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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.1 Belo Horizonte abr. 2009

 

ARTIGOS

 

 

Saúde da mulher e práticas de governo no campo das políticas públicas

 

Women’s health and government practices in public policies

 

La salud de la mujer y las prácticas de gobierno en el campo de las políticas públicas

 

 

Betina HillesheimI*; Vera da Costa SomavillaI**; Gisele DheinII***; Lutiane de LaraII****

IUniversidade de Santa Cruz do Sul
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Este trabalho resulta da pesquisa Políticas de saúde: um estudo sobre as práticas cotidianas em uma maternidade, desenvolvida em um hospital regional no interior do Estado do Rio Grande do Sul, entre 2004 e 2005. Buscou-se discutir, a partir de Michel Foucault, como se compõem os campos de saber e as relações de poder que se organizam em torno do sujeito mulher, a partir de determinadas tecnologias de governo voltadas para a saúde da mulher. Ao compreender o campo da saúde como um modo de experiência historicamente singular, interroga-se como, mediante determinados procedimentos de governo, objetiva-se o sujeito mulher. Discute-se como os discursos presentes nas políticas públicas em saúde ditam determinadas formas de viver, prescrevendo os cuidados que a mulher deve ter com seu corpo, os procedimentos adequados, as relações com seus filhos, com sua família e com a equipe de saúde.

Palavras-chave: gênero; identidade; políticas públicas de saúde; saúde da mulher.


ABSTRACT

This paper results from the research work Health policies: a study on daily practices in a maternity facility, developed in a regional hospital in Rio Grande do Sul State between 2004 and 2005. Starting from Michel Foucault’s perspective, it discusses how knowledge and power relations organized around the subject “women” are produced, considering certain government technologies aimed at women’s health. Understanding the field of health as a historically unique experience, it questions how some government procedures objectify that subject. Therefore, it considers how discourses present in health public policies dictate certain forms of life by prescribing the care women should have with their bodies and appropriate procedures, as well as relations with their children, families and the health team.

Keywords: gender; identity; health public policies; women’s health.


RESUMEN

Este trabajo resulta de la pesquisa Políticas de salud: un estudio sobre las prácticas cotidianas en una maternidad, desarrollada en un hospital regional en el interior del estado de Rio Grande do Sul, entre 2004 y 2005. Se trató de discutir, a partir de Michel Foucault, como se componen los campos de saber y las relaciones de poder que se organizan con respecto al sujeto mujer, partiendo de determinadas tecnologías de gobierno destinadas a la salud de la mujer. Al comprender el campo de la salud como un modo de experiencia históricamente singular, se interroga cómo, mediante ciertos procedimientos de gobierno, se objetiva el sujeto mujer. Además, se discute cómo los discursos presentes en las políticas públicas de salud dictan determinadas formas de vivir, prescribiendo los cuidados que la mujer debe tener con su cuerpo, los procedimientos adecuados, las relaciones con sus hijos, con su familia y con el equipo de salud.

Palabras-clave: género; identidad; políticas públicas de salud; salud de la mujer.


 

 

Introdução

Este artigo resulta de uma pesquisa intitulada Políticas de saúde: um estudo sobre as práticas cotidianas em uma maternidade, desenvolvida em um hospital regional no interior do Estado do Rio Grande do Sul, entre 2004 e 2005. Neste estudo, buscamos discutir, a partir das contribuições de Michel Foucault, como se compõem os campos de saber e as relações de poder que se organizam em torno do sujeito mulher, a partir de determinadas tecnologias1 de governo voltadas para a saúde da mulher.

Uma vez que, de acordo com Foucault (2004), toma-se como fio condutor da análise as relações entre sujeito e verdade, isso implica “um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos” (p. 237), invertendo-se o procedimento filosófico de remeter a um sujeito constituinte e voltando-se para as práticas concretas pelas quais se constitui esse sujeito. Trata-se, assim, de uma forma específica de interrogação, a partir de determinadas ferramentas conceituais, tais como ontologia do presente, saber/poder, regimes de verdade, governamentalidade e modos de subjetivação.

Conforme se compreendem as formas de subjetivação como práticas que se instituem no cotidiano, as quais forjam determinados modos de relação que as pessoas estabelecem consigo e umas com as outras, entendemos a área da saúde da mulher como um campo de produção de sujeitos. Assinalamos que, no campo da saúde, são produzidos programas e políticas voltados para a população, os quais tomam determinadas configurações de acordo com as articulações que se estabelecem em cada momento histórico.

