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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.1 Belo Horizonte Apr. 2009

 

ARTIGOS

 

Há lugar para sublimação no laço social contemporâneo?

 

Is there a place for sublimation in contemporary social bonds?

 

¿Hay un lugar para la sublimación del vínculo social contemporáneo?

 

 

Fábio Santos Bispo*; Marcelo Fonseca Gomes de Souza**; Moisés de Andrade Júnior***

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Buscamos investigar o conceito de sublimação tal como Lacan o aborda em seu sétimo seminário, tendo em vista os laços sociais possíveis na contemporaneidade: como pensar a sublimação sem confundi-la com o sintoma? Na primeira parte, investigamos o objeto em jogo na sublimação, das Ding, evocada por Lacan quando define a sublimação como a elevação do objeto ao estatuto da Coisa. Na segunda parte, buscamos diferenciar sintoma e sublimação, utilizando-nos da diferença entre o chiste e o lapso: provocar a fissura no campo do código lingüístico, prescindindo do recalque, é uma função do chiste e igualmente da sublimação. Na terceira parte, abordamos os laços sociais contemporâneos que ratificam e dão valor ao objeto sublimado. Esse valor social é insuficiente para afirmar seu estatuto de objeto sublimado, sendo necessária a reflexão sobre a via de satisfação envolvida em sua produção e o gozo evocado no laço social em cada caso.

Palavras-chave: sublimação; sintoma; das Ding; chiste; laço social.


ABSTRACT

This article investigates the concept of sublimation, as approached by Lacan in his seventh seminar, focusing on the social bonds conceivable in contemporary life: how can we consider sublimation in the contemporary world without mistaking it for symptom? The first part investigates the object of sublimation, das Ding, evoked by Lacan when he defines that process as the object’s elevation to the status of das Ding. In the second part, the difference between symptom and sublimation is defined, making an analogy with the difference between wit and lapsus: provoking a fissure in the linguistic code is a function of wit, and equally of sublimation. In the third part, contemporary social bonds that ratify and value the sublimated object are analyzed. This social value is insufficient to affirm its status of sublimated object, and we must include a reflection on the way towards satisfaction involved in its production and the jouissance evoked in the social bond in each case.

Keywords: sublimation; symptom; das Ding; wit; social bonds.


RESUMEN

Tratamos de investigar el concepto de sublimación de la manera como Lacan lo aborda en su séptimo seminario, considerando los posibles vínculos sociales contemporáneos: ¿cómo se puede pensar la sublimación contemporánea sin confundirla con el síntoma? En la primera parte, investigamos el objeto en juego en la sublimación, das Ding, planteada por Lacan cuando establece la sublimación como la elevación del objeto al estatus de Cosa. En la segunda parte, diferenciamos el síntoma y la sublimación, utilizando la diferencia entre el chiste y el lapsus: provocar la fisura en el campo del código lingüístico es una función del chiste, y también de la sublimación. En la tercera parte, abordamos los vínculos sociales contemporáneos que ratifican y dan valor al objeto sublimado. Este valor social es insuficiente para afirmar su condición de objeto sublimado, por lo que es necesaria una reflexión sobre el camino de la satisfacción implicada en su producción y el goce evocado en el vínculo social en cada caso.

Palabras-clave: sublimación; síntoma; das Ding; chiste; vínculo social.


 

 

Há lugar para sublimação no laço social contemporâneo?1

Este trabalho parte de uma pesquisa empreendida no Laboratório de Psicanálise da UFMG sobre o Seminário 7: a ética da psicanálise (Lacan, 1959-1960/1997), no qual um espaço privilegiado é dado ao tema da sublimação. A importância que essa temática adquire para a intervenção da psicanálise sobre a ética não é de pouca relevância e esperamos, com nossa exposição, demonstrar uma maneira como essa discussão pode ligar-se especificamente à configuração contemporânea do laço social. Desse modo, já de saída, denunciamos a tendência positiva de nossa resposta à questão que dá título a este artigo. Se há, pois, lugar para a sublimação (e pretendemos deixar clara a razão disso), importa delimitar melhor as coordenadas éticas dessa situação.

Nesse sentido, ao retomar o tema no seminário sobre a ética, Lacan destaca pelo menos dois pontos fecundos em controvérsias, que analisaremos a seguir. O primeiro diz respeito à distinção entre a satisfação sintomática e a satisfação sublimatória. Um importante problema se apresenta aí, expresso na questão de como “a pulsão pode encontrar seu alvo em outro lugar [...] sem que se trate da substituição significante [...] do que se chama o compromisso sintomático” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 139). O outro ponto, intimamente ligado ao primeiro, é a concepção de uma valorização social do objetivo da pulsão sublimada. Para discutir essas duas questões, nosso percurso será orientado principalmente pelas formulações contidas no Seminário 7, relacionando-as com o que denominamos a oferta de gozo na contemporaneidade. Nosso recorte se dá ao redor dos apontamentos de Lacan sobre a sublimação e sua relação com das Ding, por um lado, e o gozo em jogo no processo sublimatório, por outro. Se, além de prestar-se a uma satisfação pulsional distinta do gozo sintomático, a sublimação se reveste de um valor social (formulação freudiana que Lacan abordará por outras vias), como situá-la no laço social contemporâneo?

Partimos, portanto, do pressuposto de que, ao se tratar da contemporaneidade, o valor do objeto sublimado não é facilmente destacável de seu lugar na cadeia de consumo e de sua disposição para o usufruto. Torna-se imperativo, pois, matizar o lugar da sublimação num contexto em que os objetos de consumo se misturam com a produção artística, que Freud associaria ao mais sublime, lançando, com isso, novas circunscrições em torno desse conceito.

