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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.2 Belo Horizonte ago. 2009

 

ARTIGOS

 

Análise de erros ortográficos em alunos do ensino público fundamental que apresentam dificuldades na escrita

 

Analysis of spelling errors in students of public junior and senior high school with difficulties in writing

 

Análisis de los errores ortográficos de los alumnos de la enseñanza fundamental pública con dificultades de escritura

 

 

Gislaine Gasparin Nobile*; Sylvia Domingos BarreraI**

IUniversidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi realizar uma análise dos erros ortográficos de uma amostra de alunos com dificuldades de aprendizagem. Participaram 18 alunos de 3ª a 7ª séries do ensino fundamental, frequentando turmas de reforço escolar. Os dados foram coletados pela aplicação individual de uma prova de escrita de palavras e outra de produção de texto. Observou-se que as dificuldades ortográficas encontradas não diferem, em sua natureza, daquelas obtidas em estudos com crianças sem dificuldades de aprendizagem, porém evidenciam uma frequência elevada, mesmo entre os alunos do segundo ciclo. Os erros mais comuns foram os de transcrição da fala, seguidos de dificuldades baseadas na análise fonológica, tais como: trocas de letras, marcação de nasalização e sílabas complexas. Discute-se o papel das habilidades de consciência fonológica e morfossintática no planejamento de atividades pedagógicas visando a facilitar a apropriação do sistema ortográfico.

Palavras-chave: erros ortográficos; dificuldades de aprendizagem; consciência fonológica; consciência morfossintática.


ABSTRACT

The objective of this research was to make an analysis of spelling errors of a sample of students with learning difficulties. Eighteen students from the 3rd to the 7th grades of junior and senior high school, making part of groups of school reinforcement, participated in the study. Data were collected through the individual application of a word writing test and another of text production. It was observed that the spelling errors did not differ, in their nature, from those found in studies with children without learning difficulties, but they showed high frequency, even among senior high-school students. The most frequent errors were those of speech transcription, followed by errors based on phonological analysis, such as change of letters, nasalization marking and complex syllables. The paper also discusses the role of phonological and morpho-syntactic awareness in the planning of educational activities aiming to facilitate the spelling system acquisition.

Keywords: spelling errors; learning problems; phonological awareness; morpho-syntactic awareness.


RESUMEN

El objetivo de esa investigación fue realizar un análisis de los errores ortográficos de una muestra de estudiantes con dificultades de aprendizaje. 18 estudiantes de la 3 ª. a la 7 ª. serie de la educación elemental, que frecuentaban grupos de refuerzo escolar, participaron en el estudio. Los datos fueron recolectados por la aplicación de una prueba de escritura de palabras y otra de producción de texto. Las dificultades ortográficas encontradas no se diferenciaron, en su naturaleza, de las obtenidas en estudios con niños sin dificultades, pero mostraron alta frecuencia, incluso entre los estudiantes del segundo ciclo. Los errores más frecuentes fueron la transcripción del habla, seguido de errores basados en las dificultades del análisis fonológico, como cambio de letras, sílabas complejas y marcas de nasalización. Se discute el papel de la conciencia fonológica y morfosintáctica en la planificación de actividades educativas encaminadas a facilitar la apropiación de la ortografía.

Palabras-clave: errores ortográficos; dificultades de aprendizaje; conciencia fonológica; conciencia morfosintáctica.


 

 

1 Introdução

A aprendizagem da leitura e da escrita envolve dois processos diferentes, porém inter-relacionados: a alfabetização e o letramento. Podemos definir alfabetização como “[...] a aquisição do sistema convencional de escrita” (Soares, 2004, p. 25), ou seja, a capacidade de identificar automaticamente as palavras e transcrever o som da fala (Oliveira, 2005) e letramento como “[...] o desenvolvimento de habilidades de uso desses sistemas em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (Soares, 2004, p. 25), envolvendo, portanto, a capacidade de compreender e produzir textos.

A concretização desses processos é a base pela qual deveria se pautar a educação no ensino fundamental, porém sabemos que, no que se refere ao ensino público, esse objetivo está longe do desejado e esperado.

Patto resume da seguinte forma a história das explicações para o fracasso escolar das crianças das classes populares:

Na virada do século, explicações de cunho racista e médico; a partir dos anos 30 até meados dos anos 70, explicações de natureza biopsicológica: problemas físicos e sensoriais, intelectuais e neurológicos, emocionais e de ajustamento; dos primeiros anos da década de setenta até recentemente (mas ainda predominante nos meios escolares), a chamada teoria da carência cultural [...] Todas essas versões [...] têm em comum o fato de situarem as causas das dificuldades escolares nos alunos e em suas famílias (Patto, 1997, p. 282).

Atualmente, ao menos nos meios científicos, esses discursos parecem já estar superados, sendo que outros fatores de ordem social, política e pedagógica têm sido invocados para explicar a questão das dificuldades escolares dos alunos do ensino público, ou pelo menos de boa parte delas. No caso do fracasso na alfabetização, é possível supor que ele possa estar relacionado, ao menos em parte, à falta de conhecimentos mais sólidos, por parte dos professores, sobre o sistema de escrita alfabética e sobre os processos de aprendizagem da leitura e escrita. Tais conhecimentos são fundamentais para subsidiar a formação (inicial e continuada) destes, bem como a elaboração de metodologias mais adequadas para o ensino da língua materna.

