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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.3 Belo Horizonte abr. 2010

 

RESUMO DE DISSERTAÇÃO

 

Investigações clínico-psicanalíticas sobre o trauma no contexto da urgência hospitalar

 

Psychoanalytic clinical research on trauma in the context of hospital emergency

 

Investigaciones clinica psicoanalitica sobre el trauma en el contexto de emergencia de los hospitales

 

Carla D'Alessandro *

 

 

Esta dissertação realiza um estudo teórico-clínico sobre o trauma no contexto da urgência hospitalar. Estabeleceu-se como objetivo investigar as figuras do trauma psíquico que se inscrevem nos sujeitos para além do trauma físico, a partir da perspectiva psicanalítica.

Como objetivo específico, considerou-se trabalhar como surge e se desenvolve, conceitualmente, a noção de trauma na obra de Freud e Lacan, utilizando-se, também, de textos de psicanalistas contemporâneos que esclarecem o tema. Além disso, este trabalho delimita o conceito de traumaprocesso e trauma-acontecimento (Belaga, 2004), revela casos clínicos nos quais seria impossível abordar o trauma sem considerá-lo pela via da particularidade, assim como destaca algumas figuras do trauma psíquico que se inscreveriam nos sujeitos hospitalizados1 por situações de trauma físico. O capítulo um traz a noção de figura e as contribuições freudianas sobre o trauma: como Freud foi traumático para as demais ciências ao criar a psicanálise, seu percurso do trauma da sedução até a fantasia, a noção econômica do trauma, a angústia e suas consequências para o psiquismo. O segundo capítulo apresenta a releitura freudiana de Lacan quanto ao trauma, seu conceito de real, associado à questão da causa traumática, e da ciência. O terceiro capítulo destaca o corpo físico para a medicina e o corpo para a psicanálise; estabelece a relação entre trauma-processo e trauma-acontecimento e pontua como as figuras do trauma inscrevem-se no real, simbólico e imaginário. Por fim, o quarto capítulo descreve dois casos clínicos em que o trauma físico se fez presente com suas singulares respostas.

A partir do trabalho de pesquisa teórico realizado e sua articulação com a clínica, pode-se pensar no trauma além do trauma físico. Apesar de a realidade instaurada no hospital contar quase sempre com uma marca corporal, física, essa questão das figuras do trauma psíquico que se inscrevem para os sujeitos delineia uma nova perspectiva sobre o trauma no âmbito da medicina, ao considerá-lo, pela vertente da particularidade, inerente a cada sujeito.

O que é o trauma? Desde a etimologia da palavra, temos uma ferida com efração, um choque violento, um excesso de energia que rompe com qualquer proteção, ou a pulsão excessiva que ultrapassa o princípio do prazer. A esse encontro faltoso, aquilo que escapole, que não pode ser recoberto completamente, ou melhor, só pode ser bordejado, Lacan (1964) nos ensina a chamar de real impossível. A esse vazio inominável, que escolhemos investigar além do trauma físico por sabermos que deixa sempre um resto, nomeamos figuras do trauma psíquico. E perguntamos: para além do trauma físico, quais seriam as figuras do trauma psíquico que se inscreveriam para esses sujeitos? A figura, em sua plasticidade, nos pareceu indicada para criar algo de indizível e imprevisível nas respostas apresentadas ao trauma físico. Percorrendo o texto freudiano, ver-se-á que o trauma para a psicanálise é um ponto fundamental em sua construção, pois foi com base nele que Freud iniciou sua concepção das afecções psíquicas. Historicamente, percebem-se várias formulações sobre a essência e a natureza do trauma, que, em Freud, parte do fato para a fantasia, inclui a pulsão em seu aspecto de economia psíquica e retorna da fantasia para o evento traumático, mas numa nova dimensão, discutindo sobre a impressão traumática. Ao inserir a fantasia, este autor traz à baila a implicação subjetiva, referindo-se a algo do sujeito que está conectado ao seu desejo e, consequentemente, pode ser integrado ao discurso da psicanálise.

Essa é a grande contribuição freudiana no que tange ao trauma: apontar a questão da causa – afinal, ela marca um corte definitivo com a medicina. Essa discussão parece caminhar com o trauma, parte da causa da histeria, da sedução material, da inclusão do sexual à fantasia traumática. Freud inova em seu percurso diante do trauma, ao trazer a importância de relativizarmos a situação traumática para não sermos meros objetos de um acontecimento contingente. Como exemplo, podemos citar o caso do Homem dos Lobos (1918), no qual o acontecimento é reconstruído via fantasia, não como um fato em que o sujeito foi submetido pela realidade.