Assim, analisamos, primeiramente, como se constitui, em nosso País, o campo de saúde da mulher, buscando compreender suas curvas de visibilidade e regimes de enunciabilidade, os quais produzem formas de ver e falar sobre as mulheres. A seguir, explicitamos algumas temáticas e espaços de intervenção que são constituídas pelas políticas públicas de saúde da mulher, discutindo como, mediante determinados procedimentos de governo, objetiva-se, para si e para os outros, o sujeito mulher. Nesse sentido, ser mulher é desprendido de quaisquer significados universais, sendo que tudo que se aplica a uma noção de natureza ou essência feminina exige ser experimentado, indagando-se sobre as condições que possibilitam, de acordo com as regras do dizer verdadeiro ou falso, com que um sujeito se reconheça ou seja reconhecido como mulher.

A análise se deu por observações não estruturadas do cotidiano da maternidade do hospital referido anteriormente, ocorridas em turnos variados. As observadoras integraram-se à rotina da equipe, focalizando as ações dos(as) profissionais, as relações que se estabelecem com as pacientes e as relações entre profissionais. Também foram observados o fluxo de atendimento, as rotinas do serviço, os prontuários e documentos produzidos no setor (avisos, murais, materiais de divulgação...).

Entendemos a observação como um ato que implica duas dimensões do mesmo agir: investigar e participar, isto é, investigar, participando e, participando, investigar (Silva, 1990), estabelecendo-se, dessa forma, um campo de trocas entre pesquisador(a) e sujeitos. No caso de uma observação não estruturada, os elementos a serem observados não estão determinados previamente, mas são definidos a partir da própria ação de observação (Alves-Mazzotti, 1999).

Concomitantemente, analisamos os documentos produzidos na unidade relativos à saúde da mulher, assim como as políticas de humanização, programa de aleitamento materno e hospital amigo da criança.

 

A saúde da mulher: formas de ver e falar

Os discursos que forjam, atualmente, as práticas em saúde direcionadas à mulher remontam às verdades que sustentam o cuidado com o corpo feminino. A emergência dos discursos/verdades sobre a saúde das mulheres no Brasil configura-se no plano das políticas públicas em saúde, como a Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher – PAISM.

Costa & Aquino (2002) assinalam que, até a década de 1970, a saúde da mulher caracterizava-se por uma ênfase pronatalista, o que se traduzia nas políticas públicas de saúde em ações voltadas, preferencialmente, para o ciclo gravídico-puerperal. Assim, a partir de um discurso calcado em argumentos biológicos, reiterava-se a naturalização das diferenças entre os sexos, produzindo uma mulher/mãe.

De acordo com esses autores, no mesmo período, com o processo de democratização da saúde, constituiu-se o cenário ideal para o questionamento do modelo vigente de atenção à saúde das mulheres. A criação do PAISM, em 1983, representou um marco histórico das políticas públicas voltadas às mulheres; a integralidade passa a ser vista como resultado de uma atitude ética e técnica dos(as) profissionais e uma adequação da estrutura dos serviços de saúde em seu todo.

Os movimentos sociais, especialmente os de mulheres, tiveram um papel decisivo na construção dessa agenda de reforma, reivindicando tanto a democratização das decisões e resultados como o acesso aos serviços públicos e a melhoria das condições de vida. Especificamente no que se refere aos movimentos de mulheres, ao mesmo tempo em que denunciavam desigualdades de classe, passaram a discutir temas relativos à condição da mulher, tais como sexualidade, contracepção, violência, aborto, etc. A partir disso, houve uma convergência com o movimento feminista, o qual, diferentemente dos movimentos com participação de mulheres, elegia como foco a superação das desigualdades presentes nas relações entre homens e mulheres, incluindo na agenda pública a questão de gênero (Farah, 2004).

Desse modo, as mudanças de abordagem nas políticas de saúde da mulher resultaram da convergência de interesses e concepções do movimento sanitário e do movimento feminista, irradiando-se, dentro da rede de serviços de saúde, um novo pensar e agir sobre a questão da mulher (Costa & Aquino, 2002). A partir dessa interlocução entre representantes dos movimentos de mulheres e os profissionais da área da saúde, consolidou-se a ideia de atenção integral à saúde da mulher presente no PAISM. O conceito de integral deveria não só enfatizar a ligação do colo, do útero e das mamas, mas também de outros aspectos não físico-biológicos da vida das mulheres. Ou seja, o atendimento em saúde deveria estar norteado por uma abordagem das mulheres como seres completos, não apenas como partes isoladas de um corpo, mas pessoas que vivem um momento emocional específico e estão inseridas em um determinado contexto socioeconômico.