1.1 A natureza do sistema alfabético de escrita e suas relações com a ortografia

O sistema de escrita alfabético não representa diretamente o significado das palavras, mas sim sua sequência fonológica. Para alfabetizar-se, é necessário, portanto, que a criança compreenda o funcionamento do sistema de escrita alfabético, que se baseia na correspondência entre grafemas e fonemas. Segundo Ferreiro (1985), para atingir essa compreensão, a criança passa por algumas etapas ou fases, como a pré-silábica, que se caracteriza pela falta de compreensão da relação entre fala e escrita. Nessa fase, a criança geralmente acredita que a escrita é uma representação do significado das palavras e não da sua pronúncia. Já na fase silábica, a criança tenta estabelecer relações entre o registro gráfico e a oralidade, escrevendo uma letra para cada sílaba, sendo a escrita associada à pauta sonora da palavra. A próxima fase, silábico-alfabética, é uma transição, já que a criança começa a acrescentar mais letras na sua escrita, analisando algumas sílabas em seus fonemas constituintes, enquanto outras sílabas permanecem grafadas com apenas uma letra. Por fim, a criança acaba por efetuar uma análise sonora de todos os fonemas constituintes das palavras, atribuindo a cada um deles o grafema correspondente, sendo essa a fase alfabética. Porém, a descoberta da natureza alfabética do sistema de escrita não implica o domínio das regras ortográficas, uma vez que a escrita alfabética comporta diversas irregularidades do ponto de vista das correspondências entre grafemas e fonemas.

Morais (1998) propõe uma distinção entre as palavras regulares e irregulares, considerando as regulares como passíveis de compreensão das regras subjacentes à sua ortografia, enquanto as irregulares seriam aquelas que dependeriam da memorização para a sua escrita correta. O mesmo autor considera a existência de três tipos de relações de regularidade ortográfica: regularidades diretas, nas quais cada letra corresponde a apenas um som e vice-versa, independente de sua posição na palavra, o que implica numa regularidade absoluta entre letra e som, como é o caso, no português brasileiro, das letras: p, b, t, d, f, v; regularidades contextuais, nas quais é possível antecipar a escrita correta levando-se em consideração a posição que determinada letra ocupa na palavra ou as letras vizinhas. Por exemplo, a nasalização da vogal que vier antes das letras p e b deve ser obtida pelo uso da letra m, como em pomba e tampa, enquanto a letra n deve ser usada no restante dos casos, como em canto e voando; por fim, as regularidades morfológico-gramaticais são aquelas em que é necessário recorrer à gramática e, em particular, à morfologia, para obter a grafia correta de uma palavra. Por exemplo, a escolha entre o sufixo eza ou esa vai depender da categoria gramatical e de aspectos morfológicos da palavra em questão: caso seja um adjetivo pátrio, será escrita com a letra s (chinesa, portuguesa), mas, se for um substantivo derivado de adjetivo, a palavra deverá ser escrita com a letra z (realeza, beleza).

Lemle (1995) também classifica as relações existentes entre os fonemas e as letras em três categorias, em função do grau de motivação fonética: relações de um para um (ou biunívocas), caracterizadas por uma perfeita motivação fonética; relações de um para mais de um, na qual a motivação fonética vem combinada com a consideração da posição da letra no interior da palavra; e, finalmente, relações de concorrência, em que mais de uma letra pode representar o mesmo som na mesma posição. Neste último caso, a motivação fonética está perdida, podendo haver, porém, motivação de ordem morfológica ou etimológica. A gradação existente entre esses três tipos de relação, no que se refere à motivação fonética, determina uma gradação de facilidade na aprendizagem da ortografia. Sendo assim, a autora considera como alfabetizado aquele aluno em cuja escrita só restarem falhas nas relações de concorrência.

1.2 Pesquisas sobre a aquisição do sistema ortográfico

Os estudos relacionados à aquisição do sistema ortográfico pela criança podem ser classificados, de acordo com Meireles e Correa (2005), em três grupos: competências cognitivas e aprendizagem da ortografia; desenvolvimento da escrita em contextos ortográficos específicos; conhecimento da ortografia pela análise dos erros ortográficos.

Os estudos sobre as competências cognitivas envolvidas na aprendizagem da ortografia têm enfatizado o papel das habilidades metalinguísticas (habilidades de reflexão e manipulação intencional de diferentes aspectos da linguagem oral) sobre essa aprendizagem. Os resultados de Rego e Buarque (1997) indicam que a aquisição de regras contextuais seria facilitada pelo desenvolvimento da consciência fonológica (capacidade de reflexão e manipulação intencional das unidades sonoras das palavras), enquanto que o domínio das regularidades ortográficas ligadas à morfologia e à sintaxe estaria mais relacionado ao desenvolvimento da consciência sintática (habilidade de refletir e manipular intencionalmente a estrutura gramatical das sentenças).

