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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.1 Belo Horizonte abr. 2011

 

ARTIGOS

 

Para além da escolha profissional, experimentações intensivas

 

For besides the professional choice, intensive experimentations

 

Para además de la opción del profesional, las experimentaciones intensivas

 

 

Sonia Regina Vargas Mansano*

Universidade Estadual de Londrina (UEL).

 

 


RESUMO

Desde a sua invenção, a adolescência vem sendo compreendida como um tempo no qual acontecem as mais diferentes decisões, entre elas a profissional. Após tantos estudos sobre a escolha profissional dos adolescentes, haveria algo para ser pensado para além dela? O objetivo deste estudo é fazer uma análise sobre a construção do vínculo com a profissão em sua dimensão intensiva e artística, recorrendo aos estudos de Gilles Deleuze e Michel Foucault. Sob essa perspectiva, somente a experimentação pode fornecer elementos para a criação de sentidos singularizados para a existência. Nesse processo, não existe a possibilidade de oferecer qualquer tipo de garantia ou certeza nos primeiros passos em direção às profissões. O que há é um processo em aberto que envolve a invenção de si também na profissão.

Palavras-chave: afetos, experimentações intensivas, profissão.


ABSTRACT

The adolescence has been understood as a time in which the most different decisions happen, among them is the professional choice. After so many studies about the adolescents' professional choice, would there be something to be thought beyond it? The objective of this study is to analyze the construction of the profession in her intensive and artistic dimension, according to the studies of Gilles Deleuze and Michel Foucault. In that analysis perspective, the experimentation can offer elements for the creation of a sense of the professional activity. In that process, there is no certainty in the first steps towards the professions. We have a process and a invention of itself in the profession.

Keywords: affections, intensive experimentations, occupation.


RESUMEN

La adolescencia se ha entendido como un tiempo en donde ocurren las más variadas decisiones, entre tantas, la decisión profesional. Después de tantos estudios sobre la opción profesional de los adolescentes, ¿se podrá pensar algo más sobre el tema? El objetivo de este estudio es hacer un análisis sobre la construcción del vínculo con la profesión en su dimensión intensiva y artística, siguiendo los estudios de Gilles Deleuze y Michel Foucault. Bajo esta perspectiva exclusivamente la experimentación puede ofrecer elementos para la creación de sentidos existenciales propios. En ese proceso, no existe la posibilidad de ofrecer cualquier tipo de garantía o seguridad en los primeros pasos hacia las profesiones. Lo que hay es un proceso en abierto que añade a la invención del sí mismo la búsqueda profesional.

Palabras clave: afección, profesiones, las experiencias intensivas.


 

 

Analisar as escolhas profissionais na contemporaneidade é uma tarefa que mobiliza diferentes áreas de conhecimento. Vários segmentos sociais também têm sido solicitados a se manifestar sobre o tema. Diante dos saberes e opiniões produzidos por psicólogos, sociólogos, educadores e médicos, é notável a maneira como, mais recentemente, o início do vínculo com as profissões foi praticamente "colado" a um momento de decisão que, sob essa ótica, precisaria acontecer na adolescência.

Pretende-se assinalar, no decorrer deste estudo, dois aspectos que essa naturalização acaba por deixar de lado. Primeiramente, que a vida profissional não se limita a uma escolha do adolescente. Em segundo lugar, que, para além desse suposto momento de decisão, o vínculo com as profissões compreende algo mais complexo: as experimentações intensivas que são colocadas em curso nas trajetórias de vida e que, de diferentes maneiras, compõem as ligações afetivas com as atividades profissionais.

 

Adolescência e escolha profissional: circunscrevendo um campo problemático

Ao abordar a escolha profissional, a Psicologia colaborou, em certa medida, para promover a ideia de que, nesse momento, fazem-se presentes crises, dúvidas e angústias. Isso abriu espaço para que as decisões fossem compreendidas como algo definitivo, visto que a "boa escolha" seria certeira e não sofreria modificações. A frequência com que essa ideia repercute no campo social, produzindo os mais variados efeitos, é notável. Diante disso, tornou-se estratégico, neste estudo, resgatar alguns elementos históricos que ajudarão a compreender como se efetuou a invenção tanto da noção de adolescência quanto de escolha profissional.

