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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.1 Belo Horizonte Apr. 2010

 

ARTIGOS

 

A exclusão do Bartleby de Melville e a"inclusão" do doente mental na sociedade

 

The exclusion of Melville’s Bartleby and the"inclusion" of the mentally ill into society

 

La exclusión del Bartleby de Melville y la"inclusión" del enfermo mental en la sociedad

 

Oswaldo França Neto *

 

 


Resumo

Para a psicanálise, o resto (objeto a) é aquilo que causa, que coloca em movimento. E ele faz isso por forçar a apresentação, no universal aceito, de uma hiância fundamental, algo que coloca em xeque as referências básicas desse universal, exigindo, assim, sua (re)construção. Na civilização capitalista-democrática ocidental, também encontramos nossos restos. Seriam os excluídos, significante que se tornou elemento importante em qualquer discussão que tenha conotações"humanitárias". Busca-se sempre, nessas discussões, reincluir esse resto, absorvendo-o na rede do sistema. Essa forma de lidar com o resto retira toda sua força. Ao tratá-lo como impotência e não como impossibilidade, o resto é esvaziado de seu valor de verdade. Tomando como referência o caso Bartleby de Melville e entendendo os doentes mentais como um dos restos de nossa civilização, este texto visa a problematizar os termos"inclusão" e"exclusão" e algumas consequências de seus usos.

Palavras Chave: resto; inclusão; singularidade; universal; reforma psiquiátrica.


Abstract

In psychoanalysis, the remainder (object a) is what causes, what puts the subject into action. It does so by forcing the presentation of a fundamental gap in the accepted universal, something that questions the basic references of that universal, therefore requiring its (re)construction. In western capitalist-democratic society, we also find our remainders. They would be the social"outcasts", a signifier that has become an important element in any discussion with"humanitarian" connotations. In such discussions one often seeks to re-include those remainders by absorbing them into the system network. This way of dealing with remainders takes away all their strength. Being treated as impotence and not as impossibility, remainders are deprived of their true value. Taking Melville’s Bartleby case as reference and considering the mentally ill as one of the remainders of our civilization, this article seeks to question the terms"inclusion" and"exclusion" and some consequences of their use.

key-words: remainder; inclusion; singularity; universal; psychiatric reform.


Resumen

En el psicoanálisis, el resto (el objeto a) es lo que causa, lo que pone en movimiento. Y lo hace forzando la presentación, universalmente aceptada, de una diferencia de algo fundamental. Esto, pone en jaque las referencias básicas de cualquier universal, exigiendo una reconstrucción. En la civilización capitalista-democrática occidental igualmente encontramos nuestros restos. Serían los excluidos, un estamento social significativo que ha llegado a tener una gran importancia en todo debate que tenga connotaciones"humanitarias". En estas discusiones siempre se busca volver a incluir este resto, absorbiéndolo en la red del sistema. Esta manera de tratar el resto le quita toda su fuerza. Tratándolo como impotencia y no como imposibilidad, le vacía de su auténtico valor. Tomando como referencia el caso de Melville Bartleby y considerando a los enfermos mentales como uno de los restos de nuestra civilización, este trabajo pretende discutir los términos"inclusión" y"exclusión", además de algunas consecuencias de su uso.

Palabras claves: resto; inclusión; carácter singular; universal; reforma psiquiátrica.


 

 

A grande dificuldade que se defronta atualmente o campo da saúde mental é como incluir, na sociedade, os egressos dos hospitais psiquiátricos. A reforma psiquiátrica tem, passo a passo, avançado na tentativa de alcançar seu primeiro grande objetivo, ou seja, mudar o modelo assistencial do portador de sofrimento mental no Brasil, passando progressivamente do modelo hospitalar para o ambulatorial. Os hospitais psiquiátricos privados perderam suas guias de internação, restritas agora aos hospitais públicos, que têm restringido, ao máximo, o período de internação dos pacientes. Estes, assim que possível, são reencaminhados para os serviços substitutivos, continuando seu tratamento não mais intramuros, mas no espaço social. Se esse primeiro objetivo, apesar de frequentemente de forma precária, está se sustentando em boa parte das situações, tornando-se diretriz para a saúde pública, tem-se mostrado urgente pensar os mecanismos de convivência desses sujeitos no meio social e as ferramentas que teríamos para promovê-la. O significante mestre que tem sido usado para explicitar esse objetivo é o da inclusão, em oposição à situação de exclusão à qual eles estariam relegados. O termo inclusão, assim, adquiriu uma poderosa carga semântica.

