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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.2 Belo Horizonte ago. 2010

 

ARTIGOS

 

Dizer o sofrimento: fenomenologia, cognitivismo, pragmática

 

Expressing suffering: phenomenology, cognitivism, pragmatics

 

Decir el sufrimiento: fenomenología, cognitivismo, pragmática

 

 

André Berten *

 

 


RESUMO

As experiências existenciais comportam um aspecto subjetivo e não podem receber uma expressão que as tornam integralmente comunicáveis. Mas isso não implica a aceitação do solipsismo a que condenam as filosofias da consciência, como a fenomenologia husserliana ou sartreana. E se o cognitivismo mostra que, na experiência subjetiva, há um suplemento não objetivável, a hermenêutica indica como é possível, pela linguagem narrativa, conceber certa comunicabilidade, embora semanticamente limitada, dos estados subjetivos. A Psicologia cognitiva, de outra maneira, com base na teoria das categorias e da ideia de aprendizagem, aponta para um universal parcial, tornando possível certa comunicação das emoções. No entanto, é somente na ação comum, na pragmática, que as hipóteses interpretativas podem superar sua indeterminação e ser eventualmente confirmadas.

Palavras-chave: subjetividade; comunicação; fenomenologia; Psicologia cognitiva; hermenêutica; pragmática.


ABSTRACT

Existential experiences involve a subjective aspect and cannot accommodate an expression that makes them integrally communicable. But this does not mean the acceptance of the solipsism implied by philosophies of consciousness, such as Husserl’s and Sartre’s phenomenology. If cognitivism indicates that, in subjective experience, there is a supplement that cannot be rendered objective, hermeneutics shows how it is possible, through narrative language, to conceive some communicability, although semantically limited, of subjective states. On the other hand, with basis on the theory of categories and the idea of learning, cognitive psychology points out a partial universal, making possible some communication of emotions. However, it is only in common action, in pragmatics, that interpretive hypotheses can overcome their indetermination and be eventually confirmed.

Keywords: subjectivity; communication; phenomenology; cognitive Psychology; hermeneutics; pragmatics.


RESUMEN

Las experiencias existenciales comportan un aspecto subjetivo y no pueden tomar una expresión que las haga totalmente comunicables. Pero esto no implica la aceptación del solipsismo a que filosofías de la conciencia, como la fenomenología husserliana o sartreana las condenan. Ahora, si el cognitivismo muestra que en la experiencia subjetiva existe un componente no objetivable, la hermenéutica indica como es posible, a través del lenguaje narrativo, concebir una cierta comunicabilidad, todavia que semanticamente limitada, de los estados subjetivos. La psicología cognitiva, de outra forma, a partir de la teoria de las categorías y de la idea de aprendizado, apunta para un universal parcial, haciendo posible cierta comunicación de las emociónes. Sin embargo, es sólo en la acción comun, en la pragmática, que las hipótesis interpretativas pueden superar su indeterminación y ser eventualmente confirmadas.

Palabras clave: subjetividad; comunicación, fenomenología, psicología cognitiva, hermenéutica, pragmática.


RÉSUMÉ

Les expériences existentielles comportent um aspect subjectif et ne peuvent recevoir une expression que les rende integralement communicables. Mais cela n’implique pas que nous soyons condamnés au solipsisme des philosophies de la conscience, comme la phénoménologie de Husserl ou de Sartre. Et si le cognitivisme montre que, dans l’expérience subjective, il y a un supplément non objectivable, l’herméneutique indique comment il est possible, au moyen du langage narratif, de concevoir une certaine communicabilité, bien que sémantiquement limitée, des états subjectifs. La psychologie cognitive, quant à elle, partant de la théorie des catégories et de l’idée d’apprentissage, soutient la possibilité d’un universel partiel rendant possible une certaine communication des émotions. Néanmoins, c’est seulement dans l’action commune, pragmatiquement, que les hypothèses interprétatives peuvent surmonter leur indétermination et être eventuellememt confirmées.

Mots-clé: subjectivité; communication; phénoménologie; Psychologie cognitive; hermeneutique; pragmatique.


 

 

Introdução

O “projeto filosófico da modernidade” 1, numa perspectiva iluminista, isto é, racional, comporta a ideia de uma racionalização do mundo da vida. Prolongando a arquitetônica das três Críticas kantianas, essa racionalização deveria acontecer tanto na dimensão do saber teórico (a ciência) quanto da razão prática (a moral) e da razão estética. Porém fica difícil definir esse terceiro domínio. Será que diz respeito à arte? À subjetividade? À experiência existencial? Jurgen Habermas, o autor da teoria do agir comunicativo, ficou incerto na determinação do conteúdo dessa esfera da experiência humana. Principalmente, ao passo que os resultados da ciência e os conteúdos universalizáveis do direito ou da moral podem receber uma formulação comunicável e se tornar objeto de discussões argumentadas, não é evidente que o que afeita a existência, como as emoções, estéticas ou outras, pode ser comunicado sem alteração nem perda.

A título de ilustração dessa problemática da comunicação da experiência existencial, eu gostaria de colocar a questão de saber se a linguagem tem o expediente que nos permita formular um discurso sobre o sofrimento, como tipo de experiência existencial ou mesmo de emoção, linguagem que possa pretender a certa “objetividade” e certa “universalidade” e, portanto, a certa “comunicabilidade”. Essa questão, difícil do ponto de vista teórico, é, contudo, de uma grande importância prática: não somente essa comunicabilidade é uma condição de possibilidade das ações clínicas visando ao alívio do sofrimento, mas ela condiciona também a adequação dos programas políticos de welfare e de defesa dos direitos sociais, entendidos como extensão dos direitos humanos. Pois, para combater o sofrimento dos homens, tem que se saber o que é, o que significa o sofrimento do outro.

 

Usarei a estratégia argumentativa seguinte:

Em primeiro lugar, tentarei mostrar que, apesar das objeções que lhes foram muitas vezes dirigidas, as abordagens fenomenológicas e cognitivistas oferecem algumas informações sobre as estruturas gerais do psiquismo e, daí, podem justificar indiretamente a capacidade que nós temos de compreender o sofrimento alheio. A fenomenologia, embora mostrando a impossibilidade de uma “explicação” satisfatória do vivido do sofrimento (e da experiência vivida ou fenomenal em geral), orienta-nos, contudo, para a ideia de que existem estruturas universais de nossa aproximação intencional do mundo, de nossa relação ao mundo da vida. A abordagem cognitivista, por sua vez, mostra que, apesar de não existirem conteúdos mentais universais, as competências cognitivas que ficam na base de nossa apreensão do mundo são quase universais para a espécie humana.

A objeção que pode ser feita contra essas perspectivas universalistas é que elas falham na compreensão daquilo em que consistem justamente a singularidade e a subjetividade irredutíveis da experiência vivida. Mas essa oposição entre universal e particular fica abstrata, no sentido hegeliano do termo. Um primeiro meio–termo entre a universalidade das competências cognitivas e a singularidade da experiência individual pode ser encontrado no mundo das expressões culturais — literatura, narrativas, testemunhos diversos das pessoas em sofrimento (inclusive a descrição singular e narrativizada dos casos clínicos). As expressões semióticas das experiências da vida são constitutivas das identidades e permitem certa forma de comunidade das vivências. A linguagem do sofrimento é uma linguagem culturalmente determinada e pragmaticamente orientada para com as atitudes a serem tomadas em relação a cada categoria de sofrimento repertoriado. Nesse sentido, há uma presunção de comunicabilidade, embora sendo provável que algumas experiências de sofrimento escapem a toda categorização por sua excepcionalidade 2.

A extensão da comunicabilidade ao nível das diversas formas culturais fica, porém, insuficiente para garantir um acordo além do círculo mais ou menos próximo da vizinhança, isto é, de pessoas que viveram experiências concretas juntas. Precisamos de argumentos para estender essa comunicação a contextos fortemente diferentes, argumentos em favor de certa universalidade das competências cognitivas: essa universalidade não existe ao nível semântico, mas pode ser demonstrada ao nível formal procedimental do tratamento das informações e ao nível pragmático da coordenação da ação. É assim, por exemplo, que foi defendida a ideia de um “esquema conceptual” comum ou do “princípio de caridade” (Davidson) na interpretação, princípio que pressupõe uma coerência nas crenças e atitudes do outro.

