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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.1 Belo Horizonte abr. 2011

 

ARTIGOS

 

O conhecimento tácito e a supervisão na formação do psicólogo

 

The tacit knowledge and supervision in the training of psychologists

 

El conocimiento tácito y la supervisión en la formación de psicólogo

 

 

Virgínia Teles CarneiroI*; Marcus Tulio CaldasII**; Sônia Maria Rocha SampaioIII***

IUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia.
IIUniversidade Católica de Pernambuco.
IIIUniversidade Federal da Bahia.

 

 


RESUMO

Neste artigo, discute-se como o conhecimento tácito pode ser valorizado na situação de supervisão durante a formação do psicólogo. A noção de conhecimento tácito usada fundamenta-se em Michael Polanyi, filósofo e cientista húngaro. Ao tomar como ponto de partida ideias da Psicologia da Gestalt para compreender a dimensão pré-reflexiva do conhecimento, Polanyi investiga o conhecimento tácito. Este se desenvolve com base na experiência direta e está incorporado às capacidades afetivas, cognitivas e motoras, que, no entanto, encontra dificuldades em ser comunicado por meio da verbalização. A supervalorização do conhecimento em nível teórico de forma desarticulada com a prática, durante a formação do psicólogo, é questionada. A supervisão como contexto específico, no qual o estudante de Psicologia pode refletir sobre sua própria prática por meio da narrativa, torna-se uma circunstância privilegiada para investigação e intervenção no conhecimento tácito, e para as possibilidades de conversão mútua entre este e o conhecimento explícito.

Palavras-chave: conhecimento tácito, supervisão, formação do psicólogo.


ABSTRACT

This article discusses how tacit knowledge can be valued during supervision on psychologists training. The notion of tacit knowledge used is based on the studies of Michael Polanyi, a Hungarian philosopher and scientist. Starting with ideas of Gestalt Psychology to understand the dimension of pre-reflexive knowledge, Polanyi investigates tacit knowledge. The above mentioned knowledge develops itself from the direct experience and is incorporated to the affective, cognitive and motor capabilities however, find difficulties to be communicated through verbalization. The overvaluation of knowledge on theoretical level, disconnected with the practice during the training of psychologists, is questioned. The supervision being the specific context where the psychology student reflects over their own practice through narrative becomes a privileged occasion for investigation and intervention on the tacit knowledge. Also it creates a good environment for a mutual conversion between tacit and explicit knowledge.

Keywords: Tacit Knowledge, Supervision, Training of Psychologists.


RESUMEN

Este artículo trata cómo el conocimiento tácito se puede valorar en la situación de la supervisión durante la formación de los psicólogos. La noción de conocimiento tácito utilizada se basa en Michael Polanyi, filósofo y científico húngaro. Poniendo como punto de partida la Psicología de la Gestalt para comprender la dimensión pre-reflexiva del conocimiento, Polanyi explora el conocimiento tácito. Este se desarrolla desde la experiencia directa y se incorpora a las capacidades afectivas, cognitivas y motoras, que, sin embargo, encuentra dificultades para comunicarse a través de la verbalización. La sobrevaloración de los conocimientos teóricos desarticulado con prácticas concretas es cuestionada en la formación de los psicólogos. La supervisión como contexto específico en donde el estudiante de Psicología puede reflexionar sobre su propia práctica a través de la narración, se convierte en una condición primordial para la investigación y intervención del conocimiento tácito, y las posibilidades de conversión mutua entre éste y el conocimiento explícito.

Palabras clave: Conocimiento Tácito, Supervisión, Formación del Psicólogo.