Em termos lógicos e matemáticos, para o dicionário Le petit Robert (Robert, 2005), inclusão é uma"relação entre duas classes, entre dois conjuntos, dos quais um está incluso no outro (=> implicação). Inclusão recíproca => identidade" (Ibidem, p. 1334 [tradução do autor]). Ou seja, inclusão significa fazer parte e, se levada ao extremo (“inclusão recíproca"), ela estabelece uma identidade. Quando falamos de inclusão, falamos de conjuntos e subconjuntos nos quais o que está incluído faz parte (como subconjunto) de um contexto maior (conjunto). Assim, por exemplo, se estamos incluídos na universidade ou fazemos parte do subconjunto de alunos, ou de professores, ou de funcionários encarregados da limpeza ou da administração. Esse exemplo é particularmente útil, já que universidade remete a universo. Existiria um universo, ou um contexto (que pode ser grande ou pequeno, mas que nós chamaríamos de universo) que faz Um, onde tudo o que existe está subsumido a uma rede de conexões, fazendo-os funcionar como uma unidade. Quando alguém está incluído, significa que ele tem um lugar discernível no Outro.

Todas as pessoas estão (ou pelo menos buscam estar) incluídas em alguma coisa, seja uma família, uma escola, um país, uma ideologia, uma religião ou outro universo qualquer. Essa inclusão é necessária, apresentando-se como o solo que as referencia e tranquiliza. A discussão sobre a inclusão, então, está diretamente concernida àquilo que garante nossa sobrevivência. A exclusão, ou o sentir-se excluído, não apenas é motivo de estresse como é também causadora de perda de rumo, de referências e de sentido.

Mas a inclusão tem seus problemas. Ela, em última instância, significa submissão, o que Lacan, no Seminário XI, trabalhou em termos de alienação (Lacan, 1985). Significa submeter-se às vontades e desejos de algo superior, abdicando-se daquilo que nos diferencia e singulariza. O obsessivo, figura clássica da psicanálise, é aquele que se acha perdido na inclusão, escravo do grande Outro. A questão típica do obsessivo é: estou vivo ou estou morto? E esse estar morto tanto tem o sentido de sua morte como sujeito, já que alienado no Outro, como desejo de escapar do Outro, sendo a morte uma forma de enganá-lo.

 

A democracia capitalista

Atualmente fazemos parte de um grande universo, que é o universo capitalista. A política tradicional, talvez como nunca, está desacreditada. E essa descrença não é cativa apenas do Brasil. Ela acontece em todos os países do Ocidente, tornando-se quase que um apanágio da democracia representativa, pelo menos da forma como a conhecemos.

E tudo se nos apresenta como se fosse impossível escapar dessa democracia, assim como não seria possível escapar do capitalismo. Existem, talvez, possibilidades de se excluir dele (ou dela), mas sabendo sempre que a referência para essa exclusão será sempre o próprio sistema capitalista. Ou seja, quando falamos em exclusão, em última instância estamos falando em exclusão da lógica do grande supermercado de consumo. E quando o sistema ou as instituições falam em inclusão, em última instância, estão falando de inclusão na lógica desse supermercado.

Aparentemente não há como escapar a essa forma de pensar, pois o sistema capitalista passou a apresentar-se como absoluto. Seu discurso, seus significantes, não encontra opositores. As próprias pessoas que se dizem contrárias ao sistema, nomeando-se como de esquerda, usam no seu discurso os mesmo significantes do discurso hegemônico. Eles falam em defesa dos excluídos, sem se darem conta que o termo exclusão é um termo essencial da lógica dominante. Ou seja, a proposta que eles trazem nada mais é do que uma"humanização" do sistema, mas não verdadeiramente uma ruptura. Talvez porque aparentemente não exista nada que possamos colocar no lugar. Fukuyama (2003), por exemplo, em uma afirmação que se tornou famosa em alguns círculos, disse termos chegado ao fim da história. Segundo ele, o capitalismo teria conseguido finalmente fazer Um de toda a civilização. Sob a grife do termo"globalização", ele teria conseguido sucesso onde a religião teria falhado, não havendo nada melhor para substituí-lo, restando-nos apenas aprimorá-lo. Slavoj Zizek (2008), contrapondo-se ao fim da história de Fukuyama, ressalta o engodo desse universal unificado, evidenciado nos restos por ele produzidos, e que insistem como tal, apesar de todas as tentativas de inclusão.