Devemos acrescentar o seguinte: a presunção de compreensão do outro sempre fica e ficará hipotética. Qualquer que seja a plausibilidade de uma interpretação justa dos estados mentais do outro, é apenas no êxito da coordenação da ação que nós podemos saber que, provisoriamente, nossa interpretação não foi desmentida. E, finalmente, precisamos também de uma teoria da aprendizagem, individual e coletiva, que permite uma gradação no conhecimento, inclusive no conhecimento da vivência do outro.

 

I. O indizível

Vou começar por realçar as dificuldades da fenomenologia e das ciências cognitivas em superar o que se poderia ser chamado o “solipsismo”: a impossibilidade de comunicar a experiência viva, desde que a subjetividade dessa experiência fica inexplicável em qualquer linguagem especulativa, seja científica ou até filosófica.

1. Da fenomenologia

O sofrimento, a dor, a experiência do outro constituem alguns aspectos daquilo que Husserl e a fenomenologia chamam de “mundo vivido” ou “mundo da vida” (Lebenswelt). Um dos problemas centrais da fenomenologia é aquele da acessibilidade autorreferencial do mundo vivido, ou seja, da capacidade que nós temos de perceber e compreender claramente, para nós mesmos, nossos sentimentos, emoções, disposições, etc. A fortiori, como será possível capturar e entender o vivido intensivo do outro? Essa dificuldade aumenta ainda quando se leva em conta a intricação da linguagem e do mundo vivido: de um lado, parece que é somente pela linguagem que se pode aceder ao vivido alheio; mas, do outro lado, surge a inadequação de qualquer linguagem para expressar a complexidade desse mundo vivido: é a questão da “inefabilidade” da experiência subjetiva. Como o veremos, esses problemas são exatamente aqueles da philosophy of mind contemporânea e da Psicologia cognitiva 3.

 

Husserl

O originário e o construído

A questão da Lebenswelt é central na fenomenologia tardia de Husserl, que nunca deixou de trabalhá-la sem conseguir superar o que ele próprio reconheceu como paradoxos e aporias. O que é o mundo da vida? Como descrevê-lo? Como distinguir entre o puro mundo vivido e todos os acréscimos e construções que o deformam e nos impedem de ter acesso a ele? Vale a pena lembrar que todo o movimento fenomenológico procedeu de uma crítica da Psicologia científica ou, mais precisamente, de toda pretensão de dar uma explicação “objetiva” do psiquismo e dos estados mentais. O “retorno às coisas mesmas” (zuruck zu den Sachen selbst), a um “domínio de evidências originárias”, implica a possibilidade de desfazerse, desembaraçar-se de todas as construções e interpretações discursivas para reencontrar o que, às vezes, foi chamado de “preconceitual” ou de “antepredicativo” 4. Porém, como fazer abstração do fato de que essa busca de uma experiência pura se realiza justamente pela linguagem? Essa questão perseguiu a Husserl durante toda a sua existência.

Num certo sentido, o mundo da vida é “enquanto tal o que é o mais conhecido, o que é sempre já evidente em toda vida humana, sempre já familiar na sua típica pela própria experiência” 5. Será que nós não sabemos imediatamente o que é a dor, o medo, a tristeza, o sofrimento? E não poderia uma análise eidética permitir-nos ter acesso à essência desses noemas, desses conteúdos intencionais?

Muitas vezes, Husserl liga essa percepção do mundo vivido a evidências “originárias”. E é, a meu modo de ver, essa referência a um originário que suscita as maiores dificuldades. Por exemplo, a ciência (cujas pretensões são criticadas por Husserl, mas que, ao invés de Heidegger, ele respeita) “enraíza-se, funda-se no mundo vivido, nas evidências originárias que se referem a ela” 6. Graças a esse enraizamento, a ciência objetiva mantém uma relação constante com esse mundo vivido. De tal maneira que Husserl pode afirmar que “essa ciência objetiva pertence ela mesma ao mundo vivido” 7.

Estamos assim em pleno paradoxo, pois se o empreendimento fenomenológico intenta descobrir aquilo que foi recoberto pela ciência, como se pode dizer que a ciência “pertence ela mesma ao mundo vivido”? Como o notava Paul Ricoeur, “A noção de mundo da vida se estende assim ao ponto de incluir o seu contrário, o mundo objetivo, não mais, é verdade, enquanto objetivo, mas enquanto ele é o produto de uma operação” 8. O problema é do “corte”, desde que a ideia de uma descrição pura implica uma crítica do presente e, portanto, um momento em que, na constituição de nosso saber, a “inocência” primitiva se perdeu.

 

A constituição e o solipsismo

Como se sabe, a fenomenologia husserliana tem, ao lado da perspectiva descritiva, uma vertente dita “transcendental”, uma pretensão a reconstruir a gênese da consciência: uma pretensão a fundar o sentido originário de toda experiência no ego constituinte. Mas essa tentativa implica uma dificuldade central, dizendo respeito, exatamente, ao nosso problema de comunicabilidade dos mundos vividos alheios. Na perspectiva da constituição, o outro é apenas um elemento da minha experiência, uma das significações do mundo para mim.

Quando eu, o eu meditante – reconhece Husserl – tenho me reduzido pela epoché fenomenológica a meu ego transcendental absoluto, será que não me tornei por isso mesmo solus ipse e que o permaneci na medida em que, sob o indício “fenomenológico”, efetuo uma explicitação de mim mesmo? […] Mas, que tal então de outros egos? Eles não podem ser, apesar de tudo, simples representações e objetos representados em mim, unidades sintéticas de um processo de verificação que acontece “em mim”: eles são, justamente, “outros”. 9

Isso significa que, mesmo tendo explicitado o sentido mais geral de, por exemplo, um sentimento de sofrimento ou de abandono ou de solidão, nada me garante que o sentido dessas experiências, o sentido constituído pela visada intencional do ego, possa ser atribuído seguramente a outros egos. Pois, para alcançar o sentido de um vivido, eu precisei pôr entre parênteses o mundo, inclusive a existência do outro como elemento do mundo e da experiência natural desse mundo. É apenas na “esfera de pertença” própria do ego, na sua experiência primordial, que pode ser colocada a questão de saber como se dá “o outro”.

A epoché transformou os outros egos em “fenômenos” e

Mesmo se tiver várias pessoas, mesmo se elas exercerem comigo a epoché numa comunidade atual, não deixa de ser que, para mim, na minha epoché, todos os outros homens, com o conjunto de sua vida ativa, são incluídos no fenômeno-mundo, o qual, na minha epoché, fica exclusivamente um fenômeno meu. 10

Possivelmente, em alguns manuscritos de Husserl, essa dificuldade de constituir a intersubjetividade pode ter sido superada. Mas o que Husserl levantou como limite do método fenomenológico indica claramente que a possibilidade de compreensão da experiência alheia não pode proceder de uma introspecção de nossa própria experiência: o que está faltando é uma mediação (pela linguagem em primeiro lugar).

 

Sartre

O problema com a fenomenologia de Husserl não é somente do idealismo transcendental. Até mesmo que se desse “o outro” fora da consciência, o que se dá na experiência (empírica), no final das contas, não deixa de ser uma aparência corporal, e nunca uma “alma” (ou uma consciência). Isso toca a todo o movimento fenomenológico de inspiração husserliana.

Poder-se-ia, a título de exemplo, partir das algumas páginas dedicadas à fenomenologia do sofrimento em L’être et le néant 11. Segundo Sartre, a estrutura fenomenológica mais fundamental define a realidade humana como “falta”, mas falta paradoxal e impossível de ser completa, satisfeita, pois o que o “parasi” [“pour-soi”] procura é uma certa coincidência consigo mesmo, tentativa irrealizável desde que isso converteria o “para-si” em “em-si” [“en-soi”]. Essa falta poderia ser entendida como a estrutura originária do sofrimento. Mas, na verdade, devemos saber imediatamente que essa definição da estrutura do para-si é uma armadilha:

Esse sofrimento enorme e opaco que me levaria fora de mim […], eu não posso apanhá-lo, eu encontro somente eu, eu quem me queixo, eu quem gemo, eu quem devo, para realizar esse sofrimento que sou, jogar sem cessar a comédia de sofrer. 12

Na verdade, o em-si do sofrimento só pode ser para os outros:

Cada queixa, cada fisionomia daquele que sofre, intenta esculpir uma estátua em si do sofrimento. Mas essa estátua jamais existirá senão pelos outros e para os outros. Meu sofrimento sofre de ser o que ele não é, de não ser o que ele é… 13

Sabemos que, em algumas das páginas mais célebres de L’être et le néant, Sartre quis mostrar a impossibilidade de uma comunicação verdadeira com o outro, se se entende o outro como um “para-si”, quer dizer um ser livre. Do outro, eu só sei a sua maneira de me aparecer. E o olhar fixa o outro num formato que não é o seu, que logo desnatura o sentido que ele pode dar a suas experiências. Isso não quer dizer que não posso compreender que o outro sofre ou ter certa ideia do seu sofrimento. Significa apenas que nunca posso apanhar o sentido que o outro atribui a sua experiência: eu vejo apenas a “estátua do sofrimento”.