 

 

A formação em Psicologia vem sendo constantemente reavaliada, e há um grande esforço na elaboração de novos procedimentos para um currículo que seja mais adequado às demandas contemporâneas da sociedade. Atualmente há a intenção de modificar o pensamento pelo qual o conhecimento num nível informativo e cumulativo é privilegiado, através de componentes curriculares essencialmente teóricos, que funcionam como se fossem uma aproximação sucessiva da verdade científica e uma etapa preparatória para a realização da prática em Psicologia. As Novas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Psicologia (Resolução n. 8, de 17 de maio de 2004) propõem que, além do estágio profissionalizante, realizado no último ano do curso, ocorram estágios básicos em campos de atuação específicos. A prática, assim, vai sendo inserida aos poucos no decorrer da formação do psicólogo. Nesse contexto, a supervisão, seja ela nos estágios básicos ou no profissionalizante, torna-se essencial para a formação do psicólogo, visto que é o único espaço garantido em que o estudante tem a possibilidade de refletir sobre o seu próprio fazer e não sobre o fazer de outro, como os autores que são estudados durante o curso. É a partir daí que há uma abertura para um verdadeiro engendramento teórico, por meio de uma aprendizagem autodescoberta.

Neste artigo, discute-se a supervisão como um espaço privilegiado na formação do psicólogo, em que a dimensão tácita do conhecimento pode ser valorizada por meio da narrativa. Essa discussão tem como ponto de partida a noção de conhecimento tácito desenvolvida por Michael Polanyi, que será discutida adiante.

 

O conhecimento tácito

A noção de conhecimento tácito a qual se baseia este artigo foi desenvolvida inicialmente por Michael Polanyi, cientista e filósofo húngaro que viveu entre 1891 e 1976. A partir de sua experiência como cientista, Polanyi teoriza no campo da epistemologia, procurando superar a dicotomia entre o conhecimento subjetivo e o objetivo (Polanyi & Prosch, 1975). Para ele, conhecimento e conhecedor são inseparáveis, mesmo no cientista que acredita manter a neutralidade em suas descobertas. Dessa forma, contrapôsse ao modelo de objetividade plena e incontestável adquirida na Revolução Científica do século XVIII, que, para ele, contribuía fortemente para o desenvolvimento de totalitarismos.

Para desenvolver uma teoria que se opõe à visão objetivista do conhecimento, Polanyi utiliza como ponto de partida conceitos da Psicologia da Gestalt. O substantivo alemão Gestalt apresenta dois significados diferentes: a) forma e b) uma entidade concreta que tem, entre seus vários atributos, a forma. É o segundo significado que os fundadores da Escola Gestaltista de Berlim (Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler) utilizam (Engelmann, 2002). Esse grupo posicionava-se contra a prática de outras abordagens teóricas que reduziam experiências complexas a elementos simples, dando ênfase aos significados que os seres humanos impõem aos objetos e acontecimentos de seu mundo, o que chamavam de experiência subjetiva. Demonstraram que o todo é diferente da simples reunião das partes e que as experiências trazem consigo uma característica de totalidade ou estrutura. Nesse sentido, o importante é considerar o todo e que este pode constituir suas próprias partes (Koffka, 1975). Os estudos acerca do movimento aparente, por exemplo, mostraram que o movimento pode ser percebido quando, na verdade nada está se movendo, como no cinema, em que várias fotografias se apresentam rapidamente, dando a impressão de uma ação ininterrupta, ou seja, de um processo total e contínuo visto como uma Gestalt.

Baseando-se nessas ideias e usando como exemplo a percepção visual, Polanyi confia num tipo de funcionamento perceptivo que possibilita ao indivíduo a apreensão de um objeto em seu espaço visual, mesmo quando as características sensoriais se modificam. O indivíduo consegue manter sua visão como um sistema integrado porque existem partes que integram o todo que funcionam de modo tácito. A frase mais célebre do autor, "We can know more than we can tell" (nós sabemos mais do que podemos dizer), de certa forma, resume suas ideias, como bem expõe Saiani (2004, p. 52):

Os mecanismos fisiológicos de percepção sensorial são teleologicamente orientados para uma coerência intelectual. Eventos corporais dos quais não podemos tomar consciência focalmente por meio da introspecção são utilizados de modo subsidiário na estruturação de um objeto integrado na percepção focal. Portanto, quando vemos um objeto contra um fundo, executamos um ato mental, em termo do qual o todo funciona de modo subsidiário. Alguns dos indícios que utilizamos na percepção não são notados, e não podem sê-lo. No entanto, uma vez que participam, de modo subsidiário, na estruturação de um objeto integrado, podemos dizer que "sabemos mais do que podemos relatar".