Para começar a análise do campo problemático das profissões, recorrerse- á àquilo que Foucault (1996) denominou, em seus estudos, como "relações de poder". Essas são compostas por um conjunto heterogêneo de forças que vão desde aquelas que circulam nas diferentes instituições até os discursos, ações, práticas, percepções e valores que atravessam os vínculos profissionais, produzindo diversos saberes e difundindo-os. Estes, por sua vez, colaboram para inscrever uma direção laboral e produtiva na vida de jovens, adultos e, nos dias de hoje, até mesmo na de crianças.

O aparecimento histórico da noção de adolescência, como uma faixa etária intermediária entre a infância e a vida adulta, deu-se no final do século XIX. Mais do que delimitar uma "etapa do desenvolvimento humano", a adolescência foi tomando forma a partir de componentes subjetivos que, aos poucos, foram-lhe atribuídos, na tentativa de diferenciá-la da infância. Ariès (1981) diz que essas duas categorias, infância e juventude, "só se separariam mais para o fim do século XIX, graças à difusão, entre a burguesia, de um ensino superior: universidade ou grandes escolas" (Ariès, 1981, p. 176).

Diante dessas considerações, questiona-se: a que serviu a invenção da adolescência no século XIX? Recorrendo aos historiadores que localizaram a sua emergência na escolarização, no ingresso ao mundo do trabalho e no serviço militar (Ariès, 1981; Levi & Schmitt, 1996), pode-se dizer que a invenção da adolescência estava diretamente ligada a um estreitamento do vínculo entre o sujeito e o trabalho, sendo inclusive compreendida como uma etapa de preparação para a vida adulta. Uma das estratégias adotadas para viabilizar esse empreendimento foi preparar, cada vez mais precocemente, o jovem para assumir as responsabilidades que são próprias do mundo laboral. Cabe salientar que o momento de institucionalização da adolescência coincide com a análise que Foucault (1990) faz sobre a disseminação das sociedades disciplinares. Assim, preparar para o trabalho, no século XIX, implicava mais que formar um trabalhador com conhecimentos técnicos sobre determinada atividade, mas pressupunha, especialmente, a construção de um modo de subjetivação servil, pautado na obediência, pelo qual o indivíduo fosse capaz de reconhecer e respeitar a hierarquia presente no interior das instituições, tornando-se, a cada dia, mais disciplinado para a produção.

Mais de um século separa atualidade e invenção da adolescência, e o assunto continua chamando a atenção de especialistas e da população em geral. Nesse intervalo, diversos novos conhecimentos e opiniões foram produzidos sobre esse momento, dando-lhe outros contornos. A adolescência, no final do século XX, passou a ser amplamente estudada e circunscrita com base nos novos problemas que deveriam ser enfrentados tanto pelos jovens quanto pelos profissionais que porventura os acompanham. Uma parcela significativa desses novos problemas localiza-se na questão profissional.

Além disso, novos dispositivos passaram a intervir no vínculo entre o adolescente e o trabalho. De acordo com os estudos de Deleuze (1992), uma sociedade organizada pelas instituições e pela disciplina é o que estamos, pouco a pouco, abandonando. Assim, os dispositivos que organizam a vida coletiva já não são mais exclusivamente disciplinares, caracterizando-se também pelas formas de controle. Cabe salientar que os componentes disciplinares ainda se fazem muito presentes na vida escolar e profissional dos jovens. Entretanto, em nosso tempo histórico, eles dividem espaço com outros componentes subjetivos que introduzem mudanças na sua relação com o trabalho, como veremos.

Ligar a adolescência a um momento de decisão envolve uma dessas dimensões de controle. A necessidade de fazer uma escolha correta sobre a carreira profissional a ser seguida tornou-se tão naturalizada que praticamente ofuscou outra dimensão importante da vida do trabalhador: a construção do vínculo com a profissão como uma processualidade a ser inventada e experimentada.

