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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.2 Belo Horizonte Aug. 2011

 

ARTIGOS

 

O enigma do acontecimento

 

The enigma of the event

 

El enigma del acontecimiento

 

L'énigme de l'événement

 

 

André Lévy*

Centre International de Recherche, Formation et Intervention Psychosociologiques

 

 


RESUMO

Acontecimento e mudança, duas noções interligadas, que remetem a um enigma: como é que, da continuidade, pode nascer a descontinuidade? A esta questão, a análise do acontecimento - aquilo que de repente irrompe na vida de um grupo ou de um indivíduo, provocando surpresa e confusão - traz certa luz. Evocamos três exemplos de amplidão e de natureza diversas: o chamado caso DSK (Dominique Strauss-Kahn), uma descoberta reveladora das tensões em uma equipe de cuidados e a criação do Estado de Israel, vivida de maneira contraditória pelos palestinos e pelos israelenses. Estes três acontecimentos só fazem sentido e se tornam fonte de mudanças, quando suas repercussões psicológicas e sociais são objeto de trabalho de elaboração por parte das pessoas envolvidas.

Palavras-chave: Micro acontecimento, mudança, descontinuidade, desvelamento, clínica, experiência.


ABSTRACT

Event and change are two interrelated notions referring to an enigma: how can discontinuity be born from continuity? Taking this question into consideration, the analysis of the event – which can be anything that suddenly bursts into a group or an individual life, brings surprise and confusion and sort of a certain light. We can mention three examples of a nature variety: the case so called DSK (Dominique Strauss-Kahn), a discovery revealing the tensions in a team of care and the creation of Israel, which has been in a contradictory ways by the Palestinians and the Israelis. These three events only make sense and become a source of change, when their psychological and social consequences are the subject of an elaboration work by the involved people.

Keywords: Micro-event, change, discontinuity, clinic, experience.


RESUMEN

Acontecimiento y cambio, dos nociones interligadas, que remiten a un enigma: ¿cómo es que, de la continuidad, puede nacer la discontinuidad? A esta cuestión, el análisis del acontecimiento - aquello que de repente irrumpe en la vida de un grupo o de un individuo, provocando sorpresa y confusión - trae cierta luz. Evocamos tres ejemplos de amplitud y de naturaleza diversas: el llamado caso DSK (Dominique Strauss-Kahn), un descubrimiento revelador de las tensiones en un equipo de cuidados y la creación del Estado de Israel, vivida de manera contradictoria por los palestinos y por los israelitas. Estos tres acontecimientos solo hacen sentido y se tornan fuente de cambios, cuando sus repercusiones psicológicas y sociales son objeto de trabajo de elaboración por parte de las personas envueltas.

Palabras clave: Micro-acontecimiento, cambio, discontinuidad, clinica, experiencia.


RÉSUMÉ

Événement et changement, deux notions liées, qui renvoient toutes deux à une énigme  : comment de la continuité peut naître la discontinuité ? A cette question, l'analyse de l'événement, - ce qui fait soudain irruption dans la vie d'un groupe ou d'un individu, provoquant surprise et désarroi - apporte un certain éclairage. Trois exemples d'ampleur et de nature différentes sont évoqués : l'affaire dite  DSK, une découverte révélatrice de tensions dans une équipe de soins, la création de l'Etat d'Israël, vécu de façon contradictoire par les palestiniens et les israéliens. Ces trois événements ne prennent sens et ne deviennent source de changement que lorsque leurs répercussions psychologiques et sociales font l'objet d'un travail d'élaboration chez ceux qui y sont impliqués.

Mots-clé: Micro-événement, changement, discontinuité, dévoilement, clinique, experience.


 

 

Se for importante pensarmos o acontecimento, isso se deve a que ele ocupa um lugar à parte entre as diferentes noções por meio das quais tentamos descrever o funcionamento e a vida dos homens e das instituições coletivas. E se for também importante superar a dificuldade que ele apresenta a quem tenta entendê-lo, é porque todo acontecimento se configura como um momento singular e crucial que acontece vez por outra, de maneira imprevista e imprevisível, na história de qualquer sociedade e de qualquer pessoa. Além disso, ele remete a um enigma, conforme nos toca como sujeitos vivos e mutantes, não objetos estáticos e imóveis.