O conhecimento tácito é pré-reflexivo e desenvolve-se desde a experiência direta e da ação, estando incorporado às capacidades afetivas, cognitivas e motoras, mas sendo de difícil verbalização. A dimensão reflexiva do conhecimento, chamada por Polanyi de conhecimento explícito, é codificável pela linguagem, sendo compartilhado e transferido mais facilmente.

Para Polanyi, os processos tanto do conhecimento quanto da ciência não ocorrem pela conquista impessoal de objetividade abstrata e neutra. Desde a seleção de um problema até a verificação de uma descoberta, tais processos são enraizados em atos pessoais de integração tácita; não se fundamentam em operações explicitamente lógicas (Polanyi & Prosch, 1975).

Essa integração tácita do conhecimento tem dois níveis que a compõe: o subsidiário (ou proximal) e o focal (ou distal). Polanyi afirma que podemos identificar o conhecimento tácito com "o entendimento da entidade abrangente constituída pelo termo proximal e pelo distal" (Polanyi, citado por Saiani, 2004, p. 55). O autor usa vários exemplos do cotidiano para facilitar a compreensão do leitor acerca dessa classificação, que se aproxima da relação figura-fundo, difundida pela Psicologia da Gestalt, na qual o mesmo objeto pode ser visto como figura ou como fundo, dependendo de como lhe é dirigida a atenção, não sendo possível que o mesmo estímulo seja visto como figura e fundo ao mesmo tempo. Um dos exemplos é quando usamos um martelo para pressionar um prego (Polanyi & Prosch, 1975). Prestamos atenção tanto nos golpes que damos no prego quanto no manuseio do martelo, mas de forma diferenciada: permanecemos alerta quanto à sensação na palma de nossa mão segurando o martelo, de modo que essa sensação guia eficientemente as batidas no prego. O grau de atenção prestada ao bater no prego é dado por essa sensação. Podemos dizer, então, que temos uma consciência subsidiária da sensação na palma de nossa mão, a qual é fundida com nossa consciência focal de pressionarmos o prego.

Outro exemplo que se tornou bastante conhecido é como o componente subsidiário e o focal atuam no reconhecimento de um rosto. Acreditamos nas características que percebemos (boca, olhos, nariz), porém o que é focalizado é o rosto como um todo e não suas características separadas, que são percebidas de modo subsidiário. Mesmo sem estarmos conscientes de qualquer raciocínio anterior ou mesmo sem compararmos o rosto conhecido com outros guardados na memória, o reconhecimento de um rosto familiar na multidão é imediato. Mas, como afirma Schön (2000), se alguém nos perguntar como conseguimos distinguir um rosto particular entre vários outros, provavelmente não saberemos explicar, pois, mesmo que façamos uma lista de particularidades deste rosto específico, ainda assim a imediatidade do nosso reconhecimento ao vê-lo não se justifica por uma cadeia de características.

Nesse sentido, há um componente que subsidia a focalização de algo para que um significado seja alcançado. Além dos componentes subsidiário (ou proximal) e focal (ou distal), o indivíduo exerce um papel essencial no ato de conhecer. Portanto, há uma trindade: o indivíduo, o que é focado e os componentes subsidiários (Prosch & Polanyi, 1975). Esse trio pode desaparecer se o indivíduo desfizer esse significado enquanto focalizar sua atenção em outro alvo, integrando, de modo diferente, os componentes subsidiários.