Hoje, a ideia de uma escolha definitiva é disseminada como uma obrigação a ser cumprida a qualquer custo por grande parte dos adolescentes e de suas famílias. Isso pode ser facilmente notado em nosso País nas épocas em que são abertas as inscrições para o vestibular. Nessas ocasiões, os telejornais que entrevistam os jovens, questionando suas opções, mostram o quanto estes expressam, com certa aflição, a necessidade de escolher uma profissão correta que lhes deverá acompanhar pelo resto de suas vidas. Nesse momento, observase uma confusão: é como se a escolha do curso superior fosse traduzida como uma resolução da questão profissional, o que não corresponde à realidade, pois não há garantias de que o curso escolhido seja concluído ou que o profissional formado atue nessa área.

Em uma sociedade caracterizada pelos dispositivos de controle, como a nossa, a necessidade de tomar uma decisão não é vivida como uma mera obrigação. Ela é engendrada a partir de efeitos positivos do poder. Como? Hoje, as exigências colocadas pelo mundo do trabalho já não incidem mais exclusivamente sobre o corpo e o tempo dos jovens, como dito por Foucault (1990) ao analisar o século XIX. Elas incluem também dimensões da existência que envolvem o desejo e o afeto. É sabido o quanto o trabalho foi investido de maneira desejante por toda uma geração que depositava nele não apenas uma oportunidade de conquistas materiais como também a chance de fazer dessa atividade um objetivo de vida (Lafargue, 1999). O trabalho, desde o século XIX, foi ganhando um valor subjetivo de reconhecimento e respeitabilidade que marcou gerações inteiras. Com o advento e expansão da tecnologia, houve um crescimento nas exigências colocadas pelo mercado de trabalho. Isso colaborou para estreitar ainda mais o vínculo do jovem com os processos de formação profissional. Nesse contexto, a necessidade da escolha e da formação tornou-se cada vez mais precoce.

O investimento desejante na vida laboral sobrevive nos dias atuais. Assim, por diferentes vias, a valorização do trabalho chega ao jovem, que passa a denominar como sua a necessidade de tomar uma decisão correta, lançandose o mais rápido possível na preparação para o trabalho. Entretanto, essa necessidade muitas vezes vem de fora, sendo trazida pelos pais, pela escola ou mesmo pela mídia, visto que, em muitos casos, ela não faz parte do horizonte de preocupações de muitos jovens. Assim, é visível o quanto a expectativa por uma decisão, que circula entre outros agentes sociais, passa a ser assumida como própria. Com isso, o desejo por uma decisão profissional é incorporado como uma necessidade pessoal e urgente, muitas vezes revestida por idealização. Nessa configuração ideal, o trabalho deveria trazer o máximo de satisfação, retorno financeiro e realização.

Indissociável dessa expectativa socialmente construída, outra característica dessa nova configuração social marcada pelo controle está no fato de que se passou a atribuir ao indivíduo adolescente uma "liberdade de escolha". Essa liberdade estaria presente nas mais diferentes dimensões da sua existência: sexual, religiosa, afetiva, ideológica, social e também profissional. No exercício dessa suposta liberdade, o adolescente seria capaz de encontrar uma "verdade sobre si", objetivada no amadurecimento e na consolidação de uma identidade. Entretanto, se de fato existe um exercício de liberdade, como poderíamos analisar aquele jovem que escolhe não se envolver com o tema nesse momento de sua vida? E se ele preferir, em nome dessa liberdade, "curtir a vida" antes de pensar em formação ou trabalho? Certamente, essa "escolha livre" será traduzida como um problema por diferentes segmentos sociais, uma vez que ela é realizada em meio a diferentes relações de poder.

