre o status da identidade social. Nas camadas consideradas superiores da hierarquia social, como ressaltam Queiroz e Otta (1999), o volume de trabalho manual decresce em favor das atividades intelectuais, o que resulta numa maior preocupação com a manutenção da forma física e a valorização da graça corporal por parte dos segmentos mais abastados do que pelas camadas consideradas subalternas. Assim, o indivíduo considerado belo explicita seu poder ao distinguir-se dos outros desfavorecidos, uma vez que seu capital-corpo é visto como sendo de ordem superior e diferenciado, o que nos mostra até que ponto a condição econômica e a estrutura de classes impõem regras ao corpo (Boltanski, 1979). Dessa forma, segundo Queirós e Otta (1999), o corpo e os usos que dele fazemos, assim como as vestimentas, os adornos e as pinturas, “tudo isso constitui, nas mais diversas culturas, um universo no qual se inscrevem valores, significados e comportamentos, cujo estudo favorece a compreensão da natureza da vida sociocultural” (p. 19).

 

3. Identidade: emancipação ou identidade-mito?

Como vimos, a atual demanda por determinada aparência ganha, a cada dia, um maior espaço no cotidiano dos brasileiros.

Nossa aparência é uma das formas de nos apresentarmos, ou reapresentarmos, ou ainda, de nos representarmos no mundo. Certamente esse representar não se limita à nossa aparência estética, mas a relevância do impacto da impressão visual na forma como somos apreendidos pelos outros, em um primeiro contato, é evidente. Sem dúvida, as representações que os outros constroem a nosso respeito não estão subordinadas exclusivamente à avaliação estética de um primeiro contato, mas, de forma geral, a avaliação estética é a primeira a que temos acesso ao conhecermos alguém e, de alguma forma, delineia, ainda que de maneira prévia, as bases para a construção das representações sobre a pessoa que se conhece.

A avaliação estética, por sua vez, não está reduzida à dicotomia bonito-feio. Há uma quantidade considerável de variáveis apreendidas nessa avaliação. Categorias como gênero, idade, etnia e classe social são, fácil e rapidamente, apreendidas num primeiro contato visual. Entretanto, a partir da avaliação estética, são construídas representações a respeito do outro a quem se está conhecendo. Ou seja, por conta dessas representações, espera-se determinado comportamento dele. Suas ações então passam a ser avaliadas mediante tais expectativas, previamente estabelecidas para os esperados papéis sociais que tal pessoa deve desempenhar.

O que estamos dizendo é que nossa aparência acaba por nos propiciar, por parte do outro, atribuições de determinados papéis sociais, expectativas de conduta, e que, mediante esses papéis, nossas ações serão avaliadas nas relações sociais.

É importante ressaltar que esse movimento de representações não se restringe ao seguinte trâmite: eu me represento e, consequentemente, determino a construção de uma representação de mim mesmo pelo outro; daí, poderíamos deduzir uma lógica linear na qual a representação de mim assumiria a qualidade de causa da correspondente representação que o outro formula sobre mim, o efeito, encerrando aí o processo de identificação, ou seja, a definição de quem sou eu. Esse processo, como o entendemos, não se dá dentro dessa lógica linear-causal. Esta acabaria por determinar uma concepção estanque de homem, visto como um ser que se define por sua própria natureza e vontade, impondo, assim, ao meio ou ao outro, a representação de uma essência.

Consideramos o processo de identificação do homem como um constante dar-se de sua identidade, emergida de um processo dialético de mútua determinação entre o eu e o outro, sendo a síntese dessa tensão o produto, nunca final, mas concreto, do constante vir-a-ser do homem em sua interminável metamorfose.

Para poder melhor explicitar esse entendimento sobre o homem e a construção de sua identidade, recorreremos ao trabalho de Ciampa (1987), que discute e elucida os meandros e implicações dessa visão sinteticamente conceituada por ele como identidade como metamorfose.