O segundo grupo de estudos aborda o processo de aquisição das regras ortográficas, visando a investigar a transição de uma fase alfabética de escrita para uma fase ortográfica, na qual a criança passaria a lidar com aspectos ortográficos específicos da língua que iriam além das correspondências básicas entre letra e som. O estudo de Nunes (1992), por exemplo, analisou a trajetória de erros ortográficos relacionados ao uso de regras contextuais em alunos de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental. Seus resultados sugerem que mesmo as regras ortográficas de natureza semelhante não estariam subordinadas a uma aprendizagem conjunta, uma vez que estas não foram aprendidas ao mesmo tempo pelas crianças estudadas.

Por fim, alguns estudos se propõem a analisar e classificar os erros ortográficos cometidos pelas crianças no início da escolarização (Carraher, 1985; Nunes, 1992; Zorzi, 1998). Tais estudos têm mostrado que os erros ortográficos infantis não são aleatórios, refletindo o nível de compreensão alcançado pelas crianças a respeito do sistema ortográfico. Os resultados obtidos por Carraher (1985) demonstram que, com o aumento da escolarização, há uma tendência à diminuição de erros de transcrição da fala, erros por desconhecimento da origem das palavras e erros por dificuldade na escrita de sílabas complexas. Os erros de segmentação lexical, embora bastante frequentes em crianças de primeira e segunda séries, tendem a apresentar forte declínio a partir da terceira série.

1.3 Classificação dos erros ortográficos

Durante o processo de apropriação do sistema ortográfico, a criança comete alguns erros que podem ser classificados em categorias (cf. Carraher, 1985; Nunes, 1992; Lemle. 1995), tais como:

a) Erros de transcrição da fala: ocorrem quando a criança escreve a palavra como a pronuncia, como veis (vez), pexi (peixe), etc., por desconhecimento das diferenças entre língua oral e língua escrita. É mais frequente em falantes de variedades linguísticas mais afastadas da língua padrão, o que as leva a escrever, por exemplo, muié para mulher.

b) Erros por supercorreção: ocorrem quando a criança começa a perceber que nem sempre as palavras são escritas do modo como são pronunciadas, havendo alguns desvios sistemáticos entre língua oral e língua escrita, e tenta corrigir os erros de transcrição da fala, escrevendo, por exemplo, pedil para pediu.

c) Erros por desconhecimento das regras contextuais: ocorrem quando a criança deixa de considerar a posição de uma letra ou unidade sonora em relação a outras, como quando escreve pasarinho, por desconhecimento de que a letra s entre vogais tem o som de /z/, ou ainda quando escreve gitarra, por desconhecimento de que a letra g diante de e e i representa som diferente daquele representado quando diante das vogais a, o, ou u.

d) Erros na marcação da nasalização: caracterizam-se pela não diferenciação entre vogais nasais e orais, como na escrita de iteiro (inteiro) ou pela marcação inadequada da nasalização, como na escrita de elefãote (elefante).

e) Erros devidos à concorrência: há palavras cuja escolha da letra apropriada para representar certo fonema depende não de aspectos fonológicos, mas da etimologia ou de aspectos morfológicos. Encontram-se nessa categoria o uso de s ou z entre vogais, o uso de ss ou ç diante de a, o e u, o uso de g ou j diante de e e i, o uso de x ou ch em várias palavras.

f) Erros nas sílabas complexas: ocorrem na escrita de sílabas com estruturas diferentes, que não sejam consoante-vogal, quando observamos escritas como boboleta (borboleta) ou baço (braço). O uso inadequado dos dígrafos nh, lh e ch também pode ser classificado nessa categoria, por exemplo, escrevendo coelo para coelho.

g) Erros por troca de letras: caracterizam-se pela escolha de letra errada para representar determinado som, surgindo escritas como vormiga (formiga). Outras trocas frequentes são entre p/b, t/d, c/g, ou seja, trocas entre consoantes surdas e sonoras.

h) Erros de segmentação: caracterizam-se, na escrita de textos, pela segmentação não convencional das palavras. Segundo Carraher (1985), esses erros são observados em duas categorias, podendo ser resultantes de ausência de segmentação (“aonça”, “tipego”), ou de segmentação indevida (“a migo”, “a legre”).

1.4 Objetivos e justificativa

Embora a questão do fracasso escolar seja um problema educacional muito importante, a maioria dos estudos brasileiros sobre a análise de erros ortográficos (Carraher, 1985, Nunes, 1992, Zorzi, 1998) não tem se preocupado em estudar esse tema com amostras de crianças com dificuldades de escolarização. O presente trabalho visa a contribuir para preencher essa lacuna, tendo como objetivo analisar os erros ortográficos de uma amostra de alunos com dificuldades na aprendizagem da linguagem escrita, classificando-os de acordo com o tipo e a frequência de ocorrência. Pretende-se oferecer subsídios para a ampliação do conhecimento na área da aquisição do sistema ortográfico em alunos com dificuldades na escolarização, contribuindo, assim, para o planejamento de metodologias mais eficazes para o ensino da ortografia. A análise dos tipos de erros encontrados com maior frequência nessa população permitirá também levantar hipóteses sobre quais habilidades e, ou, conhecimentos seria necessário desenvolver nesses alunos, para favorecer a superação dessas dificuldades.