 

Das ding

Comecemos por um dos conceitos capitais concernentes à sublimação: o conceito de das Ding, evocado por Lacan em sua referência ao Projeto de psicologia (Freud, 1985/1995) no referido seminário. Das Ding surge aqui para demarcar o lugar de uma Coisa distinta dos objetos disponíveis no campo simbólico. Ora, é desse modo, com o nome de Coisa, que Freud, em seu Projeto de Psicologia, distingue um componente inassimilável do complexo do objeto, que apareceria coeso como coisa, de outro que é dado a conhecer na experiência pelos atributos e pela atividade, que ele chama de predicado. Lacan, por sua vez, situa esse componente inassimilável do lado do real, mas que é bordejado pelo significante; ou seja, é aquilo que “do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 168). Assim, exatamente por que a pulsão tem relação com das Ding, é possível propor a fórmula geral segundo a qual, na sublimação, trata-se de elevar o objeto ao estatuto de Coisa (Lacan, 1959-1960/1997, p. 140-141). É interessante retomar esse aforismo para verificarmos seu alcance e esclarecermos seu sentido, já que a releitura do Projeto por Lacan não é sem pertinência.

Uma das primeiras tentativas de ler, no Projeto, um elemento anterior à linguagem, mas que opera como causa desta, é pela distinção entre das Ding e die Sache. Tal distinção pode ser correlacionada com outra, encontrada no artigo O Inconsciente (Freud, 1915/1996). Neste, a diferenciação se dá entre apresentação da coisa (Sachvorstellung) e a apresentação da palavra (Wortvorstellung) (Freud, 1915, p. 205-206). A hipótese de Freud sobre o recalque, no final desse artigo, recai sobre a separação da “apresentação consciente do objeto” em dois representantes: a Wortvorstellung e a Sachvorstellung, sendo o elemento inconsciente recalcado restrito apenas à Sachvorstellung, amputada da representação de palavra adequada.

Para Lacan, porém, é notável que Freud tenha tratado de Sachvorstellung e não Dingvorstellung (apresentação da Coisa) para falar do elemento recalcado. O sentido e a pertinência dessa diferenciação, Lacan o encontrará no Projeto, onde Freud introduz a ideia de das Ding como aquilo que está situado em outro lugar, além da representação, além, inclusive, da representação de coisa (Sachvorstellung) como inconsciente. Das Ding é, nessa abordagem lacaniana, o elemento da experiência infantil carente de qualquer significação, a contraparte da percepção que não pôde ser traduzida em significantes e que, por esse motivo, constitui um quantum de tensão psíquica que jamais será escoada ou tratada – a não ser, é claro, na morte do sujeito. Freud oferece elementos para essa leitura na seguinte passagem:

O começo dos processos desdobrados de pensar é a formação de juízo a que o eu chega através de uma descoberta em sua organização, através da já citada coincidência parcial das ocupações de percepção com notícias do próprio corpo. Por meio disso, os complexos perceptuais separam-se em uma parte constante, incompreensível, a coisa, e uma variável, compreensível, a propriedade ou movimento da coisa (FREUD, 1895/1995, p. 98).

Ora, a Coisa sobre a qual Freud discorre é o elemento da percepção que atribui a todo juízo – ou seja, a todo pensamento sobre a realidade – uma parte invariável e, tão importante quanto, incompreensível. O modo como Freud retoma a relação do sujeito com a realidade no artigo A Negativa (Freud, 1925/1996) dá o tom da relação desse componente inassimilável com a busca pelo objeto correlativa ao desejo:

Assim, originalmente a mera existência de uma representação constituía uma garantia da realidade daquilo que era representado. A antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. Surge apenas do fato de que o pensar tem a capacidade de trazer diante da mente, mais uma vez, algo outrora percebido, reproduzindo-o como representação sem que o objetivo externo ainda tenha de estar lá. Portanto, o objetivo primeiro e imediato do teste de realidade é não encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrar tal objeto, convencer-se de que ele está lá (Freud, 1925/1996, p. 267).

Aqui, Freud se detém na tentativa do sujeito de reencontrar o objeto primeiro, das Ding, em todo novo objeto encontrado. Entretanto, o que resta é um reencontro sempre com a falta, pois o objeto primeiro está perdido para sempre. As conclusões disso são duas: primeiro, que a correspondência entre o objeto atual e objeto primeiro é impossível, de modo que o anseio por ele nunca é saciado; o que nos permite, inclusive, pensá-lo como objeto causa, no sentido de que, por nunca ser atingindo, torna-se a própria causa do desejo, esse impulso sem trégua que surge num ponto exterior à linguagem. Segundo, que é pela impossibilidade desse reencontro que a própria vida se conserva. Lacan é especialmente enfático quanto à importância desse objeto causa de desejo como motor real do simbólico; dito de outro modo, o núcleo real que sustenta a linguagem.2

É assim que, seguindo esse fio do pensamento lacaniano, a partir das considerações tomadas de Freud sobre das Ding, resgatamos a noção de sintoma como defesa contra um real que, mesmo tendo sido posto como causa, permanece também como um excesso, uma ameaça ao equilíbrio do psiquismo. Poderíamos inclusive ir além, considerando esse ponto extimo ao simbólico como um limite para a clínica analítica: o recalque é uma articulação simbólica e pode, portanto, ser decifrado; contudo, o real, contra o qual constitui uma defesa, não pode ser decifrado; não há nada nele que seja cifra, nada que seja simbólico. O analista colhe os efeitos desse real pela via do sintoma.