Adotar uma concepção processual dialética da construção da identidade implica não assumirmos o desenvolvimento da identidade ao desvelamento de uma essência e sim incluir a determinação da percepção do outro sobre nós, na própria constituição de nossa identidade. Dessa forma, “interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso” (Ciampa, 1987, p. 131). Assim, tendemos a nos predicar coisas que os outros nos atribuem.

Esse processo de concretização da identidade toma sua forma empírica na qualidade de papéis sociais. Por esses papéis, nos é dada a possibilidade de agir no mundo e objetivar, ainda que de forma parcial, nossa identidade. Afirmamos que a objetivação de nossa identidade se dá de forma parcial pelo fato de que não podermos representar simultaneamente todos os papéis que nos constituem, uma vez que cada cena social pede ou permite um número determinado de papéis a serem desempenhados. Por exemplo, alguém, ao se apresentar perante uma sala de aula, representa-se como professor, além de, nesse momento, exercer o papel de homem, entre outros. Entretanto, não seria condizente com esse cenário o exercício de papéis como o de filho, aluno, irmão ou pai que decerto também o constituem. Por outro lado, essa impossibilidade de objetivação plena de nossa identidade não revoga a legitimidade de nossas ações como legítimas representações de nós mesmos.

Os papéis sociais, por sua vez, não são produtos unicamente da objetivação da identidade dos indivíduos. Há condições históricas que acabam por delimitar os papéis possíveis a serem desempenhados por eles. E mais, além das determinações históricas, os papéis têm também, como delimitadores, determinantes socioculturais. Com isso, a identidade tem como elementos constitutivos o momento histórico no qual a pessoa está inserida e a cultura à qual ela pertence, derivando daí suas possibilidades de concretização e as potencialidades de avaliação social de seus papéis.

Ao subordinar a construção da identidade pessoal às condições sociais, econômicas, históricas e culturais, as ideologias que permeiam esse dado cenário servem de solo fértil para o desenvolvimento, ou desempenho, de papéis que venham a responder a políticas anteriormente instituídas.

A partir dessa reflexão, podemos voltar a olhar o fenômeno de supervalorização da beleza, agora como a busca de uma representação de si mesmo, ou seja, de um papel que se constrói a partir de uma identidade pressuposta, à qual a pessoa se lança, por meio da manutenção ou mesmo do constante aprimoramento dessa aparência.

Enquanto a pessoa se lança em um projeto que visa à construção ou transfiguração da forma como se representa, busca uma nova maneira de ser identificada, reconhecida. Com a objetivação dessa nova forma de representar-se, a questão da beleza toma um caráter empírico, ou seja, como manifestação empírica da identidade pessoal do indivíduo, configurando-se como um novo papel social, o que aqui denominamos de papel de belo.

O papel de belo, nos dias atuais, como discutimos anteriormente, acabou por sucumbir à lógica capitalista e ao império do mercado, implicando uma padronização de rígidos parâmetros para a eleição ou apreciação de uma pessoa como bela.

Em outros momentos históricos, a beleza era entendida como a harmonia entre as formas; em outros, como a explicitação de seu potencial de trabalho; hoje, a beleza sexualizada tão divulgada e exaltada pela mídia acaba por definir-se como uma via de evidência de poder, explicitado via poder de consumo do indivíduo.

De uma forma geral, a lógica capitalista acaba por instalar-nos na categoria de consumidores. Somos todos consumidores e é a partir de tal referência que nos posicionamos na grande maioria das relações sociais, ou seja, somos o que somos em função do capital. O capital acaba por posicionar-se como o verdadeiro sujeito que, por sua vez, sujeita o homem aos seus desígnios. Há, portanto, uma considerável inversão da gramática social em que indivíduo e capital assumem, respectivamente, a posição de predicado e sujeito. O que originalmente se propunha como um instrumento a serviço do homem, hoje se apropria deste como meio e instrumento de sustentação e evidência de seu poder. Assim, dentro dessa lógica, não somos sujeitos do capital, mas, ao contrário, estamos sujeitos a ele. O que queremos dizer é que, ao sermos reduzidos à condição de consumidores num mundo organizado em torno do valor poder de consumo, o ato de consumir não se restringe simplesmente à obtenção de objetos e/ou serviços dos quais o indivíduo eventualmente necessite, mas também qualifica a posição desse indivíduo no mundo. Assim, estamos sujeitos à demanda do capital que, por sua vez, exige o consumir como condição de valorização do indivíduo e não o contrário, que seria sujeitar o capital às necessidades do homem.