Apesar de ser usada na linguagem corrente, essa noção, raramente estudada, suscitou recentemente um novo interesse entre os filósofos, notadamente Alain Badiou (1988; 2010) e, anteriormente, Hannah Arendt (1989), assim como determinados historiadores (Dosse, 2010). Sem dúvida, isso de deve ao fato de que, em nosso universo hipercontrolado, hipermecanizado, os acontecimentos, até mesmo os trágicos (ou sobretudo os trágicos) trazem, por sua novidade, o tempero que às vezes falta à trivialidade de nossas vidas.

Paradoxalmente, o tema foi relativamente negligenciado por sociólogos e antropólogos, ainda que esteja presente, de maneira discreta, em trabalhos que buscam uma melhor compreensão dos processos de mudança nos grupos e nas organizações (Lévy, 2010). Remetendo a objetos incompreensíveis que desafiam qualquer representação, essas duas noções (mudança e acontecimento) representam, portanto, um enigma, o qual tentaremos esclarecer, examinando suas relações respectivas.

Não se trata de celebrar, como Badiou (2010), o "milagre" do acontecimento, surgido não se sabe de onde, revelador de uma nova verdade, ao mesmo tempo singular e universal, que eclode em algum momento e lugar e deveria ser reconhecida e preservada a qualquer preço, pois tem o mérito de nos içar a uma intensidade mais alta de existência e, por esse motivo, é portadora de esperança.

Também não se trata de retratar a onda de pensamentos insuflados pelos acontecimentos maiores que agitaram nosso século, como fez Hannah Arendt, em diferentes textos, escritos ao longo de uma trajetória, que compõem sua obra Pensar o acontecimento. É claro que o acontecimento começa a fazer sentido, com base na maneira pela qual nós o recebemos e pelas ideias e sentimentos que ele nos inspira, pessoalmente.

Nosso ponto de vista sobre o acontecimento é mais limitado, mas é também mais preciso. E se estamos tentando decifrar o enigma do acontecimento, é com base em nossa experiência em Psicossociologia que o fazemos e porque, nas diversas intervenções que realizamos em grupos e organizações em dificuldades, pareceu-nos que o acontecimento estava no centro dos processos que governam sua existência, tanto individual quanto coletiva.

Desse ponto de vista, a mudança não se define somente como a passagem de um estado a outro, e sua análise não se reduz à busca de causas internas ou externas que explicariam essa passagem, como buscou fazer, nesse caso, a maioria dos trabalhos em Sociologia e em Psicologia. Trata-se, antes, de prestar atenção no que acontece entre estados sucessivos. De que forma e de acordo com qual processo, qual trabalho, um dado estado de coisas relativamente estável, pelo menos em aparência, se transforma para se tornar outro? (Lévy, 1973). Como emerge uma organização, como se modificam os modos de pensamento, as condutas, as regras, as normas, as estruturas sociais? Como se desenvolvem as instituições, como os conflitos surgem e em seguida se resolvem, como se desconstroem identidades, em proveito de identificações portadoras de sentido? Como a enunciação de uma palavra ou como um ato pode ressoar na psique e abalar um processo de pensamento e de ação? Enfim, de maneira mais geral, como é que da continuidade e da permanência pode nascer a descontinuidade? Como podemos nos tornar outro e, ao mesmo tempo, permanecermos o mesmo? Tais são as aporias para as quais a Psicossociologia tenta trazer respostas.

É aqui que o acontecimento (aquilo que ocorre de maneira imprevista e imprevisível, e jamais se repete, aquilo em que se concentra a descontinuidade) toma todo seu sentido. Não se trata somente dos grandes acontecimentos que geram rupturas na História de uma coletividade ou de uma nação, mas desses microacontecimentos que pontuam a vida cotidiana, tanto das pessoas como das sociedades, e que são indissociáveis do momento e do lugar de sua ocorrência, assim como das pessoas que os viveram.

O acontecimento se impõe a nós como um lapso, como uma evidência da qual não podemos escapar. Ele é essa "coisa de fora" (La Bruyère) que acontece de repente, sem ter sido prevista e que não se parece com nada até então conhecido, inventariado, identificado, e cuja incrível novidade está assinalada em nossa consciência por um choque emocional cuja intensidade nos deixa sem voz.

Há duas maneiras de conceber os acontecimentos. Podemos considerá-los como simples acidentes, ou incidentes sem grande significado, como epifenômenos que acontecem vez por outra, mas que não têm incidência particular nas grandes linhas ou nas correntes de longa duração nas quais se desenvolvem tanto as sociedades quanto os indivíduos. Nessa ótica, que é, essencialmente, a da École des Annales (Dosse, 2010), a história se presta a certa inteligibilidade e pode ser objeto de análise científica.

