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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.1 Belo Horizonte abr. 2011

 

ARTIGOS

 

A família contemporânea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianças: desafios éticos

 

The family context of contemporary Brazilian social fragility and new rights of children

 

El contexto familiar de fragilidad social brasileña contemporánea y los nuevos derechos de los niños

 

Maria Ignez Costa MoreiraI* ; Paula Maria BedranII** ; Soraia M. S. Dojas CarellosIII***

IInstituto de Psicologia da PUC Minas.
IIInstituto de Psicologia da PUC Minas.
IIIInstituto de Psicologia da PUC Minas.

 

 

Introdução

ste artigo analisa os sistemas familiares contemporâneos no Brasil em condições de pobreza e desamparo, especificamente no contexto de crianças abrigadas. Na primeira parte deste artigo, é apresentado o contexto histórico da família contemporânea, a partir do qual são apontadas as condições de emergência dos novos discursos que têm norteado as práticas voltadas para a defesa e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Na segunda parte, apresentamos as características das famílias em situação de vulnerabilidade, as quais são os alvos privilegiados da política pública. Finalmente, são articuladas, por meio do relato de dois casos clínicos, as implicações macrossociais na organização sistêmica das famílias em situação de vulnerabilidade e de risco pessoal e social, cujas crianças foram retiradas de seu convívio, uma vez que receberam a medida socioprotetiva de abrigo e foram acolhidas temporariamente em uma entidade.

 

A contextualização da família no Brasil na história recente

Sarti (2008) considera que a década de 1960 é uma referência mundial quando se trata da história recente da família. Entre tantos marcadores das transformações da família, encontramos o advento e a difusão da pílula anticoncepcional feminina, esse avanço tecnológico contribuiu para produzir a dissociação entre a vida sexual ativa e a reprodução. Além disso, o maior nível de escolarização das mulheres e sua afirmação no espaço público de trabalho possibilitaram, ainda segundo Sarti (2008, p. 21),

    As condições materiais para que a mulher deixasse de ter sua vida e sua sexualidade atadas à maternidade como um “destino”, recriou o mundo subjetivo feminino, e aliado à expansão do feminismo, ampliou as possibilidades de atuação da mulher no mundo social.

A partir dessa época, muitas mulheres buscaram aliar a maternidade às funções domésticas, com a inserção no mundo público do trabalho. Isso significou, entre tantas outras experiências, a condição da dupla jornada de trabalho, uma vez que o serviço doméstico e o cuidado de crianças, especialmente pequenas, são representados como próprio do papel de gênero feminino, e este atribuído, em larga escala, às mulheres.

A mudança de lugar das mulheres no espaço doméstico trouxe alguns conflitos, entre eles a complicada engenharia de conciliação entre os papéis de trabalhadora, esposa e mãe, a reivindicação por maior comprometimento por parte dos homens com as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. Quando os conflitos se tornaram intransponíveis, o casal buscou a separação, que, só nos finais da década de 1970, tornou-se amparado legalmente pela lei do divórcio brasileira.

De lá para cá, o índice de divórcios aumentou, bem como o número de famílias reconstituídas e de casais que se formam de modo consensual. Desde a Constituição de 1988, esse modo consensual passou a ser nomeado como união estável. As famílias recompostas ao estilo dos meus, dos seus e dos nossos filhos têm sido cada vez mais frequentes, e essas novas configurações têm trazido importantes questionamentos sobre a fratria e as relações entre pais separados e seus filhos.

Essas experiências compõem a história recente de uma geração de mulheres e alterou, em graus distintos, suas trajetórias. É preciso lembrar que as gerações não são monolíticas e que cada geração é composta de sujeitos diversos e múltiplos. Os movimentos sociais organizados feministas e de mulheres, bem como a produção teórica do feminismo, colocaram em cheque a ideia de um sujeito universal do feminismo: a mulher, posto que são muitas as mulheres, de diferentes condições sociais e econômicas. Em países, como no Brasil, onde há uma forte concentração de riqueza, a situação das mulheres pobres é marcada pela exclusão de bens materiais e simbólicos, e por isso os ideais feministas de emancipação e autonomia, gestados nos estratos urbanos, médios e escolarizados, não foram igualmente introjetados por todas as mulheres e nem tampouco capazes de traduzir os anseios de todas elas.

Paralelo a isso, no Brasil, a partir do final da década de 1980, quando o País vive um profundo processo de redemocratização, vencida a ditadura militar, inicia-se uma ampla mobilização social pela afirmação dos direitos civis e sociais dos cidadãos.

Do ponto de vista da família, encontramos dois grandes marcos. O primeiro, a Constituição Federal de 1988, conhecida como constituição cidadã, que altera, entre outros aspectos, o estatuto jurídico de homens e mulheres no laço conjugal quando rompe com a figura do “chefe da família”. Sarti (2008) explica, nesse sentido, que a abolição da chefia conjugal exercida pelo homem torna, na sociedade conjugal, homens e mulheres iguais em direitos e deveres. O segundo marco se dá pela retirada da diferenciação entre filhos gerados dentro e fora do casamento formal, os primeiros nomeados de “legítimos’ e os últimos de “ilegítimos”. Essa decisão foi referendada em 1990, pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O ECA, promulgado em 1990, preconiza que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos e alvos prioritários de proteção integral. Entre os direitos das crianças e dos adolescentes, está o da convivência familiar e comunitária.