 

2 Método

2.1 Participantes

Participaram da pesquisa 18 crianças, alunas de classes de reforço escolar de uma escola pública de ensino fundamental, que atende predominantemente a crianças de nível socioeconômico baixo. Dos participantes, 9 eram alunos do ciclo I (1 da 3ª série e 8 da 4ª série) e 9 eram alunos do ciclo II (7 da 5ª série, 1 da 6ª série e 1 da 7ª série). Os participantes foram indicados pelas respectivas professoras como tendo dificuldades na aprendizagem da escrita, apresentando, porém, escrita alfabética.

2.2 Material

Para a coleta de dados, foram aplicadas duas provas: uma de escrita de palavras (autoditado) e outra de produção de texto. O autoditado continha oito figuras de animais (macaco, elefante, leão, jacaré, cobra, tartaruga, girafa e hipopótamo), para que os alunos escrevessem seus nomes. Já a prova de produção de texto era composta por uma figura de duas crianças brincando, sendo solicitado aos participantes que escrevessem um pequeno texto sobre a cena.

2.3 Procedimento

Todos os alunos do ensino fundamental pertencentes a classes de reforço escolar por dificuldades em português foram convidados a participar da pesquisa, por meio da realização da atividade de autoditado, a qual foi aplicada individualmente, pela pesquisadora, na própria escola. Os alunos que apresentaram escrita alfabética realizaram também a atividade de produção de texto.

Com relação aos procedimentos éticos, o presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, sendo que apenas participaram do estudo os alunos que trouxeram o termo de consentimento livre e esclarecido devidamente assinado pelos pais ou responsáveis.

 

3 Resultados e discussão

Os erros ortográficos cometidos pelos participantes da pesquisa foram classificados nas seguintes categorias, conforme a tabela 1.

 

 

Como o instrumento usado possibilitou a escrita de uma quantidade diferente de palavras para cada sujeito, foi calculada também a proporção de erros cometidos em relação ao número de palavras escritas. Essa razão ou proporção encontra-se na última coluna da tabela 1. Com base nesses resultados e usando-se o cálculo dos quartis, pode-se afirmar que os participantes que obtiveram os resultados superiores (menor proporção de erros) foram: B. F. M., M. H. S. P., G. E. R., C. E. M. e B. C. C. Por outro lado, aqueles com resultados inferiores (maior proporção de erros) foram: K. O. G. P., W. B. S., B. L. S., C. S. P. e L. C. M. Percebe-se, conforme o esperado, que a maioria dos alunos com resultados superiores pertencem ao ciclo II, enquanto a maioria dos alunos com resultados inferiores encontra-se no ciclo I, o que sugere que, de modo geral, o aumento nos anos de escolaridade tende a ter um efeito positivo sobre o domínio das regras ortográficas.

De acordo com os dados da tabela 1, observa-se a maior ocorrência dos erros por transcrição da fala (cerca de 21% do total de erros cometidos). Nota-se que esse tipo de erro é cometido por todos os participantes, numa proporção em geral elevada, e tende a manter-se aproximadamente equivalente nos dois ciclos, contrariando o resultado de estudos realizados com crianças sem dificuldades escolares (Carraher, 1985; Zorzi, 1998), nos quais a tendência é a diminuição na ocorrência desse tipo de erro, conforme o aumento dos anos de escolaridade. Exemplos de erros por transcrição da fala encontrados com frequência na amostra pesquisada foram: intão (então), istava (estava), brinca (brincar), atrais (atrás), imbora (embora), brincadera (brincadeira), falo (falou), pego (pegou). Tais erros estão relacionados à linguagem oral coloquial, em que é comum pronunciar o e inicial das palavras como i, além de omitir o r final dos infinitivos e o u e i de alguns ditongos.

Outro ponto a ser levantado sobre a predominância e perpetuação dos erros de transcrição da fala é a influência da variação linguística, a qual costuma interferir mais na escrita dos alunos das classes populares, uma vez que a distância “[...] entre a linguagem culta veiculada pela escola e a linguagem das camadas populares, associada ao conflito de valores, subjacentes a esses padrões linguísticos diferentes, pode ser vista como uma das causas do fracasso escolar das crianças provenientes das camadas populares” (Barrera & Maluf, 2004, p. 36). Isso ocorre já que a escola, muitas vezes, desvaloriza a linguagem dessas crianças, não trabalhando adequadamente as diferenças entre língua oral e língua escrita. Neste estudo, alguns erros por transcrição da fala encontrados com frequência e que evidenciam bastante a questão da variação linguística são notados na escrita do gerúndio (ex.: brincano, correno, divertino, etc.), uma vez que faz parte da variante linguística usada pelas classes populares a omissão da pronúncia do “d” nessa forma verbal. É importante salientar que esse tipo de erro costuma ser duplamente estigmatizado pela escola, não apenas por sua incorreção ortográfica, mas também por ser indevidamente considerado como uma incorreção linguística.