Desse modo, para Lacan, as coordenadas do desejo são dadas pela Coisa e, como ele mesmo completa, “Esse objeto estará aí quando todas as condições forem preenchidas, no final das contas – evidentemente, é claro que o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 69). Nesse sentido, a constituição do aparelho psíquico pressupõe um elemento invariável que sempre é invocado no movimento de desejar. Contudo, e esse é o ponto que desejamos ressaltar, trata-se de um elemento impossível de ser simbolizado, e nenhum objeto pode representá-lo ou tomar seu lugar definitivamente: ainda que, por outro lado, qualquer objeto possa ocupar seu lugar, na qualidade de um substituto (ersatz), mesmo que seja um substituto sempre precário e provisório.

Retomemos, a partir dessas considerações, o problema da sublimação. Como já destacamos, sua fórmula consiste exatamente em produzir um objeto que tenha a dignidade de assumir o lugar da Coisa – esse objeto sem correspondência simbólica – de um modo ao menos mais bem-sucedido que o sintomático. Encontramos o exemplo paradigmático dessa tese, uma coisa no lugar do objeto impossível, no que Lacan denomina a sublimação do objeto feminino, evocada na teoria da Minne, o amor cortês. A referência ao amor trovadoresco, exaltado na literatura medieval, permite a Lacan demarcar a assunção de um objeto, no caso, a mulher amada, a esse lugar de inacessibilidade: um lugar vazio, do qual emana uma apreciação estética, quase uma adoração, para cujos efeitos as palavras dos trovadores não pretendem fazer mais do que apenas contorná-lo. Como coloca Lacan:

É na medida em que esse novo objeto é promovido, numa certa época, à função da Coisa que se pode explicar esse fenômeno que, sociologicamente, se apresentou sempre para aqueles que o abordaram como francamente paradoxal. Não poderemos, sem dúvida, esgotar o conjunto dos signos, ritos, temas e intercâmbios de temas, especialmente de temas literários que constituíram a substância e a incidência efetiva definida segundo os lugares e as épocas por termos diferentes – amor cortês, Minne, e há ainda outros (Lacan, 1959-1960/1997, p. 141).

Para ilustrar essa referência ao amor cortês, vejamos um poema do final do século XI, obra de um famoso trovador português, El Rey D. Diniz (1261-1325), que nos apresenta um exemplo dessa dama cantada, desejada e, no entanto, inacessível. É justamente por ocupar esse lugar de impossibilidade que sua beleza e qualidades mais se destacam.

 

Canção de Amor

Quero, à moda provençal,
fazer agora um canto de amor,
e quererei muito aí louvar minha senhora
a quem honra nem formosura não faltam
nem bondade; e mais vos direi sobre ela:
Deus a fez tão cheia de qualidades
que ela mais que todas do mundo.

Pois Deus quis fazer minha senhora de tal modo
quando a fez, que a fez conhecedora
de todo bem e de muito grande valor
e, além de tudo isso, é muito sociável
quando deve; também lhe deu bom senso,
e, desde então, fez-lhe pouco bem,
impedindo que nenhuma outra fosse igual a ela.

Porque em minha senhora nunca Deus pôs mal,
mas pôs nela honra e beleza e mérito
e capacidade de falar bem, e de rir melhor
que outra mulher também é muito leal,
e por isso não sei hoje quem
possa cabalmente falar no seu próprio bem,
pois não há outro bem para além do seu.3

Vemos, ao longo dos versos, que a senhora posta em causa é, para o poeta, o objeto da mais alta enlevação. Não há outro bem a se desfrutar, senão na sublimidade da presença desse objeto pleno em perfeição. Porém, caberia perguntar, onde se encontra, na realidade do poeta (para não dizer também da nossa), uma dama de tamanho requinte? Onde poderíamos localizá-la, a não ser no lugar do acesso impossível que a distancia em relação a todas as outras mulheres comuns demarcam?

Ora, se é verdade que essa dama intocável está muito distante de tudo o que se pode esperar da série de mulheres disponíveis para o gozo masculino, não se pode afirmar, entretanto, que o poeta do amor cortês não extraia nenhum gozo de sua concepção. Mesmo que não haja união direta com essa mulher, nenhuma possibilidade de relação sexual – porque ela é vazia em substância, e sua concepção corresponde à borda que o significante fornece para esse vazio –, o que a sublimação indica é que, ainda assim, há satisfação pulsional.

Desse modo, a teoria de das Ding e a Minnesang permitem supor que, pela sublimação, cria-se a possibilidade da satisfação pulsional para além de um objeto positivado. Mais ainda: os efeitos de tal satisfação podem espalhar-se pelo laço social, a comunidade dos poetas do amor cortês, por exemplo. Assim, na sublimação, “um objeto”, diz Lacan, “pode preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa como significante”, como é o caso na substituição significante do sintoma, “mas representá-la na medida em que esse objeto é criado” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 151). Nesse sentido, a atividade sublimatória permite ao sujeito não esgotar a Coisa no significante, não reduzi-la a um objeto de consumo comum do qual se espera que supra a falta correlativa ao desejo. Permite, ainda que se adote perante ela uma posição que ultrapassa a postura defensiva representada pelo sintoma.