Como podemos perceber até aqui, a história da família se entrelaça com a história das mulheres e das novas concepções sobre a infância e a adolescência. Ao compreendermos a família como um sistema, devemos nos indagar sobre o lugar dos homens, pois não é possível que uma parte do sistema se altere e outra permaneça inalterada. As mulheres e seus filhos ganharam espaço, o que terá acontecido com o espaço dos homens nestes novos tempos?

O ECA (1990) afirma que um dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes é o da convivência familiar e também o da identificação dos pais, ou seja, mesmo que uma criança ou um adolescente não coabite com o seu pai biológico, ela tem o direito de saber quem é o seu pai, além disso, o pai tem obrigações legais para com o filho.

Sarti (2008), citando Bilac (1998), destaca que, na década de 1990, outro avanço tecnológico, o exame DNA, que permite a identificação da paternidade, foi difundido. Essa nova ferramenta trouxe outra contribuição ao processo de transformação das relações familiares. Desse modo, a máxima popular paternidade é sempre uma dúvida, ao passo que a maternidade é sempre uma certeza foi desconstruída, o que fez o suposto fundamento “natural” que servia de pretexto a costumes e pactos familiares e de relações de subordinação de gênero, que estruturaram a família durante tanto tempo, pudesse ser confrontado. No Brasil, há iniciativas tanto por parte do poder público quanto de ONGs que possibilitam a realização de exames de DNA demandados por pessoas das camadas pobres da população.

O pai identificado nem sempre é o marido da mãe ou coabita com seus filhos. Encontramos um número significativo de famílias monoparentais femininas, ou seja, a família constituída pela mulher com seus filhos. Nas famílias reconstituídas, encontramos a presença de um homem que nem sempre é o pai biológico de todas as crianças e, algumas vezes, também não é investido de um lugar simbólico de autoridade frente aos filhos de sua mulher. A nova família não pode mais retroceder ao modelo hierárquico patriarcal. Parece que, cada vez mais, ela se aproxima do modelo das relações igualitárias entre gêneros e gerações, no entanto as fronteiras entre esses dois modelos ficaram borradas.

Dividida entre um ideal imaginário de família nuclear e as várias configurações de família (famílias monoparentais, famílias reconstituídas, famílias homoparentais), a família contemporânea sofre um processo contínuo de reinvenção de si mesma, embora persista como o centro de referência para a delimitação da subjetividade e também como alvo prioritário de cuidado das políticas públicas.

Tais famílias nos colocam diante de múltiplas questões, uma delas a contemporânea, cada vez mais insistente na agenda de discussão dos profissionais da saúde, da assistência, da educação e da justiça: como vai e para onde vai a família? Questão que não se restringe, em absoluto, às famílias pobres. A família das camadas médias, dividida entre um modelo de família nuclear hierárquico e um igualitário, convive com o que Figueira (1987) chama de arcaico e moderno, que se situam lado a lado, provocando um desmapeamento na realidade familiar, o qual não significa a ausência de referências, mas a coexistência de referências distintas em um mesmo contexto.

Ao lado das profundas mudanças nas configurações familiares, na afirmação dos direitos das mulheres, das crianças, dos adolescentes, dos jovens, dos idosos, dos homossexuais, enfim de grupos que são muitas vezes abrigados sob a chave da vulnerabilidade, encontramos na sociedade brasileira contemporânea a afirmação do discurso jurídico como aquele que tenta promover a diminuição das desigualdades. Os estatutos que regem a política social de defesa das crianças e dos adolescentes foram estruturados com base na centralidade da família, e estes têm tido suas relações cada vez mais pautadas pelas normas jurídicas, o que tem concorrido para o processo de judicialização das famílias.

Sierra (2004, p. 7), apoiada em vasta revisão bibliográfica, indica que “as democracias contemporâneas estariam submetidas ao fenômeno da judicialização, entendendo-se por isso o aumento desmesurado de leis com o objetivo de regular a sociabilidade”. A garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes tem amparo legal, e a Justiça tem poderes para intervir tanto na esfera pública quanto na esfera privada.

As relações familiares são, na atualidade, fortemente pautadas pela lógica do Direito. Dessa forma, os pais são investidos de responsabilidade, do ponto de vista legal, por seus filhos durante a infância e a adolescência, e, por seu turno, também os filhos são responsáveis legais pelo amparo de seus pais na velhice. O desrespeito a essa norma é passível de processo judicial. Passamos então de uma sociabilidade familiar regida pela lógica da tradição para uma sociabilidade regida pelas leis.

Por isso as obrigações de um cidadão não mais se restringem à esfera pública (tais como, votar, pagar seus impostos ou respeitar as leis de trânsito). Passa a haver obrigações postas pela nova ordem pública, que devem ser cumpridas na esfera privada. Por exemplo, os pais ou os responsáveis por uma criança não podem decidir que ela não será matriculada na escola, porque matricular as crianças na escola e zelar por sua frequência e aprendizagem é uma obrigação de todo cidadão a ser cumprida na esfera privada.