O segundo tipo de erro ortográfico observado com maior frequência foi a troca de letras (cerca de 18%), o qual engloba tanto as trocas entre consoantes surdas e sonoras quanto trocas entre vogais, ocorrendo também trocas entre consoantes sem qualquer semelhança fonológica. Na amostra apresentada, observamos uma diminuição, de um ciclo para o outro, no número de alunos que cometem esse tipo de erro, bem como na proporção em que o fazem. Nessa categoria, podemos afirmar que os erros tendem a atenuar-se com o aumento dos anos de escolaridade.

As trocas entre consoantes surdas e sonoras podem estar relacionadas, segundo Zorzi, a dificuldades de discriminação da própria fala, pois, embora esta última seja decorrente de automatismos (quando falamos, não necessitamos ficar pensando som por som para reproduzirmos as palavras), já na escrita,

[...] para poder decidir que letras devem ser usadas, a criança necessita ser capaz de identificar, em sua própria fala, os sons que compõem as palavras, assim como identificar a ordem sequencial dos mesmos para poder representá-los, corretamente, na forma de letras (Zorzi, 2003, p. 65).

Os sujeitos deste estudo, embora não tenham dificuldades de fala, podem estar demonstrando, em suas escritas, o que Zorzi (2003) chama de dificuldades na imagem acústico-articulatória, ou seja, quando eles evocam essa imagem dos sons da palavra falada, não há uma diferenciação nítida entre os fonemas p/b; t/d; f/v; c/q; ch-x/j-g, ocorrendo a grafias tais como: estafa (estava), esdava (estava), princando (brincando), domar (tomar), hibobodamo (hipopótamo), opiservando (observando).

As trocas entre vogais, como ipopotemo (hipopótamo), elefete (elefante), foram menos frequentes que aquelas entre consoantes surdas/sonoras, podendo ser explicadas por “falha em processos de autocorreção e controle da escrita que dependem do tanto de atenção que está sendo aplicado à situação de escrita” (Zorzi, 2003, p. 97). Outras trocas observadas, porém com menor frequência, podem estar relacionadas à semelhança gráfica entre as letras b/d, m/n, r/n, pois foram encontradas as seguintes grafias: nemina (menina), jão maba (chamada), quanto (quarto).

O próximo erro observado, em termos de frequência de ocorrência, acontece devido a dificuldades na marcação da nasalização (cerca de 14%). Devido à ausência de marcadores para indicar a nasalização, os participantes cometeram erros tais como: bricar (brincar), casado (cansado), escoder (esconder), elefate (elefante), adou (andou), quado (quando). Percebemos, assim, que a ocorrência maior desse tipo de erro se dá pela ausência do “n” e, segundo Zorzi,

[...] a ausência de uma ou mais letras nas palavras pode ter como causa um processo ainda não suficientemente desenvolvido de segmentação fonêmica, de modo que a criança pode não estar conseguindo detectar todos os sons componentes das palavras que escreve, o que resultaria na omissão das letras que a eles poderiam corresponder (Zorzi, 2003, p. 85).

O fato de, no caso da nasalização, pronunciarmos menos fonemas do que as letras que compõem a palavra, já que o “n” ou “m” deve ser empregado apenas para marcar a nasalização da vogal que a antecede na sílaba, constitui um fator a mais de dificuldade ortográfica, facilitando a omissão dessas letras na escrita. Em outros casos, a criança pode ser capaz de segmentar todos os sons que compõem a palavra, porém, ao escrevê-la, pode não conhecer todas as letras correspondentes, excluindo-as, ou marcando a nasalização de forma errada, como, por exemplo, “elefãote” e “pãono”.

O próximo a ser discutido é o erro por sílabas complexas (cerca de 13%) e, de acordo com Carraher (1985), Guimarães (2003) e Nunes (1992), esse erro pode ocorrer pelo fato de que as sílabas que não obedecem ao padrão consoante-vogal (CV), como aquelas que seguem o padrão VC, CVC ou CCV, oferecem maior dificuldade de escrita, sobretudo no caso de alunos expostos a metodologias de alfabetização que enfatizam os padrões silábicos mais simples (CV). Assim sendo, os erros encontrados, em sua maioria, acontecem pela perda de consoantes que, segundo Carraher (1985), são consideradas “extras”, tais como: cora (chora), bincar (brincar), coba (cobra), tataruga (tartaruga), atas (atrás), estela (estrela).

É importante destacar que as três categorias de erros discutidas anteriormente (troca de letras, nasalização e sílabas complexas) podem ser explicadas, segundo Guimarães (2003), por dificuldades na análise fonológica, ou seja, dificuldades para segmentar e analisar todos os fonemas que compõem as palavras. De acordo com os resultados da pesquisa de Guimarães, a análise das habilidades de consciência fonológica e dos erros ortográficos cometidos por uma amostra de alunos com dificuldades na leitura e escrita, quando comparados a um grupo de sujeitos mais novos, sem dificuldades, porém com o mesmo nível de leitura e escrita, indica que as dificuldades fonológicas dos primeiros dificultam “[...] a assimilação da forma impressa das estruturas fonológicas, ou seja, a construção de representações ortográficas completas e precisas” (Guimarães, 2003, p. 178).

