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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.3 Belo Horizonte dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Bases sociológicas, antropológicas e psicológicas do comprometimento organizacional

 

Sociological, anthropological and psychological bases for organizational commitment

 

Bases Sociológicas, antropológicas y psicológicas del compromiso organizacional

 

 

Igor Gomes Menezes*; Antonio Virgílio Bittencourt Bastos**

Universidade Federal da Bahia

 

 


RESUMO

O comprometimento organizacional é um construto complexo e polissêmico, não existindo ainda um consenso sobre a definição que mais bem o caracterize. Muitas vezes confundido com outros construtos, como satisfação, identificação e envolvimento, são raros os estudos que buscam investigar as influências sociológicas, antropológicas e psicológicas do comprometimento organizacional. Sendo assim, o presente trabalho teve por escopo apresentar algumas teorias de trocas sociais (exchange theory), compartilhamento de símbolos e relacionamento entre processos cognitivos e sociais, que podem propiciar um melhor entendimento dos vínculos que um indivíduo estabelece com sua organização. O estudo aprofundado de teorias sociais que precedem a concepção do comprometimento como um objeto de estudo do campo do comportamento organizacional é essencial para favorecer a clareza conceitual do fenômeno e indispensável para futuros estudos de validade discriminante frente a outros tipos de vínculo social.

Palavras-chave: comprometimento organizacional; revisão histórica; vínculos sociais; processos de influência social.


ABSTRACT

Organizational commitment is a complex and polysemic construct, and there is no consensus about which definition best describes it. As it is often mistaken for other constructs such as job satisfaction, identification and involvement, few studies have investigated the sociological, anthropological and psychological influences of organizational commitment. Thus, the aim of this paper is to present some social exchange theories, as well as symbol sharing and the relationship between cognitive and social processes, which can provide a better understanding of the individual-organization bonds. A detailed study of some social theories that precede the conception of commitment as an object of study in the field of organizational behavior is substantial to the conceptual clarity of the phenomenon, and indispensable for future studies in discriminant validity as compared to other types of social bonds.

Keywords: organizational commitment; historical review; social bonds; social influence processes.


RESUMEN

El compromiso organizacional es un constructo complejo y polisémico, y no hay todavía un consenso sobre la definición que mejor lo describe. A menudo se confunde con otros elementos como la satisfacción, la identificación y participación, son pocos los estudios que analizan las influencias sociológicas, antropológicas y psicológicas del compromiso organizacional. Por lo tanto, el alcance de este trabajo fue presentar algunas teorías de intercambio social, el compartir de símbolos y relaciones entre procesos cognitivos y sociales, que pueden proporcionar una mejor comprensión de los vínculos que una persona establece con su organización. El estudio detallado de las teorías sociales que preceden a la concepción de compromiso como un objeto de estudio del campo de comportamiento organizacional es esencial para promover la claridad conceptual del fenómeno e indispensable para los futuros estudios de validez discriminante en comparación con otros tipos de vínculos sociales.

Palabras-clave: compromiso organizacional; revisión histórica; vínculos sociales; procesos de influencia social.


 

 

1 Teorias sociológicas e antropológicas que influenciaram a pesquisa sobre comprometimento organizacional

Embora as pesquisas que apresentam como objeto de estudo o comprometimento organizacional tenham se desenvolvido de forma mais acelerada a partir da década de 1980, as raízes históricas do construto podem ser identificadas nas teorias sociológicas, antropológicas e psicológicas que buscam estudar quais os tipos de processos de influência social que levam as pessoas a estabelecer vínculos de permanência com um determinado grupo, como por exemplo, uma comunidade.

Um dos primeiros trabalhos sobre os vínculos estabelecidos entre indivíduos e instituições, muitas vezes conhecidos por attachment (ligação), data de 1893, com a apresentação conduzida por Émile Durkheim sobre as duas bases consideradas de importância para a coesão social: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. Para Durkheim (1893), enquanto a solidariedade mecânica reflete uma ligação entre crenças, participação na ação coletiva e um senso comum de identidade, a solidariedade orgânica é caracterizada pela interdependência material baseada na divisão do trabalho.