O PAISM foi anunciado como uma abordagem diferenciada de saúde da mulher, a partir do rompimento da visão tradicional, principalmente no âmbito da Medicina, que centrava o atendimento às mulheres nas questões reprodutivas. Um dos aspectos salientados como um salto de qualidade foi a inclusão, nas políticas públicas de saúde, da contracepção, a partir do entendimento da mulher como sujeito ativo no cuidado de sua saúde, considerando todas as etapas de vida (Giffin, 1991).

Para Osis (1998), durante a década de 1970, os movimentos de mulheres caracterizaram-se pelo combate à ideia de planejamento familiar presente na atuação da Bemfam (Bem-Estar Familiar no Brasil), o qual postulava a noção de que a superação da pobreza relacionava-se com a diminuição da natalidade. Dessa maneira, algumas suspeitas surgiram em relação a uma possível vinculação do PAISM à questão do controle populacional, sobretudo em vista do momento em que o programa foi lançado, exatamente quando o governo brasileiro sofria pressões externas para adotar uma política demográfica explícita e justamente durante uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar o crescimento populacional.

Entretanto, a autora considera que um dos pontos cruciais do PAISM foi justamente a inclusão da anticoncepção como uma das atividades da assistência integral à saúde da mulher, uma vez que esta se contrapunha às concepções disseminadas pela Bemfam2, por exemplo. Assim, o PAISM buscou romper com o enfoque central dos programas de saúde materno-infantil anteriores, os quais visavam a intervir sobre os corpos das mulheres-mães, assegurando que os corpos dos filhos fossem adequados às necessidades de reprodução social (Osis, 1998).

A partir dessa breve contextualização, podemos distinguir dois momentos no campo da saúde da mulher: antes e depois da criação do PAISM. Assim, torna-se necessário problematizar o que os autores citados acima marcam como uma mudança na forma de pensar a saúde da mulher, indagando-se como isso incide sobre o sujeito-mulher, a partir de determinados jogos de força.

De acordo com Deleuze (2005), “Foucault explica que os enunciados são, essencialmente, raros” (p. 14), porém, “o que nos faz estranhar, quanto aos enunciados, [é que] não só [...] poucas coisas sejam ditas, mas que poucas coisas possam ser ditas” (p. 15).

Os enunciados não são palavras, frases ou proposições, mas formações que apenas se destacam de seus corpus quando os sujeitos da frase, os objetos da proposição, os significados das palavras mudam de natureza, tomando seu lugar no “diz-se”, distribuindo-se, dispersando-se na espessura da linguagem (Deleuze, 2005, p. 29).

Para esse autor, seguindo um paradoxo constante em Foucault, a linguagem só se agrega a um corpus para constituir tanto em meio de distribuição como de dispersão dos enunciados, sendo que, assemelhando-se a um caleidoscópio, tudo muda, conforme o corpus considerado e a diagonal que se trace. Como critério de escolha do corpus, Foucault elege os focos difusos de poder acionados por determinado problema.

Marcello (2004), ao discutir o que denomina como “dispositivo da maternidade”, o qual se alicerça em três grandes eixos – saber, poder e (produção de modos de) subjetivação – aponta que as curvas de visibilidade e regimes de enunciabilidade permitem a criação do sujeito-mãe, sendo que essas curvas e regimes são fixados pelo próprio dispositivo que os sustentam. Não se trata de compreender a maternidade como natural, mas “como se agisse tal qual uma fonte de luz que ilumina, se difunde e dá visibilidade, fazendo com que se produza o sujeito-mãe em toda sua positividade” (p. 201).

Nessa perspectiva, podemos perguntar: o que pode ser dito sobre as mulheres no campo da saúde, a partir de determinadas relações de força e formas de saber que lhe são correlatas?