Nesta pesquisa, no caso dos alunos com maiores dificuldades ortográficas, os erros por troca de letras, nasalização e sílabas complexas tendem a predominar até mesmo sobre os erros por transcrição da fala. Tais erros indicam um domínio ainda incompleto do sistema alfabético, mesmo em termos das correspondências básicas mais regulares entre grafemas e fonemas, o que sugere dificuldades em termos de consciência fonológica. Já entre os participantes com resultado superior, com raras exceções, os erros por troca de letras, sílabas complexas e, ou, nasalização praticamente inexistem.

Na sequência, num total de 11% das ocorrências, o erro a ser comentado é o por desconhecimento das regras contextuais, uma vez que devemos considerar a posição das letras no interior das palavras para sabermos como grafá-las corretamente. Assim sendo, encontramos as seguintes grafias na amostra estudada, configurando erros por desconhecimento das regras contextuais: core (corre), emcontrou (encontrou), dise (disse), brimca (brincar), senpre (sempre), camçada (cansada), nuven (nuvem).

De acordo com os resultados apresentados na tabela 1, percebemos que a ocorrência dos erros por regras contextuais está distribuída nos dois ciclos, sendo que, no primeiro (no qual os sujeitos estão se iniciando na compreensão do sistema ortográfico), nenhuma criança deixou de cometer esse tipo de erro. Além disso, mesmo entre a maioria das crianças do ciclo II (e também entre alguns dos participantes que se saíram melhor na pesquisa), esse tipo de erro ainda continua ocorrendo numa proporção relativamente elevada, evidenciando, assim, as dificuldades ortográficas da amostra pesquisada, uma vez que o domínio das regras contextuais exige certa relativização da hipótese alfabética, já que a criança deve coordenar a análise da sequência de fonemas com informações sobre a posição dos fonemas (e letras) antecedentes e consequentes.

O próximo erro analisado se dá por dificuldades de segmentação e, segundo Zorzi (2003), pode ser explicado pela influência da oralidade na escrita, uma vez que a fala constitui um fluxo sonoro contínuo, sem pausas entre as palavras, fazendo com que a criança escreva as palavras unidas umas nas outras. Alguns exemplos de erros por ausência de segmentação encontrados foram: portada (porta da), abricar (a brincar), gatotebei (gato também), nacosia (na cozinha), sefoi (se foi), nasituação (na situação).

Com relação às segmentações indevidas, essas tenderam a ocorrer numa proporção menor (37%) do que os erros por ausência de segmentação (63%). Tais erros parecem ocorrer principalmente nos casos em que, “isola-se uma parte da palavra que, de fato, resulta numa sequência que tem existência gráfica autônoma na língua” (Ferreiro & Pontecorvo, 1996, p. 62), como nos exemplos de pois, a pareceu, ou viu. Nesses casos, a existência das palavras “de”, “pois”, “a”, “pareceu”, “ou” e “viu” na língua portuguesa justificaria a dúvida das crianças na hora de segmentar essas palavras.

O próximo tipo de erro, definido como concorrência (8%), é caracterizado pela falta de compreensão da complexidade das relações entre letras e sons do sistema ortográfico, o qual não é apenas foneticamente motivado. Assim, pudemos observar as seguintes grafias: caxoro (cachorro), ves (vez), jirafa (girafa), camçada (cansada), tropessou (tropeçou), ceu (seu), seu (céu), cosia (cozinha). Para a superação desses erros, a criança necessitará levar em consideração conhecimentos etimológicos e morfológicos a respeito da origem e, ou, formação de algumas palavras, ou memorizar algumas relações aparentemente arbitrárias entre letras e sons. Em outros momentos, recorrerá ao dicionário, pois “[...] a apreensão desses conhecimentos não é imediata. Ela se dá de forma progressiva e continua ocorrendo praticamente por toda a vida” (Zorzi, 2003, p. 75).

Diante disso, observamos que os erros por concorrência foram cometidos por praticamente todos os participantes, sendo que, entre os alunos com melhor desempenho ortográfico, esse erro tende a ocorrer em maiores proporções, ficando, em geral, atrás apenas dos erros por transcrição da fala. Isso pode ser explicado pelo fato de esse tipo de erro evidenciar um domínio básico das relações mais regulares entre letras e sons. De acordo com Lemle (1995, p. 31), os erros por concorrência, nos quais “a opção pela letra correta em uma palavra é, em termos puramente fonológicos, inteiramente arbitrária”, corresponderia à última etapa, e, portanto, mais evoluída, da alfabetização.

Os erros por ausência/acréscimo/inversão de letras ou sílabas se encontram na mesma coluna devido às suas baixas ocorrências (cerca de 6%) e, para esses erros, foram observadas as seguintes grafias: feil (feliz), fo (foi), hacarae (jacaré), rima (irmã). Algumas possibilidades para explicar esse tipo de erro seriam: fuga de padrões CV, dificuldade para detectar todos os sons que compõem a palavra ou até mesmo considerar os fonemas existentes no próprio nome da letra, grafando tlevizão para televisão (Zorzi, 2003). Já as trocas de letras ocorridas de forma aparentemente aleatória poderiam ser explicadas pelo desconhecimento de algumas relações letra-som.