Portanto, elevar um objeto ao estatuto de Coisa, como indica a fórmula lacaniana, implica uma experiência em que, apesar da absoluta indeterminação do objeto criado, nesse ato, um modo de satisfação pode ser alcançado. Como afirma Safatle: “Para que a coisidade que marca a singularidade do objeto possa aparecer, faz-se necessário primeiramente dessensibilizar a imagem e liberar o objeto das amarras do Imaginário” (Safatle, 2004, p. 129). O núcleo vazio produzido pelo desvelamento do objeto na ação criadora do artista, em vez de ser recoberto pelos tampões desconcertados que os sujeitos não cansam de produzir pelo sintoma, assume, pela via da sublimação, um lugar de privilégio, onde se torna possível contemplá-lo e, em um mesmo movimento, gozar dessa contemplação. Ainda, é importante destacar que, embora a experiência artística seja bastante sedutora para indicar o que concerne à sublimação, Freud lembra que a arte não constitui a única forma em que se abre essa via de satisfação, mas todo o campo da criação humana e do trabalho, inclusive o intelectual. Pode-se evocar outro exemplo citado por Lacan em seu seminário – a coleção de caixas de fósforo – onde a sublimação é encontrada em contextos tão diversos da arte representada pela Minnesang, que não se pode deixar de relativizar algo concernente a seu valor: “O caráter completamente gratuito, proliferante e supérfluo, quase absurdo dessa coleção visava, com efeito, à sua coisidade de caixa de fósforos” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 143).

Não é, pois, necessário associar o valor sublimatório de uma produção ao seu valor artístico: é possível supor, no exercício mais banal de criação, a possibilidade de uma satisfação sublimatória. É, aliás, dessa forma, do modo mais inocente da sublimação, que Lacan indica um efeito que ele sublinha com uma exclamação: “Talvez vocês possam ver despontar aí com que, meu Deus, a sociedade pode se satisfazer” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 144). O que nos parece é que não será por algum indemarcável e obscuro valor estético que o valor social entrará em jogo na sublimação, mas, principalmente, pela abertura de uma via específica de satisfação pulsional.

 

Sublimação e sintoma

Mais pode ser dito sobre a diferença existente entre a satisfação pulsional encontrada na sublimação e a sintomática, e é pela análise do chiste que propomos uma via de comparação. A afirmação de que, na sublimação, a pulsão encontra seu alvo em um lugar outro que não aquele que constitui o seu alvo por excelência, exige maior análise, já que destacamos para um sintoma também um processo de desvio, por intermédio da substituição. Contudo, no tocante à sublimação, não é pelo caminho da substituição significante, que constitui a estrutura sobredeterminada do sintoma, que explicaremos seu mecanismo. É preciso ir adiante e estabelecer um salto analítico que coloque em evidência uma relação singular do desejo com o objeto, porém não com um objeto qualquer e sim com o objeto em função de Coisa, disso que está no âmago da economia libidinal.

Freud (1914/1996) já destacava o engodo que pode representar a confusão da sublimação com a consecução de um ideal ao qual o ego se submete. Sua saída é propor uma diferenciação, colocando a idealização do lado do objeto e a sublimação do lado da tendência.4 Trata-se de uma diferenciação importante para nossos fins, pois indica que a formulação lacaniana, elevar o objeto à dignidade de Coisa, não deve ser compreendida como uma idealização do objeto. Assim, a coisificação lacaniana de um objeto destaca a via de satisfação desviada que o ato criador é capaz de promover, e Lacan pontua essa diferença nos seguintes termos:

É nessa relação de miragem que a noção de objeto é introduzida. Mas esse objeto não é a mesma coisa que aquele visado no horizonte da tendência. Entre o objeto, tal como é estruturado pela relação narcísica, e das Ding há uma diferença, e é justamente na vertente dessa diferença que se situa para nós o problema da sublimação (Lacan, 1959-1960/1997, p. 124).

Pode-se pôr o acento aqui, para se compreender o que seja a tendência, no que Freud (1905/1996) chamou, nos Três Ensaios, de “alvos sexuais provisórios”. Entre os principais desvios do alvo sexual, está a tendência do olhar que, embora tenha uma importante função no despertar do desejo, “pode ser desviada (‘sublimada’) para a arte, caso se consiga afastar o interesse dos genitais e voltá-lo para a forma do corpo como um todo” (Freud, 1905/1996, p. 148). Desse modo, embora a fonte da pulsão não deixe de ser sexual, a tendência (ou alvo) encontra-se desviada. Freud acrescenta, ainda, que na maioria das pessoas normais “a demora nesse alvo sexual intermediário do olhar carregado de sexo [...] dá a possibilidade de orientarem uma parcela de sua libido para alvos artísticos mais elevados” (Freud, 1905/1996, p. 148).5

Ora, a diferenciação entre o objeto (posto no lugar de ideal) e a tendência (ação impelida pela pulsão) pode ser esclarecedora se tivermos em mente que Freud não concebe a pulsão de maneira simples. Tomando os seus quatro elementos, pode-se presumir que a fonte permanece sexual, tanto no sintoma quanto na sublimação. Porém, enquanto o objeto é fortemente fixado e idealizado no sintoma, ficando recalcado seu sentido sexual, na sublimação, o que é desviada é a tendência.6 O vetor de sua direção já não é mais aquele que impulsiona em direção a um modo específico de satisfação na relação com o objeto narcisicamente estruturado. Trata-se, agora, de promover outra ação sobre o objeto que, qualquer que seja a princípio, sua escolha é contingente, passa a não ser mais um objeto qualquer. É o que se vai fazer com o objeto que vai determinar o efeito de destacá-lo da série dos objetos comuns (die Sache) e fazê-lo tocar o lugar vazio de das Ding.