Considerando-se essa ideia de “dispositivo da maternidade”, o qual, mediante práticas discursivas e não discursivas, constitui sujeitos-mães, podemos pensar que as políticas públicas voltadas para a saúde da mulher organizam-se em torno de um produzir materno, seja por enfatizar as questões reprodutivas, tal como ocorria até a década de 1970, seja por buscar uma atenção integral à saúde da mulher, tal como é a proposta do PAISM. Assim, concordamos com a afirmação de Marcello (2004), que postula que o “dispositivo da maternidade”, mais do que fazer ver e dizer uma maternidade hegemônica, ocupa-se em fazer ver e dizer diferentes modalidades maternas (maternidade adolescente, homossexual, após os 40 anos, solteira, etc.), fazendo-as visíveis e dando-as a conhecer, especialmente em suas diferenças.

Dessa maneira, podemos entender que as questões reprodutivas seguem centrais nos dois momentos de pensar-se a saúde da mulher, seja para afirmá-las como parte de uma suposta essência feminina, seja para reivindicar outras formas de atenção à saúde e de direito ao corpo, incluindo o aborto, a contracepção, as relações entre homens e mulheres, entre outros temas. Nesse sentido, foram construídas diferentes soluções para um problema, compreendendo-se que essas diferentes soluções resultam de uma forma específica de problematização (Foucault, 2004). Porém, podemos dizer que “o que está em jogo, nesses locais de visibilidade e de enunciação de nosso tempo, é o incessante produzir materno” (Marcello, 2004, p. 202).

Ao interrogar sobre o campo de saúde da mulher, sobre os discursos que o constituem como um objeto de saber-poder, é necessário voltarmo-nos para o conjunto de práticas que produzem o sujeito mulher, usando-se determinadas técnicas, ferramentas e categorias para construir, examinar e intervir sobre esse sujeito.

Com a análise realizada, podemos extrair alguns enunciados, a partir de determinadas áreas de dizibilidade e visibilidade3, que se multiplicam nos documentos, nas falas de profissionais e usuárias(os), no espaço hospitalar, compondo o campo da saúde da mulher. Para se extrair os enunciados – que, como apontado anteriormente, são raros – é necessário um trabalho de polimento, recortando-os, moldando-os, recolhendo-os em sua totalidade e multiplicando-os. Não se trata, assim, de interpretações, de buscar um sentido oculto nas frases ou proposições, mas, como assinala Deleuze (2005), ater-se à inscrição do que é dito.

Poucas coisas assim podem ser ditas sobre as mulheres, entre as quais destacamos: 1) elas existem; 2) são diferentes dos homens; 3) são mães. Nessa perspectiva, fundamenta-se a existência de uma área de saúde da mulher, com políticas públicas específicas. Tal área fica naturalizada, visto a fixação do sujeito-mãe no discurso que o tornou objeto. A título de ilustração, sublinhamos a existência, nos currículos de alguns cursos da área da saúde, de uma disciplina denominada “Saúde da Mulher”, havendo como correspondente não uma “Saúde do Homem”, mas uma “Saúde do Adulto”, justificando-se a partir de argumentos embasados nas diferenças biológicas entre os sexos (os quais, entretanto, além de excluir a mulher da categoria “adulto”, acabam por fixar somente a mulher no âmbito da saúde reprodutiva).

Assim, tais enunciados combinam-se de várias maneiras no campo da saúde da mulher, forjando verdades que correspondem à construção de lógicas específicas e organizando, em torno do sujeito-mãe, estratégias de poder, formas de saber e modos de relação consigo e com os outros. Nessa vontade de verdade, proliferam enunciações que reúnem condições de entrar na ordem do discurso, como, por exemplo: o parto normal traz mais vantagens para a mulher e para o bebê; mamar no peito é mais vantajoso para a mulher e para o bebê; quem ama amamenta.

Nardi e Silva (2005) afirmam que, se a produção de verdade relaciona-se ao saber que os sujeitos usam para compreenderem a si mesmos, cada verdade sustenta um ideal para determinado grupo, cultura e sociedade, servindo tanto para justificar formas de dominação quanto de resistência. Assim, tomando-se os enunciados sobre a saúde da mulher, evidencia-se que se vai (con)formando uma forma de ser mulher, a partir das práticas em saúde voltadas para elas: uma mulher que deve ser vista como diversa (mas é predominantemente heterossexual e mãe); cujo corpo é marcado pelas questões reprodutivas; sujeito de direitos – mulher cidadã; sendo que a assistência, ao mesmo tempo em que deve ser de qualidade e com garantia de acesso às tecnologias, deve assegurar o uso de formas naturais e mais adequadas à saúde da mulher e do bebê (ou seja, parto normal e amamentação ao seio).