A teoria sobre bases de coesão social contribuiu substancialmente com o desenvolvimento da noção de attachment pelos cientistas sociais. De acordo com Beyer, Hannah e Milton (2000), pesquisadores dessa teoria, diferentes são as perspectivas que buscam explicar como os indivíduos tornam-se vinculados a grupos sociais, sendo três as categorias de processos sociais que mais se destacam para a noção de attachment: 1º) processos afetivos e cognitivos, caracterizados como processos internos ao indivíduo; 2º) interações sociais, que incluem todos os tipos de trocas econômicas e sociais, assim como a interdependência entre as pessoas; e 3º) simbolismo e comportamentos, que dizem respeito às entidades observáveis, que são externas aos indivíduos e que não requerem interação, embora carregados de significados compartilhados.

Ao se considerarem essas três categorias como uma referência para a interpretação dos fundamentos conceituais de teorias sociológicas e antropológicas sobre attachment, pode-se verificar que, na obra de Durkheim (1893), os processos afetivos e cognitivos estão relacionados a crenças comuns e a um senso comum de identidade, enquanto as interações sociais estão baseadas na interdependência e na divisão do trabalho. Já os comportamentos e símbolos estão focados na ação coletiva. Similarmente às ideias de Durkheim são os conceitos de gemeinschaft e gesellchaft, criados pelo autor Tonnies (1957), que considerava o primeiro conceito como sendo um reflexo das relações baseadas na atração mútua e na homogeneidade cultural e o segundo, associado às relações baseadas na troca e na divisão do trabalho. Assim, enquanto os processos afetivos e cognitivos estão centrados nos sentimentos envolvidos na atração mútua, as interações sociais direcionam-se às trocas racionais. A noção de trocas racionais é de significativa importância para os estudos futuros sobre comprometimento organizacional e subsidiaram Becker (1960) na construção da teoria de side-bets.

Teorizando mais sobre grupos sociais do que comunidades, Homans (1950) destacou três fatores como condutores da coesão social: a interação, as atividades compartilhadas e os sentimentos compartilhados. Para o autor, esses fatores reforçam mutuamente os grupos sociais, visto que, quanto maior a interação entre as pessoas, maior a tendência de existirem sentimentos compartilhados e a realização de atividades em conjunto. A concepção de sentimentos compartilhados oferecida por Homans é similar à noção de crenças compartilhadas, descrita por Durkheim (1983), assim como a noção de atividades compartilhadas, que recai sobre as ideias durkheimianas de participação na ação coletiva.

Uma das teorias sociológicas mais contributivas para o desenvolvimento conceitual do comprometimento organizacional tem como preceptor Lawler e é conhecida como a teoria da coesão relacional (Lawler, 1992; Lawler & Yoon, 1993, 1995, 1996, 1998). Inicialmente, Lawler, isoladamente, e posteriormente, juntamente com Yoon, desenvolveram e testaram modelos experimentais que enfatizam o papel das trocas sociais e das emoções na criação da coesão e do comprometimento em redes sociais. Os autores consideram que, embora muitas relações de troca apresentam uma base instrumental, repetidas trocas contribuem para a construção de valores expressivos entre as partes envolvidas. Assim, a repetição, quer seja de comportamentos, da interação ou de trocas, tende a estimular e manter a coesão dos grupos sociais (Lawler & Yoon, 1998). É nesse sentido que se pode dizer que os processos cognitivos e afetivos da teoria da coesão relacional estão centrados nas emoções, fomentadas pelas repetidas trocas sociais ligadas aos processos de interação social e ao compartilhamento de comportamentos e símbolos.