Assim, apesar de o discurso referente à liberdade de escolha estar tão disseminado em nosso cotidiano, o quadro que toma forma hoje é bastante diferente. Nesse contexto, pode-se constatar que, se a liberdade de escolha é exercida, e ela o é, isso se dá com base no desejo e nos interesses dos jovens. Como os desejos e os interesses são construídos nas relações sociais, eles também são atravessados pelas relações de poder que, conforme dito por Foucault (2004), são "móveis, reversíveis e instáveis" (p. 276). Assim, olhando com mais atenção, o que se observa é uma adolescência amplamente monitorada por uma rede interinstitucional que intervém de diferentes maneiras para acelerar a decisão profissional e para promover, o mais rápido possível, a inserção dos jovens no mundo do trabalho. Tanto que, ao focalizar a necessidade de que uma decisão profissional seja tomada na adolescência, qualquer dúvida ou mudança de trajetória experimentada pelo jovem ou pelo adulto acaba sendo traduzida como um fracasso na escolha. Com isso, o jovem é capturado tanto pela ideia de liberdade que circula ao seu redor quanto pelo desejo de ter uma identidade profissional, em virtude da qual alcançaria a satisfação, a respeitabilidade e o reconhecimento sociais.

Diante disso, torna-se necessário pensar a problemática dos vínculos profissionais valendo-se de outros ângulos. Isso porque, ao acolher para si a necessidade de decisão e ao escolher um caminho profissional, o máximo que o adolescente faz é dar os primeiros passos em direção à experimentação de uma determinada área de conhecimento e intervenção. Passos importantes, sem dúvida, mas que comportam riscos, abandonos, angústias e equívocos que são próprios da vida.

Por isso, entende-se que os primeiros contatos com as profissões envolvem algo bem mais amplo, que não se reduz à escolha idealizada do caminho definitivo. Assim, já não faz mais sentido falar em uma escolha que é realizada preferencialmente na adolescência, mas da produção de subjetividades que se dá em meio a múltiplas experimentações intensivas, entre as quais está o trabalho.

 

A produção de subjetividades no exercício das profissões

Com base nesse campo problemático, será discutida a produção de subjetividades no contato com as profissões. Para compreender a noção de subjetividade, recorre-se a Guattari e Rolnik (1996), que a compreendem como um processo de produção, no qual comparecem e participam múltiplos componentes subjetivos como, por exemplo, a linguagem, a tecnologia, a ciência, a mídia, o trabalho, o capital, os valores vigentes, enfim, uma lista ampla que tem como principal característica o fato de ter sido inventada e posta em circulação pelo coletivo. Assim, os componentes de subjetivação têm uma temporalidade, ou seja, são diferentes a cada época analisada, tendo, portanto, um valor histórico bem delimitado. Nessa perspectiva de análise, não existe um sujeito prévio, determinado, mas sim uma construção baseada na qual produzimos nossa existência.

Cada um desses componentes pode ganhar importância coletiva e, por isso mesmo, são atualizados de diferentes maneiras no cotidiano. Pode-se dizer, então, que os múltiplos componentes de subjetividade difundem-se como fluxos que percorrem o meio social, dando-lhe movimento. A subjetividade, sob esse ponto de vista, é concebida como uma matéria prima viva e mutante, a partir da qual é possível experimentar e inventar maneiras diferentes de perceber o mundo e de nele agir.

As instituições sociais também produzem componentes de subjetivação. Hardt e Negri (2001), analisando a sociedade contemporânea, comentam que "as subjetividades tendem a ser produzidas simultaneamente por numerosas instituições em diferentes combinações e doses" (p. 352). Assim, fica evidente o quanto a família, a mídia, o mercado de trabalho, a escola, a economia, o círculo de amigos e tantos outros segmentos sociais se fazem presentes na produção das trajetórias profissionais, participando delas de maneira decisiva.