Interessante constatar que, até no mais brutal acontecimento, como a guerra, Freud (1919) destaca que o fundamental é o inimigo interno. Lá está ele a implicar o sujeito em todo acontecimento, por mais horror que ele possa causar. Mas qual é esse inimigo? Pode-se pensar na angústia traumática, origem do recalque a instaurar o sujeito, e estabelecer seu trauma-processo, homólogo à estrutura.

A esse trauma-processo pelo qual somos todos acometidos Lacan (1974) assinala, com precisão, estar na não relação da linguagem, na não complementaridade sexual, no buraco do troumatisme2 de – realmente é isso o que funda o sujeito. Fica evidente, com base na compreensão do trauma como um fato de linguagem, a diferenciação entre a visão médica e a psicanalítica, em que o acontecimento não tem que ser necessariamente terrível e ameaçador para ser traumático. Já para a medicina, percebe-se, com a nomeação estabelecida pela psiquiatria (estresse pós-traumático), que o objetivo final é descrever, com a maior precisão possível, o que se define como traumatismo para os pacientes, na tentativa de predizer suas possíveis reações, ou seja, associar uma causa a determinada consequência. O que se torna difícil, se consideramos que há sujeito traumatizado.

Essencial também foi abordarmos a leitura do corpo marcado pelo traumatismo médico – um corpo a ser mapeado, que funciona como máquina estabelecida, cada vez mais, por protocolos a desconsiderar, frequentemente, a subjetividade do doente, bem como a noção de corpo para a psicanálise, que insere a dimensão do inconsciente a incluir o gozo e o desejo do sujeito.

Com Lacan (1964), como vimos, reforça-se a questão da causa, no sentido da implicação do sujeito além do contingente. Ao relacionar a tiquê com o real traumático, como algo além da repetição significante e do princípio do prazer, articulada ao autômaton, nomeado como a cadeia de significantes, Lacan parece introduzir uma nova descrição para o trauma, que se inclui na repetição e reitera o impasse próprio do sujeito, quer dizer: apesar de o sujeito estar implicado, ele não é responsável totalmente por algo que é da própria estrutura. Aí está o paradoxal de qualquer resposta traumática.

Dependendo da forma como se analisa o evento traumático, ou melhor, a causa traumática da neurose, admitir-se-á que o sujeito é mais vítima ou mais responsável por sua doença. Temos, portanto, a fantasia e até a própria neurose como formas de respostas ao trauma. Tanto para Freud quanto para Lacan, o trauma é constituinte do sujeito, processo no qual a neurose pode ser apontada como uma saída, do mesmo modo como a entrada no simbólico (o discurso), a fantasia e o sintoma recobrem, criam figuras ou ficções que incluem o traumático. A partir da contribuição de Lacan, dispomos do recurso do simbólico, real e imaginário, do nó borromeano, para pensar nas respostas singulares ao trauma. O que tornou possível evidenciar também outras respostas não mediadas pela fantasia, como a passagem ao ato, o gozo de morrer, etc. Neste trabalho, apresentamos dois casos clínicos em que o trauma físico se fez presente com suas diferentes figuras: um se vale da fantasia, e outro recorre ao ato como possibilidade de resposta ao trauma.

Sabe-se que, em alguns momentos ou estruturas, não há tela de recobrimento, angustia-se e algo cai, é o que caracteriza o trauma, o real lacaniano. Isso se dá quando o contingente é capaz de ultrapassar o sujeito em sua história e configuração psíquica e física. Assim nem tudo parece encontrar resposta.

Em suma, acreditamos ser essencial a escuta psicanalítica do trauma, através da singularidade de cada sujeito. E é indispensável abrir-se a escutá-lo a partir de seu trauma-processo e das diversas possibilidades de inscrições ou respostas que ele pode estabelecer numa situação traumática, bem como considerar quais as implicações dele no trauma. Só assim ele poderá criar, ou não, um novo caminho. Não sabemos até quando o sujeito conseguirá responder ao trauma, pois existe um real além dele, como Freud revela além do princípio do prazer, que, ao ser inundado de angústia, transborda no sujeito.

 

 

* Mestra pela PUC-MG. Av. do Contorno 4.640, sl. 802, Serra, Belo Horizonte-MG. E-mail: psicanaliselc@lifec.com.br. Orientadora: Cristina Moreira Marcos.
1O material clínico adveio dos casos de sujeitos politraumatizados atendidos pela analista no Hospital Geral Lifecenter.
2Troumatisme: Lacan usa o jogo de palavras em francês para associar o traumatismo e o furo no real (Trou = furo).

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