 

As famílias em situação de vulnerabilidade e os princípios da política pública

O ECA prevê a centralidade da família. Ela tem o dever de garantir e promover os direitos de suas crianças e seus adolescentes, mas também é, ela própria, portadora de direitos, entre eles o de receber do Estado os meios materiais para exercer o seu papel de cuidar e educar seus filhos. Prover tais recursos é uma estratégia da política pública para diminuir as situações de vulnerabilidade e de risco social e pessoal, mas, ao mesmo tempo, é um dever do Estado, regulado pela instância jurídica. Nesse sentido, as famílias em situação de vulnerabilidade e de risco social e pessoal são as principais destinatárias das políticas sociais.

Não é uma tarefa fácil definir os termos “vulnerabilidade” e “risco social e pessoal”, uma vez que eles comportam sentidos múltiplos. Vulnerabilidade é um termo que evoca a fragilidade, mas seria mais adequado que usássemos esse termo no plural, pois que há fragilidades de diversas ordens e razões. Outra associação comum é a do termo vulnerabilidade com as situações de dependência e de risco.

Oliveira (1995) argumenta que, do ponto de vista econômico, a vulnerabilidade social de uma família está ligada à miséria estrutural. Ele associa a pobreza extrema das famílias à precarização do trabalho e ao aumento das taxas de desemprego dos adultos, e ainda, à ineficácia do Estado em responder às necessidades de educação, saúde e segurança de camadas significativas da população.

Portanto a situação de vulnerabilidade de crianças e adolescentes deve ser pensada de modo interacional e sistêmico. Segundo Sierra e Mesquita (2006), essa situação remete, além da privação material, à qualidade da interação entre as crianças, os adolescentes e os adultos de referência, tanto no âmbito doméstico quanto público. Nesse sentido, a autora acrescenta a dimensão da privação simbólica.

Caliman (2006), discutindo as diversas concepções de risco social, aponta que eles podem ser classificados em dois grandes tipos: o primeiro, considerado como “risco objetivo”, ligado às condições estruturais, o que significa a ausência de recursos materiais tais como moradia, renda, enfim uma família sem condições básicas de sobrevivência. O segundo tipo é o risco chamado de subjetivo, que, segundo o autor, refere-se “a um déficit dos recursos individuais, e se manifesta pelas respostas problemáticas no âmbito da assunção de valores, da formação de atitudes e racionalizações e das insatisfações pessoais” (Caliman, 2006, p. 286). Podemos exemplificar esse risco subjetivo em famílias que têm membros que fazem uso de drogas legais ou ilegais, que são portadores de sofrimento mental ou com presença de agressores, entre outros exemplos.

Os dois tipos “objetivo” e “subjetivo” estão interligados sem que necessariamente a relação seja de causa e efeito, mas um pode potencializar o outro. Uma família em situação de pobreza extrema ou de miséria vive uma situação de vulnerabilidade e de risco social que repercute na relação afetiva entre seus membros. Isso quer dizer que, além dos problemas ligados à ordem macroestrutural, encontramos as fragilidades de ordem simbólica nas instituições sociais, tanto no nível do Estado como no das famílias e das escolas comumente identificadas como crises de autoridade.

Sierra (2004) mostra que a afirmação dos direitos sociais nas sociedades contemporâneas tem produzido certo afastamento do enfrentamento dos problemas estruturais da vida social, tais como a organização do trabalho, a redistribuição de riquezas e de terras produtivas para a aproximação da lógica do direito pautada na responsabilidade individual.

Desse modo, as famílias em situação de vulnerabilidade e de risco social pela falta de recursos materiais são responsabilizadas pelas suas condições de sobrevivência e devem reivindicar seus direitos de cidadania. Os membros dessas famílias serão considerados indivíduos conscientes de seus direitos se tiverem conhecimento dos diversos programas sociais (por exemplo, de renda mínima) e se neles estiveram inscritos e cumprindo regularmente suas regras para garantir a permanência. Se não o fizerem, estarão violando direitos de suas crianças e adolescentes e poderão ser taxados de negligência. Do ponto de vista do ECA, a pobreza não é motivo para o abrigamento de crianças e de adolescentes, mas a negligência o é.

A dimensão simbólica do Estado o coloca como “referência abstrata fundadora da ordem entre os indivíduos” (Sierra, 2004, p. 5). Para Rocha (2001, p. 10), “O Estado representa um foco de poder que tem a capacidade de impor as regras de convivência em um determinado limite territorial”. O Estado democrático deve ser capaz de realizar o princípio básico do direito às diferenças entre os seus cidadãos, impedindo que elas sejam tratadas como desigualdades e, ainda, de possibilitar a vida em comum dos diferentes, garantindo os direitos fundamentais dos cidadãos.

As políticas públicas e as sociais concretizam, no cotidiano, os princípios do Estado. Nesse sentido, Rocha (2000, p. 11) nos explica que:

    As políticas públicas referem-se a decisões governamentais projetadas para atacar problemas que podem estar relacionados, por exemplo, a política externa, saúde pública, proteção do meio ambiente, crime e desemprego, entre outros. Seus efeitos são direta ou indiretamente válidos para a sociedade, ou seja, têm poder vinculatório.

Nessa direção, as ações de proteção integral à infância e à adolescência integram as políticas públicas, desde a promulgação do ECA, que não se fez sem o posicionamento e as reivindicações de movimentos sociais organizados, entre eles o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Podemos concluir que as pautas das políticas públicas são transformadas ao longo da história, novas temáticas são incorporadas por força dos movimentos sociais organizados.