Os erros de supercorreção não foram identificados na produção escrita da amostra estudada, o que pode ser explicado pelo fato de esse tipo de erro estar relacionado a um conhecimento mais elaborado das irregularidades do sistema ortográfico, assim como das diferenças entre fala e escrita, conhecimento esse que, quando generalizado de forma indevida, acaba gerando erros ortográficos. Assim, o fato de a amostra estudada ser formada por crianças com dificuldades na aquisição da escrita, parece justificar a ausência desse tipo de erro na produção analisada, ao mesmo tempo em que explica também a grande frequência de erros mais elementares, como aqueles devidos à transcrição da fala e à troca de letras.

Finalmente, foram encontrados também alguns erros relacionados à estrutura gramatical, que indicam desconhecimento das regras de concordâncias nominal e verbal, além de estarem relacionados, em muitos casos, à transcrição de padrões de fala socialmente estigmatizados. Como exemplo, temos: “duas menina estava”, “eles estava”, “eles paro”. A confusão entre as terminações “am” e “ão” também foi encontrada em alguns poucos protocolos, por exemplo: “estavão” (estavam), “forão” (foram), “sairão” (saíram), indicando um desconhecimento da diferenciação dos tempos verbais relativos ao presente/passado (final “am”) x futuro (final “ão”).

 

3 Implicações (psico)pedagógicas

Baseados em Zorzi (2003), Morais (1998) e Lemle (1995), levantaremos algumas possibilidades de atividades de intervenção (psico) pedagógica a serem desenvolvidas com vistas a favorecer a compreensão e domínio do sistema ortográfico. É importante salientar que a maior parte das atividades propostas baseia-se numa reflexão consciente sobre aspectos fonológicos e morfossintáticos da linguagem.

a) Transcrição da fala: o ponto fundamental a ser trabalhado é a distinção entre fala e escrita e a compreensão de que o padrão acústico-articulatório nem sempre é suficiente para determinar a escrita das palavras. Sugere-se desenvolver atividades que enfatizem a diferença entre o modo como pronunciamos certas palavras e o modo como as grafamos, por meio de músicas cantadas, gravações de pessoas conversando, etc. Posteriormente, devem ser identificados todos os fonemas componentes das palavras, como também e consequentemente a diferença entre oralidade e escrita. A criança precisará desenvolver referenciais ortográficos e visuais que passem a influenciar o padrão de escrita, para coordená-los com os referenciais fonéticos ou auditivos que tendem a prevalecer nas etapas iniciais da alfabetização (Zorzi, 2003). Sugere-se, portanto, o trabalho sistemático com determinadas categorias de palavras mais sujeitas a esse tipo de erro, como aquelas onde a letra l representa o som /u/, bem como aquelas onde as letras e e o são pronunciadas respectivamente como /i/ e /u/. Também devem ser trabalhadas as variantes dialetais presentes na fala dos alunos, as quais não devem ser estigmatizadas, mas analisadas como exemplos da diferença entre língua oral e escrita.

b) Troca de letras: torna-se necessário destacar na própria fala a identificação e diferenciação dos fonemas surdos e sonoros, relacionando o som a ser grafado com a letra específica. Para isso, é importante trabalhar atividades nas quais a criança possa, por exemplo, separar figuras dos grupos que têm o som do /f/ daquelas com som de /v/, ou trocar intencionalmente a letra, na fala e na escrita, de modo que a criança perceba essa troca. Espera-se, assim, que a criança vá estabilizando a sua escrita.

c) Nasalização e sílabas complexas: a criança deve ser estimulada a identificar todos os fonemas que compõem as palavras, bem como as letras que os representam. Ela deve compreender as diversas construções silábicas (CCV, CVC, VC) e não somente a estrutura CV, tão enfocada pela escola, por meio de atividades de separação silábica e análise da quantidade de fonemas e letras presentes em cada sílaba. Atividades em que seja confrontada com omissões e acréscimos de fonemas e letras, como o marcador de nasalização (“n” ou “m”), são úteis na percepção da utilização de todas as letras.

d) Regras contextuais e morfossintáticas e etimologia: a criança deve compreender as várias relações estabelecidas entre letra e som. Uma estratégia pedagógica útil consiste em atividades de pesquisa e classificação de palavras que tenham determinada regra contextual, por exemplo, separando palavras que contenham a letra c com som de /k/ daquelas cujo c tem som de /s/, observando e discutindo as regularidades presentes em cada caso. No caso de algumas relações de concorrência, pode-se propor a classificação e comparação de palavras terminadas com diferentes sufixos, esa/eza, ice/isse, ão/am, observando as regularidades morfológicas e gramaticais existentes. Outras atividades interessantes consistem na produção e classificação de palavras e mesmo de pseudopalavras (palavras inventadas) que apresentem determinada dificuldade ortográfica, bem como em atividades de produção intencional de violações ortográficas, as quais estimulam uma reflexão e explicitação das regras ortográficas, que podem ser redigidas pelas crianças, compondo um “quadro de regras” para consulta posterior. No caso de palavras irregulares devido a aspectos etimológicos (como o uso da letra H no início das palavras e a concorrência entre X e CH, por exemplo), a memorização de palavras mais frequentes e o uso do dicionário em caso de dúvidas devem ser estimulados.