Para Prosch e Polanyi (1975), essas ideias já são bastante conhecidas a partir da Psicologia da Gestalt. No entanto, suas consequências para a teoria do conhecimento tácito são notáveis, pois provam a existência de dois tipos de consciência, numa relação de-para, na qual o "de" é o componente subsidiário, e o "para", o focal. Um elemento pode deixar de funcionar como subsidiário a partir do momento que a atenção focal é centralizada sobre ele. Tornar-se-á, então, algo diferente, desprovido do significado que tinha enquanto servia como subsidiário. É por esse motivo que o componente subsidiário é não especificável e não porque seja impossível de ser descoberto ou encontrado. "Há um senso de privação que é logicamente necessário e, em princípio, absoluto" (Polanyi & Prosh, 1975, p. 39).

Em síntese, o que torna um componente como subsidiário é o seu caráter funcional, pois ele labora dessa forma por estar integrado a um componente focal que está amalgamado a ele. Essa integração entre os dois componentes é o ato tácito de um indivíduo. "Além de funcional, a relação entre os dois termos é semântica, uma vez que o distal é que confere significado ao proximal. Dessa forma, podemos dizer que a percepção é sempre significativa" (Saiani, 2004, p. 53).

Assim, mesmo quando não estamos focalizando a atenção em algo determinado, permanecemos conscientes desse algo. Vejamos o exemplo de um violonista. Ao tocar o instrumento, o seu foco não está nas regras que lhe foram passadas explicitamente durante sua aprendizagem. Conforme ganha mais experiência, é como se cada vez mais se integrasse com o instrumento e cada vez menos prestasse atenção ao movimento correto das mãos. Seus olhos, ouvidos, mãos, atuam harmonicamente ao tocar uma melodia. O instrumento é incorporado, como se fosse uma extensão do próprio corpo. E se, por algum motivo, parar para focalizar apenas nos movimentos das mãos, correrá o risco de se atrapalhar na execução da melodia. Porém as regras aprendidas no início de sua aprendizagem não foram esquecidas; elas estão lá, operando tacitamente, ou silenciosamente. Mas se as partes forem focalizadas, perderse- á o todo.

Acerca disso, Saiani (2004, p. 55) afirma que "devemos ‘habitar' esses particulares para que a percepção se verifique", fazendo referência ao termo indwell (que, em português, significa habitar, residir, morar), utilizado por Polanyi para indicar a forma como percebemos o "significado conjunto dos dois termos na percepção de um objeto através de suas características particulares, sem que elas sejam objeto de nossa atenção de uma maneira focal". É nesse sentido que o violonista, por exemplo, deve habitar seu instrumento e não apenas as suas mãos. De modo semelhante, o cientista habita sua teoria de forma subsidiária ao fazer uso de seus resultados. Por esse motivo, não há como se manter numa postura neutra, imparcial e objetiva. Para Polanyi, há um interjogo entre nossos mecanismos perceptivos e as experiências advindas de nossa história de vida, resultando, ao final, numa postura de caráter pessoal. Dessa forma, muitos aspectos do conhecimento científico ocorrem pela integração de indícios subsidiários:

De fato, o que o cientista adquire, de acordo com Polanyi, é um tipo muito sofisticado de percepção que utiliza – habita – muitos indícios subsidiários. Estes se baseiam na visão geral em voga acerca da natureza das coisas, aceita implícita ou explicitamente pela comunidade de pesquisadores à qual pertence o particular cientista, bem como em suas teorias específicas, instrumentos especiais e habilidades tácitas (Prosch, 1986, p. 93).