Quanto à política social, Rocha (2000, p. 15) apresentará a seguinte definição:

    A política social é uma modalidade de política pública que visa a fornecer condições básicas de vida à população – e o significado disso muda de sociedade para sociedade. Visa, assim, a buscar uma situação de maior igualdade entre os componentes de uma sociedade e fornecer um nível básico de segurança socioeconômica. Envolve uma ampla gama de modalidades, como políticas de saúde, educação, habitação, amparo a desempregados, crianças e velhos, programas de renda mínima, enfim, diversos tipos de intervenções.

Entendidos como sujeitos de direitos, inclusive direitos sociais, as crianças, os adolescentes e suas famílias passam a ser objeto e destinatárias das políticas sociais. No entanto, ao mesmo tempo, as famílias são também consideradas agentes da política social, posto que têm sido convocadas como aliadas das ações propostas pela política social, especialmente em seus programas de renda mínima, tais como o bolsa-família. Aqui cabe, contudo, um parêntese. Quando lemos centralidade da família, devemos compreender que há um subtexto que indica a centralidade das mulheres, uma vez que a tarefa de cuidado com crianças, adolescentes, jovens, idosos e doentes é uma atribuição entendida como própria do gênero feminino e, em nossa sociedade, usualmente exercida pelas mulheres.

Para Cruz (2008), é historicamente dominante o discurso de delegação à mãe de vigilância constante em relação a seus filhos como estratégia de prevenção de toda a sorte de males, gerando uma permanente tônica de culpabilização nessas mulheres. Um exemplo dessa afirmação encontramos nas práticas higienistas no Brasil no final do século XIX, que fez das mães as responsáveis pela saúde física, mental e moral de seus filhos. Nos dias atuais, as políticas públicas que norteiam a assistência às famílias pobres persistem nessa tônica de busca de aliança e responsabilização das mães.

As famílias monoparentais femininas têm sido consideradas em situação de vulnerabilidade, tanto pela situação de pobreza, uma vez que a mulher não conta com a figura de um provedor que divida com ela os encargos do cuidado das crianças e dos adolescentes, quanto pela situação de fragilidade dos laços afetivos e de referências de autoridade.

Nesse quadro, as crianças e os adolescentes são, muitas vezes, submetidos a situações de violência física, psicológica, sexual, são integrados precocemente no mundo do trabalho, exercendo atividades em condições precárias. As longas jornadas de trabalho os impedem, muitas vezes, de frequentar a escola e os espaços de lazer e cultura, necessários ao seu pleno desenvolvimento. A violação cotidiana dos direitos de crianças e adolescentes revela a produção e a perpetuação de desigualdades sociais que acarretam a exclusão e que retroalimentam as desigualdades.

 

A medida socioprotetiva de abrigo

O enfrentamento dessas situações tem sido feito por meio de uma rede de atendimento composta pelos equipamentos públicos de assistência social, de educação, de saúde e jurídicos. Crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal têm prioridade absoluta no recebimento das medidas socioprotetivas1 previstas pelo ECA. Entre estas, está a de abrigo em entidade. Nessas instituições, as crianças e os adolescentes são afastados do convívio com seus pais. Esse abrigamento caracteriza mais um atravessamento do espaço público no espaço privado e o consequente afrouxamento de suas fronteiras, gerando uma questão de impasse ético entre o particular e o bem comum.

A medida de abrigo, tomada em defesa dos direitos da criança e do adolescente, comporta alguns riscos, entre eles o de reforçar certa fragilização da autoridade parental, ao mesmo tempo em que amplia o poder jurídico tutelar sobre a família, desfacelando mais ainda os já difusos vínculos familiares na sociedade contemporânea.

Nesse sentido, no campo da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, assistimos cotidianamente à destituição do poder dos pais e à instituição do poder dos operadores do campo jurídico sobre os pais, as crianças e os adolescentes. Essas práticas têm favorecido o processo de judicialização da infância e da adolescência como um atravessamento nas relações parentais.

Entendemos que as discussões sobre os novos direitos das crianças e adolescentes têm figurado, não sem razão, no mundo globalizado, uma vez que eles denunciam uma situação de crise de valores no mundo contemporâneo e apontam para o risco ético de uma padronização do modelo de família ditado pelos especialistas dos campos jurídico, psicológico, educativo e assistencial, entre outros.

Embora, alçados à condição de sujeitos de direitos, pelo ECA, as crianças e os adolescentes não são compreendidos ainda como sujeitos políticos, no sentido de que suas demandas não são enunciadas pela própria voz, mas traduzidas pelos adultos seus representantes, os quais nem sempre são os seus pais, já que também estes, muitas vezes, estão tolhidos na sua própria expressão política, pois são colocados sob a tutela das esferas assistenciais e judiciais.

Família, criança, instituição e sociedade contemporânea, quando apresentadas como instâncias autônomas, revelam-se de extrema complexidade; quando ainda associadas entre si, em uma interação de circularidade de efeitos, produzem um intricado conjunto de elementos históricos, sociais e subjetivos de análise extremamente desafiadora.

As famílias atendidas pelos dispositivos do ECA, como já foi exposto, são marcadas por uma situação de extrema pobreza ou por grandes dificuldades para gerir seus parcos recursos financeiros, além de graves dificuldades emocionais, contando, portanto, com o auxílio de diversos setores/instâncias de apoio, inclusive com o histórico recorrente de institucionalização de seus filhos.