Frente à utopia capitalista e sua ilusão de globalização, como devemos lidar com os restos que ele produz? A solução para a exclusão seria sua mera inserção, ou inclusão, na grande máquina do consumo? De excluídos a incluídos - pronto, o problema está resolvido?

 

O sujeito e a inclusão

Para a psicanálise, sujeito é sempre sujeito do desejo. E o desejo não sobrevive na alienação, o que imediatamente nos remete às questões referentes à ética. Porém uma ética específica, aquela da psicanálise, que é bem distinta do que chamaríamos de moral. Enquanto esta última se assenta em imperativos concretos, um bem universalizável (segundo Kant), a ética da psicanálise se apresenta como um imperativo faltoso, a ser descoberto, a ser discernido em cada caso, em cada sujeito.

Sujeito e ética, assim, remetem a uma falta de lugar no Outro, ou pelo menos à constatação de que esse lugar é meio indiscernível, meio ilocalizável. Não significa que haja aí uma negação do sistema ou o objetivo de destruílo. Mesmo porque, como foi dito acima, aparentemente não encontramos nenhum significante que atualmente se apresente como já não pertencente à lógica do sistema. Se os termos que utilizamos são exclusão e inclusão, estes conceitos não deixam de ter um sentido e uma função bem clara no status quo. Buscar um disfuncionamento no sistema não significa necessariamente lutar contra ou tentar destruí-lo, mas criar, nele, uma diferença mínima.

Badiou, em seu livro Le siècle (2005), propõe que o século XX se constituiu desde duas formas de paixão pelo real. A primeira, mais evidente, seria a que ele nomeou por via destrutiva. Esta, da qual os exemplos maiores seriam Stalin e o nazismo, assentar-se-ia sobre a concepção de que um sujeito só poderia existir na ausência de qualquer forma instituída, perenizando-se na ilusão de uma destruição contínua, depuradora, que prometeria, num futuro nunca alcançado, a existência de um sujeito depurado de todos os males. Como estratégia, essa via lançar-se-ia em uma nomeação incessante de restos e sua posterior destruição, para repetidamente resgatar o momento exato da disrupção. Dessa forma, e pelo menos sob esse aspecto em consonância com o capitalismo, também não haveria aqui espaço para a convivência com os restos. A segunda forma de paixão pelo real, nomeada por ele como via subtrativa, seria mais silenciosa. Esta buscaria o sujeito na diferença mínima. Ela não assentaria o sujeito na destruição, ou depuração, mas o encontraria no desvio, na pequena diferença, em um movimento que se daria em subtração ao sistema e não em um confronto direto que visasse à disrupção. Freud, exemplo dessa segunda via, se referia à psicanálise como transitando no campo da subversão e não da revolução.

Mas como entender, nessa busca pela diferença mínima, o termo inclusão? Se o objetivo não é destruir o sistema, e se, quando falamos em inclusão, estamos pensando em inclusão no sistema, onde vamos encontrar o sujeito?

Nós poderíamos tentar buscar um caminho para desdobrarmos essa questão, por exemplo, na Matemática. Uma singularidade, que em uma de suas definições possíveis seria aquilo que se apresenta, mas não se representa (apesar de se fazer presente, não se deixa predicar, mantendo-se assim inassimilável pela situação) (Badiou, 1996, p. 398), trata-se do"Um disjunto do universal" (Garcia, 2002, p. 313), ou do Um que não se deixa apreender em nenhuma das partes do sistema. Não propriamente por não aceitar fazer parte de classe alguma, mas, ao contrário, por não se deixar excluir por nenhuma delas. Ou seja, uma singularidade é aquilo que, apesar de se apresentar como pertencente ao sistema, não se deixa subsumir como parte, não se deixa incluir. Mas qual a diferença, então, entre uma singularidade e aqueles indivíduos que nós chamamos de excluídos, já que ela, ao não fazer parte, não deixaria também de ser uma forma de exclusão?