Mas podemos também considerar os acontecimentos como momentos que, bruscamente, abrem uma janela sobre o que estava mascarado, ignorado, despercebido1 por trás da harmonia, da estabilidade, da regularidade aparente e tranquilizadora de nosso universo. Trata-se, então, de momentos-chave do processo de mudança, imprevisíveis, singulares, não repetíveis, rebeldes a qualquer compreensão e a qualquer lógica. Esses momentos, nos quais é rasgada a cortina das certezas e das convenções, formais ou tácitas, abrem caminho para a irrupção, no presente, daquilo que no passado estava, há muito tempo, recalcado ou reprimido. São, portanto, momentos de luto, de desconstrução, de perda de referências, que deixam um vazio onde havia um cheio, mas são também momentos de renovação, de despertar, de emergência, assimiláveis à criação intelectual ou poética, de abertura para um futuro inédito.

Como entender o que nos atinge, que está fora de qualquer inteligibilidade, que nos pega de surpresa, no sentido pleno do termo, e sobre o qual não se pode dizer nada (Derrida, 2001), tal é seu impacto em nossos esquemas de pensamento, nossos hábitos, nossas certezas, fazendo com que nada mais seja como antes? Como explicar aquilo que desestabiliza o paradigma central da cultura e da ciência ocidentais, fundadas em um projeto de controle, de explicação?

Na verdade, tudo o que acontece pode constituir um acontecimento: a morte de uma pessoa próxima, o nascimento de uma criança, um acidente automobilístico, a publicação de um livro, a contemplação de uma paisagem, o desencadeamento de um conflito, a votação de uma lei. Mas "o que se passa" só produz acontecimento, só toma sentido de acontecimento pelo choque emocional, pelo modo súbito e pela estranheza que, gerados nos espíritos, bem como pelo que ocorre a partir daí.

Nesse sentido, qualquer experiência é um acontecimento, sob a condição de que ela seja plenamente vivida como uma experiência inovadora. Para a criança pequena que está descobrindo o mundo, tudo é novo, todo momento é um acontecimento, fonte de encantamento, de medo ou de angústia, tudo é, enfim, ocasião de sentir-se existindo. Por outro lado, para os adultos, o hábito e a rotina fazem com que tudo lhes pareça natural, evidente, salvo quando acontece algo inesperado, chocante, que os surpreenda, que chame sua atenção, lembrando-lhes que eles ex-istem,2 que eles estão vivos. Isso pode advir de um olhar ou um sorriso trocado com uma pessoa desconhecida, de um rosto visto na rua... Pois se esse rosto, esse sorriso carregam todo o seu peso de realidade, é porque não se trata de um rosto, de um sorriso como todos os outros, mas desse rosto, desse sorriso, único e diferente de todos os outros, percebido neste momento: "Beleza fugidia cujo olhar me faz subitamente renascer, não te verei senão na eternidade?" (Baudelaire).3

Essa concepção do acontecimento contrasta com o uso que se faz dele, em cerimônias ou manifestações importantes (casamentos, enterros, transferência de poderes, entrega de diplomas...). Assim, a celebração do casamento principesco recentemente na Inglaterra, que ocorreu conforme um ritual preciso, eliminando qualquer surpresa, seria qualificado, erradamente, de acontecimento. O que fez acontecimento e foi destacado pela mídia não foi a cerimônia em si, que decorreu conforme o planejado, mas alguns incidentes inesperados e surpreendentes (a dificuldade de colocar a aliança no dedo da noiva, o vestido que vinha sendo mantido em segredo ou ainda o segundo beijo trocado pelo jovem casal, no balcão, diante da multidão). Em outras palavras, esses pequenos detalhes perturbam o planejamento tranquilizador e regulamentado da cerimônia, demonstrando que, por trás do cerimonial, duas pessoas reais estavam vivendo um momento crucial de sua existência.

O choque e o abalo de um acontecimento em quem o vivencia, revelando a fragilidade das instituições e colocando em dúvida a capacidade de prever e dominar o futuro, paralisam a capacidade de pensar e geram um sentimento de insegurança.