Ao fazermos esta discussão, não buscamos apontar se tal construção é “certa” ou “errada” (defendendo, por exemplo, que um modo de amamentar é melhor ou pior do que outro). O propósito é mostrar que tais verdades não são eternas ou naturais, mas se produzem a partir de determinadas linhas de força que traçam o que pode ser visto e dito em determinada época, compondo o campo da saúde da mulher. Trata-se, portanto, de compreender esses discursos como práticas, os quais formam, sistematicamente, o objeto mulher sobre o qual falam, sendo que, para a mulher, articulada pelo dispositivo da maternidade, as políticas públicas em saúde reservam determinadas formas de cuidado de si e do outro (no qual a figura do bebê ocupa um lugar central).

 

Das políticas públicas aos espaços e temáticas: produção de sujeitos

Considerando-se que a presente pesquisa focalizou a saúde da mulher como um campo de produção de sujeitos e que as políticas e programas direcionados a essa população articulam-se a novos objetos, constituindo distintos modos de subjetivação, cabe indagar quais espaços e temáticas são constituídos pelos diferentes discursos que forjam o SUS.

Como trazido anteriormente, até a década de 1970, as políticas públicas direcionadas para a saúde da mulher tinham um caráter voltado apenas para as questões reprodutivas, sendo que, com a criação do PAISM, essa área passa a ser foco de investimentos, abarcando princípios que mais tarde seriam incorporados na própria concepção do SUS (por exemplo, a noção de integralidade).

Para o Ministério da Saúde (BRASIL, 2005), o processo de construção do SUS tem grande influência sobre a execução do PAISM. O SUS vem sendo implementado com base nos princípios e diretrizes contidos na legislação básica: Constituição de 1988, Lei n.º 8.080 e Lei n.º 8.142, Normas Operacionais Básicas (NOB) e Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS), editadas pelo Ministério da Saúde. Particularmente com a implementação da NOB 96, consolida-se o processo de municipalização das ações e serviços em todo o País. A municipalização da gestão do SUS vem constituindo-se num espaço privilegiado de reorganização das ações e dos serviços básicos, entre os quais se colocam as ações e os serviços de atenção à saúde da mulher.

Ao interrogar sobre como as políticas públicas de saúde (con)formam as práticas hospitalares, não pretendemos averiguar uma suposta adequação das políticas às ações realizadas pelos(as) profissionais de saúde, uma vez que discurso e prática não podem ser dissociados. Também não consideramos aqui uma relação vertical de poder, com um único centro irradiador, a partir do qual se entenderia que as políticas públicas seriam resultantes de diretrizes definidas exclusivamente pelo Ministério da Saúde. Mas, acompanhando Foucault, entendemos que “não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (Machado, 1979, p. X). Trata-se, assim, não de um poder central, mas de micropoderes, que se situam na vida cotidiana, em todo o corpo social – e não acima dele – e que intervém na realidade mais concreta dos indivíduos, isto é, nos seus corpos.

Ao pensar nas práticas engendradas pelos discursos sobre saúde da mulher, devemos atentar para a dinâmica desta constituição: diretrizes ministeriais, movimentos sociais, relações na maternidade de um hospital regional. Apesar das estratégias de poder de um Estado centralizado, apontamos que

[...] Os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e, neste complexo, os micropoderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido muito relevante ou decisiva para as suas análises (Machado, 1979, p. XII).

A partir disso, discutimos a interseção entre algumas temáticas que emergiram durante a análise dos dados – entre as quais destacamos a humanização e questões relativas à identidade/diferença – e espaços de intervenção – a mulher, a família, o bebê e a própria equipe de saúde. Salientamos que a discussão dessas temáticas e dos espaços de intervenção constitui um recorte específico, delimitado pela perspectiva teórica assumida neste estudo.

A temática da humanização permeia todos os documentos analisados, assim como as observações realizadas no hospital. O PNAISM4 afirma a humanização como um princípio, alertando que a humanização da atenção em saúde [...] é um processo contínuo e demanda reflexão permanente sobre atos, condutas e comportamentos de cada pessoa envolvida na relação. É preciso maior conhecimento de si, para melhor compreender o outro com suas especificidades e para poder ajudar sem procurar impor valores, opiniões ou decisões. Os manuais do Ministério da Saúde enfatizam, de forma geral, a importância da atenção humanizada, buscando sensibilizar as equipes de saúde para os aspectos emocionais, culturais e socioeconômicos envolvidos em uma política de atenção integral à saúde.