A diferença estaria no fato de que a singularidade, mesmo que possamos propô-la como estando no registro da exclusão, não deixa de se apresentar como elemento do sistema. Ela é uma exclusão interna, um fora/dentro do sistema. O grande Outro a reconhece como elemento de sua rede, mas fica confuso ao tentar discernir seu lugar na engrenagem, não identificando com precisão seu papel, sua função ou forma de funcionamento. Ela circula aqui e acolá, aceitando os significantes identitários que o Outro insiste em lhe imputar, porém sem se colar integralmente a eles. Enquanto os excluídos propriamente ditos, ao serem identificados como tal, acabam por tornaremse bem localizados pelo sistema (do lado de"fora"), os singulares, apesar de aceitarem os laços que o sistema insiste em lhe imputar, não se deixam, no entanto, ser cerceados por eles1. As singularidades"desconcertam" o sistema.

 

Bartleby e sua desconcertante inclusão

Melville, em 1853, publicou um livro no qual nos apresenta um personagem que, posteriormente, foi motivo de longas considerações por pensadores não pouco importantes como George Agamben e Gilles Deleuze. Trata-se de Bartleby, o escrivão (Melville, 1853/2005), com sua desconcertante frase,"I would prefer no to", que foi traduzida para o português por"Preferiria não". Este enigmático escrivão, a partir de certo momento, começa a"preferir" não mais executar as tarefas que lhe eram designadas, tornandose progressivamente um escrivão que"prefere" não mais escrever. Apesar de, efetivamente, parar de exercer a atividade que justificava sua contratação e o definia profissionalmente, o fato de fazê-lo por meio dessa frase desarma o patrão, que se sente confuso e impotente para fazer valer a autoridade. O argumento da preferência evita o confronto, impedindo a pura aplicação da dicotomia do sim e do não, comprometendo ambos, Bartleby e o patrão, no incerto terreno das hesitações, em que os limites das palavras e a universalidade da comunicação mostram-se falhos.

Segundo Agamben, essa desconcertante frase, apesar de gramaticalmente correta,"não escreve nada além do que o seu poder de não escrever" (Agamben, 1990, p. 43 [tradução do autor]). Seu término abrupto (“no to") acaba por deixar indeterminado o ato ao qual se referiria, refletindo-se sobre si mesma em um movimento circular infindável (I would prefer no to prefer no to...), em que Bartleby resguarda-se da efetivação de seu ato. Não há, em Bartleby, uma atitude passiva ou de desistência, mas uma decisão de não decidir, onde ele opta por não se comprometer, deixando em aberto a possibilidade ou potência de executar ou não o seu ato. Teria, como afirma Deleuze, algo do negativismo dos psicóticos, ao qual não poderíamos reduzir a uma simples negação, mas se trataria antes de uma recusa em aceitar os significantes que o Outro lhe imputa, resguardando-se do ato de decidir qual inscrição o definirá. Lacan, também falando da psicose, nos diz da"liberdade negativa de uma palavra [parole] que renunciou a se fazer reconhecer" na loucura, objetivando o"sujeito numa linguagem não dialética" (Lacan, 1954/1998, p. 281). De forma similar ao"Preferiria não" de Bartleby, que, ao ser enunciado,"desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo que faz de Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode ser atribuída" (Deleuze, 1997, p. 85), poderíamos entender nessa"liberdade negativa" proposta por Lacan na psicose, uma negação às referências oferecidas pelo Outro. O psicótico, em situação de absoluta recusa, pode adotar uma posição irônica, pontuando a inconsistência das referências que lhe são apresentadas, ou pode mesmo se isolar em seu mutismo. Assim como Bartleby, ele se subtrai aos discursos, preservando-se livre de qualquer determinação.