A dificuldade de pensar o acontecimento, no entanto, também está relacionada ao que ele desvela. Ao monopolizar o campo discursivo e forçar a atenção para o tempo presente, o acontecimento impede que se veja que ele é, na verdade, bem mais do que um acidente fortuito. Pois ele é, antes, o resultado de um longo processo enraizado em um passado desconhecido e não assumido.

Um acontecimento recente – o caso DSK (Dominique Strauss-Kahn) – ilustra perfeitamente essas proposições. O que, originalmente, não passava de um episódio da vida privada de duas pessoas em um quarto de hotel em Nova Iorque tornou-se, em algumas horas, a partir da prisão de Dominique Strauss-Kahn, acusado de tentativa de estupro por uma camareira, um acontecimento público de grande amplitude, exaustivamente comentado em todas as mídias e nas conversas, na França, nos Estados Unidos e no mundo.

Se o caso tomou tais proporções, ultrapassando de longe o drama pessoal vivido pelos dois protagonistas, foi, evidentemente, em razão da personalidade de DSK. Era inconcebível que esse homem pudesse, no espaço de meia hora, cedendo a uma pulsão sexual incontrolada, correr o risco de colocar em perigo não só sua carreira, sua reputação e até mesmo sua vida e, de repente, nivelar-se a um vulgar delinquente e, além disso, colocar em dificuldade seu partido político e todos aqueles que nele haviam depositado suas esperanças, trair seus amigos, suas responsabilidades de chefe do FMI. Daí o barulho no Partido Socialista francês, o caos no FMI, a ameaça ao Euro, a queda da Bolsa, a onda de choque que se propagou por todos os lados.

A derrocada brutal de DSK foi ainda mais espetacular pelo fato ser compreensível. Assim, num primeiro momento, o estupor andou de mãos dadas com a incredulidade: o ato de que ele estava sendo acusado era incompreensível, portanto não tinha acontecido. Falou-se de complô, de armadilha, de manipulação. Mas, pouco a pouco, as línguas foram se soltando.

Assim, ficamos sabendo que, desde muito tempo, os comportamentos delituosos de DSK, bem como de outros políticos franceses (alguns nomes foram citados, outros sugeridos), em relação às mulheres, já eram bem conhecidos. Como é que pode, perguntou-se então, que o silêncio tenha reinado por tanto tempo sobre os costumes duvidosos dos responsáveis políticos franceses? Como é que os jornalistas, excetuados alguns poucos, tenham sido cúmplices de tal silêncio? Seria o temor de serem acusados de falar da vida privada dos homens de poder ou seria sinal de sua colusão com as elites? Ou seria, ainda, indício da "indulgência geral com relação às ‘mentiras e atos delituosos dos homens de poder na França'"?4

Assim, logo depois, já contextualizado, o caso DSK se tornou mais inteligível, revelador de determinados traços desconhecidos da sociedade francesa e de suas tradições ancoradas na história. Essa conscientização foi notadamente acelerada pela comparação forçada, em grande parte graças à televisão, entre os costumes franceses e americanos, no que se refere às relações entre vida privada e vida pública, entre homens e mulheres, ou ainda, ao funcionamento da justiça e da polícia, do jornalismo, da informação...

Da mesma forma, o pós-DSK proporcionou numerosos e animados debates, como se, ao ceder a uma pulsão sexual, esse político tivesse estourado a rolha de uma garrafa de champanhe, fazendo jorrar seu conteúdo sob pressão. Assim, os movimentos feministas aproveitaram para relançar o debate sobre o machismo e a sina das mulheres na sociedade francesa; responsáveis políticos e sociólogos relembraram as desigualdades perante a justiça, de acordo com o pertencimento social, o status ou o dinheiro; outros destacaram as relações entre poder e sexo, bem como a perpetuação das tradições monarquistas, inclusive em um regime republicano, que implica o sentimento de impunidade entre os homens de poder, reforçado por uma atitude de deferência e de respeito incondicional a eles.

Ao ver de que maneira, nos Estados Unidos, as elites são tratadas como mortais comuns, percebemos que, se o mesmo incidente tivesse ocorrido na França, jamais teríamos encontrado um juiz ou um policial para, imediatamente, recolher e prender, no avião, uma personalidade como o diretor do FMI, mediante simples denúncia de uma camareira, negra além de tudo, fazendo-o aparecer algemado diante das câmeras de televisão.