Como cada uma dessas instituições abarca uma multiplicidade de componentes de subjetivação, o enfrentamento entre eles precipita rupturas e mudanças na organização social que, em nossos dias, está voltada para a valorização do trabalho. Nesse sentido, ainda que a existência do jovem seja atravessada pelos valores institucionais, pelos discursos e pelos dispositivos de controle, sua potência de transformação e resistência são elementos que participam desses embates, produzindo os mais variados efeitos. Vejamos como: sabe-se que as diferentes profissões são circunscritas em territórios específicos que delimitam suas áreas, organizando-os. Alguns de seus contornos podem ser encontrados nas linhas que compõem as áreas de conhecimento, os objetos de estudo, as técnicas de intervenção, bem como o tipo de clientela que cada profissão atenderá. Entretanto o fato de os territórios estarem organizados não os torna imutáveis. Ao contrário, os territórios profissionais mantêm uma espécie de vizinhança com outras áreas a partir da qual os profissionais dialogam, trocam ideias, conectam, desconectam e, em larga medida, enfrentam-se ou atuam em parceria.

Um exemplo pode ser encontrado nas articulações entre a Medicina e a Física, que buscam elaborar e construir equipamentos diagnósticos ou os mais diferentes tipos de próteses. Essa vizinhança coopera para dar mais consistência tanto ao plano organizado do trabalho de cada uma dessas áreas quanto às possibilidades de trocas e mutações dos territórios profissionais. É nesse sentido que a organização das profissões em áreas do saber cria uma extensividade, uma delimitação, um território que poderá ser acolhido e alterado por aqueles que mantêm algum interesse ou vínculo com suas atividades.

Mas, além de extensivas, é preciso atentar para o fato de que o exercício profissional precipita toda uma experimentação que é de natureza intensiva. Nesse caso, outra faceta das profissões pode ser analisada: aquela voltada para dimensões subjetivas que podem vir a ser experimentadas pelo indivíduo no contato com as atividades e com as pessoas que frequentam esse território profissional. Estamos falando do campo de produção singularizada de afetos e de sentidos que cada um vai construindo, aos poucos, para a sua profissão. Essa construção é intransferível. Os sentidos atribuídos a uma profissão variam entre os profissionais e em um mesmo profissional. Por tratar-se de uma produção, ela nunca será encontrada de maneira pronta na fase instituída para a decisão. Isso é impossível, visto que envolve toda uma construção que toma forma nas experimentações de si, dos outros e dos encontros que se dão no cotidiano. Sobre essa experimentação, não existe possibilidade de previsão ou de controle, ou seja, não há um a priori, um caminho pronto a ser simplesmente reposto por aquele que escolheu.

Pode-se dizer, então, que os vínculos profissionais são constituídos por territórios extensivos (a própria trajetória de vida) e por devires. Por serem imprevisíveis, estes últimos podem romper, alterar, firmar, redesenhar ou mesmo desmanchar o vínculo com os territórios profissionais. É por isso que as experimentações e os encontros que acontecem ao longo das trajetórias de vida são tão decisivos nesse processo que se estenderá enquanto durar o vínculo profissional.

Portanto, é possível dizer que os territórios profissionais extensivos organizam as histórias de vida e, dessa maneira, têm sua função bem definida no processo. Já as experimentações intensivas dão mobilidade e vitalidade a essa trajetória e nos ajudam a perceber que o vínculo com a profissão efetua-se a partir de um vir a ser, de um inacabamento.

 

As experimentações intensivas

Aquilo que anteriormente fora chamado de resistência pode ser aproximado da noção que deu nome a este estudo: as experimentações intensivas. Essas experimentações engendram novos modos de subjetivação com base nos dados trazidos por cada experiência (Deleuze, 2001). Tais dados, por sua vez, podem lançar o trabalhador no movimento de invenção de si, no exercício das profissões. Essas experimentações (que, insiste-se, são mais complexas do que uma escolha) recusam a totalização da existência num caminho predeterminado e definitivo. Elas afirmam a vida em seu vir a ser, em sua potencialidade de criação e, principalmente, na experimentação de novas sensibilidades. Chega-se, assim, a outro ângulo de análise do vínculo com a profissão: a possibilidade de fazer da vida e das trajetórias profissionais uma construção que comporta o "em aberto", o inacabamento.