Outro pesquisador que trouxe contribuições teóricas para a compreensão dos processos de influência social foi Apter (1964), o qual ressaltou a importância dos aspectos cognitivos e, mais especificamente, da criação de ideologias na constituição da solidariedade social. Os estudos de Apter enfatizaram os modos nos quais as ideologias unem as comunidades e fornecem um senso de identidade coletiva entre aqueles que compartilham as mesmas crenças. Ideologias, para o autor, são sistemas de crenças que ajudam a reconciliar fatos e ideias, além de fornecer um senso de coerência à confusão natural do mundo, servindo ainda como uma base moral para dar significado às ações. Compartilhando da mesma noção de que as ideologias ajudam na manutenção da coesão entre grupos sociais, o antropólogo Geertz (1964) considera que a ideologia é uma resposta às constantes e inevitáveis tensões, conflitos e contradições da vida social. Assim como Apter (1964), Geertz (1964) encara a ideologia como promotora da solidariedade social, criando um senso de comunidade que auxilia a manter a interação entre diferentes grupos. Os processos cognitivos e afetivos de influência social fundamentam-se, dessa forma, na ideologia, enquanto as interações sociais destacam a importância da solidariedade na manutenção dos vínculos sociais. Ao considerar os símbolos e comportamentos como processos, Geertz destaca que as ideologias são simbólicas, isto é, elas são representativas do sistema de signos e ações de caráter público.

Um segundo antropólogo que contribuiu com os estudos a respeito de como as pessoas se vinculam a grupos sociais foi Anderson (1983), quem trouxe a noção de "comunidades imaginadas". Anderson enfatiza que toda comunidade está baseada em sentimentos e cognições e, mesmo que todas as pessoas não se conheçam entre si, elas compartilham uma imagem mental de comunhão. Por essa concepção, todas as pessoas estariam vinculadas por um senso de identidade compartilhada. Assim como descrito por Durkheim (1893), Tonnies (1957) e Lawler (1992), Anderson sugere que as comunidades humanas são campos de troca e que, no plano dos símbolos e comportamentos, o compartilhamento da linguagem é fundamental para a coesão social.

Uma pesquisa conduzida mais recentemente pelo arqueólogo Hodder ofereceu uma nova evidência de que ideias e símbolos compartilhados podem apresentar um importante papel na formação das comunidades humanas no período neolítico (Balter, 1998). Em um gigantesco sítio arqueológico em Turkey, habitado por cerca de 10 mil pessoas, foram encontrados indícios de colonização datados de, aproximadamente, 9.000 anos atrás. Nesse sítio foram encontrados manequins de uma provável deusa-mãe e pinturas rupestres de animais selvagens e cenas de caça. Essas imagens, entretanto, guardavam um paralelo com imagens encontradas em outra caverna, habitada por outro povo, o que sugere uma possível transição para uma vida em comunidade, com a domesticação da agressividade inata. Tais achados apontam para o fato de que até as sociedades antigas compartilhavam ideias por meio de símbolos, e que, de alguma forma, alguns povos partilhavam cognições e simbolismos que os mantinham socialmente vinculados.

 

2 Vínculos estabelecidos entre indivíduos e grupos: as teorias psicológicas sobre processos de influência social

s estudos sociológicos e antropológicos sobre vínculos entre indivíduos e grupos (attachment) contribuíram de forma significativa com o campo do comportamento organizacional, favorecendo o desenvolvimento de teorias psicológicas voltadas a descrever os processos sociais que fazem com que os trabalhadores se tornem e permaneçam em coesão com uma organização. As teorias psicológicas que se destinam ao estudo do attachment trazem a noção de influência social para explicar o processo de vinculação entre indivíduos e grupos, concepção de fundamental importância para o entendimento de construtos na área organizacional, como envolvimento, lealdade e comprometimento organizacional. De acordo com Crano (2000), a pesquisa sobre processos de influência social tem sido um dos maiores marcos da Psicologia, juntamente com a teoria das atitudes. Desde os estudos clássicos de Triplet (1898), passando pela pesquisa da autoação, de Sherif (1935, 1936), até as investigações mais recentes de Kelman (2006), os processos de influência social têm se mostrado de grande relevância para o entendimento das percepções, atitudes e comportamentos dos membros de um grupo frente às demandas e exigências de um sistema social.