Não podemos, certamente, assegurar que essa explosão e essa liberação da palavra tenham um efeito duradouro sobre a sociedade francesa e suas práticas, mas também é possível que elas gerem mudanças significativas nas mentalidades e nos comportamentos.

Pela multiplicidade e pela importância das questões que ela mobilizou mundo afora, por suas raízes complexas na história das pessoas e das sociedades, por suas múltiplas ramificações e interligações, assim como por suas consequências psicológicas, políticas, sociais, culturais e econômicas, o caso DSK foi um acontecimento excepcional. Sua amplitude até permitiu, como pelo efeito de uma lupa, que se tornassem mais visíveis os processos que se desenrolam, quando um acontecimento qualquer irrompe inopinadamente e na vida cotidiana.

Desafiando qualquer compreensão, o lugar desmesurado que o acontecimento ocupa, na atualidade, nos faz esquecer, num primeiro momento, os laços que ele mantém com um passado desconhecido. No entanto, quando esse passado ressurge, por meio da palavra, ele passa a fazer sentido e abre a possibilidade de uma renovação, de uma reorientação da história.

Um acontecimento não gera, por si só, alguma mudança para quem o vivencia. Como um sintoma, ele se impõe como uma "coisa" vinda de outro lugar, como uma experiência estranha pela qual passamos e que não conseguimos dominar, que só dá espaço para uma emoção invasora e que, caso nos deixemos dominar por ela, tende a paralisar o pensamento e entravar qualquer análise racional. Desfazer os nós de suas múltiplas ramificações, no momento em que ele acontece, apreendê-lo como um significante portador de sentido, tomar a medida de seu potencial criador, tudo isso requer bem mais do que apenas esforço intelectual.

Com efeito, como explicaram Husserl e Merleau-Ponty, a noção fenomenológica de experiência distingue dois níveis de sentido: por um lado, a percepção imediata e a impressão que ela deixa; por outro, uma experiência em segundo grau, ou seja, a experiência da experiência, cuja consciência permite entender o mundo sob uma nova ótica, ou seja, ek-sistere, tornar-se ou nascer para si, em sua relação com o mundo e com os outros.

Um famoso pianista, dirigindo-se a seus alunos, falava, com suas palavras, desse mesmo e necessário desdobramento do espírito. O intérprete de uma peça musical, dizia ele, deve ter dois cérebros. Um para acompanhar a emoção inspirada pela música, o outro para prestar atenção no texto e escutar o que está tocando. Sem isso, a emoção o invade e o faz perder o domínio do que está tocando.

A capacidade de viver uma experiência em interioridade e, ao mesmo tempo, em exterioridade, de fora e de dentro e, portanto, de entender o ou os sentidos de um acontecimento, no próprio momento em que ele é produzido, isso é um elemento central do trabalho do artista, assim como do clínico, do psicanalista ou do psicossociólogo. Todavia, em geral, é só depois de ter sido feito um trabalho de elaboração, individual e coletiva, que um acontecimento pode fazer sentido e tornar-se vetor de mudança.

Esse trabalho de elaboração pode ser feito ou não, e, se não o for, o acontecimento ficará sem desfecho. Ele pode ser feito espontaneamente, como aconteceu no caso DSK. Mas pode também ser necessária a intervenção de um terceiro para facilitá-lo e torná-lo possível. Nessa perspectiva, a intervenção psicossociológica pode ser definida como uma clínica do acontecimento.

 

Uma clínica do acontecimento

Por si só, um acontecimento não produz necessariamente mudanças. Por outro lado, qualquer mudança tem como ponto de partida a surpresa, o choque emocional, as questões que acompanham seu surgimento. Seu impacto pode ser maior ou menor e marcar os espíritos em maior ou menor medida. Pode tratar-se de um acontecimento feliz, como um nascimento, ou trágico, como um falecimento. Determinados acontecimentos constituem uma ruptura na vida coletiva e iniciam uma nova etapa de sua história, como a queda do Muro de Berlim, a revolta dos estudantes de maio de 1968 e a "Primavera Árabe", assim como a destruição das torres gêmeas, em Nova Iorque, em 2001.

É claro que os acontecimentos que surgem na vida de um grupo ou de uma organização não têm uma amplitude comparável. Eles podem referir-se à irrupção de um conflito entre pessoas ou entre grupos, de uma decisão que gera polêmica, da chegada de um novo dirigente, de uma dificuldade de comunicação, ou simplesmente de uma palavra deslocada, de um rearranjo dos locais, de um rumor, enfim, de qualquer incidente que tenha criado alguma perturbação no curso da história do grupo e das pessoas envolvidas.