Poder-se-ia então pensar que o uso da linguagem irá permitir-me comunicar meu vivido ao outro. Mas isso também é uma ilusão, pois é a linguagem que me trai, que fixa o sentido que eu dou, sem parar nunca, à minha liberdade. Nesse sentido, constituir-me em ser significante é andar cego:

Nem posso até conceber qual efeito terão meus gestos e minhas atitudes, desde que estarão sempre retomados e fundados para uma liberdade que os ultrapassará e desde que eles possam ter um significado somente se essa liberdade lhes confere um. Assim, o “sentido” de minhas expressões sempre me escapa; nunca sei exatamente se eu significo o que quero significar nem até se estou significante; nesse instante preciso, eu deveria ler no outro, o que, por princípio, é inconcebível. E, na falta de saber o que eu expresso realmente para o outro, eu constituo minha linguagem como um fenômeno incompleto de fuga fora de mim. 14

Essa incomunicabilidade dá a sua coloração própria às relações sadomasoquistas, às quais, segundo Sartre, estamos finalmente condenados. Lendo assim o capítulo do “pour autrui”, podemos ter a impressão de que o filósofo descreveu apenas a face negra de nossas relações intersubjetivas e que, se tivéssemos que inquirir da atenção e da compreensão que podemos ter do outro, só encontraríamos indiferença, negação e até vontade ativa de fazer sofrer o outro, na falta de poder compreendê-lo e fazer-me compreender por ele. Mas podemos também reter dessa perspectiva, aparentemente unilateral que as relações intersubjetivas (e as relações que entretemos com o sofrimento) ficam longe de ser relações espontaneamente “éticas” e “empáticas”.

Poderíamos continuar a nossa exploração dos enfoques fenomenológicos — e descobrir perspectivas mais encorajadoras, por exemplo, em Merleau-Ponty ou Hannah Arendt. Mas, no meu modo de ver, reencontraremos as mesmas aporias que eu posso resumir da maneira seguinte:

1) É muito significativa a surpreendente variedade de descrições ditas fenomenológicas de nosso ser-no-mundo: passando de Husserl a Heidegger, de Merleau-Ponty a Sartre, de Arendt a Levinas, parece claramente que não há (e não pode haver) uma descrição do mundo vivido que possa pretender a uma qualquer universalidade. Angústia, preocupação, solidão, corporeidade, pluralidade, alteridade, etc., os conteúdos vividos em geral, coloram-se de mil maneiras diversas e, na verdade, a eventualidade de estilizar essa multiplicidade em algumas “essências” ou “existenciais” fica, se não impossível, pelo menos fortemente improvável 15. No meu modo de ver, a possibilidade de uma comunicação da experiência viva não pode ser garantida pela demonstração que vivemos a mesma coisa, mas pela manifestação de capacidades análogas de interpretar os signos (linguísticos, principalmente, ainda que não exclusivamente) e de construir uma teoria aceitável da mente.

2) O problema da intersubjetividade (e logo da compreensão do mundo vivido do outro) não pode ser resolvido nem, como em Husserl, desde a constituição do mundo fenomenal pelo ego transcendental, nem sequer, como em Heidegger ou Sartre, por uma análise fenomenológica de nosso “ser-com-o-outro-no-mundo”. Esse aspecto da fenomenologia, que podemos chamar de “cartesiano”, pressupõe que a introspecção, a autorreferência ao nosso vivido, seja suscetível de proporcionar uma apreensão adequada do “ser” outro. O que obviamente falta são as mediações: a autorreferência sem um ponto fixo exterior fica vazia. Ora, a mediação fundamental que permite a reflexividade é a linguagem. Mas a linguagem tem sua própria densidade, estrutura, pragmática. É nesse sentido que Ricoeur preferiu o que ele chama de “caminho longo” (aquele da hermenêutica) ao “caminho curto” da interpretação de si e do ser 16.

Essas reflexões não pretendem negar a irredutibilidade da experiência subjetiva e podemos concordar com Merleau-Ponty quando ele nota que tem

Um solipsismo vivido que não é superável. Sem dúvida, eu não me sinto constituinte nem do mundo natural, nem do mundo cultural: em cada percepção, em cada julgamento, faço intervir seja funções sensoriais, seja construções culturais que não são realmente minhas. Transbordado de todos os lados por meus próprios atos, imerso na generalidade, eu sou, contudo, aquele pelo qual estes são vividos... 17

2. Da filosofia da mente

É interessante notar que aquilo que hoje é chamado “philosophy of mind”, filosofia da mente, enfrenta os mesmos problemas que aqueles da fenomenologia, ainda que com outras preocupações e outros instrumentos, e chega aos mesmos impasses. Não são poucos os que consideram que a experiência vivida, a consciência fenomenal, é e ficará definitivamente “inexplicável”, pelo menos nos padrões da ciência, nos modelos cognitivistas.

Eis alguns argumentos.

Thomas Nagel sustenta que há fatos que estão e devem ficar “invisíveis” para a ciência e logo “inexplicáveis”. São os fatos subjetivos, aqueles que são fatos apenas do ponto de vista ou na perspectiva do sujeito. A ciência poderia conseguir dar, um belo dia, uma descrição completa e objetiva do que acontece no meu cérebro quando eu percebo uma cereja ou o riso de minha filha, mas nunca poderá dar conta do sentimento subjetivo que essa percepção representa para mim. Como é perceber o mundo para um morcego? — perguntava Nagel. Podemos descrever fisiologicamente o tipo de percepção pelo radar que é aquele de um morcego, mas não podemos e nunca poderemos “viver” esse tipo de experiência 18.

Franck Jackson, um filósofo australiano, propôs outra ilustração desse problema: é o caso de Mary, uma cientista que se especializou no estudo da percepção das cores e que sabe tudo a respeito da neurofisiologia, da física, da química dos processos de percepção das cores. Mas Mary sofre de uma deficiência orgânica: ela não percebe as cores, o mundo dela é em preto e branco. Entretanto o conhecimento científico que ela tem do funcionamento da visão lhe permite um dia encontrar uma cura e, de repente, ela descobre o mundo colorido. Jackson deduz então que ela viveu algo de que nenhuma descrição científica pode dar conta 19.

Esses argumentos retomam a ideia de Wittgenstein, que escrevia:

Se eu posso me representar a minha dor, se o outro pode também fazê-lo, ou se nós dizemos que o podemos, como podemos verificar se representamos corretamente essa dor, e com qual grau de incerteza? Sem dúvida, eu posso saber que N. sofre, mas nunca sei até que ponto. Eis algo que ele sabe, mas cujas manifestações exteriores de dor não me informam: algo de meramente privado. 20

Eis, finalmente, um argumento simples mostrando a irredutibilidade da experiência singular e, logo, a impossibilidade de apanhar o vivido alheio. Com certeza, já nos aconteceu viver uma impressão, um sentimento, uma maneira de ver as coisas que nunca antes tínhamos vivido ou sentido. Nunca tínhamos imaginado que pudéssemos sentir tal emoção diante de tal ou tal pessoa que, no entanto, conhecemos há muito tempo. Ou, de repente, estamos confrontados a um sofrimento, um luto que, embora sabendo que existem e logo possamos reconhecêlos, nos aparecem, contudo como uma experiência nunca vivida anteriormente. Esse argumento pleiteia em favor da singularidade de cada experiência, de cada biografia, de cada subjetividade. E, se for assim, para a incomunicabilidade do mundo vivido próprio. Pelo menos, há certa tonalidade das experiências vividas que fica e ficará parcialmente inexpressável e, pois, incomunicável.