Entre as diferentes perspectivas sobre influência social, uma das mais contributivas para as pesquisas sobre comprometimento organizacional foi desenvolvida por Kelman (1958), que buscou investigar os processos envolvidos na construção de uma identidade nacional e ética, além do grau de envolvimento individual com um determinado sistema político. De acordo com Kelman, a identidade nacional é um produto coletivo adquirido pelos membros da coletividade no curso de sua socialização, os quais incorporam essa identidade a suas identidades pessoais em diferentes graus e de diferentes modos. Considerando assim o conjunto de processos que influenciam os indivíduos a assumirem posturas distintas frente a diferentes demandas sociais, três aspectos podem ser distinguidos como responsáveis por associar um indivíduo a um sistema social. O primeiro deles, o compliance, mais conhecido como aquiescência (anuência ou consentimento), ocorre quando um indivíduo aceita a influência de outra pessoa ou grupo com o objetivo de alcançar uma resposta favorável, tanto para obter recompensas específicas quanto para evitar punições que sejam controladas pelo outro, ou ainda, para obter aprovação ou evitar reprovação. A aquiescência representa uma aderência às regras ou normas do sistema social (incluindo leis e costumes), ou seja, diz respeito aos requisitos comportamentais prescritos aos membros do grupo. Indivíduos que aceitam a influência a partir deste processo asseguram-se de que as recompensas e as contingentes aprovações tenham continuidade, assim como a evitação de penalidades e de reprovação.

Considerando o conjunto de antecedentes do processo de aquiescência, é mais provável que tal tipo de influência seja empregado quando a principal preocupação da pessoa exposta à influência associa-se com o efeito social de seu comportamento, que estimula o agente a exercer o poder em grande medida baseado em meios de controle. Dessa forma, as técnicas de influência são desenhadas para limitar os comportamentos de escolha da pessoa e a motivação do indivíduo está direcionada às possíveis recompensas extrínsecas. A aquiescência se refere ao nível mais baixo da mudança de atitudes e comportamentos, visto que as atitudes do indivíduo são dirigidas somente para a evitação de conflitos e para a manutenção da imagem de sujeito "politicamente correto".

Em um segundo nível, o envolvimento de um indivíduo perpassa pelo desejo de afiliação, ou seja, ocorre quando o sujeito se comporta visando a manter o bom relacionamento com um grupo social. A esse segundo processo Kelman (1958) o intitulou identification (identificação). Segundo Monroe, Hankin e Van Vechten (2000), falar sobre identidade remete a filósofos como Platão, Aristóteles e Descartes, que trouxeram discussões acerca da essência do ser e sobre a base biológica ou social da constituição do ser humano. Um dos teóricos mais intimamente ligados ao tema identidade, dentro da Psicologia, foi Erik Erickson. Para Erickson (1980), cada pessoa tem: a) um senso consciente de identidade individual; b) um inconsciente empenhado na continuidade do caráter pessoal; c) um processo contínuo de desenvolvimento da síntese do ego; e d) a manutenção de uma solidariedade compatível com os ideais e a identidade do grupo. Em suma, o processo de identificação social de um indivíduo ocorre tanto pelo senso de continuidade e semelhança que ele guarda de si, quanto pelo senso de persistência que os outros compartilham a respeito do conceito que o sujeito tem sobre si próprio. De fato, dentro dessa visão, pouco se conhece sobre a verdadeira percepção que os outros têm sobre o senso de self que o sujeito desenvolve sobre si próprio, isto é, todo processo de identificação, embora apresente um forte caráter social, sempre dependerá do conjunto de percepções que são construídas individualmente.

De acordo com Monroe et al. (2000), existem dois tipos de identidade: a social e a pessoal. Enquanto a identidade social é constituída desde uma variedade de categorias sociais, atributos ou componentes derivados do autoconceito que o indivíduo compartilha com outros e que, finalmente, definirão os indivíduos como similares entre si, a identidade pessoal é formada por atributos que caracterizam um indivíduo como sendo distinto de outros indivíduos. Até 1950, poucos estudos sobre identidade referiam-se à identidade social, os quais apareceram, após esse momento, mais diretamente ligados a comportamentos de grupo, em que a identidade social era uma parte da identidade individual fornecida pela afiliação a um ou mais grupos, e influenciada pelos valores e emoções de cada grupo (Fine, 1986).