Estes acontecimentos localizados podem ser interpretados como sintomas de uma crise embrionária e, assim, serem objeto de um trabalho clínico, motivando a demanda de uma ajuda externa. Se o agente da intervenção for psicólogo e clínico, ele não vai tentar buscar, com os participantes, soluções para os problemas aí levantados, mas os convidará a dirigir seu olhar para as situações nas quais as situações emergiram, sua gênese, bem como o envolvimento dos sujeitos nessas situações e a maneira como eles as representam.

Assim, em uma intervenção solicitada por uma equipe de cuidados de um estabelecimento psiquiátrico, um acontecimento menor foi citado por vários participantes desde a primeira reunião. Esse acontecimento, aparentemente anódino, tinha sido a descoberta, por parte de algumas enfermeiras, de um desenho afixado no fundo de um armário. Esse desenho escondido representava o médico com a terapeuta ocupacional, que ocupava um lugar privilegiado na equipe, devido a seu status profissional. Ora, ocorre que as enfermeiras, apesar de já terem descoberto esse desenho, havia algum tempo, jamais haviam ousado falar dele abertamente, especialmente na presença do médico.

O motivo pelo qual a intervenção havia sido solicitada era um mal-estar sempre presente, nas sessões semanais, em que toda a equipe se reunia para falar de suas relações com os pacientes. De maneira inexplicável, as reuniões foram progressivamente se esvaziando de seu conteúdo. As trocas foram se tornando raras e pouco satisfatórias, e deram lugar ao silêncio.

Uma boa parte das discussões que ocorreram no âmbito da intervenção, que durou dois anos, foi dedicada a temas indiretamente associados à descoberta do desenho. Pouco a pouco, como o desenrolar do fio de um carretel, os não ditos, os subentendidos, as interdições e sua transgressão, representados de maneira metafórica, por meio da descoberta do desenho afixado e escondido, foram se formulando verbalmente, abrindo caminho para um possível debate: "Não é legal a gente se expor, a gente ficar em evidência", "Nós não nos escolhemos".

Assim, foram evocadas as regras que regem as relações na equipe, a posição do médico e as relações hierárquicas, as condições de trabalho e a repartição das tarefas, as relações com os pacientes. Insistiu-se, sobretudo, no caráter ambíguo e contraditório das dificuldades levantadas. Por exemplo, a contradição entre os regulamentos administrativos que impõem relações impessoais e uniformes, negando as diferenças, e as dimensões afetivas (tanto no interior da equipe quanto na relação com os pacientes), e as obrigações éticas, de ordem médica, que insistiam na dedicação e no envolvimento pessoal. Ou ainda, nas interdições, regularmente transgredidas, relativas às relações homem-mulher. Ou a ficção de uma "equipe" solidária, desmentida pelas diferenças e privilégios hierárquicos, pelas diferentes condições de trabalho, pelas diferentes pressões ou modalidades de remuneração. De maneira geral, exprimiu-se o desejo de que as regras fossem enunciadas mais claramente ("seria preciso dizer a lei").

No decorrer dessa análise, as mudanças nas atitudes e nos comportamentos, bem como as decisões que modificavam a situação se traduziam por novos acontecimentos, gerando novas análises. Isso durou até ficar estabelecido, pela equipe, que "a elaboração tinha sido suficiente" e que a intervenção terminaria ali.

Esse exemplo mostra bem que, conforme os problemas desvelados pelo acontecimento são citados e discutidos, permitindo que suas diversas facetas sejam exploradas, mudanças podem acontecer na consciência e nas condutas dos indivíduos.

 

Conflitos de interpretações

Esse trabalho clínico supõe que haja pelo menos um consenso inicial para que os sujeitos se impliquem em discutir seus problemas, ainda que o acontecimento seja objeto de tensões e de contradições entre pessoas ou grupos, de acordo com suas respectivas posições (ator, vítima ou simples observador não diretamente envolvido). Se esse consenso não existir ou for difícil de construir, o trabalho de elaboração e trocas dará lugar a um conflito de interpretação, portanto a novos conflitos, muitas vezes irredutíveis, afastando qualquer perspectiva de mudança.