A opressão ideológica a que estamos submetidos objetiva-se, dentre outras formas, na chamada cultura de massa, impetrada via indústria cultural. Essa indústria, um eficaz e contundente aparelho ideológico, acaba por restringir e definir padrões de conduta sociais. Adorno (1999), ao discutir a indústria cultural e seus efeitos na constituição do indivíduo, diz que o valor de troca, decorrente de uma cultura de massa, masoquista e onipotente,

Corresponde ao comportamento do prisioneiro que ama sua cela porque não lhe é permitido amar outra coisa. A renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem, seguem-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão. Por outra parte, a necessidade imposta pelas leis do mercado de ocultar tal equação conduz à manipulação do gosto e à aparência individual da cultura oficial, a qual forçosamente aumenta na proporção em que se agiganta o processo de liquidação do indivíduo [...] A igualdade dos produtos oferecidos, que todos devem aceitar, mascara-se no rigor de um estilo que se proclama universalmente obrigatório; a ficção da relação de oferta e procura perpetua-se nas nuanças pseudoindividuais (p. 80).

Diante dessa relação, nós nos perguntamos se a busca pelo padrão de beleza instituído pela indústria cultural poderia ser entendida como uma libertação de uma categoria de excluído, o feio, ou como uma das mais simples formas de submissão, homogeneização e sujeição à lógica de mercado. É evidente o maciço empenho dos meios de comunicação em vender a ideia de uma total transformação da condição pessoal e social dos indivíduos, através da obtenção de determinados padrões estéticos. Entretanto, baseando-nos em Ciampa (1987), poderíamos questionar se essa transformação tão apregoada levaria a uma efetiva transformação em direção à concretização do homem como sujeito, ou seja, seria esse movimento alimentado pela mídia um movimento de metamorfose da identidade? Ou seriam esses padrões apenas os grilhões de uma estrutura ideológica que implementa uma identidade-mito, levando-nos a uma constante reapresentação da identidade-mito, ou seja, uma jornada com destino à mesmice? Em outras palavras, seria esta uma proposta emancipatória ou a implementação de uma identidade-mito que visa exclusivamente a sujeitar o indivíduo ao sujeito-capital?

Olhada por esse prisma, a batalha pelo corpo ideal, maciçamente divulgada e valorizada pelos meios de comunicação, e a consequente padronização do belo toma evidentemente as rédeas do processo de reposição de uma identidade-mito, “comandada pelo fetiche de uma personagem, com a qual nos identificamos (e somos identificados) e que nos coisifica” (Ciampa, 1987, p. 178-179).

Posto dessa forma, fácil seria enveredarmos por uma concepção simplista, em que a busca por uma determinada aparência implica indissociavelmente uma mesmice e, consequentemente, a submissão à ideologia dominante. Seguindo essa lógica, o não atendimento de tais procedimentos de busca de beleza poderia ser considerado uma via libertadora. Entretanto, nem o esculpir o corpo, ou a não adesão a essa prática, constitui, em si, uma prática emancipatória ou não.

A questão toma então um caráter muito particular, em que a ação pode definir a direção do comportamento, mas não é determinante do sentido deste. O que queremos dizer é que a maneira de nos relacionar com a demanda social acerca de um empreendimento específico, no caso, a obtenção de um corpo ideal, pode tomar diferentes qualidades, tanto na satisfação dessa demanda quanto na não satisfação dela. Ou seja, não nos deixarmos levar às academias de ginástica não implica diretamente uma não sujeição à demanda social por uma beleza determinada. Dessa forma, partindo de reflexões desenvolvidas por Macêdo (1998) acerca das reações ao poder, propomos quatro reações ante a demanda por essa estética. Duas delas são a rejeição e a submissão, que implicam um posicionamento arreflexivo, em que há sujeição ao padrão dado. Assim, o padrão estético enaltecido continua a ser a referência maior do posicionamento do indivíduo, seja ele combativo, como na rejeição, ou submisso, como na submissão. As outras duas possíveis são a conformidade e a inconformidade, que se orientam por um posicionamento crítico. Com isso, denominamos conformidade, a adesão ao padrão enaltecido, quando esta se configura como um produto de consenso entre os padrões oferecidos e as referências pessoais do indivíduo, ou seja, fruto de uma ação reflexiva. Já a inconformidade se dá nessa mesma direção, mas em sentido oposto. Portanto, ambas as reações, conformidade ou inconformidade, não se referenciam exclusivamente no padrão cultuado.