Por outro lado, outra temática que atravessa os documentos, embora de forma menos perceptível, é a questão referente à identidade/diferença. Tal temática tem uma vinculação estreita com o movimento feminista, o qual, conforme Hall (1997), trouxe consigo as discussões referentes às políticas de identidade. Para esse autor, as sociedades contemporâneas caracterizam-se pelas diferenças, pois vêm sofrendo mudanças estruturais, as quais têm fragmentado as paisagens culturais (de gênero, classe social, sexualidade, raça, etnia, nacionalidade, etc.) que, até então, possibilitavam aos indivíduos uma referência estável no mundo social. Desse modo, as sociedades modernas são permeadas por diferentes divisões que produzem distintas identidades para os indivíduos. Ressalta-se ainda que identidade não é entendida aqui no sentido tradicionalmente proposto pela Psicologia, mas como posições de sujeitos, as quais não são fixas, mas móveis e continuamente (trans)formadas de acordo com as formas pelas quais os indivíduos são interpelados pela cultura.

Fischer (2001) traz a discussão de Foucault sobre os “anormais” para que se compreendam as disputas contemporâneas no que se refere à identidade/diferença. Para a autora, as lutas em torno do respeito à diferença organizam-se em torno de grupos que se confrontam com o poder e são classificados a partir de parâmetros de normalidade/anormalidade, ao mesmo tempo em que sofrem uma captura institucional a partir da própria afirmação da diferença.

Percebe-se, assim, que essa temática se faz presente nos diferentes documentos analisados, especialmente quando alertam para as questões de classe social, raciais, étnicas, religiosas, assim como diferenças regionais. O documento no qual essa preocupação fica mais explícita é o manual que trata da Atenção à Saúde das Mulheres Negras, o qual se filia ao princípio do SUS que trata da equidade, porém todos os outros também abordam, sob distintos ângulos, os aspectos relativos às políticas de identidade. Cabe apontar ainda que, seguindo a ideia da autora acima citada, conforme tais diferenças são afirmadas, também acabam “capturadas” pelo discurso das instituições, ou seja, passa-se a prescrever formas de viver e de se relacionar que contemplem as chamadas diferenças.

Tais temáticas imbricam-se5 em espaços de intervenção específicos: a mulher, a família, o bebê e a equipe de saúde. Tais espaços são marcados de formas distintas, sendo que sua interseção vai compondo o campo de saúde da mulher. Assim, por exemplo, o Manual de Assistência Pré-Natal (2000), ao trazer a importância de ações de educação em saúde, assinala que as gestantes constituem o foco principal do processo de aprendizagem, porém não se pode deixar de atuar, também, entre os companheiros e familiares, enfatizando sempre a importância de qualificação da equipe no sentido de desenvolver uma atenção integral de saúde, visto que este tem a oportunidade de colocar seu conhecimento a serviço do bem-estar da mulher e do bebê [...].

Ao tomar-se o parto como um analisador, é interessante apontar que, embora as temáticas de humanização e de identidade/diferença se façam presentes6, na definição de regras que regulam os nascimentos, há ainda a supremacia do discurso médico, privilegiando-se assim questões fisiológicas, as quais são tidas como universais. Tais regras determinam o local correto de ocorrer o parto, as posições que a mulher deve assumir, as pessoas que devem/podem assisti-lo, as condutas dos(as) profissionais de saúde, assim como os comportamentos mais adequados para a mulher (inclusive prescrevendo qual a reação que esta deve ter no momento do nascimento do bebê). Os ritos de internação colocam o corpo dentro de rotinas: a mulher deve passar por uma série de procedimentos (exame de toque, enema, tricotomia, banho, punção venosa), usando a roupa do hospital e seguindo as prescrições de como sentir a dor para ter seu filho (tais modelos envolvem deitar de uma determinada forma, respirar em determinado ritmo, ter sua pressão arterial controlada em determinado tempo, caminhar, ficar sob o chuveiro, etc.).

 

Saúde da mulher e práticas de governo: algumas considerações

Para encerrar a discussão aqui proposta, usamos uma frase que guiava uma gincana realizada no hospital durante a semana da CIPA: “Onde tudo começa”. Consideramos que esta frase é significativa na medida em que aponta para as questões de governo, trazendo a ideia de que a vida já começa a ser governada desde antes do nascimento.