A história das sociedades e das organizações está cheia de exemplos que, longe de gerar um processo de análise que favoreça uma evolução no entendimento dos problemas e na disponibilidade para as trocas, o acontecimento e sua interpretação se tornam pomos da discórdia, muito difíceis de superar, porque colocam em jogo identidades monolíticas, profundamente ancoradas na história de cada uma das partes, ambas negando a legitimidade da interpretação adversária.

Assim é, por exemplo, o conflito entre Israel e Palestina, em grande parte baseado em interpretações contraditórias do acontecimento inicial, que foi o voto da ONU reconhecendo a legitimidade da criação do Estado de Israel no território palestino, seguida da retirada forçada do povo palestino do território em que estava instalado.

Para os israelenses, esse acontecimento é celebrado como uma grande vitória, uma justa compensação pelo genocídio e pelas perseguições sofridas pelos judeus, sobretudo durante a última Guerra Mundial, como o advento de uma nova era, tão esperada por muitos, de sua história. Finalmente, a possibilidade de se desenvolver de maneira autônoma no seio de um Estado independente, que eles pretendiam ser exemplar, nas terras de onde haviam sido expulsos, em séculos anteriores.

Contrariamente, para os palestinos, esse acontecimento é vivido como uma "catástrofe", uma injustiça sem precedentes, que os forçou a abandonar o território que lhes pertencia há séculos, obrigando-os ao êxodo, a perder seus meios de subsistência e a se estabelecerem, sem pátria e sem teto, em campos de refugiados ou então a se dispersarem em outras nações.

Regozijo e alegria de um lado, desespero de outro. Do confronto entre essas duas narrativas contraditórias que se excluem mutuamente, só podia nascer a tragédia. Ainda mais que, com o tempo, elas serviram de suporte para as identidades compactas, seguras de si próprias e de seu bom direito, construídas a partir da rejeição da outra. Ainda mais que, do conflito de interpretações, passou-se ao conflito armado.

Seriam necessárias coragem e muita determinação para romper esse ciclo, para substituir o confronto pelo diálogo. No entanto, alguns homens tentaram fazê-lo. Desse ponto de vista, a experiência original feita por dois pesquisadores, o israelense Dan-Bar-On e o palestino Adman Musallan, por meio do PRIME (Peace Research Institute in the Middle East), é particularmente significativa, pois está diretamente focada nas interpretações divergentes da história recente de suas respectivas comunidades (Bar-On & Musallan, 2003).

Esses dois pesquisadores redigiram um manual de história, destinados a alunos das duas comunidades, destacando a maneira pela qual cada uma delas relata e interpreta determinados momentos-chave de sua história comum: a declaração de Balfour, de 1917; a Guerra de Independência; a Nakba ou a Catástrofe (1948); a Guerra dos Seis Dias (1967) e a Intifada (1987).

Sob a coordenação desses dois pesquisadores, foram reunidos, em intervalos regulares, durante vários meses, professores do ensino médio dos dois lados da fronteira (apesar dos problemas nas fronteiras) para redigir esse manual, relatando aqueles acontecimentos, com base em suas respectivas interpretações.

A originalidade do projeto está no fato de que não era pedido aos professores que suprimissem suas divergências, a fim de chegar à redação de uma narrativa única e consensual. No contexto atual, dominado pela violência do conflito entre as duas comunidades e levando-se em conta a diferença que separa as experiências vividas por cada uma delas, no passado e no presente, tal acordo seria impossível. A menos que cada parte aceitasse renunciar a suas convicções e trair sua comunidade.

Os professores eram simplesmente convidados a redigir um manual em que as duas versões dos acontecimentos seriam apresentadas paralelamente, em duas colunas distintas, de maneira que elas pudessem ser facilmente comparadas. Para que tal manual pudesse ser redigido e assinado em comum, primeiro era necessário fazer com que os professores palestinos e israelenses expusessem suas versões respectivas e escutassem uns aos outros. Em outras palavras, na falta de um acordo, eles deveriam, pelo menos, aceitar a versão do outro e reconhecer sua legitimidade. Que renunciassem, portanto, à ideia de que sua interpretação era a única verdadeira, que reconhecessem que ela só representava uma parte da verdade.

Imaginemos, agora, o enorme esforço que teve de ser feito por todos para aceitar coassinar uma obra com versões distintas de uma história, versões das quais eles discordavam profundamente. E podemos imaginar também o grande passo que esse manual obrigará os alunos a dar, tanto os israelenses quanto os palestinos, contrariando as convicções de seus pais e amigos.