 

II. Intermezzo

Não devemos, porém, ficar nessas constatações. Eu acredito que o discurso que formulei até agora é compreensível, que a minha maneira de usar os termos como “sofrimento”, “dor”, “emoção”, etc. conseguiu evocar certa ideia, ou representação, do significado desses termos e, logo, dos estados mentais aos quais esses termos remetem. Portanto posso pressupor que é sabido o que é o sofrimento, a dor, etc. A questão agora se torna: como dar conta dessa comunicabilidade (talvez somente abstrata) dos estados mentais?

As perspectivas cognitivas nos oferecem algumas indicações, como veremos logo. Mas eu acho que precisaremos passar por outros rumos, outras mediações, como aqueles da hermenêutica. Por enquanto, podemos tirar alguns ensinamentos de nosso rápido percurso das aporias das ciências cognitivas em que diz respeito à “consciência fenomenal”.

Uma primeira lição que podemos reter das discussões e debates das atuais ciências cognitivas (e, aliás, da epistemologia contemporânea em geral) é que a “cientificidade” de um modelo de explicação, ou de compreensão, de um fenômeno não deve ser necessariamente ligada a um nível “fisiológico”, ou “neurofisiológico”, ainda menos a um nível “físico”. Se não distinguimos os níveis adequados de explicação, podemos desistir de 99% das explicações científicas (em Biologia, Psicologia, Economia, etc.).

Por exemplo, pode facilmente parecer misterioso um organismo vivo poder manter-se como um todo integrado se nos centrarmos unicamente sobre o fato de um tal organismo consistir, ultimamente, em ondas-partículas subatômicas governadas por princípios indeterministas, esquecendo então todo os níveis intermediários de descrição. 21

É óbvio que numa tentativa de dar conta dos fenômenos mentais, transpondo todos os níveis intermediários e instalando-se logo ao nível de uma análise neurofisiológica, faltará a especificidade do fenômeno que se trata de explicar. Até podendo explicar um sentimento de ira por uma taxa dada de adrenalina, isso não explicará nem por que a ira foi provocada por tal ou tal acontecimento, nem o vivido particular desse sentimento subjetivo.

As ciências cognitivas e os modelos sugeridos pela filosofia da mente permitem fazer umas distinções úteis. Uma dessas é a distinção entre “dor” e “sofrimento” 22

A dor tem um substrato fisiológico. Do ponto de vista da “consciência de acesso” (“access consciousness” 23), a dor é um estado de consciência que pode ser “pensado” numa atitude proposicional (“eu estou agora com dor de cabeça”), pode provocar reações (inclusive reações elaboradas e racionais: tomar um analgésico, procurar um médico, etc.): ela aparece como um elemento causal numa cadeia inferencial. Essas características da dor inclinam em pensar que, como o dizia Wittgenstein, embora nunca possa sentir exatamente a dor do outro, há uma forte probabilidade das percepções de dor serem análogas em vários indivíduos.

No sofrimento, pelo contrário, não há uma base fisiológica determinável: o aspecto fenomenológico parece quase exclusivo e torna a descrição e a comunicação problemáticas. Aqui a esfera é a do significado, e sem a consciência do sofrimento não há sofrimento. Ademais, não tem aqui um “objeto intencional” ou um “conteúdo proposicional” determinado: “eu sofro” é, geralmente, intransitivo. Se eu posso tentar explicitar a causa do sofrimento (solidão, falta, luto, etc.), essas precisões não definem um “objeto”, um elemento objetivável.

Se não posso determinar se a experiência da dor do outro é exatamente a mesma que a minha, a fortiori a experiência do sofrimento moral ou psíquico escapa a qualquer validação científica intersubjetiva.

Mas isso não significa que não existe nenhum outro tipo de validação intersubjetiva, e é isso que agora eu gostaria de mostrar.

 

III. Formas de comunicação dos estados mentais

A irredutibilidade da experiência subjetiva é um fato inegável. Mas isso não implica uma incomunicabilidade radical. Vamos então percorrer os caminhos possíveis: hermenêuticos, cognitivistas e pragmáticos.

1. Uma superação hermenêutica

O que levou às aporias da fenomenologia e da abordagem cognitivista foi o estilo “explicativo”, teórico e especulativo, dessas análises de consciência. Será que essa inadequação poderá ser superada por uma descrição diferente? É pelo menos a pretensão da hermenêutica (e, por exemplo, das teses de Paul Ricoeur).

Esse filósofo, em vários livros (La symbolique du mal, Temps et Récit, entre outros 24), justificou o empreendimento hermenêutico por defender a tese que o discurso fenomenológico e, ou, especulativo se confronta com limites insuperáveis quando se trata de compreender alguns problemas fundamentais, como o mal ou o tempo: a única maneira de tais questões serem tratadas seria simbólica, mítica ou narrativa. As narrativas míticas, por exemplo, nos oferecem não somente expressões literárias de experiências vividas, mas também possibilidades de dar sentido àquilo que falta de explicação racional. Podemos aqui assimilar o “sofrimento” a essas experiências injustificáveis racionalmente, mas “configuráveis” numa narrativa significativa.

Para dar uma ideia dessa forma de superação do solipsismo da experiência viva, vamos lembrar a tese central de Temps et Récit.

Ricœur mostra que a elucidação do sentido de o que fazemos e de o que somos não pode ser feita por uma “reflexão sobre si”, no sentido cartesiano do termo. O acesso do sujeito às suas próprias experiências e à sua identidade mais profunda deve passar por mediações.

Entre das experiências constitutivas do que nós somos, temos a experiência enigmática do tempo: somos o que somos no presente porque temos um passado e porque projetamos um futuro. Mas assim que tentamos dizer o que é o tempo, explicar o que ele é, fracassamos. O pensamento especulativo falha ao propor uma teoria satisfatória do tempo. Falha porque estamos em frente de uma dualidade irredutível: o tempo é simultaneamente um tempo “cósmico” (o tempo dos dias e das estações, dos relógios e do calendário), tempo objetivo e fora de nosso controle; e, do outro lado, o tempo vivido, variável, ligado à memória, interno, subjetivo. Ademais, o “presente” fica um mistério: não existe, só faz passar, ser outro — mas temos o sentimento de viver “no presente”, um presente consistente e significante.

Frente a essas aporias, porém, é possível falarmos do tempo, dar lhe sentido: podemos, pois, “contar”, narrar. A narrativa é um “pôr em forma” do tempo. Ricœur escreve: “Eu vejo nas intrigas que inventamos o meio privilegiado pelo qual reconfiguramos nossa experiência temporal confusa, informe, e, no limite, muda” 25. “O tempo se torna humano conforme é articulado narrativamente; à sua vez, a narrativa se torna significativa enquanto desenha as feições da experiência temporal” 26.

Portanto, “Existe entre a atividade de contar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural” 27.

A narrativa põe unidade num vivido que senão ficaria caótico e absurdo, ou que, pelo menos, é somente semiestruturado. Sem dúvida, a forma narrativa é a modalidade específica da configuração do tempo (como talvez o mito cosmogônico e os símbolos da “mancha” e outros são a forma de dar sentido à experiência do mal). Poder-se-ia dizer que o gênero literário em geral é uma maneira de não somente interpretar, mas também de constituir nossa experiência viva: o caráter metafórico e icônico permite concretizar, individualizar, tornar sensíveis os diversos aspectos do vivido.

Nesse sentido, a experiência fenomenal do sofrimento (próxima à experiência do mal: “por que tantos sofrimentos no mundo? Por que eu?”) não pode tornar-se o tema de uma dissertação racional, mas pode receber uma interpretação metafórica que, apesar de sua particularidade, pode alcançar certa generalidade (para não falar de universalidade).

As expressões linguísticas têm essa característica de poderem ser simultaneamente gerais (pelas regras semânticas, sintáticas e até pragmáticas) e singulares no seu contexto de enunciação, na combinação sempre particular dos significantes da língua. A particularidade ou singularidade de uma narrativa reside na construção ou configuração de uma obra específica, de um “destino”, de uma “personalidade”, de um “caráter”, de uma situação concreta, individual, histórica, social, cultural, etc. Essa dualidade faz com que uma obra singular possa (não necessariamente, porém) ser partilhada e alcançar certa generalidade, pode evocar, sugerir para nós o significado cognoscível, sensível ou emocional de outra experiência vivida 28.