Quanto à carga, embora ela não seja problematizada em nenhuma das referências que escolhemos, é de se supor que não seja de pouca importância sua incidência, já que ela põe em jogo a intensidade das exigências pulsionais que, tanto no processo criativo quanto no sintoma, podem aproximar-se perigosamente do insuportável.7 Então, como Freud nos esclarece: “A formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão” (Freud, 1914/1996, p. 101). Nesse sentido, para Freud, o objeto idealizado é um substituto que, para manter o compromisso sintomático de buscar satisfação mantendo o recalque, liga-se a um representante psíquico que, ao mesmo tempo, esconde e revela o desejo recalcado. O aspecto paradoxal do sintoma, contudo, permanece: ao mesmo tempo em que nega o recalcado – impede um conteúdo inconsciente de atingir a consciência –, seu retorno no sintoma é a própria manifestação de que ali há algum elemento impedido de tradução consciente. Encobrir o conteúdo inconsciente atende, portanto, à exigência da instância recalcadora, enquanto revelar esse conteúdo de modo disfarçado, pelo sintoma, atende à exigência da instância recalcada.

Retomemos agora o diálogo com Lacan. Para esclarecer ainda mais o que está em jogo na relação sublimação/sintoma, podemos evocar sua formulação a propósito do chiste, tal como trabalhado no seminário sobre as formações do inconsciente. A pergunta que norteará nossa investigação é: o que diferenciaria a chamada tirada espirituosa (Lacan, 1957-1958/1999) de um puro e simples lapso?

Lacan propõe que, no chiste, o jogo significante produzido burla o recalque, fazendo aparecer, no campo do Outro, um sentido que não era previsto no código. Sem falar diretamente do desejo inconsciente colocado em jogo, quem propõe a tirada espirituosa usa o significante de modo que ele possa contornar o desejo. Ao lançar mão do deslizamento que a cadeia permite entre o significante e os significados, ele evoca um efeito de satisfação, a comicidade, que não é unicamente individual, mas que, para trazer realmente satisfação, precisa enlaçar o Outro como testemunha que atestará o quão espirituosa é realmente a tirada.8 Nesse sentido, o chiste não faz graça sozinho, ele evoca o Outro para que este ratifique sua comicidade e, por sua vez, a satisfação pulsional envolvida na tirada espirituosa.

Quanto ao lapso, se não há a intervenção de alguém no lugar de Outro que indique o efeito de sentido por ele desvelado, o sujeito pode nem se aperceber de nada. Se, por outro lado, alguém o aponta, a operação em favor do recalque é logo posta em ação, visando a estabilizar novamente o sentido da relação entre os significantes. No lapso, o apontamento do Outro deixa o sujeito desconsertado ou, no mínimo, surpreso. Como Lacan esclarece no Seminário 5:

A tirada espirituosa só se completa para além desse ponto (o nível da mensagem), ou seja, na medida em que o Outro acusa seu recebimento, reage à tirada espirituosa e a autentica como tal. Para que haja tirada espirituosa, é preciso que o Outro perceba o que está ali, nesse veículo da pergunta sobre o pouco sentido, de demanda de sentido, isto é, da evocação de um sentido mais além – além do que fica inacabado (Lacan, 1957-1958/1999, p. 103).

O que muda, pois, do chiste para o lapso é, de um lado, o laço evocado com o Outro que, no chiste, é convidado a compartilhar da satisfação cômica. Por outro lado, o acento pode ser posto na relação do sujeito com o gozo envolvido na produção, já que o lapso, embora seja uma falha do recalque, pega o sujeito de surpresa, levando-o a apressar-se na correção do erro e no restabelecimento do recalque.

Ora, nesse sentido, nós nos perguntamos se a sublimação não está para o sintoma assim como o chiste está para o lapso: fazer com que o significante provoque uma fissura, ainda que momentânea, no campo do código – o sítio que comporta os significados estáveis da linguagem –, ou seja, possibilitar que um significante marque uma falta no campo do Outro, ao mesmo tempo em que a contorna, é uma função destacável do chiste. Essa função coincide em muitos pontos com a formulação da sublimação como um processo que faz um significante bordejar o real, que o faz padecer do significante. Propomos então uma pequena equação para nos auxiliar na apreensão do que está em jogo:

chiste - sublimação
lapso - sintoma

Além dessa comparação, o outro ponto, do efeito de sentido despertado no Outro que testemunha a graça do chiste, também serve para introduzir a relação entre sublimação e laço social pela vertente da satisfação. Agora que delimitamos com maior precisão a satisfação pulsional envolvida na sublimação, passemos finalmente à análise do laço social que a sublimação permite engendrar e em quais termos esse laço social torna-se possível.