Seguindo a mesma concepção de Fine, Tajfel (1972), ao desenvolver a teoria da identidade social, define identidade social como o conhecimento individual do sujeito pertencente a certo grupo social, juntamente a algumas emoções e valores importantes para ele, associados a este grupo. Em 1981, Tajfel conceituou identidade social como uma parte do autoconceito de um indivíduo, o qual é derivado do seu conhecimento de afiliação a um grupo social, juntamente com os valores e significado emocional dessa afiliação. Sendo assim, com o objetivo de alcançar o estágio de identificação com o grupo, três componentes são necessários (Tajfel, 1972): 1º) um componente cognitivo, relacionado ao fato de um sujeito ter conhecimento de que faz parte de um grupo; 2º) um componente avaliativo, que representa uma avaliação de valores positivos e negativos envolvendo o vínculo estabelecido entre indivíduo e grupo; e 3º) um componente emocional, que presta suporte para o comprometimento afetivo para com o grupo e dá suporte ao componente avaliativo, sendo o componente mais importante para a determinação da identidade social (Bagozzi & Lee, 2002). Enfim, para que comportamentos entre os membros de um grupo venham a ocorrer, é necessário que haja um consenso sobre sua existência e, além disso, os seus integrantes devem ter a consciência da sua livre afiliação e valores internalizados do grupo. Outro importante achado de Tajfel (1970) demonstrou que, em situações de tomada de decisão em grupo, as pessoas tendem a favorecer os membros que fazem parte do grupo (in-group), preterindo os sujeitos do out-group. Essa tendência ocorre mesmo em construções artificiais de laboratório e quando não existe a competição por recursos entre grupos (Hogg & Abrams, 1988).

O processo de identificação, tal qual descrito por Kelman (1958), reflete uma orientação para o papel do membro do sistema social, além de outras funções dentro do sistema. Sendo assim, a identificação não apenas descreve um conjunto de requisitos comportamentais, mas representa uma parte importante do autoconceito do indivíduo. A aceitação do processo de identificação é mais provável conforme que a principal preocupação da pessoa exposta à influência está centrada na ancoragem social de seu comportamento, em que o poder do agente baseia-se em maior grau na atratividade, isto é, na posse de qualidades que fazem uma relação continuada com a particularidade que é desejável pelo agente. As técnicas de influência para esse processo se valem do conhecimento dos requisitos da relação de papel em que se ancora o autoconceito do indivíduo (como expectativas de um grupo de referência relevante). Ao aceitarem assim a influência por esse processo, os indivíduos satisfazem as expectativas do seu sistema de papéis, ao manterem uma desejada relação com o sistema e ao integrarem seu autoconceito a esses papéis. Estudos clássicos sobre identificação têm demonstrado que identidade social tem um impacto significativo sobre as atitudes, além de influenciar as intenções comportamentais e normas subjetivas externas (Terry, Hogg & White, 1999).

O último processo descrito por Kelman (1958), a internalização (internalization), ocorre quando o indivíduo aceita a influência de outra pessoa com o objetivo de manter uma congruência entre as ações e crenças do outro com o seu próprio sistema de valores. A congruência com os valores pode tomar uma forma de consistência cognitiva, em que o comportamento gerado pela internalização é percebido como potencializador dos valores próprios do sujeito, ou pode assumir ainda a forma de afetos apropriados, em que o comportamento induzido passa a ser percebido em continuidade com o autoconceito da pessoa. Por esse processo, os indivíduos dirigem seus comportamentos por valores e metas essencialmente internalizados que, por sua vez, são consistentes com os valores e metas do grupo. Ao aceitarem a influência por meio desse processo, os membros se sustentam nas implicações dos valores compartilhados, ao manterem uma harmonia com seus valores pessoais.