No entanto, essa possibilidade de compartilhar uma experiência alheia fica ligada a um contexto cultural determinado e, na verdade, devemos pensar que a produção e a constituição do mundo vivido é principalmente, senão totalmente, o resultado dos códigos culturais. Apesar de sabermos que existe um fundo emocional universal na espécie humana, os conteúdos dos estados mentais, os motivos que provocam as emoções, ficam diversos segundo as culturas. Isso deve ser verdadeiro para o sofrimento. A possibilidade da comunicação pressupõe um código comum. Isso não implica na impossibilidade de uma comunicação intercultural, nem a ideia absurda de que não se sofreria em algumas culturas; mas que o significado do sofrimento, a sua vivência, seu objeto e suas manifestações são suficientemente diferentes e variados para que seja ilusório querer estabelecer normas universais positivas de comportamento.

Eis um exemplo desses limites culturais da comunicação das experiências mais fundamentais de nossa vida. Richard Rorty conta que

O fundador de minha universidade [Thomas Jefferson] era capaz simultaneamente de possuir escravos e de pensar, como óbvio, todo ser humano como sendo dotado pelo criador de alguns direitos inalienáveis. Isso porque ele estava convencido que a consciência dos negros, como aquela dos animais “participava mais da sensação que da reflexão” 29.

E eis a citação estupenda de Jefferson:

As dores deles [dos negros] são passageiras. Aquelas inúmeras aflições que nos fazem duvidar se o céu nos deu a vida como uma graça ou como uma maldição, são, para eles, menos ressentidas e logo esquecidas. Em geral, a existência deles parece participar mais da sensação que da reflexão...30

Não devemos necessariamente acreditar nos julgamentos de Jefferson, porém a mais simples consideração das diferenças entre nós deixa suspeitar que nossa interpretação do sofrimento alheio fica, em grande parte, determinado por nossas categorias culturais. Como o mostra Le Breton 31, apesar de que, na experiência da dor, há uma base fisiológica, o significado da dor pode ser muito diferente: “sinal de Deus”, “merecida”, “educativa”… As torturas infligidas aos heréticos podem fazer parte de uma concepção da vida sensata e o martírio poderia levar até a glorificação de Deus.

2. Perspectivas cognitivas

A extensão da comunicação que nos proporciona a hermenêutica fica limitada pelo contexto cultural e semântico dos códigos que informam a nossa experiência. Será que há argumentos sugerindo certa extensão do contexto até, talvez, chegar a certa universalização? Será que é possível defender certa universalidade da experiência humana? São esses argumentos que vou agora tentar analisar e criticar. Esses argumentos (teoria das categorias, princípio de caridade, êxito pragmático) vêm de algumas pesquisas atuais em filosofia da mente, Psicologia cognitiva e pragmática linguística. Mas, além das abordagens teóricas, o que eu gostaria de argumentar é que nenhuma ação (clínica, social ou política) pode fazer a economia de uma pressuposição forte, dizendo respeito à possibilidade de “diminuir, aliviar, lutar contra as situações de sofrimento”. A lógica da ação, sua estrutura interna, é sempre uma lógica “teleológica”. Essa finalidade interna repousa sobre uma pressuposição de racionalidade: nenhuma ação pode aceitar a contradição performativa de negar sua própria finalidade. Assim, em toda ação que lida com o sofrimento, deve-se dar uma representação de seu objeto. A pressuposição de poder interpretar o sofrimento alheio fica, claro, hipotética e, como toda interpretação, pode modificar-se na prática e na escuta do outro. Mas se isso é possível, é exatamente porque se pressupõe que a fala do outro comunica realmente um aspecto da sua experiência.

 

Teoria das categorias

Meu primeiro ponto diz respeito ao uso da categoria “sofrimento”. Encarando as dificuldades levadas pelo estatuto cognitivo dos “estados de consciência”, mostrei que se podiam distinguir duas categorias diferentes, “dor” e “sofrimento”, e o fiz para tornar ainda mais problemática a possibilidade de definir de maneira unívoca o que entendemos por “sofrimento”. Essa distinção entre dor e sofrimento pode aparecer como artificial. Mas ela é pertinente se nós nos damos conta de que as definições categoriais são pragmáticas: recebem uma acepção coerente apenas se as inscrevemos em jogos de linguagem específicos e em formas de vida que constituem o seu contexto de uso. Porém tal atitude epistemológica não deve nos levar ao ceticismo, como se a palavra “sofrimento” pudesse dizer tudo e qualquer coisa. Eu acho, pelo contrário, que é possível inscrever as categorias em processos de aprendizado, processos ligados às práticas, isto é, às maneiras de lidar com a realidade.

Paul Griffiths 32 sustenta que, se queremos proporcionar uma “explicação científica” de uma categoria, precisamos considerá-la como um “gênero natural” e adotar uma posição “realista”, não no sentido metafísico, mas no sentido em que podemos progredir na compreensão daquilo que consideramos como um fenômeno coerente ou homogêneo, apenas procurando os mecanismos que lhe estão subjacentes e que lhe dão sua unidade. No meu modo de ver, esses “mecanismos” (se a palavra convém aqui), não precisam ser apenas fisiológicos ou biológicos: podem ser psicológicos, no sentido, por exemplo, da Psicologia ordinária, aquela do sistema de “crenças-desejos” e das atitudes proposicionais, ou no sentido de uma psicanálise. Podem ser também de tipo sociológico ou cultural. Uma consequência possível dessas tentativas de elucidação do sentido daquilo que chamamos “sofrimento” é que, talvez, estaremos levados a distinguir mais claramente modalidades muito diferentes de experienciais mentais: a dor, a humilhação, a miséria, etc., podem gerar o que chamamos de um só termo “sofrimento” e, contudo, remeter a causas radicalmente diferentes. No meu modo de ver, é somente para projetos práticos que uma elucidação pragmática dos significados e dos usos do termo tornará possível também de afinar e ajustar o tipo de comportamento que adotaremos diante dos pedidos, das súplicas, dos protestos mudos ou barulhentos. Como a categoria “emoção”, analisada por Griffiths, a categoria “sofrimento”, como categoria global, não é uma categoria científica útil porque não pode receber uma explicação coerente, não pode ser inserida em inferências verificáveis, não pode permitir previsões acertadas. Para tornar-se utilizável, precisamos saber em que jogo de linguagem ela se inscreve 33.

Essa inscrição em jogos de linguagem não deve levar a privilegiar absolutamente um jogo de linguagem particular: o discurso científico. Em primeiro lugar, porque falar no singular “do” discurso científico é uma generalização inaceitável, desde que se leva em conta o pluralismo irredutível dos métodos, dos objetos e das epistemologias. E, em segundo lugar, porque não é necessário estabelecer um corte radical entre a cognição humana ordinária e aquela que está em jogo na investigação científica 34. Como o afirma Griffiths,

A natureza da categorização em ciência é uma extensão de um aspecto importante da formação das categorias na cognição humana. A ideia que os conceitos, no seu uso cotidiano, podem ser isolados das descobertas científicas pressupõe uma descontinuidade irrealista entre o projeto científico e os projetos da vida cotidiana. A explicação e a indução são propósitos da vida cotidiana assim como da ciência. Modificar conceitos para adaptá-los a novas crenças a respeito da natureza subjacente dos referentes desses conceitos, isto faz parte do desenvolvimento humano normal 35.

Não pretendo aqui que devemos reconstruir o conceito de “sofrimento” (como qualquer outro conceito) com base nos usos na linguagem ordinária. Essa afirmação não está em contradição com as teses de Wittgenstein sobre as “semelhanças de família” ou com as teses das teorias prototípicas ou exemplaristas das categorias 36. É exatamente porque no uso ordinário não aparece uma categoria homogênea de sofrimento que não se deve presumir de uma unidade real dessa categoria. Se uma categoria ou um conceito pertence a vários usos, é por causa dos usos que se poderia haver uma referência “real” a esse conceito. Por exemplo, em relação aos modelos de explicação da psicanálise, o tipo de sofrimento que o terapeuta ou o analista ouvirá e atenderá será aquele que, normalmente, poderá responder a uma análise (e não qualquer sofrimento: não aquele que resulta da pobreza ou do racismo).

Como o nota também Griffiths, uma concepção causal da referência, isto é, uma concepção que pressupõe existir algo real que corresponde aos conceitos e às categorias que utilizamos, permite, por exemplo, postular uma “identidade transteórica” dos termos teóricos: podemos falar da mesma coisa em discursos teóricos diferentes. Encaramos o objeto (a referência) segundo aspectos diferentes, embora pudesse tratar-se do mesmo objeto. Assim o sofrimento sentido por uma pessoa, aquele vivido singular, e irredutível enquanto tal a toda explicação exaurível, pode ser uma entidade psíquica real, mas cujas explicações podem remeter simultaneamente a uma teoria econômica (causa da pobreza ou da ruína), a uma teoria fisiológica (causa das carências e do enfraquecimento corporal), a uma teoria psicológica ou a várias teorias psicológicas (sobre as causas psíquicas que ajudam a compreender por que a pessoa fica depressiva ou se revolta, etc.).