A relação dos operadores das medidas socioprotetivas com essas famílias traz desafios permanentes: é preciso tomar decisões rápidas, que garantam a integridade de crianças e adolescentes, mas também é preciso considerar as relações afetivas entre os membros da família (nuclear e extensa). Há uma tensão permanente entre a tutela e a busca de potencializar os recursos simbólicos e materiais da família.

Alarcão (2000) destaca que são famílias mais expectadoras do que autoras dos seus processos. Carentes de meios econômicos, sociais e culturais, essas famílias têm fronteiras muito difusas, aonde a entrada dessas instâncias vai se dando invasiva e continuamente. Citando Linares, a autora afirma que “A estrutura familiar também é característica, ocorrendo significativas rupturas e reconstituições que criam genogramas desorganizados e barrocos nos quais os papéis tradicionais (na tradição da família moderna) se modificam e reformulam” (Linares apud Alarcão, 2000, p. 318).

Os pais, de maneira geral, têm históricos de abandono e sofrimento, tendo pertencido a famílias com diversas rupturas, marcadas por violências. Via de regra, são famílias monoparentais, nas quais da mulher se espera um papel centralizador de funções de cuidado, proteção e manutenção financeira das suas necessidades. O casal, quando existe, raramente aparece no sistema familiar, tem muitos conflitos e dificuldades para lidar com as questões da criação dos filhos, absorvido que está com seus problemas de ordem emocional e social: alcoolismo, drogadicção, criminalidade, desemprego, falta de moradia própria.

Apesar de questões comuns relacionadas a qualquer sistema familiar, não há como negar a particularidade de organização de famílias em situação de vulnerabilidade e de riscos objetivo e subjetivo. Enquanto as condições socioeconômicas e simbólicas das famílias das camadas médias criam certas possibilidades para que possam decidir sobre entrada e os limites do auxílio/ invasão dos especialistas (psicólogos, médicos, advogados, entre outros), em períodos de crises e dificuldades, as famílias da camada popular, pela falta de recursos materiais e simbólicos, acabam por ter o seu poder de escolha limitado, favorecendo a ação tutelar das instâncias públicas e jurídicas e a entrada do auxílio-invasão dos especialistas.

As famílias assistidas pela rede de proteção à criança e ao adolescente se apresentam destituídas de autonomia e desfalcadas nas suas funções de proteção, cuidado emocional e financeiro dos seus filhos, entregando-se no “colo” do Estado, na grande maioria, reforçadas pelas instâncias de proteção, no movimento repetitivo de delegação das suas responsabilidades para o outro. Mais do que apoio, a ação do Estado passa a ter uma função de tamponamento de um “buraco” na organização hierárquica do sistema familiar. Cruz (2008) relata a situação de um jovem de 16 anos com história de abandono, que, ao ser interpelado sobre quem eram seus pais, respondia frequentemente, sem hesitação: o governo. Famílias com filhos abrigados, criança abrigada são nomeações que uniformizam, exigindo a determinação de todos envolvidos na rede de assistência de salvaguardar as idiossincrasias das famílias e dos seus componentes. Identificamos, nessa situação, uma das fontes dos equívocos encontrados na situação de abrigamento advindos da precipitação da destituição do poder familiar, do encaminhamento para a adoção por outras famílias substitutas brasileiras ou para a adoção internacional, ou mesmo do retorno para a própria família de origem. Ao serem inseridas na rede de proteção pública, são protegidas de circunstâncias, de fato, de extrema carência econômica e afetiva, e de violência doméstica. No entanto as famílias e suas crianças não são, na maioria das vezes, devidamente escutadas, para que possam quebrar um ciclo vicioso de repetições, inclusive o de uma sucessão de abrigamentos ao longo de suas vidas. Existem crianças, por exemplo, de 4 anos de idade, com o histórico de dois abrigamentos com a duração de dois anos e um ano e meio, respectivamente, o que significa que a maior parte de sua vida esteve em uma instituição.

As políticas públicas, ainda com forte tom assistencialista, necessitam de uma constante revisão de suas ações que carregam o perigo de proteger, sem promover a posição de responsabilidade dos beneficiados. Para Cruz (2008, p. 41)

Durante 400 anos de história de assistência as crianças, não se encontram, nas instituições, públicas, particulares, leigas ou religiosas, ações que visem a um efetivo cuidado com as famílias ou a prevenção do abandono “[...] Nenhuma das pesquisas que recuperam dados sobre a história da institucionalização de crianças pode encontrar as vozes das famílias, a não ser nos bilhetes de mães que acompanhavam algumas crianças deixadas na Roda.

Quem são essas famílias que, descaracterizadas na sua autonomia, acabam por acatar as decisões judiciais e não conseguem se reorganizar para reaverem seus filhos?

Pela escuta atenta dessas famílias, é possível atestar a repetição de padrões interacionais ao longo das gerações. Os pais, de maneira geral, têm históricos de abandono e sofrimento na infância, tendo suas famílias de origem com diversas rupturas, marcadas por violência e abandono. Essas repetições podem ser compreendidas como verdadeiros mitos familiares transmitidos entre as gerações. Os mitos familiares são definidos, de acordo com Ferreira, citado por Gomes (2000, p. 42), como:

Crenças organizadas – em cujo nome a família inicia, mantém e justifica muitas pautas interacionais – são compartilhadas e apoiadas por todos os membros como se tratassem de verdades que estão além de todo desafio ou investigação.