Agamben dedicou um livro a Bartleby, traduzido para o francês por Bartleby ou la création (Agamben, 1995). No italiano e no espanhol, porém, no lugar de"criação" vem o termo"contingência". Para Agamben, Bartleby se resguarda na pura potência, ao preservar-se de efetuar o ato que o fixaria. Ele manter-se-ia aberto a todas as possibilidades, independente até mesmo da vontade, explorando ao limite a ordem da contingência:

[...] a potência, na medida em que ela pode ser ou não ser, é por definição subtraída às condições de verdade, e, antes de tudo, à ação do mais forte de todos os princípios, o princípio de contradição.

Um ser que pode ser e ao mesmo tempo não ser chama-se, em filosofia primeira, contingente. A experiência em que se arrisca Bartleby é uma experiência de contingentia absoluta (Agamben, 1995, p. 59-60 [tradução do autor]).

Trabalhando a questão da identificação, Deleuze nos diz que esta"mobiliza uma função paterna em geral: a imagem é por excelência uma imagem do pai, e o sujeito é um filho, mesmo se as determinações se intercambiam" (Deleuze, 1997, p. 89). No caso de Bartleby, para Deleuze, haveria uma destituição da função paterna, apresentando-se este"como nova universalidade" (Ibidem, p. 97). Apesar de algo do processo de identificação ainda poder ser encontrado na relação entre Bartleby e seu patrão, com sua frase enigmática, ele se desloca e desorganiza. Encontramos, em Bartleby, um homem sem referências ou sem qualquer particularidade que o possa referenciar a alguma universalidade identificável. Lembra-nos do que o próprio Melville descreve em 1857 como aquele que seria um personagem realmente"Original". Ao contrário dos personagens"insólitos, ou extraordinários, ou impressionantes, ou cativantes", que, apesar de serem difíceis de encontrar, fazem parte de nossa sociedade e de nossas histórias, os"Originais","no sentido de que Hamlet é, ou Don Quixote, ou o Satã de Milton", são raríssimos. Enquanto os outros têm particularidades que permitem que os classifiquemos, os Originais têm algo de inclassificável, inapreensível, espalhando uma luz que modifica de forma irreversível tudo e todos que os cercam, em"um efeito semelhante, a seu modo, àquele que no Gênesis acompanha o começo das coisas" (Melville, 1857/1992, p. 251-252).

 

O universal como genérico

Badiou, em seu livro O ser e o evento, propõe o termo genérico (ou procedimento genérico) como sendo aquilo que,"para todo determinante da enciclopédia, ele contiver ao menos uma investigação que evita esse determinante" (Badiou, 1996, p. 392). Ou seja, o genérico é aquele elemento investigativo que, apesar de se apresentar como elemento, não se deixa limitar por classificação alguma. Ele é universal não por fazer Um de todos os conjuntos, mas por pertencer a todos os que se apresentarem, posto que nenhum conseguirá classificá-lo, restringindo seus desdobramentos. O resto, ao contrário, não é reconhecido como elemento e, apesar de eventualmente permanecer sem predicações, em geral é classificado de alguma forma, por meio de um dos vários significantes que o Outro usa para nomeá-lo, como"favelado","imigrante sem documento","doente mental", etc. Colado a um nome que o agrupa e o discrimina (localiza-o como estando do lado de"fora"), o resto permanece individualmente sem rosto, tendo sua existência negada como elemento, sendo classificado como uma parte dispensável e indesejável ao funcionamento do sistema.

O genérico, então, é algo que se apresenta, mas que, ao se apresentar, não deixa que nenhum predicado o aprisione. Ele é ilimitado, mas não um ilimitado por ocupar, de antemão, todos os espaços, mas devido à sua capacidade em continuar a se expandir sempre que convocado a conferir seus limites. O genérico não tem, em si, pretensões a se constituir como totalidade, ou seja, não se propõe como Um. Mas nenhum predicado, nenhuma conta por Um consegue restringir sua expansão.

Nessa concepção, não há antagonismo entre singular e universal. Para Badiou,"um termo é singular se for apresentado [...], mas não representado [...]. Um termo singular pertence à situação, mas não está incluído nela. É um elemento, mas não uma parte" (Ibidem, p. 398). A singularidade não se deixa predicar (classificar), pois, apesar de se apresentar no campo como elemento deste, mostra-se depurado de todas as identificações que poderiam fazer dela parte exclusiva de algum conjunto. Uma singularidade radical, por estar na borda do vazio, é fundadora de um novo campo, determinado este pelas investigações (procedimento genérico) que ela suscita. Investigações factíveis, pelo menos em alguns pontos, a todos os conjuntos que se lhe apresentem.