Dito de outro modo, tanto a teoria como a "visão de mundo" acabam funcionando como indícios subsidiários, habitados pelo cientista ao fazer uso dos resultados. Para Polanyi, os cientistas sempre procuraram pela descoberta e não necessariamente pela comprovação ou refutação dela. Pois quando o cientista tem uma questão a solucionar, é como se ele tivesse uma preocupação, como se ele previsse a importância ainda obscura de sua questão. Ele tem um problema que acredita ser capaz de resolver. Dessa forma, há um conhecimento tácito presente, pois, se todo conhecimento fosse explícito, não haveria o que questionar. De acordo com Prosch (1986), isso é um ato de conhecimento tácito que gera um compromisso com o que o cientista vê. Habitando em seus indícios subsidiários, o pesquisador tem uma visão de seu problema; visão esta que é pessoal, por conter nela sua própria história, seus valores e suas crenças. É essa visão particular que acarreta no cientista uma intenção universal, pois ele acredita ter estabelecido um contato com a realidade, confiando que qualquer pessoa possa ver aquilo que ele vê (Saiani, 2004). É nesse sentido que o conhecimento é sempre pessoal, pois um fato não chega até nós e se apresenta pura e simplesmente. Somos nós que o julgamos como um fato, passível ou não de reconhecimento como tal.

Porém quando Polanyi afirma que todo conhecimento é pessoal, ele não quer dizer que é subjetivo. O conhecimento pessoal envolve uma busca e um compromisso, mesmo que se acredite no aspecto imparcial dessa procura. Esse compromisso faz a ligação entre mim (quem sou) e a realidade (o aspecto universal que se estende a outros sujeitos): "Na medida em que o pessoal se submete a requisitos por ele reconhecidos como independentes de si mesmo, ele não é subjetivo nem objetivo. Ele transcende a disjunção entre subjetivo e objetivo" (Polanyi, citado por Saiani, 2004, p. 63).

Diante do exposto, podemos afirmar que Polanyi tem uma preocupação com o ser humano que faz ciência. Ele aproxima ambos, tentando compreender o funcionamento dos mecanismos humanos numa tentativa de superação da dicotomia entre o objetivo e o subjetivo na construção do conhecimento. Para ele, a ação de fazer ciência está impregnada por uma paixão intelectual, composta por aspectos que, apesar de inefáveis, devem ser valorizados como essenciais nesse processo de busca e de solução de um problema.

 

A valorização do conhecimento tácito através da prática da supervisão

A noção de conhecimento tácito tem sido já há algum tempo usada como referência em outros campos do conhecimento além da Filosofia, como na gestão do conhecimento no âmbito organizacional (Nonaka & Takeuchi, 2008), na educação (Schön, 2000; Saiani, 2004; Leite & Costa, 2007) e na Psicologia (Rogers & Coulson, 1973; Figueiredo 1993, 2004; Morato, 1999; Carneiro, 2009).

Figueiredo (1993, p. 91) traz contribuições importantes em sua interpretação da relação entre teoria e prática em Psicologia ao afirmar: "Na verdade, creio que, quanto mais conta a experiência, quanto mais tempo no exercício da profissão, mais as variáveis pessoais vão pesando na definição das práticas e das crenças dos psicólogos". O autor se baseia em Polanyi (1958) para questionar se a valorização excessiva dos conhecimentos focais e explícitos, em especial dos conhecimentos teóricos, é suficiente para atendermos à demanda que chega até nós, psicólogos, produtores de conhecimentos e professores de Psicologia. Afirma ainda, que, comumente, há uma necessidade de pertença por parte dos psicólogos a uma determinada escola, linha ou abordagem, como se isso lhe desse o suporte necessário para a sua prática. Porém a adesão a determinada abordagem teórica não explica todos os aspectos da efetiva atuação profissional, pois, dentro da Psicologia, há um constante processo de incorporação, imposto pelo conhecimento tácito, incorporação tanto das experiências quanto das informações teóricas de diferentes correntes, já que comumente os psicólogos estão sempre transitando, mesmo que de forma não assumida, entre outras abordagens. Acerca disso, ele afirma:

A atividade profissional do psicólogo requer uma incorporação dos saberes psicológicos às suas habilidades práticas que mesmo o conhecimento explícito e expresso como teoria só funciona enquanto conhecimento tácito; o conhecimento tácito do psicólogo é o seu saber de ofício, no qual as teorias estão impregnadas pela experiência pessoal e as estão impregnando numa mescla indissociável; este saber de ofício é radicalmente pessoal, em grande medida intransferível e dificilmente comunicável (Figueiredo, 1993, p. 91, grifos do autor).