Essa intuição contradiz a ideia de que as afirmações de diferentes paradigmas científicos são incomensuráveis (Kuhn 1970). As teorias causais salvaguardam essa intuição por sustentarem que um componente importante do significado fica constante pelas mudanças radicais na teoria. Esse componente é a realidade mesma com que os usuários da língua se comunicam” 37.

É verdade que as teses de Griffiths se aplicam de maneira privilegiada àquilo que se costuma chamar nas discussões, com respeito à referência, os “gêneros naturais”: ouro, leões, etc. 38. Mas elas se aplicam igualmente a outros aspectos do real: por exemplo, as moedas têm a sua unidade em razão de seu uso econômico, mas elas são também e realmente pedaços de metal. Ao que nos convida essa tese, é de não tomar sem mais demora as categorias vindas da linguagem ordinária, quer dizer resultantes das crenças correntes a respeito de tal ou tal fenômeno. Uma vantagem dessa teoria realista é de poder levar em conta as mudanças de significado ou as evoluções conceptuais.

A segunda questão que as teorias causais enfrentam é a maneira de os conceitos teóricos em ciência estarem revisados quando as teorias mudam. As mudanças numa teoria científica podem levar a gente a revisar seu julgamento tanto sobre a intenção como sobre a extensão de um termo teórico. […] A teoria causal explica a transformação na intenção e na extensão da maneira seguinte. O “estereótipo” de um termo é um conjunto de crenças a respeito de seu referente. Essas crenças selecionam um conjunto particular de instâncias como sendo a extensão do termo. As mudanças na intenção do termo são transformações no estereótipo que surgem quando novas descobertas são feitas com respeito ao referente do termo. Quando o estereótipo muda de essa maneira, pode também selecionar uma extensão diferente 39.

Essa tese pode também dar conta dos esforços desempenhados em muitos domínios para tratar do problema do sofrimento. E, embora o uso do termo na linguagem ordinária fique veiculando significados heterogêneos, as pesquisas nas diversas áreas das ciências naturais e humanas podem possibilitar distinções de significados em relação aos usos, mas também proporcionar modos de intervenção operatórios diferenciados, sejam eles preventivos ou curativos 40. Mas essa pragmática dos usos não impede a possibilidade de uma certa universalidade: nada diz que alguns tipos de situação não provoca sofrimentos análogos, não na sua globalidade, mas sim no núcleo explicativo de tal ou qual aspecto. Se isso não fosse possível, nenhuma intervenção, terapêutica ou sociopolítica, estaria generalizável além de cada caso singular.

 

De certo princípio de caridade

Claro, a pressuposição de um núcleo fixo de significação fica hipotética. Mas é exatamente em razão do caráter hipotético de nossas interpretações que podemos aplicar ao problema da comunicabilidade do sofrimento (e das emoções em geral) o “princípio de caridade” que Quine e Davidson (de maneira diferente) aplicam à interpretação. Em ambos os casos, trata-se de um critério de racionalidade 41.

Lembremo-nos de que a ideia de um princípio de caridade resulta das dificuldades efetivas da interpretação em geral. Para Quine, a indeterminação da tradução (no exemplo célebre do gavagai) resulta da indeterminação radical da significação. E, sem dúvida, para Quine, isso não significa que não existe nenhuma tradução possível de um enunciado, mas que sempre há várias. Da incompreensão que podemos manifestar diante dos enunciados, os discursos ou o comportamento alheios, não podemos de maneira nenhuma inferir o nonsense, a falta de sentido dessas expressões. O “princípio de caridade” consiste em imputar uma diferença profunda de pensamento a um erro de tradução de minha parte, a escolher a interpretação que acorda aos outros mais verdade e inteligibilidade.

É provável que as asserções obviamente falsas à primeira vista ponham em jogo diferenças escondidas na linguagem […]. A estupidez de nosso interlocutor, além de um certo ponto, é menos provável que uma má tradução – ou, no caso doméstico, que uma divergência linguística” 42.

Para Quine, o princípio de caridade provém da imprescindibilidade da lógica (de nossa lógica) e consiste então num critério da coerência dos enunciados do outro, critério que impõe nossa lógica na tradução, não porque seria, a priori, a única lógica possível, mas antes, by default, porque não temos uma lógica alternativa.

Para Davidson 43, o princípio é ainda mais constrangedor, pois não diz somente respeito a um pressuposto de lógica, mas também à coerência semântica do conjunto holista das crenças do outro: trata-se da maximização do acordo entre as crenças dele e as nossas. Davidson mostra que o critério de pertença a uma comunidade linguística é a nossa aptidão em interpretar os enunciados emitidos pelos outros membros dessa comunidade. Ora, para poder interpretar corretamente o que o outro diz, precisamos de uma teoria que proporcione as condições de verdade de todas as frases (relativizadas, como sempre, a tempos e falantes dados). Isso quer dizer que, se alguém diz “está chovendo”, devemos poder compreender que ele o diz porque efetivamente está chovendo. Em outras palavras, devemos pressupor que se alguém diz “está chovendo”, ele tem a crença que está chovendo e que essa crença está correta. Claro, o problema surge do fato de que pode haver crenças falsas. Mas, diz Davidson, “podemos, contudo, considerar como certo que a maioria das crenças são verdadeiras” 44. Quais são os argumentos desempenhados para sustentar essa afirmação? O primeiro argumento é de tipo holista: é o fato de que “se pode identificar uma crença apenas ao localizá-la em uma trama extensa de crenças; é essa trama que determina aquilo a que remete a crença; aquilo a respeito de que ela é uma crença” 45. Por exemplo, se hoje devemos considerar como uma crença falsa que “a terra é plana”, é porque temos um conjunto de outras crenças com relação ao sistema solar, os planetas, ao voo dos aviões, etc. Identificar uma crença como falsa é possível apenas em relação com “um pano de fundo de crenças verdadeiras cuja maioria são evidentes e não estão postas em questão. Pode-se formular a mesma coisa de uma outra maneira: quanto mais crenças corretas nós temos, mais manifestados se tornam os erros que podemos fazer” 46. Quando há erros demais, o objetivo da comunicação se torna totalmente confuso.

Essa tese finalmente diz respeito às condições da comunicação, o entendimento comunicativo, no sentido de Habermas. É uma tese pragmática, coloquial, conversacional 47. Isso não implica que a interpretação permite um acordo perfeito entre o falante e o ouvinte, mas, como o diz Davidson, “uma boa teoria da interpretação maximiza o acordo” 48 ou o otimiza: “O intérprete, que parte do princípio que o seu método pode aplicar-se a uma comunidade linguística, tentará encontrar uma teoria que otimize o acordo na comunidade inteira” 49.

Nós pensamos que essa tese pode se aplicar também à comunicabilidade dos estados mentais, ou, mais precisamente, às crenças que correspondem a estados mentais de tipo afetivo. Devemos pressupor que a pessoa que expressa, de uma maneira ou outra, seu sofrimento expressa um estado afetivo que fica ligado a um conjunto (relativamente) coerente de crenças e outros estados mentais. Se Davidson fala aqui de “comunidade linguística”, é para nos lembrar de que não existem atitudes privadas (como não existe uma linguagem privada 50), mas que as crenças se ajustam à norma pública fornecida pela linguagem. A questão então é saber qual é a extensão dessa comunidade linguística: está a comunicação restrita às diversas comunidades a que pertence o indivíduo (família, empresa, escola, bairro, aldeia, nação, igreja, etc.)? Ou pode se pensar numa “comunidade universal”? Essa comunidade universal de comunicação da qual fala Apel 51? Voltarei a essa questão na conclusão. Por enquanto, vamos nos limitar ao “princípio de caridade” davidsoniano:

Desde que a caridade não é uma opção, mas a condição mesma que nos permite haver uma teoria manejável, não há sentido sugerir que nós poderíamos cair num erro maciço em adotá-la. […] A caridade nos está imposta. Que nos agrade ou não, se queremos entender os outros, devemos considerar que eles têm razão sobre a maioria dos assuntos. Se podemos produzir uma teoria que reconcilie a caridade e as condições formais para uma teoria, fizemos tudo o que estava em nosso poder para garantir a comunicação 52.