É criado, assim, um espaço de indeterminação entre a demanda instituída e a ação do sujeito, o que gera um espaço que distancia o indivíduo da tutela ideológica, o que dá à sua ação uma qualidade processual e dialética, em que a antítese aos ditames ideológicos se configura como um distanciamento crítico destes, o que possibilita a superação do campo do determinismo ou dogmatismo ideológico.

Acreditamos haver, na proposição de Ciampa (1987), sobre a plena concretização do indivíduo pela continuada metamorfose de sua identidade, uma importante perspectiva para a análise da busca da beleza como uma prática emancipatória ou não.

 

4. Identidade e estigma

Partindo da qualidade ideológica do fenômeno da supervalorização da beleza e a potencial exclusão produzida por sua implementação sobre a população que não atende aos seus ditames, acreditamos ser de grande relevância para essa discussão a contribuição de Goffman (1988), ao tratar da questão do estigma na constituição da identidade do indivíduo. Trazemos a questão do estigma para essa discussão por entender que, conforme a rigidez quanto aos padrões estéticos se acirram, os indivíduos são, cada vez mais, empurrados para a condição de estigmatizados. Dessa forma, passa a ocorrer um aumento considerável do montante de pessoas que tomam parte do grupo de desacreditados ou desacreditáveis.

A ideia de um grupo de desacreditados/desacreditáveis nos parece bastante útil na conceituação do problema da emancipação frente a essa ditadura do belo. Dizemos isso por ser essa uma condição de extremo desconforto, que exige um grande investimento psíquico para viabilizar a convivência sob tal ditadura.

O grupo dos desacreditados é aquele formado por pessoas possuidoras de características explicitas potencialmente desqualificadoras como, por exemplo, especificidades étnicas, estatura demasiado baixa ou alta, idade, gênero e deformações aparentes, que, no julgamento da sociedade ou dos grupos de referência, as desqualificam para o desempenho de determinados papéis sociais.

O grupo dos desacreditáveis é composto por aqueles indivíduos que têm características que potencialmente os desqualificariam mediante seus grupos de referência, mas que, entretanto, tais características se encontram em condições de serem encobertas. Seriam, por exemplo, os portadores de doenças que não apresentam sintomas visíveis, como diabetes e HIV-AIDS, ou pessoa de orientação religiosa diversa, nacionalidade estrangeira, etnia (quando não explícita), orientação sexual, entre outros.

Acreditamos que essas condições elencadas por Goffman (1988) favorecem modos não emancipatórios de ação, que levam à manutenção de uma identidade-mito, como a condição socialmente estabelecida de normal, e não à superação dessa identidade-mito pelo rompimento com a ideologia que sustenta essa condição como uma posição de estigmatizado.

Olhando por essa perspectiva, o movimento de enrijecimento dos padrões estéticos e o simultâneo enaltecimento desses padrões, implicando a desqualificação dos indivíduos que não os atendem, lança uma massa de pessoas na posição de desacreditados e desacreditáveis para a qual o mercado oferece, como produto de consumo, a redenção dos excluídos por meio de sua transformação ou dissimulação estética.

 

5. Da avaliação social

Para uma melhor análise do processo de desqualificação da população que não se encontra dentro do padrão estético que considera exigido e do aqui chamado fenômeno de supervalorização da beleza, será bastante útil para nós a perspectiva apresentada por Sarbin e Scheibe (1983) em seu Modelo Tridimensional da Identidade Social.