Em condição de repetições insistentes e crônicas, tais crenças se tornam rígidas e inabaláveis, determinando, sentenciando a fatalidade de um destino a priori. Essas famílias, na sua grande maioria, estagnaram em torno da crença da sua incompetência para construir uma família diferente da sua de origem. As mães reeditam o abandono sofrido, na infância, por suas próprias mães e demandam também acolhimento e sustentação. Uma mãe que teve duas filhas abrigadas disse, em uma das suas visitas às crianças: “Se eu pudesse, eu trazia minha cama e ficava morando aqui”.

A situação de descrença em relação aos seus próprios recursos e a demanda de acolhimento, parceria e limite facilitam a entrada, sem medida, das medidas de proteção, como um tamponamento dessas carências e não necessariamente como uma intervenção motora de uma efetiva mudança nas relações familiares.

Krom (2000) afirma que, no ciclo de vida familiar, as experiências repetidas tendem a ganhar significado, gerando a formação de um “núcleo de sentido” que determina uma específica concepção de mundo, a qual se trata de um mito familiar.

prolongada história de abandono através das gerações e a carência de toda ordem estruturam uma legenda conformista diante das decisões judiciais e das ações do Estado sobre as vidas dessas famílias.

 

A Casa dos Pequenos: reflexões e práticas encarnadas

A Casa dos Pequenos é uma entidade de abrigo para crianças situada na cidade de Belo Horizonte-MG. Durante cinco anos (2005-2010), por demanda da coordenadora da Casa, foi realizado o projeto de atendimento clínico, na abordagem sistêmica, com as crianças, famílias e os educadores que trabalham na entidade. Inicialmente, o trabalho foi desenvolvido como parte de estágio supervisionado de graduandos em Psicologia. A partir de 2008, o projeto foi transformado em prática de extensão universitária. Em 2009, esse grupo de extensão, composto por alunos e professores da graduação em Psicologia, incorporou professora e aluna da pós-graduação em Psicologia. O grupo tem procurado articular a prática de extensão com o ensino e a pesquisa.

Essa experiência tem sido objeto de contínuas reflexões. Entendemos que a discussão da eficácia da política de proteção à criança e ao adolescente, à luz de uma análise crítica, corre o risco de gerar um encadeamento de questões tão contraditórias e paradoxais que pode, se não tomarmos o devido cuidado, desmontar toda uma ação pública que envolve, por outro lado, muitos protagonistas empenhados, de fato, em ações responsáveis com o bem-estar das famílias e seus filhos. Essa análise deve, portanto, ser rigorosamente crítica, de maneira a dar conta de também avaliar as ações bem-sucedidas ao lado daquelas malsucedidas, salvaguardando uma visão mais abrangente possível.

Os destinatários da política social de proteção integral são as crianças e os adolescentes, que, como vimos, foram alçados à condição de sujeitos de direitos. Avaliar a eficácia das ações de proteção e defesa dos direitos desse público implica que se faça uma indagação cotidiana sobre as repercussões delas na vida de cada uma das crianças e dos adolescentes atendidos. Entendemos que essas avaliações não podem ficar reduzidas às estatísticas, aos números que despersonalizam os sujeitos. Evidentemente, que as análises estatísticas são muito importantes no planejamento e aprimoramento das ações públicas, mas elas não bastam. É preciso indagar em que medida as ações tomadas tornam as crianças e os adolescentes pessoas mais felizes e capazes de tomar em suas próprias mãos o seu destino.

Escolhemos, nessa direção, dois casos clínicos. Os sujeitos atendidos falam de seus sofrimentos e da posição em que foram colocados pelos diversos equipamentos públicos e de seus movimentos de resistência e de desistência.

Para estabelecer uma análise contrastiva, escolhemos um caso que consideramos bem-sucedido e outro, malsucedido. O critério estabelecido pela equipe como definidor de um caso bem sucedido foi a referência da sustentação de uma ação voltada para o apoio da família como responsável pela sua história e, em contrapartida, a resposta favorável dessa família de retomar as rédeas de seu destino. Essa é a história de uma criança chamada Gabriel2, que, ao longo de um extenso e sofrido processo, retornou para casa com sua mãe.

Gabriel tinha, na época do abrigamento, 4 anos de idade, com uma jovem mãe de 20 anos, grávida pela segunda vez, morando com a irmã, que era prostituta. Foi abrigado por ter sido encontrado na rua, sendo que a mãe afirma tê-lo deixado com uma vizinha, remunerada para tomar conta dele.

Júlia, a mãe, estava desempregada, com histórico de abandono em relação à sua mãe e de abuso sexual na infância, ex-interna da Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM). Visitava Gabriel frequentemente no abrigo e afirmava que, se ele não ficasse com ela, ela daria em adoção o filho, do mesmo pai, que estava prestes a nascer.

Iniciamos o atendimento psicológico dessa mãe, a princípio muito arredia e desconfiada das intenções da Psicologia. Pouco a pouco, ela foi se apropriando do espaço do atendimento, questionando e redimensionando as direções invasivas de uma parte da rede de abrigamento em relação à sua vida.

Na negociação para reaver a guarda de Gabriel, recusou várias recomendações feitas pelos técnicos dos equipamentos que compõem a rede de assistência. A seguir, listamos as recomendações: 1) que Júlia voltasse a morar com o próprio pai, o avô materno das crianças, alcoolista, com histórico de agressão à família; 2) que não permanecesse na casa de sua irmã que era prostituta; 3) que ela fizesse uma troca: teria seu filho de volta se fizesse laqueadura de trompas após o parto.