 

Sublimação e laço social

É na direção da satisfação que o desvio da pulsão para um alvo valorizado socialmente pode ser proposto. Ora, ao possibilitar a descarga pulsional para o sujeito, o processo de criação igualmente enlaça-o ao Outro, fazendo com que a Coisa em jogo na sublimação possa alastrar sua via de satisfação também para aqueles que presenciam o resultado obtido. É assim que Freud (1908[1907]/1996) articula a função da comédia (Lustspiel) e da tragédia (Trauerspiel) – literalmente “brincadeira prazerosa” e “brincadeira lutuosa” – em Escritores criativos e devaneios. Sua hipótese é a de que “muitos excitamentos que em si são realmente penosos podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor” (Freud, 1908[1907]/1996, p. 136). Embora seja possível afirmar que em qualquer coisa, na arte, na brincadeira, no chiste ou em outras produções, exista o potencial de evocar a satisfação, não significa que se trate da sublimação em todos os casos: há que se colocar em jogo algum artifício para contornar o recalque. Freud (1905/1996) adverte, numa nota de rodapé acrescentada em 1915 aos Três Ensaios, que parece indubitável que o conceito de belo tenha sua raiz sexual, mas, ainda assim, jamais se pode dizer que é realmente “bela” a visão dos próprios genitais, apesar de provocar a mais intensa excitação sexual. Há que se produzir, pois, um artifício, que Lacan situa ao lado das “elaborações imaginárias e, muito especialmente, culturais” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 125), que permita à coletividade encontrar alguma “felicidade nas miragens que lhes fornecem moralistas, artistas, artesãos, fabricantes de vestidos ou de chapéus, os criadores de formas imaginárias” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 126).

Ora, essa satisfação que Lacan remete ao coletivo pode, pois, ser evocada por artifícios dos quais o mínimo que se pode dizer é que sejam similares no chiste e na sublimação. Eis a passagem onde Lacan formula esse ponto de forma mais clara:

Não é que a coletividade as reconheça [as elaborações imaginárias e culturais] simplesmente como objetos úteis – ela encontra aí o campo de descanso pelo qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de das Ding. Colonizar com suas formações imaginárias o campo de das Ding. É nesse sentido que as sublimações coletivas, socialmente recebidas, se exercem. [...] Mas não é apenas na sanção que ela confere a isso, ao se contentar, que devemos buscar o móvel da sublimação. É na função imaginária, muito especialmente, aquela a propósito da qual a simbolização da fantasia ($<>a) nos servirá, que é a forma na qual o desejo do sujeito se apoia (Lacan, 1959-1960/1997, p. 125-126).

Nesse sentido, a colocação do “a” na fórmula da fantasia denota sua função imaginária de engodar o sujeito a respeito de das Ding na sua relação com o desejo. Tal função, advertimos, é distinta daquela que situa o objeto a como o elemento de real que escapa da operação simbólica, e sustenta a compulsão à repetição, formulada no Seminário 17 (Lacan, 1969-1970/1992). Ainda assim, isso não deixa de evocar a relação do sujeito com os objetos que são produzidos para sustentar o semblante de objeto a, as “latusas”, conforme o Seminário 17 (Lacan, 1969-1970/1992, p. 179), ou os “gadgets”, conforme o Seminário 20 (Lacan, 1972-1973/1985, p. 110).

Essa vertente nos coloca diretamente de frente para o problema de situar a sublimação na contemporaneidade, pois a questão consiste em entender como esse lugar, concedido à Coisa no tocante à sublimação, pode ser contemplado tendo em vista a pluralidade de objetos (gadgets) que são oferecidos pelo laço social capitalista para a satisfação dos sujeitos. É possível que algum desses objetos seja elevado à dignidade de Coisa?

Se todos os objetos, inclusive o precioso objeto feminino, são produzidos e lançados na série dos objetos prontos para gozar, e se, igualmente, a compulsão que essa oferta de gozo provoca é partidária da entropia sintomática do laço social contemporâneo, como formalizar um modo de gozo próximo ao que se pode formular da sublimação? Será que a criação literária, artística, ou mesmo o trabalho filosófico e científico ainda podem ser colocados no lugar que Freud os colocou, como propícios a oferecer uma via sublimatória, ou ainda, num lugar com a dignidade atribuída à Coisa?

Estamos confrontados com o desafio de definir o que é ou não sublimação no vasto campo de produções contemporâneas de objetos ofertados para a satisfação. Ou, para dizer de outro modo, separar o que são os gadgets do que seria um objeto no lugar da Coisa produzida pela sublimação. De início, isso nos colocaria, paradoxalmente, no campo do Ideal, que Freud cuidou demarcar do lado do objeto idealizado. Nesse sentido, seria como se fosse possível propor o caráter ideal de um objeto apto a ter sido coisificado. Além disso, trata-se de uma questão enganosa, exatamente porque, no laço social contemporâneo, praticamente tudo está apto a se tornar produto de mercado: mesmo a mais sublime produção artística não escapa de ser incluída na série dos gadgets que o homem do nosso tempo poderá adquirir em sua busca do acesso a um gozo pleno.

É possível tomar esse problema a partir da distinção que Lacan (1959-1960/1997) evoca de Marx a propósito do valor de uso e do valor de troca: os objetos produzidos pelo trabalho humano de criação, ao serem lançados no mercado, não escapam de uma associação a um valor que pode ser denominado de troca, um valor simbólico, não coincidente com o valor real de seu uso. O valor de uso, do modo como o articulamos, ultrapassa o campo restrito da necessidade, destacando justamente o que importa ao gozo como satisfação da pulsão.

Se, pois, uma produção foi apta a abrir uma via de satisfação sublimatória ou sintomática, isso é algo que não se obriga a ficar claro, a ser expressamente representado pelo valor de troca que a coisa ganha.9 Assim, não se trata de transformar uma bugiganga numa Coisa de valor, mas de demonstrar que o mercado, ao capitalizar a Coisa produzida, injetando-lhe um valor fálico, recalca precisamente o valor de gozo envolvido em sua produção. Desse modo, o produto, objeto da criação, por mais sublime que pareça, tem pouco a dizer sobre seu uso sintomático ou sublimado, já que, depois do objeto pronto, seu sentido passível de ser alcançado no laço social não é absolutamente demarcável. Um objeto que ganhe certa importância na cultura, com todo o potencial de evocar a satisfação sublimatória, pode, num segundo tempo, ser empregado corriqueiramente como uma quinquilharia qualquer, como mais um objeto disponível ao gozo.