As quotidianas e sucessivas situações de avaliação a que estamos submetidos no trato social nos colocam simultaneamente na posição de juízes e de objeto de julgamento. Ou seja, somos concomitantemente julgadores e julgados. Essa dinâmica social, em que nossos papéis são avaliados, oferece a nós um lugar na hierarquia social. É nessa relação indivíduo-sociedade que se constitui não só nossa identidade social como também nosso autoconceito e autoestima. Nossos grupos de referência assumem a posição de instâncias determinantes para tal avaliação social. Poderíamos então dizer que esses grupos de referência assumem a função de julgadores e, consequentemente, legitimadores de nossa forma de ser e estar na sociedade, sendo os veredictos por eles proferidos parte dos elementos constituintes de nossa própria autoavaliação.

Como afirmam Sarbin e Scheibe (1983), “As pessoas podem não ser capazes de pensar bem de si mesmas a não ser que saibam que elas são aceitas por seus observadores” (p. 7). O que é ressaltado aqui é a extrema relevância do outro na construção da identidade do indivíduo. No tocante a essa questão, os autores enfatizam a necessidade da validação dos papéis desempenhados pelo indivíduo para uma integração desses no conjunto da identidade social deste. Ou seja, é na interação simbólica que o papel desempenhado por alguém pode ou não ser legitimado. São essas interações que dão às pessoas as informações sobre quem elas são. A premissa é que a identidade social de uma pessoa é o resultado de suas posições sociais validadas.

Pelo fato de não nos restringirmos a um único grupo de referência e de nossas interações se darem com uma variedade significativa de pessoas e instituições, cabe salientar que existe uma série de alterações dos papéis sociais que desempenhamos em nosso dia a dia e no decorrer de nossas vidas, o que resulta em uma possibilidade maior ou menor, mas ainda assim inegável de alterações da identidade social do indivíduo. Essas alterações nos papéis desempenhados se dão conforme nos inserimos em cenários distintos, em que estão presentes elementos que configuram um grupo de referência específico, o qual delineia e favorece o emergir de um determinado papel. Por exemplo, o presidente de uma grande empresa, para ter seu papel de presidente validado, deve conduzir-se de uma determinada forma diante do grupo que valida sua dada posição como tal. Entretanto, quando se encontra no seio de sua família, exerce papéis distintos dos desempenhados na empresa, bem como o grupo de referência que valida seu papel é outro.

O que queremos dizer com isso é que exercemos diversos papéis no decorrer de nossas vidas, muitos deles simultaneamente, e que a relevância da validação ou não de tais papéis para a construção de uma identidade também tem graus diferentes.

Quanto ao processo de avaliação dos papéis desempenhado pelo indivíduo e a consequente validação ou não de sua identidade social, podemos perceber que esse processo pode tomar duas direções, a degradação e a ascensão, que configuram a instância última, na qual são sustentadas, no indivíduo, uma autoestima elevada ou rebaixada.

A degradação é o processo de transformar um papel com potencial para estima em seu oposto negativo. A identidade de uma pessoa é danificada, por exemplo, com a alegação de que ela é uma má pessoa, má filha, ou um homem impotente. Essa degradação pode acontecer de duas maneiras, como derrogação, que é verbal e simbólica, ou seja, tem um caráter moral e se dá como crítica; e como depreciação, primária e instrumental, e resulta em uma perda concreta, como, por exemplo, uma demissão ou rebaixamento de patente.

A ascensão é o processo inverso e se desenvolve no caminho da aprovação e da promoção. A aprovação tem um caráter verbal e simbólico, como elogios, a ovação da massa e prêmios de louvor, ou seja, a via inversa da derrogação; já a promoção implica conquistas de papéis de status considerados superiores e se contrapõe à depreciação.