Estamos aqui naquela que parece ser outra concepção de universal, que se definiria não por fazer Um de todas as classificações, mas por não se deixar limitar por nenhuma delas, podendo assim vir a apresentar-se como elemento (singularidade) de não importa qual conjunto. Seria um Universal não todificado, que não teria pretensões em fazer Um. Sua existência se dá no território, na exclusão, aqui e agora, de qualquer predicado que defina o que o rodeia.

Porém, apesar de não se deixar limitar, esse universal genérico também teria inimigos. Enquanto o universal que faz Um vê como inimigo tudo aquilo que não se deixa incluir (colocando em xeque sua todização), esse segundo universal veria como inimigo tudo ou todos que colocassem obstáculos às suas investigações, ou seja, que o impedissem de explorar, em todas as situações que se lhe apresentem, suas possibilidades de desdobramentos. Sua dimensão universal não é suposta desde o início, mas se efetua localmente, no um a um. Trata-se de um universal que se dá de forma imanente, dispensando a transcendentalidade. Ele parte do local, do território, podendo diminuir ou aumentar indefinidamente, porém sem ter pretensões, ou carrear em si a pretensão de totalidade. Trata-se, citando Rancière, de um"para todos" não segregador [Rancière, 1995. (..."la manifestation sul la scène politique de la part des sans part"...)]. Esse universal, por se definir a partir do singular e não do particular (predicados), ao não propor totalidades, poderia dispensar a necessária exclusão que a concepção anterior exige.

Nessa outra concepção de universal, concebendo-o não como aquilo que unifica o Todo, mas como o que não compactua com o Um de não importa qual classificação (como aquilo que não se deixa predicar), nós estamos trazendo-o para o território, dispensando nele um utópico caráter abstrato de transcendentalidade, e efetuando-o no local, passo a passo, em cada nova investigação.

Nesse outro universal, o que corresponderia ao resto da concepção anterior também produziria seus efeitos no campo. Porém, no lugar de se contraporem ao universal, os restos, que, ao conseguirem se apresentar, o fazem agora como singularidades, serão eles próprios o que passaremos a partir de então a nomear como universal. Se, na primeira concepção, o resto seria aquilo que necessariamente sobraria para que o universal se constituísse, na segunda ele seria o universal propriamente dito, ou, sendo mais preciso, o solo necessário para a apresentação/constituição de um universal que se daria localmente (singularidade), dispensando a transcendentalidade, e que se efetuaria a cada passo, a cada nova experimentação.

O resto, aqui, não é algo que sua apresentação tenha por objetivo a destruição do sistema, mesmo que o sistema o veja como tal em alguns momentos, e, com razão, sinta-se ameaçado por ele. O Outro, em defesa de sua lógica do particular, quando não consegue impedir que o resto se apresente como elemento (singularidade), insiste em classificá-lo, tentando identificá-lo a algum nome que passaria, a partir de então, a funcionar como aquilo que o predicaria. Ian Hacking, por exemplo, fala-nos das consequências de nomearmos uma espécie:"Utilizar um nome para uma espécie, é (entre outras coisas) querer realizar generalizações e formar antecipações concernente aos indivíduos dessa espécie" (Hacking, 1993, p. 9 [tradução do autor]). Classificar é predizer, estabelecer inferências (predicados) que seriam necessárias para a universalidade dos indivíduos daquela espécie, distinguindo-os de outras espécies.

Lacan, no Seminário XXIII, diz que nós devemos"prescindir do Nome do pai [...] com a condição de nos servirmos dele" (Lacan, 2007 󞩨], p. 132). Ou seja, não se trata nem de se rebelar contra o sistema e das nomeações que este lhe imputa, nem de se deixar engolir por sua engrenagem, mas de permanecer sujeito apesar dele. Giorgio Agamben tem uma frase que é muito elucidativa nesse sentido:

[...] fique na sua condição jurídica, em sua vocação social - porém transformando-as completamente por meio dessa forma do como não. Parece-me que a noção de uso, nesse sentido, é muito interessante: é uma prática da qual não podemos consignar o sujeito. Você permanece escravo, mas, desde que disso você faz uso, por meio do modo do como não, você não é mais escravo (Agamben, 2000, p. 4 [tradução do autor]).