O princípio de caridade, na perspectiva de Quine e Davidson, é essencialmente um princípio de interpretação do significado dos enunciados. Porém, pelo menos em Davidson, ele pressupõe um conjunto de crenças e certa adequação entre as crenças e sua expressão linguística (ou até corporal). Portanto esse princípio nos permite pressupor que essas expressões são, até certo ponto, compreensíveis. Assim, podemos supor que, se uma pessoa diz que sofre, se ela expressa seu sofrimento como mal-estar, dificuldade, tristeza, melancolia, ausência, nostalgia, dor, luto, etc., esse conjunto de termos não somente corresponde a um conjunto de crenças, mas forma uma totalidade holística, isto é, um conjunto relativamente coerente, cuja coerência não pode ser radicalmente diferente da minha ou da tua.

Contudo, como o nota Bazin 53, não podemos desconectar os enunciados do contexto da sua enunciação. Dominar um universo lógico e semântico, que nos possibilita dar um sentido “em geral” a um enunciado, não é suficiente porque cada enunciado implica numa contextualização particular. Um dos problemas fundamentais da comunicação é que os contextos são, em última instância, contextos apenas parcialmente comuns. Por conseguinte, é somente numa ação comum, num empreendimento comum, que se experimenta e eventualmente confirma a pertinência de nossas interpretações. É na ação comum que podemos garantir, pelo menos provisoriamente, que nossa interpretação do vivido, das intenções e das crenças dos outros estavam corretas. É por isso que a compreensão do sofrimento não consiste apenas em reinscrever os enunciados de experiência num contexto semântico geral, mas também em determinar as formas concretas de interação que darão sentido a esses enunciados. Por exemplo, o contexto terapêutico não é o contexto no qual Madre Tereza encontra o sofrimento, nem o contexto das manifestações dos altermundialistas lutando contra as consequências inaceitáveis das políticas econômicas atuais (consequências que, justamente, provocam imensos sofrimentos de uma boa parte da humanidade).

 

Conclusão: um universal pragmático?

A pragmática transcendental de K. O. Apel 54, a pragmática universal de Habermas 55 propuseram uma reconstrução das pressuposições universais da comunicação. Enquanto pragmáticas, essas perspectivas filosóficas não implicam uma comunidade de conteúdos semânticos ou de maneiras de viver o mundo, nem uma identidade das características do mundo vivido fenomenológico. Porém Habermas defendeu uma tese sobre a Modernidade que implica numa racionalização do mundo vivido56, quer dizer uma disposição culturalmente adquirida em tomar um ponto de vista descentrado e universalizante, em diferenciar as situações em função de seu caráter descritivoexplicativo, normativo ou expressivo (quer dizer distinguir entre o que pertence à investigação científica, à ética ou à estética) e, finalmente, em adotar com respeito aos problemas encontrados uma postura reflexiva e hipotética. Essa tese significa que é possível atribuir aos homens umas competências cognitivas, não somente racionais no sentido estreito de uma racionalidade científica, mas capacidades morais e estéticas. Essas competências, se devem conhecer um desempenho social e culturalmente significativo, precisam de um contexto adequado. Em relação à nossa problemática, poderíamos considerar os progressos, tanto de todas as formas de terapias (sejam elas médicas ou psicológicas), como dos programas sociais nos Estados de welfare, e sustentar que, graças a essas ações, os vários problemas do sofrimento entraram pouco a pouco na consciência social e até mundial, e que essa conscientização resultou num melhor conhecimento das causas, das formas e até do vivido do sofrimento.

Nas perspectivas de Apel ou Habermas, as condições empíricas que tornam plausíveis os aprendizados cognitivos ficam pouco analisadas. A discussão sobre a teoria realista das categorias e sobre o princípio de caridade aqui discutidos parece-me oferecer alguns argumentos tornando verossímil a interpretação das transformações da modernidade. A pressuposição de racionalidade condiciona os êxitos da comunicação. Sabendo que os estados mentais afetivos, emoções, moods, sentimentos, são os mais difíceis de serem objetivados e, portanto, os mais difíceis de serem comunicados, contudo é possível sustentar que os quadros gerais da racionalidade que se devem pressupor para dar conta das performances cognitivas no sentido amplo que manifestam os humanos, aplicam-se também à autointerpretação, à comunicação e à interpretação desses estados mentais afetivos.

Das reflexões precedentes, deve parecer claramente que minha intenção não é demonstrar, de uma maneira ou de outra, que as pretensões à universalidade que, segundo a pragmática, revelam-se no discurso, na conversação ou na discussão, permitem garantir às expressões uma identidade de significado. Portanto não vou pretender que o uso, na comunicação, dos termos “sofrimento”, “infelicidade”, “tristeza”, “desespero”, etc. conseguirão transmitir uma ideia clara e distinta do vivido alheio. Do ponto de vista semântico, não podemos fazer mais que evocar uma comunidade hipotética de significação. Porém a confirmação efetiva dessas representações coletivas ou comuns só se dá pragmaticamente na experiência vivida daqueles em que uma ação comum opera uma mudança: tanto do ponto de vista daquele que inicia a ação como do ponto de vista daquele ou daqueles que são seus destinatários.

No que diz respeito a uma possível tendência à universalização, afastemos, em primeiro lugar, aquilo que arrisca ser apenas uma ilusão semântica deplorável, a ilusão de compartilhar o sofrimento do mundo. Poderíamos, pois, pensar que a ampla e contínua difusão pela mídia, e principalmente pela televisão, do espetáculo da miséria do mundo, poderia suscitar uma compreensão das situações intoleráveis vividas pelos outros. Mas os estudos sobre a recepção das mensagens audiovisuais sugerem que, nos fenômenos de identificação positiva ou negativa, a dimensão ética da empatia fica frequentemente ausente. Ora, faz parte da compreensão essa dimensão, sem a qual nós nos colocamos na posição de consumidor, ou pior, de voyeur. A mundialização das reportagens sobre a miséria, a fome, as violências das guerras ou dos genocídios, a exploração da mulher ou das crianças, etc., provoca uma dissonância cognitiva, colocando-nos como espectadores lúdicos e impotentes daquilo que deveria pelo contrário motivar uma ação. Essa distância insuperável deve nos convencer que nenhuma apresentação de um conteúdo semântico pode, em si, garantir uma compreensão do vivido alheio e que ilusória é a aparência de “universalidade” ligada à impressão de participar de um mundo globalizado e facilmente acessível.

Devemos repetir que a única definição e, portanto, o único modo de comunicabilidade do sofrimento, bem como de qualquer experiência vivida, é pragmática: por meio do que fazemos, da nossa ação, das formas de cooperação, da participação ativa, da remediação. Ora, a ação não é abstrata, sempre se inscreve em dispositivos, formais ou informais. A questão se torna então aquela de saber quais são os dispositivos, as instituições, que podem pretender certa universalidade. É quando uma ONG, por exemplo, se revela eficaz no alívio do sofrimento de uma população estrangeira ou culturalmente muito diferente, que se pode também supor uma semelhança na maneira de sentir e viver a dor, o sofrimento, o sentimento de exclusão, etc. Uma ampliação progressiva da nossa compreensão do sofrimento só se tornará possível pela multiplicação dos dispositivos que contribuem, cada um à sua maneira, em perceber, definir, compensar, transformar as situações de sofrimento. É nesse sentido que podemos esperar que a extensão das instituições de defesa dos direitos humanos, instituições internacionais, plurinacionais ou transnacionais, torne possível uma conscientização cada vez mais universal da nossa condição humana comum.

 

 

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* Professor emérito da Université Catholique de Louvain. Foi presidente do Institut Supérieur de Philosophie, diretor do Département de Communication Sociale e cofundador do Centre de Philosophie du Droit da UCL.


1 Habermas, Jurgen. (1981a). “La modernité, un projet inachevé”, Critique, 413, out., 950-969.


2Como aquilo que foi experimentado em “Auschwitz”, que Ricoeur qualificou de acontecimento “uniquement unique” [Ricoeur, Paul. (1985). Temps et Récit, 3. Le temps raconté. Paris: Seuil, p. 273]. Contudo, a narrativização da experiência dos campos finalmente deu uma forma expressiva ao “inominável”.