Se a preocupação principal do sujeito da influência é com a congruência entre seus valores e comportamentos, se o poder do agente baseia-se em maior grau na credibilidade (ex.: idoneidade) e se as técnicas de influência utilizadas servirem para reorganizar o panorama de significado final do sujeito, isto é, a sua concepção a respeito dos caminhos utilizados para maximizar seus valores, é mais provável que o processo empregado seja a internalização. Eagly e Chaiken (1993) sugerem que os valores podem ser construídos, de um modo geral, para envolver as crenças e as atitudes, assim como valores abstratos. A internalização se origina primariamente da informação comunicada para uma outra pessoa e reside no significado pessoal daquela informação (Deutsch & Gerard, 1955; French & Raven, 1959). O processo de internalização é o objetivo final de qualquer processo de mudança de atitude que se deseje bem sucedido, visto que há uma grande harmonia entre valores e crenças pessoais com os do grupo a que se pertence e que fazem com que a pessoa aja em várias situações da mesma maneira, independente da presença e da cobrança de outros. Com o objetivo de sintetizar o tipo de relacionamento estabelecido, de um modo geral, entre o agente (sistema social) e o alvo da influência (o indivíduo), em função do tipo de processo de influência social usado, Kelman (2006) avalia que, no processo de aquiescência, o alvo da influência consente as exigências do agente; no processo de identificação, o alvo se identifica com as expectativas do agente; e no processo de internalização, o alvo internaliza as ideias do agente.

De acordo com Kelman (2006), os três processos clássicos de influência sugerem diferentes modos pelos quais as pessoas podem ser integradas em um sistema social, tal como uma organização, quer seja pela aderência a regras, quer pelo envolvimento com seus papéis ou pelo compartilhamento com seus valores. Cada um desses componentes constitui um conjunto de padrões de comportamento dos indivíduos, sendo a aquiescência, a identificação e a internalização definidas, respectivamente, para cada um desses padrões.

A importância das regras, papéis e valores na socialização e no controle social pode ser constatada quando se procede a uma análise das reações emocionais dos indivíduos, principalmente em casos de desvio de padrões sociais perante a assunção de responsabilidades. De um modo geral, são considerados desvios de padrões sociais as violações a regras, expectativas de papéis ou valores, dependendo, assim, do nível o qual um determinado padrão foi socializado (aquiescência, identificação e internalização) e da estrutura cognitiva do sujeito (Kelman, 2006). No sentido de retificar os desvios de padrões sociais ou ainda evitar ou minimizar as consequências da violação dos padrões, as pessoas poderão utilizar, desse modo, distintas estratégias para lidar com as emoções e consequentes reações emocionais envolvidas na situação.

Do ponto de vista do interesse de uma organização no controle social, o processo de identificação aparenta ser a forma mais efetiva de socialização. Indivíduos que operam ao nível da aquiescência são insuficientemente socializados. Sua aderência às normas sociais depende da vigilância, que se faz menos confiável e mais difícil de controlar. Indivíduos que operam no nível da internalização são excessivamente socializados e carregados de um forte controle social. Uma vez que as normas sociais tenham sido integradas aos sistemas de valores do sujeito, ele tende a fazer seus próprios julgamentos sobre a validade da exigência imperativa. Sua conformidade com essas exigências é, assim, mais condicional. Indivíduos que funcionam ao nível da identificação são, assim, mais susceptíveis a se conformar com exigências imperativas com menos vigilância que aqueles no nível da aquiescência e com menos questionamento do que aqueles no nível de internalização.

Assim como ocorre com os diferentes tipos de socialização, a assunção de um dos três processos também varia de acordo com a qualidade da mudança. Quando uma estratégia de influência encontra-se baseada em ameaças e subornos, é mais provável que as mudanças sejam induzidas somente ao nível da aquiescência, enquanto uma estratégia baseada na reciprocidade é mais provável reforçar o valor da relação entre as partes e, por conseguinte, gerar mudanças ao nível da identificação. Enquanto a relação é transformada, as partes se tornam mais capazes de se engajar em conjunto na resolução de problemas e gerar acordos que satisfaçam as suas necessidades, gerando comprometimento e, por conseguinte, aumentando a propensão a mudanças relativamente estáveis e duradouras ao nível da internalização.