O autor usa as dimensões tácita e explícita do conhecimento para afirmar que teoria e prática devem ser mantidas em tensão, o que significa desalojar, ora a prática, que pode já estar automatizada, ora o conhecimento teórico, que poderá, então, impor desafios à prática. Apesar de não serem coincidentes, a teoria e a prática devem manter uma relação de pertinência. Figueiredo (2004) coloca o conhecimento tácito como o saber de ofício do psicólogo, mas não retira a importância do conhecimento explícito teórico, atribuindo a este último duas importantes funções:

Ao participar dos processos de focalização, as teorias estariam colaborando na tarefa de dar inteligiblidade à experiência, engendrando figuras a partir dos elementos dessa experiência. [...] Estou propondo que a segunda função da teoria seja a de abrir no curso da ação o tempo da indecisão, o do adiamento da ação, tempo em que podem emergir novas possibilidades de escutar e falar. Para tal, porém, é necessário que a teoria esteja "agindo em silêncio" e de forma a "fazer silêncio", aquele silêncio que é a condição primeira de uma verdadeira escuta do novo. [...] É neste sentido que o investimento em pesquisas eminentemente clínicas e que o investimento em uma formação intensamente prática nos treinos - devem ser contrabalançados pelo investimento em pesquisas eminentemente teóricas e numa formação teoricamente exigente (Figueiredo, 2004, p.125, grifos do autor).

Com base nas contribuições de Polanyi (1958) e de Figueiredo (1993; 2004), pode-se pensar que existe um saber de ofício que passa pela experiência pessoal. Essa articulação entre experiência, prática e teoria conduz o psicólogo ao seu saber de ofício, a um engendrar que abre a possibilidade de seu "fazer-saber". Uma forma conveniente de representar essa mediação, de acordo com Figueiredo (2004, p. 126), são as narrativas históricas e as dramáticas: "Historiais e todo o conceitual elaborado e usado nas histórias de caso parecem colocar-se no nível ótimo de tensão entre tácito e explícito".

A narrativa deve ser compreendida, neste caso, não como a comunicação de informações ou simples relato de fatos. Para Benjamin (1985), narrar é uma arte que está em vias de extinção em decorrência da forma de viver do homem moderno, na qual há um novo modo de se relacionar com o tempo e o espaço. O homem moderno valoriza o tempo presente, o que o deixa imerso num estado de automatismo afetivo e o coloca no mundo da vivência imediata, não havendo espaço para a elaboração e transmissão da experiência.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1985, p. 205).

Dito de outro modo, Benjamin acredita que experiência e narrativa são indissociáveis, em que uma constitui a outra. Dessa forma, contar uma história é uma ocasião infindável, "pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois" (Benjamin, 1985, p. 37). Dessa forma, a narrativa se reorganiza conforme é narrada, ao contrário de ser uma lembrança concluída de uma experiência.

É desde esse modo de compreender a narrativa que, neste artigo, pensa-se a relação entre o conhecimento tácito e a supervisão. Apesar de ser de difícil definição, de maneira geral, pode-se dizer que a supervisão em Psicologia se constitui em um contexto próprio para articulações entre teoria e prática, que permite ao supervisionando uma ponderação sobre o seu fazer, especialmente num momento posterior à ação direta. Esse espaço é configurado pela presença do supervisor e do supervisionado, ou pelo grupo de supervisionados, que estabelecem uma relação. Porém não há um consenso teórico quanto ao que seja supervisão e quais são os seus limites em relação a outras práticas, principalmente a psicoterapia. Bacchi e Morato (2009, p. 273) afirmam que etimologicamente supervisão "vem do latim: super (sobre, por cima de, em cima de, a mais, além de) e videre (ver, assistir, observar). Ou seja, observar, ver além de. Já se configura como um olhar que descobre". Henriques e Morato (2009, p. 283) afirmam que "Supervisão é um lugar narrativo continente para a expressão de questionamentos e angústias, onde se configuram afetação e reconhecimento do significado da experiência humana: seja a própria, a do outro ou da relação do ser com o mundo". Nesse sentido, a supervisão se constitui como um espaço de aprendizagem de um modo próprio de ser psicólogo, com base no enfoque da ação do supervisionando no seu campo de estágio narrada ao supervisor, e da capacidade deste último narrar sua compreensão não apenas dos fatos ocorridos, mas principalmente suas percepções acerca do supervisionando, facilitando, assim, uma aprendizagem autodescoberta, assimilada na experiência.