A mulher é colocada, assim, sob exame e vigilância constante, a partir de determinadas estratégias que historicamente foram se articulando no sentido de regulação e controle dos corpos. Nessa perspectiva, tais práticas agem sobre corpos individuais, orientando a ação e produzindo sujeitos compatíveis com uma sociedade determinada. Ao trazer como espaços de intervenção também a família, o bebê e a equipe de saúde, pode-se pensar que essas estratégias de governo se refinam, tornando-se mais eficazes.

Foucault (2003) pontua que o problema do governo surge com intensidade no século XVI, a partir de questões muito diversas, tais como, o governo de si mesmo, o governo das almas e das condutas, o governo das crianças, etc. Assim, com o propósito de alcançar determinados objetivos, passa-se a dispor das coisas, utilizando-se mais de táticas do que de leis ou, no limite, usando as leis como táticas, de modo que, mediante determinados meios, seja possível atingir as finalidades desejadas. Nesse primeiro momento, elege-se a família como modelo de governo.

A partir do século XVIII, o grande crescimento demográfico faz aparecer o problema da população, que passa a ser objeto de vigilância, análise, intervenções, etc., esboçando-se o projeto de uma tecnologia da população (estimativas demográficas, expectativa de vida, taxas de morbidade, crescimento de riquezas, taxas de natalidade, desenvolvimento da educação, entre outros). Desse modo, o corpo (tanto do indivíduo quanto das populações) surge como portador de outras variáveis que não somente raros ou numerosos, ricos ou pobres, fortes ou fracos, mas mais ou menos úteis, com maior ou menor chance de sobrevivência, mais saudáveis ou mais doentes, mais ou menos capazes de aprender.

Dessa maneira, a arte de governo ligou-se à emergência do problema da população, cuja perspectiva permitiu afastar definitivamente o modelo da família, recentrando essa noção de economia. Assim, a família, como modelo de governo, deu lugar à população, uma vez que esta última tem regularidades e efeitos próprios à sua agregação, os quais são irredutíveis à família. Entretanto, se a família deixa de ser modelo de governo, passa a ser um segmento privilegiado de intervenção:

[...] Quando se quiser obter alguma coisa da população quanto ao comportamento sexual, quanto à demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é bem através da família que isso deverá passar. Mas a família, de modelo, vai se tornar instrumento, instrumento privilegiado para o governo das populações, e não modelo quimérico para o bom governo (Foucault, 2003, p. 2990).

Assim, a população surge como sujeito de necessidades e aspirações, e também como objeto de governo, marcando o nascimento de uma arte, mediante táticas e estratégias absolutamente novas.

Portanto, nos seus estudos, Foucault busca entender como se dá o governo de si e dos outros mediante a produção de verdades7. Foucault (1987) discute o aparecimento de um poder disciplinar, o qual vem expressar uma outra forma de atualização das estratégias de poder, diferente das sociedades de soberania. A disciplina busca fabricar o que Foucault nomeia como corpos dóceis, aumentando as suas forças (em termos de sua utilidade), ao mesmo tempo em que diminuem essas mesmas forças (em termos da obediência). As práticas disciplinares ocupam-se, em primeiro lugar, do controle, a partir do exame e do esquadrinhamento minucioso do corpo, visando à economia, à eficácia dos movimentos e à sua organização interna – para tal, a disciplina organiza os espaços, regula os tempos e os movimentos. “O corpo humano entra em uma maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (p. 127).

Ao discutir o pan-optismo8, Foucault coloca que este marca não apenas o apogeu de uma sociedade disciplinar, mas também anuncia a transição para a sociedade de controle, sendo que o controle será exercido mediante formas cada vez mais sutis de assujeitamento, “moldando nossos corpos não apenas no exterior, mas, sobretudo do interior, através de uma homogeneização dos nossos modos de pensar, agir e sentir” (Nardi e Silva, 2005, p. 192).

Nardi e Silva (2005) assinalam que, na sociedade contemporânea, a lógica disciplinar não necessita mais de uma visibilidade permanente sobre aqueles sobre os quais se exerce o poder, visto que este se torna mais sutil, instantâneo e eficaz. Há, assim, uma interiorização e invisibilização das normas em todas as esferas da vida a partir da construção de determinadas técnicas de si.