3O que explica o novo interesse dessas disciplinas para a fenomenologia. Cf. por exemplo: Fisette, Denis & Poirier, Pierre. (2000). Philosophie de l’esprit. État des lieux. Paris: Vrin, p. 243 sq.


4 Merleau-Ponty, que usou essa oposição, pensa que a mediação do corpo permite superá-la. Veja Merleau-Ponty, Maurice. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.


5 Husserl, Edmund. (1989). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. (Trad. e introd.: G. Granel. Paris: Gallimard, § 34-a, p. 140-141 [(1954) Der Krisis der europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, V. Z. W. Husserl-Archief te Leuven and Martinus Nijhoff, La Haye].


6 Op. cit., §34-e, p. 147


7 Ibidem.


8 Ricoeur, Paul. (1986), “L’originaire et la question-en-retour dans la Krisis de Husserl”. In: A l’école de la phénoménologie. Paris: Vrin, p. 290.


9 Husserl, Edmund. (1953). Méditations cartésiennes. Introduction à la phénoménologie (Trad.: G. Pfeiffer e E. Levinas). Paris: Vrin, p. 75.


10 Husserl, Edmund. (1989). La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale, op. cit., p. 209.


11 Sartre, Jean-Paul. (1943). L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard.


12 Op. cit., p. 135.


13 Op. cit., p. 136.


14 Op. cit., p. 441.


15 Isso não significa que as descrições fenomenológicas das experiências são meramente “psicológicas”: elas não o são se se entende “Psicologia” no sentido científico (behaviorista ou cognitivista), mas a distinção entre a descrição fenomenológica e uma Psicologia introspectiva fica muito mais difícil de ser marcada claramente, inclusive em Husserl.


16 Cf. Ricœur, Paul. (1986). Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Seuil, p. 40-74.


17 Merleau-Ponty, Maurice. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, p. 411.


18 Nagel, Thomas. (1974). “What it is like to be a bat?”. Philosophical Review, 83, 435-450.


19 Jackson, Frank. (1986). “What Mary didn’t know”. Journal of Philosophy, 83.


20 Wittgenstein, Ludwig. (1970). Fiches. Paris: Gallimard, p. 139.


21 Botterill, George & Carruthers, Peter. (1999). The Philosophy of Psychology. Cambridge: Cambridge University Press, p. 238-239.


22 Distinção que não corresponde necessariamente àquela da linguagem ordinária, mas que podemos usar de maneira heurística.


23 “A consciência de acesso diz respeito à consciência dos estados (o fato, por exemplo, que minha dor seja consciente). A consciência de um estado será chamada de “consciência de acesso” se, do fato que um indivíduo está nesse estado consciente, uma representação do conteúdo do estado pode servir como premissa a uma inferência ou controlar a ação do sujeito.” (Fisette & Poirier, 2000, p. 251).


24 Ricœur, Paul. (1963). Philosophie de la volonté. Finitude et culpabilité, II. La symbolique du mal. Paris: Aubier-Montaigne; Ricoeur, Paul. (1983-1985), Temps et Récit, t. I-III. Paris: Seuil.


25 Ricœur, Paul. (1983). Temps et Récit, t. I. Paris: Seuil, p. 13.


26 Op. cit., p. 17.


27 Op. cit., p. 85.


28 É possível distinguir entre o aspecto “cognitivo” da compreensão do outro e o aspecto afetivo ou emocional. O primeiro resulta da nossa capacidade de “perspective-taking”, ou de uma “theory-theory”, uma teoria sobre as características da mente; o segundo de uma forma de “simulação” ou capacidade de imitação (“simulation theory”) ou de “mimesis”. Cf. Goldman, Alvin I. (1992). “In defense of the simulation theory”. Mind and Language, 7, 104-119; Perner, Joseph. (1991). Understanding the representantional mind. Cambridge: MIT Press.


29 Rorty, Richard. (1998a). Truth and progress. Philosophical Papers, 3. Cambridge: Cambridge University Press, p. 167.


30 Jefferson, Thomas. (1905). “Notes on Virginia”, Writings, ed. A. A. Lipscomb & A.E. Bergh. Washington, I, p. 194, cit. Rorty, op. cit., p. 168.


31 Le Breton, David. (1995). Anthropologie de la douleur. Paris: Métailié.


32 Veja Griffiths, Paul E. (1997). What emotions really are. The problem of psychological categories. Chicago; London: The University of Chicago Press.


33 Nessa perspectiva, a distinção que sugerimos entre dor e sofrimento nos permite, pelo menos, de distinguir entre respostas semelhantes (se não idênticas) a reflexos que parecem insensíveis à cultura, e os vividos sofridos ao nível da cognição superior e que diferem segundo as culturas e as situações particulares ligadas à biografia dos indivíduos.


34 Veja, por exemplo, Gopnik, Alison. (1996b). “The scientist as child”. Philosophy of Science, 63, dez. 1996, 485-514; Gopnik, Alison & Wellman, Henry. (1992). “Why the child’s theory of mind really is a theory”. Mind and Language, 7.


35 Griffiths, op. cit., p. 16.


36 Cf. Rosch, Eleanor (1973). “Natural Categories”. In: Cognitive psycholoy, 4. (1973); Rosch, Eleanor & Lloyd, Barbara B. (Eds.). (1978). Cognition and Categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; Rosch, E. & Mervis, C. B. (1975). “Family ressemblance: studies in tne internal structure of categories”. Cognitive Psychology, 7, 573-605.


37 Griffiths, op. cit., p. 171.


38 Cf. esse tipo de debates em Putnam, Hilary (1975), Philosophical Papers: v. 2, Mind, language and reality. Cambridge: Cambridge University Press; (1983), Philosophical Papers: v. 3, Realism and Reason. New York: Cambridge University Press.


39 Griffiths, op. cit., p. 171-172.


40 “A teoria dos gêneros naturais não somente dá bem conta de alguns elementos da prática científica, mas ela captura também um aspecto importante da formação e do uso dos conceitos pelos humanos em geral” (Griffiths, op. cit., p. 175).


41 Sobre esse princípio, cf. o número especial de Philosophia Scientiae. Travaux d’histoire et de philosophie des sciences, v. 6 (2).


42 Quine, Williard van Orman. (1960). Word and object. Cambridge: MIT Press, § 13.


43 Davidson, Donald. (1993). Enquêtes sur la vérité et l’interprétation [Inquiries into Truth & Interpretation, (1984), New York, Oxford University Press]. (Trad.: P. Engel, Nîmes, Editions Jacqueline Chambon).


44 Davidson, op. cit., p. 247.


45 Op. cit., p. 247.


46 Op. cit., p. 248.


47 Cf. Grice, Paul. (1968). “Utterer’s Meaning, Sentence-Meaning, and Word-Meaning”, Foundations of Language, 4; (1969), “Utterer”s Meaning and Intentions”, Philosopical Review, 78.


48 Davidson, op. cit., p. 249.


49 Op. cit., p. 249.


50 Segundo a tese de Wittgenstein. Cf. a discussão dessa tese em Bouveresse, Jacques. (1987b). Le mythe de l’intériorité. Expérience, signification et langage privé chez Wittgenstein. nouvelle édition. Paris: Minuit.


51 Apel, Karl-Otto. (1987). L’éthique à l’âge de la science (L’a priori de la communauté communicationnelle et les fondements de l’éthique), avant-propos de l’auteur. (Introd.: R. Lellouche. Trad.: R. Lellouche e I. Mittmann). Lille: Presses Universitaire de Lille


52 Davidson, op. cit., p. 287.


53 Bazin, Jean. (2002). “Si un lion…”, In: L’usage anthropologique du principe de charité, número especial de Philosophia Scientiae. Travaux d’histoire et de philosophie des sciences, 6 (2), 127-146.


54 Cf., por exemplo, Apel, Karl Otto. (2001). La réponse de l’éthique de la discussion au défi moral de la situation humaine comme telle et spécialement aujourd’hui. Paris-Louvain: Institut Supérieur de Philosophie, Peeters.


55 Cf., por exemplo, Habermas, Jurgen. (1986). Morale et communication (Trad.: Chr. Bouchindhomme). Paris: Cerf; (1992), De l’éthique de la discussion. (Trad.: Mark Hunyadi). Paris: Cerf.


56 Cf., entre outros, Habermas, Jurgen. (1988). Le Discours philosophique de la Modernité. (Trad.: Chr. Bouchindhomme e R. Rochlitz). Paris: Gallimard.

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