Se não é possível apoiar-se em uma concepção que dê garantias de uma escolha profissional definitiva, tal como fora demonstrado até aqui, como compreender a existência e a vida profissional, marcadas que elas são pelas experimentações intensivas? Tal como proposto por Foucault (2004), questionamos se a arte não teria um lugar nesse processo de construção de si e das profissões. Vejamos como: a arte, quando pensada como processo de invenção, implica uma abertura tanto para os dados da experiência (que são imprevisíveis) quanto para os efeitos que eles são capazes de produzir nas trajetórias de vida. Estar sensível e vulnerável à ação desses dados não é algo aceito com facilidade, ainda mais quando as experimentações vividas trazem consigo a dúvida quanto aos rumos a serem seguidos. Essa dificuldade configura-se conforme os dados da experiência, em diferentes momentos, colocam o jovem em situações desconhecidas e de difícil avaliação.

Assim, as experimentações cotidianas nos lançam em um movimento imprevisível de forças que, por sua vez, não cessam de travar lutas para se afirmar sobre as demais. A vida, como uma obra de arte, pode ser compreendida como esse movimento vivo que segue seu curso a partir do enfrentamento entre as forças, com suas as construções e desconstruções. Por que seria diferente com as profissões? Em uma entrevista concedida a Hubert Dreyfus e Paul Rabinow no ano de 1983, Foucault faz o seguinte comentário:

O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? (Foucault, 1983, citado por Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 261).

Seguindo essa linha de análise, cabe questionar: cm base em quais correlações de forças o vínculo com a profissão está sendo construído e quais experimentações intensivas esse contato com o novo possibilita na contemporaneidade? O desafio que se coloca, então, consiste em aproximar tanto da vida quanto da profissão a arte. O que está em jogo em uma produção artística da vida e da profissão é a possibilidade de "descolar" os jovens e os adultos dos saberes cristalizados que atravessam o cotidiano e que vêm sendo elaborados desde século XIX. De diferentes maneiras, esses regimes aprisionam as possibilidades de experimentação intensiva em favor das carreiras tidas como definitivas ou economicamente rentáveis e seguras. E isso, como já dissemos, dá-se de maneira extremamente naturalizada.

Nesse sentido, Foucault (citado por Rabinow & Dreyfus, 1995) faz uma provocação quando diz: "Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos" (p. 239). Trata-se de uma recusa que envolve tanto os discursos que passam a ser reproduzidos como algo inquestionável quanto às expectativas que foram construídas pelos próprios jovens no contato com esses enunciados. Afinal quais são os discursos que nos atravessam cotidianamente? Quantos deles produzem efeitos de controle e monitoramento nas relações com o trabalho? Quantos trabalhadores, ao acolhê-los, fazem da vida profissional um peso a ser carregado por anos a fio em nome da manutenção da escolha correta? Fica evidente aqui o quanto a vida, com sua variação permanente, ficou dissociada da profissão.

Um desses discursos, muito presente em nosso tempo histórico, está na avaliação do trabalho com base em seus resultados, os quais são reduzidos, quase exclusivamente, aos ganhos econômicos. A arte, na contramão desse plano discursivo, tem seu foco no "meio", no processo e nas experimentações que aí podem ser vividas. Em face dessa supervalorização do resultado e da produtividade que vivemos, as experimentações acabam sendo sistematicamente desqualificadas, uma vez que colocam em evidência a possibilidade de abandono e ou mudança de carreira profissional.

É interessante que, em uma perspectiva diferente, autores como Hardt e Negri (2001), e Gorz (2005) falam da expansão do que chamam de "trabalho afetivo". Segundo eles, esse tipo de atividade não culmina necessariamente na produção de um bem concreto, como um objeto a ser adquirido e utilizado. Seu foco está nas relações afetivas que o trabalhador estabelece com aqueles que o procuram para contratar algum tipo de serviço. A maioria das áreas profissionais agrega, em suas atividades, o trabalho afetivo. Por exemplo, um dentista pode ser amplamente qualificado em sua função técnica por meio de especializações, mas, certamente, precisará de uma habilidade afetiva para, no momento oportuno, conversar com seu paciente sobre diagnósticos e tratamentos que podem ser caros, delicados e austeros. Situação semelhante, mas em outros campos de especialidade, é vivida pelo engenheiro, analista de sistemas ou qualquer outro profissional no contato com os problemas trazidos por seus clientes.