Portanto, se fôssemos levantar alguma ressalva ao valor social da sublimação, tal como foi definido aqui, pelo enlaçamento ao Outro, situá-la-íamos apenas na concepção de gozo mais tardia no ensino de Lacan. Miller a destaca da seguinte maneira:

Lacan chega até a inserir a sublimação e a nos dar desta uma versão que não implica o Outro. É o cúmulo, pois o essencial no que Freud pôde elaborar sobre a sublimação, cujo termo ele inventou, e cuja dimensão ele captou é, precisamente, o reconhecimento inevitável pelo Outro. Com certeza, Lacan explorou a conexão entre a sublimação e o reconhecimento pelo Outro. A sublimação só encontra seu acabamento na satisfação do Outro. Ora, em Mais, ainda, Lacan nos dá uma versão da sublimação que não implica o Outro e que é a própria saída da palavra do gozo, da palavra solitária [gozo do blá-blá-blá, que não inclui o Outro]. [...] Lacan indica-nos, verdadeiramente, que é no lugar do gozo Uno que a sublimação encontra seu verdadeiro fundamento (Miller, 2000, p. 104).

Apesar desse apontamento do Miller, manteremos nossa opção de não nos desviar para essa abordagem que se desloca do Outro para demarcar o gozo do Um, já que o caminho que percorremos permite esclarecer a leitura lacaniana do valor social da sublimação, essencial em Freud. Ainda assim, é interessante destacar que, ao evocar a formulação de Miller (2000, p. 157-158) a propósito do modo de gozo dândi,10 Santiago (2007) lança mão de uma expressão curiosa. Ele diz que, ao elevar os pequenos nadas à dignidade da Coisa, nomeia-se a estratégia subjetiva do dândi com a alcunha de uma “sublimação perturbadora”. É perturbadora porque, em contraste com o que ocorre na sublimação artística, o produto do modo de gozo dândi não circula, não enlaça e nem sequer se dirige ao Outro. “Nela não há Outro do qual seria necessário assegurar a satisfação” (Santiago, 2007, p. 33), mas a própria estratégia é definida pelo recurso exagerado a um artifício de semblante de impassibilidade. O dândi usa os gadgets como “fiador sexual”, para garantir seu modo de gozo, escapando à operação arriscada de referência ao desejo do Outro.

Nesse sentido, podemos questionar se esse caráter perturbador não torna esse gozo muito mais próximo do sintoma do que da sublimação, de modo que insistimos em manter, para determinar a sublimação, a relação que Freud inicialmente demarcou com o laço social. De qualquer maneira, não há como antecipar o valor que o objeto ganha, no momento de sua produção, para o seu criador. Não há, ainda mais precisamente, como prever as ressonâncias que ele provocará em sua imersão no laço social, nem os usos que dele serão feitos. É por isso que Miller destaca a expressão lacaniana “modos de gozo” como a via que talvez sirva para demarcar a diversidade na maneira de ser de uma substância gozante, ou seja, a variedade dos modos como o gozo pode se configurar no laço social (Miller, 2005, p. 150).

O que se pode afirmar, contudo, como uma positividade do objeto sublimado, é a função que ele ocupa na conjugação entre as formas valorativas de seu uso e o intercâmbio dessa valoração. Ora, ao estabelecer-se como uma vicissitude entre outras possíveis à pulsão, a sublimação provoca uma quebra na monotonia do campo do Outro. Ao emprestar ao objeto uma dignidade de Coisa, rompe-se a constância estrutural do campo do Outro, isto é, cria-se uma fissura no atrelamento enfadonho significante-significado, e, por consequência, revela-se a arbitrariedade das organizações discursivas, bem como o vazio nuclear que a sustenta. A sublimação, numa assertiva direta, implica o deixar-se ver da Coisa na sua cintilância.

 

Conclusão

A título de conclusão, podemos retomar a proporção anteriormente visada: a de que o chiste está para o lapso assim como a sublimação está para o sintoma. Tanto no chiste quanto no lapso, o resultado é uma frase que indica a quebra da estabilidade do discurso corrente. A mesma semelhança, contudo, não se mostra em seus efeitos, nas tendências envolvidas em sua produção: no lapso, o material recalcado, ao se apresentar, recua no momento exato de sua apresentação. Seu efeito é, nessa medida, de uma instantaneidade prazerosa ou desprazerosa que é logo recalcada. Por sua vez, o chiste produz um efeito diferente, conforme ele se alastra no laço social, exatamente porque foi assentido pelo Outro. “Ao romper, mediante jogos de palavras, os limites convencionais colocados pelas regras do uso da linguagem, o chiste nos permite igualmente franquear os limites do pudor que nos retém pelo recalque” (Teixeira, 2007, p. 26).