Consideramos esse processo de desqualificação, seja por derrogação ou depreciação, da população que não se encontra dentro do padrão estético exigido como resultado, ou produto da lógica capitalista vigente, em que tudo adquire a qualidade de mercadoria, como discute Baudrillard (1991), de maneira que a naturalização da beleza, e a vinculação desta a um maior potencial de obtenção da realização sexual, acaba por tornar-se um simulacro, no qual o que se apresenta de fato é o poder de consumo, este sim qualificador do indivíduo como digno de uma existência plena e incluída na seara de oportunidades ofertadas por esse mundo atual.

 

6. Considerações finais

Este trabalho apontou a complexidade do fenômeno da supervalorização da beleza, no qual ela passa a ter, dentro do universo simbólico em que nos construímos, uma relevância bastante acentuada para a construção de uma identidade pessoal.

Como foi discutido, esse fenômeno não é produto de uma natureza humana. Se isso fizesse sentido, a busca por um aprimoramento estético pelos tempos faria de nossa atual civilização ocidental, e seu padrão de beleza cultuado, o mais sublime patamar atingido pela raça humana até agora.

A origem social e histórica do padrão de beleza vigente é flagrante, assim como a da relevância do ser belo dentro de uma cultura específica.

A atual ideologia capitalista, em que tudo toma a dimensão de mercadoria, serve de alicerce para o fenômeno aqui apresentado. É dentro de uma cultura capitalista que é possível produzir exclusão para vender inclusão. E é nesse jogo social que pessoas buscam instalar-se em posições que favoreçam uma avaliação positiva de seus papéis e a consequente legitimação de suas identidades como pertencentes ao grupo dos incluídos.

A implementação dessa cultura se dá por um amplo aparelho ideológico que perpassa as organizações familiares e tem seus desmembramentos mais visíveis nas ações enfáticas das mídias de massa.

Nesse jogo de exclusão e inclusão, as imagens-norma ou as políticas de identidades impostas para a aceitação da condição de incluído dos indivíduos acabam por favorecer uma perpetuação das identidades-mito, levando as pessoas a dificuldades na concretização do processo de construção da identidade como metamorfose, como propõe Ciampa (1987). E, com isso, lança-nos numa recorrente busca pela mesmice.

Esse não é um privilégio da demanda por beleza. Muitos outros papéis que, por condições históricas, acabaram por naturalizar-se, definem padrões para sua avaliação positiva e consequente aceitação. Entretanto acreditamos que a supervalorização da beleza é um fenômeno suficientemente recente para percebermos a brusca alteração de seu status nos últimos anos.

Assim, torna-se importante compreendermos qual a função que o atendimento ou não ao atual padrão de beleza pode exercer sobre a construção da identidade pessoal. Encontramos pessoas em submissão, rejeição, conformidade e inconformidade em relação à demanda por serem belas, num processo que atinge a todos que se encontram inseridos na cultura urbana dos grandes centros brasileiros.

Há muitos desdobramentos desse fenômeno que não puderam ser abarcados no corpo deste trabalho. Até mesmo por ele não se propor a tanto. A relação entre beleza e mercado de trabalho, uma retomada histórica dos padrões de beleza cultuados nas diferentes culturas, a relação entre o envelhecer e a demanda pela beleza jovial, as especificidades da implicação desse fenômeno nos diferentes gêneros. No âmbito das artes, a contraposição entre o belo e o decorativo, as diversas definições do belo, tanto nas Artes como na Filosofia, são algumas das direções importantes que não foram abordadas no presente trabalho. Sendo assim, ficam abertas diversas janelas para observadores que se interessem por esse tema.

Este trabalho buscou compreender o fenômeno da supervalorização da beleza, o contexto que propiciou seu surgimento e manutenção, e delinear a relevância e o impacto desse nas interações sociais e suas consequências para a construção da identidade pessoal.

Assim, acreditamos ter, pelas discussões apresentadas aqui, apontado direções possíveis para o entendimento do fenômeno ao qual denominamos supervalorização da beleza.

 

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Texto recebido em agosto/2008.
Aprovado para publicação em janeiro/2009.

 

 

* Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, professor do curso de Psicologia, Universidade Paulista, São Paulo – UNIP, e-mail: rpasampaio@hotmail.com
** Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, São Paulo – UFMA, ricardo_franklin@uol.com.br

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