A partir disso, podemos pensar que os discursos sobre saúde da mulher ditam determinadas formas de viver, produzindo modos de subjetivação: sujeitos-mães, mediante a constituição de regimes de verdade. Usando a configuração de determinados espaços e temáticas consideradas pertinentes à saúde da mulher, os quais se articulam ao dispositivo da maternidade, as políticas públicas de saúde marcam o nascimento como estratégia de governo da população, uma vez que

Um novo conceito de saúde que considere a consciência plena de cidadania dos indivíduos exige novas posições e, portanto, novos ordenamentos culturais. A humanização do nascimento – só possível se cidadãos e cidadãs, profissionais de saúde e gestantes, sociedade em geral, assimilarem esses conceitos – pode ser o primeiro passo (Brasil, 2001).

Portanto, se enquanto as políticas públicas de saúde formulam uma “saúde da mulher” e não uma “saúde do homem”, podemos dizer que essa maior visibilidade da mulher se relaciona não com uma maior valorização, mas “como um processo de fabricação de individualidade celular, orgânica, genética e combinatória, que têm a norma e os desvios como referência” (Portocarrero, 2004, p. 175). Citando Foucault, essa autora observa que, em um sistema de disciplina, há uma maior individualização da criança do que do adulto, do louco em relação ao normal, do homem doente do que o saudável, etc. Nesse sentido, acrescentaríamos: da mulher em relação ao homem, sendo que tal processo funciona como estratégia de governo, homogeneizando as multiciplicidades, ao mesmo tempo em que individualiza, fixando diferenças e as inserindo em um quadro de utilidade, a partir de técnicas de poder centradas na vida.

 

Referências

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Texto recebido em outubro/2008.
Aprovado para publicação em fevereiro/2009.

 

 

* Doutora em Psicologia, docente do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e-mail: betinah@unisc.br
** Mestre em Desenvolvimento Regional, docente do Departamento de Enfermagem e Odontologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e-mail: veras@unisc.br
*** Mestranda em Psicologia (PUCRS), bolsista CNPq, e-mail: gidhein@gmail.com
**** Mestranda em Psicologia (PUCRS), bolsista CNPq, e-mail: lutianelara@yahoo.com.br
1 O conceito de tecnologias neste artigo é entendido conforme a definição de Rose (2001), ou seja, “Refere-se, neste caso, a qualquer agenciamento ou a qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo mais ou menos consciente. As tecnologias humanas são montagens híbridas de saberes, instrumentos, pessoas, sistemas de julgamento, edifícios, espaços, orientados, ao nível programático, por certos pressupostos e objetivos sobre os seres humanos” (p. 38)
2 Como exemplos da política de anticoncepção relacionada ao Bemfam, podem-se citar a distribuição de pílulas sem explicação adequada do uso, ligadura tubária, tradicional enfoque dado à regulação da reprodução via o controle do corpo feminino
3 De acordo com Marcello (2004), “As curvas de visibilidade não podem ser confundidas, no caso, com as formas palpáveis, com figuras ou com imagens veiculadas. Do mesmo modo, os regimes de enunciabilidade não se referem imediatamente aos ditos, às falas proferidas ou mesmo escritas. [...] Subsistem somente a partir de condições específicas de luminosidade e sonoridade, positivadas tanto pelas relações de força, como por outras formas de saber que lhes são correlatas. Tais unidades (o visível e o enunciável) só podem ter existência a partir de uma combinação meticulosa entre palavras, frases e proposições; a partir de um entrecruzamento específico que, então, lhes confere condição de existência. Como aprendê-los? Rachando, abrindo, dilacerando ou, talvez, talhando as próprias palavras, frases e proposições para extrair, extirpar delas os enunciados que lhes são correspondentes” (p. 201)
4 O PNAISM é a política responsável por definir ações que serão desenvolvidas para as usuárias do programa (PAISM)
5 A escolha desse termo é intencional, pois não se trata de apontar uma relação de causa-efeito, em que um polo resulta em outro, mas um “emaranhado”, na qual os polos se misturam, confundem-se, sendo que a mudança em um supõe a transformação do outro, sem que se possa determinar seu início ou término
6 Em uma das observações, uma obstetra referiu-se ao parto, dizendo que dar à luz uma criança não é simplesmente um ato fisiológico, mas um evento definido e desenvolvido num contexto cultural
7 Nas palavras do filósofo: “[...] Por produção de verdade, [...] não entendo a produção de enunciados verdadeiros, mas a disposição de domínios em que a prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo, regulamentada e pertinente” (Foucault, 2003, p. 343)
8 Conforme Foucault (1987), “O pan-óptico é uma máquina de dissociar o par ver/ser visto: no anel periférico se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo sem nunca ser visto. Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder” (p. 178).

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