Aceitar reconhecer que a opinião do outro tem tanto valor quanto a sua própria, estar de acordo sobre um evidente desacordo, isso significa, como dizia o psicólogo americano Henry James, saber que o saber não se possui e, portanto, abrir caminho para a desobediência. Mas também significa, como testemunha o projeto da "História do outro", abrir caminho para um trabalho de elaboração que permita, talvez, ultrapassar o abismo que nos separa dele.

 

Enigma do acontecimento, enigma da vida

Todo acontecimento tem sua especificidade própria. Ele pode ser fonte de júbilo ou de infelicidade, de prazer ou de sofrimento, ou os dois ao mesmo tempo, isso depende do quando e do para quem. Há acontecimentos menores que atravessam a vida pessoal e permanecem sem consequências. Há outros que têm impacto sobre o conjunto de uma sociedade e têm efeitos sobre o seu devir. Considerando, entretanto, que, além dessas diferenças, todos os acontecimentos têm traços em comum, optamos por analisá-los em sua generalidade, como um fenômeno universal.

Todo acontecimento é, antes de tudo, alguma coisa que se passa externamente a nós, na realidade objetiva, mas que só tem alguma significação a partir do momento em que ele toca nossa subjetividade, produzindo uma emoção e algumas interrogações. É aí, então, que ele pode anunciar um futuro, um ponto de partida para mudanças, tanto em nossas maneiras de pensar quanto na realidade social.

Enquanto a trama de suas significações é desfeita, deixando revelar suas raízes escondidas em um passado forcluido ou censurado; enquanto o choque emocional e o efeito de sideração produzido por seu aparecimento súbito e imprevisto se prolongam num trabalho de pensamento, e aí a palavra é liberada, o enigma que o acontecimento representa perde sua opacidade e torna-se mais lisível. Ante a necessidade de reconstruir algum sentido, a solidão experimentada pelo homem confrontado à incompreensibilidade se dissolve progressivamente em novos laços que ele estabelece com seus semelhantes.

No entanto, o enigma do acontecimento, assim como o enigma da vida, jamais é inteiramente decifrado. Nenhuma explicação racional será capaz de explicar por que tal ato, aparentemente insensato, ocorreu em tal momento, ou por que tal encontro provocou em nós um verdadeiro abalo de nossos sentidos, por que tal nova ideia apareceu, por que aquela revolta tanto tempo contida de repente irrompeu, por que uma civilização nasce e depois desaparece... Assim, sempre restará uma parte daquilo que é inexplicável, que não deixa nenhum sinal. Mas uma vida sem surpresa é uma existência vazia e morna. Isso também, uma sociedade na qual tudo ocorre sem imprevistos, é uma sociedade morta, sem história. Cada acontecimento nos impõe a obrigação de questionar as certezas que julgávamos definitivas, ele nos obriga a um esforço de pensamento, no sentido de revificar nossas ligações com os outros ou de sair de nosso isolamento.

Estar atentos aos acontecimentos, mesmo aqueles menores, é, pois, avivar nossa consciência de existir em uma inevitável precariedade, lembrando-nos, como diz Valéry (1931), de que tanto os homens quanto as civilizações são mortais e, por isso mesmo, são impregnados de vida.

 

 

Referências

Arendt, H. (1989). Penser l'événement. Paris: Belin.         [ Links ]

Badiou, A. (1988). L'être et l'événement. Paris: Seuil.         [ Links ]

Badiou, A. (avec Fabien Tarby) (2010). La philosophie et l'événement. Paris: Germina.         [ Links ]

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*Psicossociólogo, diplomado pelas universidades de Chicago e de Paris, cofundador da ARIP (Association pour la Recherche et Intervention Psychosociologique), presidente de honra do CIRFIP (Centre International de Recherche, Formation et Intervention Psychosociologiques), membro do comitê de redação da Nouvelle Revue de Psychosociologie (França).
1 Despercebido, em inglês "overlooked", ou seja, não só visto do alto, por cima, mas também, em consequência disso, esquecido, despercebido – ver a análise de Jean Michel Rey (1979), em Des mots à l'oeuvre (Paris: Auber-Montaigne).
2 Do latim, ex-sistere, sair de, emergir, nascer.
3 Baudelaire, A une passante (Les fleurs du Mal).
4 Denúncia feita pela filósofa Marie France Hirigoyen.

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