Se as nomeações são encarceradoras e inevitáveis, não se trata necessariamente de negá-las, mas de reconhecer seu caráter de semblante e de saber tratá-las como tal.

 

A reforma psiquiátrica

Ao retirarmos os doentes mentais dos asilos e forçarmos sua convivência na sociedade, nossa primeira tendência é tentar"normatizá-los", ou seja, tornálos compatíveis com as normas do sistema, para que este não os veja como uma ameaça e possa aceitá-los. Nós tentamos identificá-los a significantes que os tornem reconhecíveis pelo Outro, concedendo-lhes, assim, particularidades que permitam que este os classifique, tornando-os ilusoriamente previsíveis e, dessa forma, passíveis de assimilação. Em outros termos, na busca de viabilizar sua existência no Outro, nós buscamos, de todas as formas, incluí-los em sua lógica de funcionamento.

Nessa tentativa, se exitosa, o grande risco que corremos é de voltarmos à mesma situação que buscávamos evitar ao denunciarmos o hospitalismo. Teremos, sem dúvida, tornado a existência dessas pessoas mais humanizada, posto que não mais aprisionadas em"depósitos" sob condições precaríssimas. Mas elas continuarão a existir de uma forma assujeitada, agora não mais às restritivas regras de uma instituição nosocomial, mas à também não menos restritiva lógica de um Outro que não admite furos.

A grande dificuldade que nos defrontamos agora, neste movimento de desospitalização, é como viabilizar a existência, como sujeitos, desses indivíduos que, no sistema capitalista, aprendemos a identificar como restos. Não basta nomeá-los e tentar incluí-los em alguma classificação assimilável, tarefa esta de início condenada ao fracasso, já que eles são considerados excluídos exatamente por resistirem, individualmente, a qualquer tipo de assimilação. Se os muros nosocomiais foram (ou estão sendo, a duras penas) derrubados, a grande dificuldade agora é forçar, ao Outro, o reconhecimento da existência de restos inassimiláveis, e, consequentemente, de sua universalidade furada. Os verdadeiros restos não o são por impotência, mas por impossibilidade do sistema em incluí-los em sua universalidade, o que imediatamente coloca em xeque a veracidade ilusória desse universal.

Se a derrubada dos muros continua a mostrar-se tão difícil, se as resistências e os impedimentos não cessam de se apresentar, é porque a questão aqui envolvida vai muito além do que um mero problema humanitário. A reforma psiquiátrica é um daqueles movimentos que, sustentada, faz vacilar as certezas de um sistema que se sustenta na ilusão de sua universalidade.

 

Referências

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Recebido: outubro de 2009
Aprovado: abril de 2010

 

 

* Doutor em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor adjunto do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: oswaldofranca@yahoo.com

1 O sistema, ao identificar seus restos, é capaz de estabelecer um lugar para eles. Nesses momentos, ele o classifica como sendo aquela parte que representa seu fracasso, e que deve ser mantida na invisibilidade, em situação de exclusão. O resto é, paradoxalmente, ao mesmo tempo indesejável e de extrema importância, já que sua incômoda existência se torna a justificativa de todo o esforço repressivo gasto na preservação do status quo. Já os singulares, ao contrário, apresentam-se como uma espécie de"exclusão interna". O sistema não consegue mantê-los na invisibilidade, sendo obrigado a reconhecêlos como um de seus elementos, apesar de não conseguir classificá-los, não conseguir estabelecer o lugar que ocupam em sua rede de conexões. Mais à frente, falaremos do que Alain Badiou nomeou"procedimento genérico" (Badiou, 1996, p. 227), que seria resultado de um forçamento, na situação, da apresentação de algo que até então era mantido como inexistente como elemento.

Agradeço ao Prof. Célio Garcia, pela contribuição inestimável na elaboração deste texto.

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