Diferentes pesquisas têm sido conduzidas visando testar a relação entre as reações emocionais de um sujeito e o modelo dos três processos de influência social, destacando-se a tese de doutorado de Adler, citado por Kelman (2006), que obteve constatações desse elo ao investigar as respostas comportamentais, cognitivas e emocionais de mulheres submetidas a aborto. Outra pesquisa acompanhada por Kelman buscou estudar o fator envolvimento pessoal no sistema político nacional norte-americano, na década de 1960. O cerne desse trabalho era compreender as diferenças qualitativas entre sujeitos que assumiam uma ideologia nacionalista, demonstrando aceitação para com um determinado sistema político, e os três processos de influência. Lançando um olhar sobre a natureza do vínculo entre indivíduo e sistema político, Kelman preconiza a existência de duas fontes de envolvimento e lealdade do indivíduo para com os sistemas políticos, a saber: a sentimental, responsável pelo apego afetivo do indivíduo em função da identidade cultural e étnica da população; e a instrumental, em que o vínculo do sujeito pode ser situado nas necessidades e interesses da população que são supridos pelo sistema. No nível individual, os vínculos sentimental e instrumental podem ser definidos em termos dos três componentes do sistema social: regras, papéis e valores que, por sua vez, estão associados aos processos de aquiescência, identificação e internalização.

Central para a análise do envolvimento pessoal em sistemas políticos é o conceito de legitimidade, que, em essência, refere-se à base moral (normativa) da autoridade do sistema, ou seja, diz respeito às requisições que são feitas aos indivíduos envolvidos em função dos direitos percebidos e da expectativa de lealdade. A base normativa, dentro dessa perspectiva, situar-se, portanto, dentro das origens sentimental e instrumental, visto que, para estar afetivamente ligado a um sistema, o indivíduo deverá entendê-lo como legítimo. Sua base afetiva deverá ser desenvolvida confiada na lealdade da população, já que é o sistema quem irá representá-lo e refletir a sua identidade. Além disso, a origem normativa do vínculo localiza-se no interior da base instrumental, representando as necessidades e interesses da população. Os três processos de influência social, representados pelas regras, papéis e valores referem-se, dessa maneira, aos critérios pelos quais a legitimidade percebida é gerada, avaliada e mantida. De um modo geral, tais processos de influência são bastante prováveis de se manifestar em diferentes níveis em todos os indivíduos, dependendo da situação em que se encontram e das circunstâncias do momento.

Pessoas orientadas para regras, papéis e valores são passíveis de utilizar diferentes critérios para avaliar o caráter obrigatório das exigências da autoridade, apresentando diferentes reações em função do suporte da exigência (aquiescência, identificação ou internalização). Tanto os indivíduos orientados para regras quanto para papéis são mais susceptíveis a cooperar com as exigências da autoridade. Entretanto, quando as pessoas orientadas para regras desafiam a autoridade é porque veem ameaçada a sua segurança, pela própria ameaça implícita à integridade das regras. Já as pessoas orientadas para papéis desafiam a autoridade, buscando responder às ameaças implícitas aos papéis que asseguram o seu status.

A prevalência de um desses três tipos de influência em um dado grupo depende das características do sistema, assim como da sua fase de desenvolvimento e exigências particulares que são prementes em um determinado momento. Se a exigência principal do sistema for garantir a conformidade de todos os membros do grupo, que é crucial para o bom funcionamento do sistema durante períodos de estabilidade interna, as autoridades do grupo estão mais propensas a promover uma orientação para regras. Se a exigência principal é a mobilização de todos os membros do grupo, que é essencial em períodos de grande crise interna ou mudança política, as autoridades estão mais susceptíveis a promover uma orientação para papéis. Finalmente, se a exigência principal do sistema for a consolidação da população, que é crucial durante períodos de relativa construção coletiva ou para o estabelecimento do status grupal, as autoridades estão mais propensas a promover uma orientação para valores.