O uso do chiste, portanto, evoca uma satisfação que se dissemina, usando a incompletude do Outro para apontar uma dimensão não antevista, porém consentida, que o torna risível tanto para o sujeito que o produziu, quanto para a plateia que o autoriza. A relação entre o sintoma e a sublimação parece ser similar. Ambos extraem prazer, ambos são vias de satisfação da pulsão, porém há uma relação diferencial dos efeitos de satisfação ocasionados ao sujeito no interior do laço social. Um busca, de seu lado, esconder o vazio, a falta que o campo do Outro evoca, fixando um significante substituto, enquanto a outra se vale desse vazio para evocar uma satisfação cujo alcance social pode ser destacável. Não sem razão, Lacan mostra que a arte e seu potencial criativo ao redor do vazio constitui o paradigma de um certo saber-fazer da falta (Lacan, 1959-1960/1997, p. 162). A arte, portanto, não nega o vazio, evitando-o ou suplantando-o com o saber, mas cria, tem sua existência a partir dele.11

Desse modo, assim como o chiste se constitui como um fenômeno contingente ao campo discursivo em que ele se apresenta, sendo necessário um repertório linguageiro comum para que seu efeito seja compartilhado, torna-se importante destacar que os efeitos sublimatórios também apresentam esses limites. Os objetos da sublimação também são contingentes ao campo de sua mostração, de modo que poderíamos confirmar um lugar para a sublimação apesar da apropriação de sua produção pelo capitalismo (a indústria de consumo), impossível de ser evitada, assim como também não se pode antecipar o modo como os sujeitos gozarão dos produtos da cultura. O valor social fálico do objeto, nesse sentido, torna indecidível a questão da via de satisfação envolvida numa produção, de modo que apenas é possível esclarecê-la incluindo-se a relação do sujeito com o gozo envolvido nessa produção, bem como o valor de satisfação evocado no laço social: na plateia que ratifica a criação em cada caso.

 

Referências

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Texto recebido em novembro/2008.
Aprovado para publicação em março/2009.

 

 

* Mestrando do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Laboratório de Psicanálise da UFMG, e-mail: fabio.siloe@gmail.com
** Mestrando do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Laboratório de Psicanálise da UFMG, e-mail: marcelofgsouza@gmail.com
*** Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Laboratório de Psicanálise da UFMG, e-mail: moises.aj@gmail.com
1 Trabalho apresentado em forma resumida como comunicação no II Colóquio Internacional de Psicanálise e Filosofia – Dez encontros
2 Cabe ressaltar, para que se desfaça a dúvida da coincidência entre das Ding e objeto a, que são conceitos pertencentes a momentos distintos do pensamento de Lacan. Depois do Seminário 7, das Ding desaparece progressivamente das referências lacanianas sendo, contudo, articulada a partir da noção de objeto a
3 Tradução livre do português galego. A versão original pode ser encontrada em: El-Rey D. Diniz. Projeto Vercial: poesia trovadoresca [on-line]. Disponível em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/trovador.htm. (Acessado em: 7-11-2008)
4 “Introduzamos aqui dois termos: chamemos de objeto sexual a pessoa de quem provém a atração sexual, e de alvo sexual [ou tendência] a ação para a qual a pulsão impele” (Freud, 1905/1996, p. 128)
5 Algumas inflexões específicas desses alvos provisórios podem indicar, em vez de uma sublimação, um sintoma (fixação) ou uma perversão (restrição aos genitais, superação do asco e suplantação do alvo sexual normal) (Freud, 1905/1906, p. 148)
6 “Na medida em que a sublimação descreve algo que tem que ver com o instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro” (Freud, 1914/1996, p. 101)
7 Para abordar esse tema em Lacan, talvez seja mais interessante a perspectiva do gozo do corpo, que “não cessa de não se escrever” (Lacan, 1972-1973/1985). Entretanto, seguir essa linha representaria um desvio do alvo deste artigo
8 “Acaso não sabemos que o chiste é o lapso calculado, aquele que tira proveito do inconsciente? Isso se lê em Freud sobre o chiste. E como o inconsciente não pensa, não calcula, etc., isso é ainda mais pensável” (Lacan, 1973/2003, p. 542-543)
9 Um exemplo desse fato foi a obra de Marcel Duchamp, expoente da arte conceitual. Seu trabalho sobre o ready made – a transposição de objetos de uso comum ao estatuto de arte – ilustra com precisão que desejamos colocar aqui: essa divisão nublada entre um objeto de uso utilitário, elemento da vida cotidiana, e o objeto considerado obra de arte, e que se presta a ser destacado entre os demais
10 Um dândi é todo homem ou mulher que dá importância particular à sua aparência física, de língua refinada e do cultivo de passatempos calmos. Essas pessoas não têm outro status a não ser o de cultivar a ideia de beleza em suas próprias pessoas, de satisfazer suas paixões de sentir e de pensar. Para Miller: “Há um modo de gozo dândi que consiste em se mostrar sempre impecável, sem se curvar, superior a tudo, impassível e impossível de ser surpreendido. O modo de gozo dândi implica uma disciplina severa, uma verdadeira ascese, da qual Baudelaire fazia o heroísmo moderno, porque, no fundo, realizado em perda pura. É uma ascese vã, toda vaidade, em todos os sentidos do termo, pois é centrada no nada” (Miller, 1995, p. 157)
11 Lacan utiliza-se da metáfora heideggeriana do vaso para exemplificar a sublimação que cria a partir do vazio, do nada que compreende o objeto a: “Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 151-152). O vazio, esse nada central, nesse caso, o objeto a, só pode ser tomado como algo que está ali, mesmo que inapreensível, a partir do momento em que o barro o envolve. O vaso não é apenas o barro, mas o barro que envolve o vazio, que, por sua vez, dá forma ao barro. O Outro é a linguagem que se articula ao redor do objeto a, que, por sua vez, é tomado como o vazio que dá forma ao vaso.

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