Além de resistir a todas as recomendações que não estavam em conexão com a sua verdade subjetiva, ou seja, o seu projeto pessoal de reaver seu filho, ela levava suas irmãs às sessões de atendimento psicoterápico para provar que o que denunciava sobre seu pai era verdadeiro.

Nesse processo, Júlia começou a namorar um homem mais velho. Prosseguiu com a demanda de que o pai biológico registrasse o filho e lutou para assegurar o vínculo com os filhos, com a ajuda significativa da psicóloga que a atendia.

Júlia abraçou uma luta sem tréguas pelo rompimento da repetição familiar: abandono e cortes emocionais, e aceitou a parceria com um segmento da rede (a Psicologia) para fazer valer a sua voz, dando, inclusive, continuidade ao atendimento psicoterápico, após reconquistar a guarda de Gabriel.

Embora não tenha conseguido um emprego nem a devida organização de sua casa, buscou assegurar o vínculo afetivo com os filhos. Estabeleceuse, nesse caso, uma parceria que potencializou as ações do sujeito, aproveitando positivamente os seus recursos emocionais, culminando no retorno do filho para a sua guarda.

Ainda que o caso relatado tenha trazido uma situação de significativo caos familiar, nesse mesmo caos coexistiam possibilidades reais de superação da situação. Para identificar tais elementos possíveis de produzirem uma nova configuração, foi indispensável uma escuta atenta, cuidadosa, amplificadora e de aposta no fortalecimento dos embriões de possibilidades dessa família. Ao ser escutada na sua potencialidade, a mãe se sentiu apoiada pela rede, representada pela psicóloga, o que a fortaleceu na sua função de mãe, tornando possível o desfecho relatado.

Queremos ressaltar que esse caso foi bem-sucedido, tendo em vista o processo. Um dos pontos da rede de assistência pode desenvolver com essa mulher uma função mediadora e não tutelar. Foi necessário que houvesse um tempo de elaboração para que Júlia mudasse a sua posição e se responsabilizasse por suas escolhas.

Em contrapartida, acreditamos determinar um caso malsucedido a ação meramente tutelar, quando as instâncias protetoras pretendem organizar uma situação entendida como caótica, com parâmetros externos a ela mesma, o que confere um caráter invasivo às suas ações, como aconteceu no caso a seguir.

Bruno tem 8 anos, abrigado desde os 5 anos. É o último filho de uma família de oito irmãos. Aos 2 anos de idade, a mãe foi destituída do poder familiar por ser alcoolista e por negligências e maus-tratos; e o pai, apesar de ter reivindicado sua guarda na justiça, não compareceu às audiências marcadas pelo Juiz. A incapacidade da mãe e o desaparecimento do pai geraram a disponibilização da criança para a adoção.

Após a destituição do poder familiar, Bruno viveu com uma provável família adotiva, que foi considerada inapta para criá-lo, pela repetição de comportamentos semelhantes à sua família de origem: pai alcoolista. É importante destacar a vinculação significativa da criança com a mãe e os irmãos dessa família. A despeito disso, Bruno foi novamente abrigado e viveu mais uma vez uma possibilidade de adoção que também foi considerada inadequada pelo juizado.

A primeira possível mãe adotiva se ligou de maneira tão significativa o Bruno, que propôs que, mesmo adotado por outra pessoa, fosse visitá-la nos finais de semana. Ao identificá-lo como um caso de adoção tardia, o Juizado optou pela adoção internacional, deixando escoar uma possibilidade real de adoção por pessoas que, de fato, já haviam estabelecido laços afetivos com a criança.

Duas famílias francesas se interessaram por ele, apoiadas no fato de a criança já ter um irmão adotado também por franceses. Tais famílias, no entanto, não se definiram pela adoção. Em 2008, Bruno foi finalmente adotado por um casal de italianos que veio ao Brasil para passar um mês com a criança, com o objetivo de estabelecer um contato mais próximo com ela, tendo em vista a adoção. O advogado responsável pelo processo internacional interditou, a partir da decisão favorável à adoção, a continuidade de qualquer vínculo da criança no Brasil.

Com base nesse relato sucinto, podemos observar vários elementos que o definem como um caso malsucedido. Entre eles destacamos quatro: 1) a criança não é escutada no momento do processo de decisão pela adoção internacional, permanecendo alheia a todas as decisões sobre o seu destino; 2) a família brasileira interessada em adotá-lo não foi devidamente escutada e trabalhada nos entraves colocados para a efetivação da adoção; 3) havia interesse de mais de uma família brasileira em adotá-lo, o que não foi suficiente para gerar o interesse dos componentes da rede em apoiar essas famílias na sua intenção; 4) a despeito de todas essas possibilidades, elas foram abortadas, culminando em uma decisão de adoção internacional com a prescrição de rompimento de vínculos, de toda natureza, no Brasil, seu país de origem, como condição para a concretização da adoção.

Constata-se, com base nesses elementos, uma repetição, promovida paradoxalmente pelo próprio sistema de proteção, do abandono e do desamparo nas relações afetivas que Bruno foi tecendo no seu processo de abrigamento. O que determina a nossa leitura desse caso como malsucedido não é o desfecho em adoção internacional em si, mas todo o processo de desconsideração com os afetos estabelecidos pela criança e a falta de acompanhamento genuíno das famílias, associado à equivocada interpretação das suas condições, priorizando uma visão unilateral e parcial delas.