Fica visível, então, o quanto a potência afetiva, experimentada desde os primeiros encontros sociais da infância, passou a ser amplamente exigida do trabalhador (e também do estudante) nas diferentes áreas de conhecimento. Para Hardt e Negri (2001), as habilidades afetivas requeridas hoje para o exercício profissional são produzidas nas trajetórias de vida e não necessariamente nos cursos técnicos. Gorz (2005) explica que, na atualidade, existe toda uma bagagem cultural que passa a ser amplamente solicitada do trabalhador em seu cotidiano. Essa bagagem, rica em encontros e trocas sociais, é experimentada, desde muito cedo, "nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, disputas, nas atividades musicais, teatrais, etc. É nessas atividades fora do trabalho que são desenvolvidas sua vivacidade, sua capacidade de improvisação, de cooperação" (Gorz, 2005, p. 19). Nota-se, então, que, sob esse ponto de vista, vida cotidiana e profissão são esferas indissociáveis.

Assim, quando o adolescente é "convidado" a fazer sua escolha ou mesmo no momento em que ele faz sua inscrição para o vestibular, é a sua história, mas também a potência afetiva para acolher os novos dados da experiência que comparecem e ganham relevo. Mesmo porque os detalhes organizados e as experimentações intensivas que o contato com a profissão lhe reserva são praticamente desconhecidos naquele momento. E não poderia ser diferente, afinal, trata-se de uma construção e não da definição de uma "verdade mágica" que traria em si o sentido já estruturado de uma escolha correta. É somente atentando para as variações afetivas experimentadas no contato com as áreas de conhecimento que um sentido começa a ser esboçado.

É preciso lembrar que a trajetória de vida envolverá inúmeros outros processos de decisão (com suas angústias e incômodos) os quais podem, inclusive, decretar a falência daquele primeiro passo que foi dado em uma determinada direção na escolha profissional. Atentar para esse movimento coloca, sobretudo profissionais da Psicologia, mais perto da compreensão da complexidade da existência e de seus movimentos.

Nesse sentido, analisar as experimentações intensivas que são vividas no contato com as atividades profissionais comporta uma margem de risco e tensão que está permanentemente colocada para qualquer profissional e em qualquer momento de sua vida. Essa tensão é o que nos aproxima do que Nietzsche (1999) chamou de "dimensão trágica da existência", a qual compreende tanto a construção quanto a desconstrução dos projetos de vida, dentre os quais estão os projetos profissionais. A abertura para o acaso e para a mudança pode parecer assustadora e cruel, pois comporta o risco de finitude, mas é precisamente essa abertura que mantém ativa a potência de criação das trajetórias de vida. Daí a incompatibilidade que encontramos entre vida e identidade ou entre profissão e identidade. Experimentar os territórios profissionais em sua dimensão intensiva coloca-nos em contato com afetos díspares que podem tanto compor e fortalecer certo território quanto decretar o seu fim, desmanchando-o. Não há fracassos ou erros nesse movimento, a não ser que nos situemos em uma perspectiva meramente moral. Como já dito no início deste trabalho, para além da escolha profissional, o que a vida nos oferece são experimentações intensivas que mudam os rumos, confundem, subvertem, produzem estranhamentos e, por vezes, um malestar perante a dificuldade de não se saber, imediatamente, como agir diante dos novos dados trazidos pela experiência. Resulta daí mudanças súbitas, rupturas e interrupções na trajetória profissional.

Quantas profissões foram inventadas precisamente com base nessas dúvidas, riscos e aventuras, empreendidas de dados que emergiram ao acaso e que, em um primeiro momento, não faziam o menor sentido? Quantos talentos se manifestam a partir das rupturas? Quantas novas composições profissionais se consolidaram? Pode-se dizer, então, que estamos diante de uma produção de si e das profissões que acontece no encontro com os dados e as forças que entram em cena no decorrer de uma existência.