Diante disso, podemos pensar a supervisão como um espaço que, ao privilegiar o uso da narrativa, valoriza a dimensão tácita do conhecimento. Tendo como pano de fundo a relação entre as dimensões tácita e explícita do conhecimento, pode-se afirmar que, na supervisão, a partir da expressão da sua própria experiência, o supervisionando pode começar a compreender a sua prática psicológica. Desse modo, o saber de ofício do psicólogo está intimamente relacionado a uma prática que se refere a um fazer e a um olhar para o que foi feito, para então começar a se dar conta do seu próprio saberfazer.

A supervisão torna-se essencial para a formação do psicólogo, visto que se tornou o único espaço oficial, dentro do curso de Psicologia, em que o aluno tem a possibilidade de refletir sobre o seu próprio fazer, e não sobre o fazer de outro, como no caso dos diversos autores que são estudados durante o curso. Torna-se uma situação privilegiada por possibilitar as diferentes possibilidades de conversões e combinações entre o conhecimento tácito e o explícito.

Nonaka e Takeuchi (2008, p. 67), ao desenvolverem a ideia de criação de conhecimento no meio empresarial, afirmam que o conhecimento humano "é criado e expandido através da interação social entre o conhecimento tácito e o conhecimento explícito. Não podemos deixar de observar que essa conversão é um processo ‘social' entre indivíduos, e não confinada dentro de um indivíduo". Para os autores, a criação de novos conhecimentos na empresa necessita de inovação, o que acreditam ser uma vantagem competitiva. Para isso, elaboram quatro modos de conversão do conhecimento: a) socialização: conhecimento tácito de uma pessoa em conhecimento tácito de outra pessoa; b) externalização: conhecimento tácito em conhecimento explícito; c) combinação: conhecimento explícito em conhecimento explícito; e d) internalização: conhecimento explícito em conhecimento tácito. As ideias de Nonaka e Takeuchi (2008) valorizam o conhecimento tácito, mas motivados pelo pragmatismo necessário ao meio empresarial. De modo diferente, o que estamos abordando neste artigo não tem relação direta com o meio organizacional e muito menos com uma educação industrial, movida por princípios embasados nas necessidades empresariais. No entanto, a ideia de valorização do conhecimento tácito desenvolvida pelos referidos autores para a empresa nos serve como inspiração para a valorização do conhecimento tácito na formação do psicólogo, através da supervisão. Podemos pensar que a conversão de conhecimento tácito em conhecimento explícito, e vice-versa, ocorre de modo privilegiado na supervisão, e não exclusivo, visto que, em outros contextos e situações, isso também ocorre.