As instâncias assistenciais e judiciais, diante do “caos”, pretendem organizá-lo de fora, com base nas representações sociais de seus agentes, muitas vezes preconceituosas, correndo o risco de inviabilizar a percepção da família de si mesma e desconsiderando os recursos existentes em cada uma delas. Deparamo-nos, ainda, com um grande paradoxo: a rede pretende orientar para proteger a criança e a sua família e acaba por desampará-los com ações intrusivas, contribuindo para a perda da sua autonomia.

Alarcão (2000, p. 316) revela, com precisão, o risco da ação pública intrusiva: “A atitude substitutiva dos profissionais em nada favorecia o desenvolvimento daquelas competências, antes aumentava a postura de delegação e de desresponsabilização, assim como diminuía uma autoestima já reduzida”.

Os casos bem e malsucedidos relatados mostram claramente o quanto é importante a reapropriação da autonomia por parte da família como condição necessária para o rompimento da dependência e do enfrentamento e superação das condições de vulnerabilidade e risco. O trabalho na direção emancipatória possibilita, além do fortalecimento da autoestima de cada um dos membros da família, o exercício da cidadania, no sentido de que os sujeitos passam, de fato, a assumirem-se como sujeitos de direitos e não apenas de necessidades a serem supridas por um Estado transvestido na figura de um “bondoso pai”.

Os operadores das ações de assistência vivem intensos dilemas cotidianos. Muitas soluções de caráter pragmático são elaboradas pela intenção protetora e pela premência da resolução de situações graves e de violação de direitos sofridas pelas crianças e adolescentes. Dessa forma, muitas vezes, não é permitido o tempo necessário para a elaboração tanto dos pais e responsáveis quanto das crianças e adolescentes no processo de construção da autonomia e de responsabilização frente às decisões a serem tomadas.

O cuidado ético é um imperativo para todos os que integram a rede de proteção, é preciso fazer todos os esforços para não se permitirem maior sofrimento e risco na vida das crianças, dos adolescentes e de suas famílias, mas, ao mesmo tempo, não invadi-los e destituí-los de sua posição de direito.

Os profissionais envolvidos em toda a rede de proteção necessitam de espaço para que possam manter-se diferenciados, no sentido de respeitar as decisões e as diferentes configurações e dinâmicas familiares, e, ao mesmo tempo, colocarem-se como agentes de mediação para que as situações de violência possam ser superadas e os vínculos familiares reestruturados. Sem que possam dar conta de si mesmos, esses profissionais, embora bemintencionados, podem desenvolver ações negativas pelo uso de um poder que promove o submetimento do outro.

 

Considerações finais

Família, criança, instituição e sociedade contemporânea formam um contexto de extrema complexidade e imprevisibilidade. O trabalho com famílias, na rede pública, nos promove uma sensação semelhante de estarmos sendo levados por uma forte correnteza, tamanha a quantidade e a intensidade dos seus elementos constitutivos, e ainda a situação de urgência que nos é colocada a todo o momento.

São tantas as questões com as quais deparamos, que sempre experimentamos a dificuldade de priorizar uma delas para a escrita de um texto como este, por exemplo, já que uma questão sempre magnetiza uma multiplicidade de outras que parecem não poder ser descartadas: todas importantes e constitutivas da rede de proteção às famílias com fragilidade social.

A problematização construída ao longo deste texto não se restringe às famílias em contexto de pobreza, mas também às famílias de camadas mais favorecidas da sociedade contemporânea. A família contemporânea, nesse processo de reinvenção de si mesma, revela um nível significativo de vulnerabilidade subjetiva, ostentando vácuos hierárquicos importantes na sua constituição, que a torna susceptível às intervenções externas: o discurso de especialistas (psicólogos, pedagogos, advogados e Juizado).

A família que alia vulnerabilidade social (miséria, desemprego, precárias condições de moradia) à vulnerabilidade subjetiva (drogas, prostituição, tráfico, abuso sexual) se apresenta como uma usuária crônica dos serviços públicos, caindo na rede, no sentido de ser aprisionada em sua incapacidade de gerir, de forma autônoma, seus parcos recursos.

A pergunta que fica com base nas questões levantadas do trabalho com crianças e famílias atendidas pela rede de proteção nos conduz, inevitavelmente, para o campo da ética: é possível auxiliar sem invadir?

Acreditamos que somente se acolhermos a complexidade da situação, sem negarmos a tensão inerente à convivência de vários e poderosos discursos que devastam as particularidades de cada sistema familiar, poderemos avançar para uma interação de apoio genuíno no lugar de uma interação de invasão.

 

Referências

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*Doutora em Psicologia Social pela PUC SP. professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas.
** Mestra em Psicologia pela UFMG, professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas.
***Mestra em Psicologia pela UFRJ, professora Instituto de Psicologia da PUC Minas.
1ECA – Art.101: Das medidas socioprotetivas I. Encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade; II Orientação, apoio e acompanhamento temporários; III. Matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV Inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V. Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI. Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicônomos; VII. Abrigo em entidade; VIII. Colocação em família substituta.
2 Todos os nomes citados na descrição dos casos são fictícios.

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