Cada um dos três processos de influência social constitui um conjunto de padrões de comportamentos dos membros de um grupo e servem como base para a avaliação da qualidade do desempenho dos membros individuais. Kelman (2006) ressalta que, embora seu pensamento tenha sido desenvolvido sobre a natureza do envolvimento pessoal com a nação e Estado, tal quadro conceitual poderá ser igualmente aplicável para qualquer outro tipo de unidade social (sociedade, comunidade, organizações, instituições) ou qualquer outro tipo de grupo ou coletividade que tenha uma relação entre seus membros, desejo de permanência ao longo do tempo, e um conjunto de normas e expectativas compartilhadas.

 

3 Considerações finais

A pesquisa sobre comprometimento organizacional tem se mostrado fortemente vinculada a estudos teóricos e empíricos que buscam elaborar e testar definições constitutivas e operacionais para o construto, bem como a identificar o conjunto de antecedentes e consequentes que permeiam o comprometimento. Considerando assim, a grande complexidade na investigação do fenômeno, juntamente com a quantidade de perspectivas teóricas que buscam se acercar do conceito de comprometimento, atualmente ainda não existe uma definição constitutiva consensual para o comprometimento organizacional, estando muitas vezes descrito como sinônimo de outros construtos, como identificação, cidadania, satisfação, lealdade, entre outros. Grande parte dos estudos clássicos sobre comprometimento organizacional, como os de Becker (1960), Mowday, Steers e Porter (1979) e Allen e Meyer (1990), embora traga definições importantes para a explicação do fenômeno, favorece a polissemia do construto, associando-o ora a uma perspectiva atitudinal, em que o comprometimento é entendido como o processo pelo qual as pessoas pensam a relação com sua organização, ora a uma abordagem comportamental, que visam avaliar o comprometimento dos trabalhadores por meio de comportamentos expressos ou consequentes do comprometimento, como motivação e desempenho.

Com a dissociação da investigação do comprometimento organizacional entre a dimensionalidade do construto, que configura a visão atitudinal, e o foco na ação ou o resultado da ação, que traduz a perspectiva comportamental, é comum que o estudo das raízes históricas do comprometimento remeta-se somente aos processos de influência social, discutidos por Kelman (1958), para dar legitimidade ao comprometimento atitudinal, ou aos estudos de Becker (1960) e Salancik (1977), para justificar a noção de que as pessoas se comprometem com ações, fundamentando assim a visão comportamental. A pesquisa sobre comprometimento carece, assim, de estudos históricos que apontem para a relação entre o construto e outros processos de influência e vinculação social, estudados por áreas de investigação, como a Sociologia e a Antropologia, bem como pela Psicologia social, oferecendo um maior aprofundamento teórico sobre a caracterização do comprometimento organizacional. Em face de tais considerações, o este artigo teve como propósito apresentar a origem social do comprometimento organizacional para além do campo do comportamento organizacional, identificando-o como um tipo de vínculo social mais abrangente. Além disso, teve por escopo demonstrar que o entendimento mais aprofundado do modo como se estrutura o comprometimento organizacional, bem como a consecução de uma definição de maior consenso para o fenômeno deverá fazer avançar as discussões para além das perspectivas teóricas ou variáveis antecessoras ou consequentes do comprometimento, lançando um olhar sobre o conhecimento de teorias de trocas sociais (exchange theory), compartilhamento de símbolos e relacionamento entre processos cognitivos e sociais que dirigem e mantém o vínculo estabelecido entre indivíduo e grupo.

 

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* Doutor em Psicologia, coordenador do Núcleo de Instrumentos e Medidas da UFBA (Universidade Federal da Bahia). E-mail: igor.menezes@ufba.br.
** Doutor em Psicologia, diretor do Centro de Estudos Interdisciplinares para o Setor Público da UFBA (Universidade Federal da Bahia). E-mail: virgilio@ufba.br

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