Para Nonaka e Takeuchi (2008), a conversão do conhecimento tácito em conhecimento explícito, que eles chamam de Externalização, utiliza metáforas e analogias como um passo anterior à criação de um modelo lógico, que acontecerá quando for possível a explicação em linguagem sistemática e lógica coerente. De modo semelhante, podemos pensar a supervisão como uma situação que induz esta conversão. Sabe-se que na situação de supervisão uma das principais atividades do supervisionando é relatar ao supervisor os fatos que ocorreram durante a prática e suas reflexões a partir disto. Caberá ao supervisor auxiliar o supervisionando compreender a ação passada, como forma de ressignificá-la no presente. Com base na ideia de externalização, o uso da metáfora e da analogia por parte do supervisor auxiliaria o supervisionando a compreender suas questões desde a percepção de um todo, ou de uma Gestalt. Seria uma forma de o supervisor compartilhar seu conhecimento tácito, fornecendo "um referencial integrativo, na forma de uma metáfora, uma imagem, um gráfico, um slogan" (Saiani, 2004, p. 172). Essa forma de comunicar o conhecimento tácito, que pode partir do supervisor, seria uma via para transformar o conhecimento tácito em conhecimento explícito.

Ao pensarmos na conversão do conhecimento explícito em um tácito, nos inspiramos na ideia de internalização, de Nonaka e Takeuchi (2008), que está fortemente relacionada com o "aprender fazendo", ou seja, com a prática propriamente dita. Sabe-se que a prática irrefletida recai no vazio ou no automatismo, o que faz com que muitos supervisionandos acreditem que "nada fizeram" ou que "não há nada de novo". Na verdade, a sensação de "nada ter feito" pode ser um sinal de que o conhecimento explícito, especificamente o teórico nesse caso, já tenha sido internalizado pelo supervisionando, assim como o violonista já não sabe explicar como faz para executar uma melodia. Esse seria o momento de reconhecer que o supervisionando está se apoiando na dimensão tácita de um conhecimento que um dia foi explícito. Grosso modo, pode-se dizer que a Internalização é um dos objetivos da educação. A supervisão, assim, será um importante espaço em que, pela narrativa, o supervisionando possa reconhecer que a sensação de que "nada foi feito" pode ser um sinal de que a internalização da teoria já ocorreu, o que é bastante diferente de nada ter aprendido ou de nada saber.

Destarte, a supervisão se constitui numa situação e local onde se pode compreender o fazer-saber, através de um olhar singular e próprio para a ação realizada. Esse olhar permite que emerjam descobertas e impasses, não apenas com relação à prática, mas também com relação à própria teoria. Esta poderá ser compreendida e questionada de outro ângulo, de forma apropriada e não sob o ponto de vista exclusivo dos autores. Nessa perspectiva, o conhecimento é organizado no e pelo indivíduo, e não para o indivíduo; vai sendo elaborado de outra forma que não aquela estritamente racional, que sempre imaginamos quando vislumbramos o conhecimento.

Diante do exposto, considera-se que a supervisão se constitui como um espaço privilegiado na formação do psicólogo, que pode exercer a função de resistência a um ideal tecnocrático de educação, em que o conhecimento explícito teórico impera diante do conhecimento tácito. Cabe ressaltar que não se intencionou dissertar sobre uma valorização da prática em detrimento da teoria, pois assim recairíamos na redução do saber científico ao senso comum. Mas sim de trazer à tona o saber instituinte, como apontado por Chauí (2007, p. 5): "O saber é um trabalho para elevar à dimensão do conceito uma situação de não-saber, isto é, a experiência imediata, cuja obscuridade pede o trabalho de classificação". Igualmente, de modo algum se pretendeu neste artigo servir como manual de instruções para como lidar com o conhecimento tácito na formação do psicólogo, mas sim uma possibilidade de transcender a dicotomia entre objetivo e subjetivo pela investigação e intervenção na dimensão pré-reflexiva do conhecimento.

 

 

Bibliografia

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Texto recebido em dezembro de 2010
aprovado para publicação em abril de 2011

 

 

*Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia, professora assistente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: virginiateles@gmail.com.
** Doutor em Psicologia pela Universidade de Deusto, professor adjunto I do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: marcus_tulio@uol.com.br.
*** Doutora pela Universidade Federal da Bahia, professora associada II do Instituto de Artes, Humanidades e Ciências Prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia. E-mail: sonia.sampaio@terra.com.br.

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