A essa altura, pode-se notar que há, nas experimentações intensivas das profissões, um grande espaço para acolher a manifestação do acaso e da ação imprevisível das forças que estão em circulação em nosso cotidiano. Mas isso nem sempre acontece de maneira clara e evidente. Muitas vezes, as experimentações profissionais são vividas às cegas, sem serem reconhecidas como um caminho possível. O que dizer, por exemplo, dos jovens que se vinculam à informática ou à arte já desde a infância e que são incapazes de reconhecer nessas áreas uma possibilidade profissional? Tão atravessados que estão pelos discursos que disseminam a "seriedade" de outras carreiras profissionais tidas como mais sólidas, precisam de um tempo e distanciamento para reconhecer, nessas atividades, um caminho possível.

Vale dizer que esses movimentos de construção e desconstrução dãose independentemente de acolhermos ou não a dimensão produtiva das subjetividades. O perigo desse desconhecimento é que, incapaz de acolher a vida com seus imprevistos e acasos, o profissional da Psicologia, que se propõe a acompanhar o adolescente ou o adulto que o procura para problematizar seu vínculo com as profissões, faça eco com o discurso vigente da escolha definitiva. Isso desqualifica tanto a vida quanto o potencial do sujeito para inventar novos caminhos profissionais. Além disso, reduz a Psicologia a uma prática de avaliação moral.

 

Considerações finais

No decorrer deste estudo teórico, buscou-se fazer uma interlocução entre uma área específica de intervenção da Psicologia, que se ocupa das escolhas profissionais, e alguns autores da Filosofia, como Gilles Deleuze e Michel Foucault, que se debruçam na compreensão das experimentações intensivas e da construção de si como uma obra artística. Ao trilhar esse caminho, foi possível fazer algumas conexões entre duas áreas de conhecimento distintas, o que colabora para ampliar as possibilidades de analisar, por outros ângulos, um campo problemático que acomete jovens e adultos na contemporaneidade: a questão da profissionalização.

Diante dessa mobilidade viva que envolve a construção e a desconstrução de territórios profissionais, o desafio colocado para a Psicologia não está em disseminar o controle por meio da estimulação de uma escolha profissional que seja realizada de maneira correta e definitiva, preferencialmente pelo adolescente, apesar de essa demanda ser colocada de maneira tão recorrente pelo jovem, pela sua família e por outras instâncias sociais. Talvez, seguindo a trilha de Foucault, seja exatamente isso que se faz necessário abandonar o mais rápido possível. Mas, como essa tarefa não é tão simples assim, cabe ao profissional começar a desnaturalizar a escolha como um resultado definitivo e debruçar-se mais nas investigações sobre as possibilidades de como fazer das trajetórias profissionais uma construção artística. Há aí uma espécie de aventura a ser vivida por cada jovem e por cada trabalhador. Nesse processo, não existem atalhos, procedimentos ou facilidades. Somente ao atravessá-lo, torna-se possível experimentar novos e diferentes canais de expressão para a vida profissional.

Por fim, vale salientar que essa experimentação intensiva é acionada por psicólogos que, em sua prática, abrem mão de focalizar seu trabalho exclusivamente nas escolhas supostamente definitivas, em favor de um devir profissional que não se esgota em uma decisão. Nesse caso, cabe considerar que, como as forças que atravessam os territórios profissionais estão sempre em combate, as experimentações intensivas dos afetos emergentes no processo não cessam, como também não cessa a produção de si e dos sentidos que dão consistência a tais territórios. Acompanhar esse movimento de produção de si nas profissões ganha, então, contornos de uma luta política para afirmar a potência de criação da vida (Foucault, 2004). Assim, nessa breve interlocução com a Filosofia, fica difícil avaliar o trânsito entre as profissões como um mero erro, uma vez que toda criação precipita rupturas, trocas, abandonos e retomadas que são próprios de uma obra em construção.

 

 

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Texto recebido em agosto de 2010
aprovado para publicação em fevereiro de 2011

 

 

*Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mansano@uel.br.

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