e) Segmentação: para a superação desse tipo de erro, torna-se importante a diferenciação entre o modo como falamos e o modo como escrevemos (já que a fala apresenta um fluxo contínuo, em que as palavras aparecem interligadas enquanto são separadas na escrita). É importante também a compreensão do conceito de palavra, o qual envolve diferentes categorias gramaticais, além de várias extensões em termos da quantidade de sílabas e letras. Devem ser trabalhadas as noções do que é frase e de que esta é composta por palavras. Outras atividades consistem em escrever as frases com as palavras todas juntas e pedir à criança que as separe, que ordene as palavras embaralhadas de uma frase ou também que complete as frases com possíveis palavras que estejam faltando.

 

4 Conclusões

Após a aquisição do sistema alfabético (regras básicas de conversão grafema-fonema), o domínio da ortografia costuma ser um desafio para muitas crianças, especialmente aquelas com dificuldades de aprendizagem. Porém, tais dificuldades não devem ser centradas nas crianças, pois, muitas vezes, costumam ser o resultado de propostas educacionais equivocadas, que não estão fundamentadas em conhecimentos sólidos sobre a natureza do sistema ortográfico nem sobre os processos de aprendizagem infantis relacionados à sua apropriação.

Os educadores devem ter em mente que a apropriação do sistema ortográfico se dá de forma progressiva, sendo que a eliminação de alguns erros dar-se-á em tempos diferentes, pois “apreender as condições ortográficas que determinam a forma convencional de grafar as palavras corresponde a uma das aquisições mais complexas, e, portanto, das mais difíceis, para todas as crianças” (Zorzi, 2003, p. 50).

De modo geral, apesar da dificuldade na comparação dos resultados da presente pesquisa com o de outros estudos realizados sobre o tema, devido a diferenças nas metodologias empregadas, é possível afirmar que os erros ortográficos cometidos pelos alunos com dificuldades na escrita não se diferenciam, em sua natureza, daqueles observados em sujeitos que não apresentam tais dificuldades (Carraher, 1985; Nunes, 1992; Zorzi, 1998). Embora predominem, na amostra estudada, os erros ortográficos baseados na transcrição da fala, percebe-se também que os erros relacionados às trocas de letras e às sílabas complexas (os quais podem ser considerados mais elementares, pois indicam falta de domínio básico do sistema ortográfico, mesmo em seus aspectos mais regulares) são muito frequentes, mantendo-se relativamente elevados mesmo entre os alunos do segundo ciclo.

Como afirmam Queiroga, Lins e Roazzi a respeito da ortografia, “[...] as relações entre os elementos gráficos e sonoros são, em sua maioria, relações previsíveis, dependentes do contexto fonológico ou dos aspectos morfossintáticos” (Queiroga; Lins & Roazzi, 2008, p. 237). Nesse sentido, um fator que tem se mostrado bastante importante na apropriação das regras ortográficas é a capacidade metalinguística, isto é, a capacidade para analisar e refletir intencionalmente sobre as propriedades formais da linguagem, tanto em seus aspectos fonológicos quanto morfossintáticos. Desse modo, o desenvolvimento da habilidade para realizar uma adequada análise fonológica das palavras evitaria erros como trocas de letras, dificuldades na marcação da nasalização e escrita de sílabas complexas, já que a criança, por meio dessa análise, conseguirá dividir uma palavra em unidades menores, percebendo e diferenciando todos os sons que a compõem. Por outro lado, habilidades morfossintáticas, isto é, conhecimentos explícitos sobre aspectos morfológicos e gramaticais da linguagem auxiliariam na escrita de palavras cuja ortografia baseia-se em regras de natureza morfossintática, conforme efetivamente demonstrado pelos resultados das pesquisas de Melo (apud Queiroga, Lins & Roazzi, 2008).

As atividades propostas na seção implicações (psico)pedagógicas visam a justamente desenvolver essas habilidades metalinguísticas, já que constitui papel da escola trabalhar adequadamente esses aspectos durante o processo de alfabetização, seja em termos do ensino regular, ou nas propostas de recuperação paralela. É fundamental atentar sempre para os erros ortográficos cometidos pelos alunos, uma vez que estes fornecem informações importantes a respeito das hipóteses ou conhecimentos parciais já construídos por eles, os quais precisam ser ampliados e explicitados por meio de atividades que envolvam reflexões intencionais sobre os aspectos estruturais da linguagem diretamente relacionados à ortografia.

 

Referências

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Texto recebido em fevereiro de 2009.
Aprovado para publicação em agosto de 2009.

 

 

* Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP, e-mail: gislainenobile@yahoo.com.br.
** Doutora em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo, docente do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo, Campus Ribeirão Preto – USP, e-mail: sdbarrera@ffclrp.usp.br.

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