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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.3 Belo Horizonte Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

Ponderações sobre o tempo em psicanálise e suas relações com a atualidade

 

Considerations about time in psychoanalysis and its relationship with the present

 

Ponderaciones sobre el tiempo en psicoanalisis y su relación con la actualidad

 

 

Marcia Müller Garcez*; Ruth Helena Pinto Cohen**

 

 


RESUMO

Esta exposição trata de como a questão da temporalidade se apresenta no contemporâneo e como o sujeito responde a isso na singularidade de seu tempo. Para tal, abordaremos os efeitos sociais do discurso capitalista e como o tempo se constitui na clínica psicanalítica e no sujeito sob uma forma alienante ou não. Busca-se encaminhar, na constituição do sujeito, o que se processa como temporalidade lógica, tendo como suporte a teoria lacaniana sobre o tema. Supõe-se que o acesso ao consumo faz com que a relação de objeto, na atualidade, seja uma saída para o sofrimento que advém da falta, castração e da ideia de finitude. As diferenças que, por vezes, encontramos na psicose fornecem uma oposição à massificação da contemporaneidade, o que indica que o discurso capitalista seria uma solução para alguns, mas não para aqueles fora do laço social.

Palavras-chave: Psicanálise, alienação, discurso capitalista, tempo lógico.


ABSTRACT

The present article is about how the issue of temporality in contemporary is presented as how the subject responds to the uniqueness of his/her time. We will discuss the social effects of capitalist discourse and how time constitutes itself in the psychoanalitic clinic and within the subject as form of alienation or not. The aim, supported by Lacan's theory on the subject, is routing in the constitution of the subject, which renders as temporal logic. It is assumed that access to consumption makes the object relationship, in the present, is a way of releasing suffering, which arises from want, castration and the idea of finiteness. The differences, which are sometimes found in psychosis, provide an opposition to the massification of contemporary times, which indicates that the capitalist discourse would be a solution for some, but not for those outside the social bond.

Keywords: Psychoanalysis, alienation, capitalist discourse, time logic.


RESUMEN

La exposición siguiente trata sobre la cuestión de cómo la temporalidad se muestra en lo contemporáneo y como el inpiduo responde a eso en la singularidad de su tiempo. Para esto, abordamos los efectos sociales del discurso capitalista y cómo el tiempo se constituye en la clínica psicoanalítica y en el inpiduo bajo una forma alienante o no. La búsqueda es la dirección, en la constitución del sujeto, lo que ocurre como la temporalidad lógica teniendo como su apoyo la teoría lacaniana sobre el tema. Se supone que el acceso al consumo hace que la relación de objeto, en las noticias, sea una salida para el dolor que proviene de la falta, castración y la finitud. Las diferencias que encontramos de vez em cuando en las psicosis nos ofrecem una oposición a la masificación de la contemporaneidad, al mismo tiempo en que nos apunta en ese discurso lo que sería una solución.

Palabras clave: Psicoanálisis, alienación, discurso capitalista, tiempo lógico.


 

 

Será que podemos falar em ponderar sobre o tempo? Ponderar implica deter-se, pesar, ter em atenção. Essa palavra parece estar em desuso no século XXI, em que o ideal de vida bem-sucedida requer uma ideologia que associa aceleração, eficiência e consumo ilimitado. Todos os âmbitos sociais são afetados por essa aceleração: na alimentação, temos as "fastfoods"; na educação, temos o excesso de informações em busca de melhores resultados; no mercado de trabalho, requerem-se pessoas mais ágeis; e, na produção para o consumo, não poderia ser diferente. Os produtos são cada vez mais descartáveis, substituíveis, e as ofertas, inacabáveis. Estamos na cultura do "time is money", e isso pode significar valorizar ainda mais o tempo, transformando-o em dinheiro, representante do discurso capitalista. Se, por um lado, parecemos estar evoluindo, avançando tecnologicamente, por outro, estamos padecendo com essa velocidade. Os sintomas e ansiedades mostram, na contemporaneidade, esses efeitos na clínica psicanalítica. Para aproximar o que pensamos sobre esse tema, encontramos ressonância nas ideias de Gilles Lipovetsky (2004), que nomeia "hipermoderna" uma "modernidade" exposta ao superlativo, pois difere de seus antigos pressupostos, os três axiomas: mercado, eficiência técnica e inpíduo. Segundo o autor, o que era ditado por valores e modelos definidos ainda pela tradição e ideologias se transmutou em "uma segunda modernidade desregulamentadora e globalizada" (p. 54). Ele ressalta os paradoxos e as consequências desse funcionamento:

    Delineiam-se duas tendências contraditórias. De um lado, os inpíduos, mais do que nunca, cuidam do corpo, são fanáticos por higiene e saúde, obedecem às determinações médicas e sanitárias. De outro lado, proliferam as patologias inpiduais, o consumo anômico, a anarquia comportamental (Lipovetsky, 2004, p. 55).

O autor, à luz do prefixo hiper, indica-nos referências ao contemporâneo, uma vez que se apresenta, a nosso ver, por meio de uma exacerbação, intensificação da cultura que podemos chamar de cultura do excesso, "do mais rápido e do sempre mais" (p. 57). O que podemos, afinal, ponderar sobre isso? Como pensar o tempo do sujeito em relação a essa aceleração? Com esta reflexão, pretendemos trazer para essa temática as contribuições da psicanálise e, sobretudo, da clínica.

 

O inconsciente atemporal freudiano

Freud, desde os primórdios de suas descobertas sobre o inconsciente, possibilitou-nos pensar a atemporalidade no sujeito, quando afirma ser esta uma das características do inconsciente. Em sua publicação de 1915, sobre O Inconsciente, ele reúne uma série de características desse sistema, com o intuito de circunscrever sua topologia e funcionamento. Entre essas características, encontramos a atemporalidade.

    Os processos do sistema Ics são atemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs 1 (Freud, 1975 [1915], p. 214).

Essa afirmação freudiana se mantém como uma marca na psicanálise. Embora Freud não tenha se aprofundado especificamente nessa definição, encontramos esboços dessa ideia diluídos em seus textos, casos e pensamentos.

Fazendo uso da associação livre como técnica, uma vez que já havia abandonado o método hipnótico, Freud (1975 [1914]) descreve, em suas "Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise: recordar, repetir e elaborar", que, na hipnose, a questão de recordar se fazia simplificada. "O paciente colocava-se de volta numa situação anterior, que parecia nunca confundir com a atual, e fornecia um relato dos processos mentais a ela pertencentes [...]" (p. 194). Sendo assim, na hipnose, ainda encontrávamos certa tendência em separar o passado do presente, fazendo com que a solução dos sintomas se desse com base na recordação e na transformação de conteúdos inconscientes em conscientes. Com a associação livre, em que não mais se hipnotizavam os pacientes e sim se dava lugar à palavra, podemos pensar na atemporalidade marcada por Freud: em um só tempo, o paciente expressa algo da sua singularidade.

    Sob a nova técnica, muito pouco, e, com frequência, nada resta deste deliciosamente calmo curso de acontecimentos. Há certos casos que se comportam como aqueles sob a técnica hipnótica até certo ponto e só mais tarde deixam de fazê-lo, mas outros se conduzem diferentemente desde o início. Se nos limitarmos a este segundo tipo, a fim de salientar a diferença, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo (Freud 1975 [1914], p. 196).

Outro conceito psicanalítico, presente no mesmo texto, que nos remete à relação ao tempo é o de transferência. Freud (1975 [1914]) enfatiza o atuar do acting out e o repetir quando identifica, na transferência que o paciente estabelece com o analista, a atualização de sentimentos ou conteúdos de seu passado. Para ele, "[...] o instrumento principal para reprimir a compulsão do paciente à repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência" (p. 201). A transferência já designa um efeito temporal, uma vez que atualiza, na sessão e no encontro com o analista, algo da verdade do sujeito. Segundo Brodsky (2004), ela é necessária e anterior mesmo à entrada em análise.

    É interessante ver como se situa a transferência: como condição prévia à entrada em análise, que só é obtida se houver uma transferência com a psicanálise, e depois com alguém, pode ser qualquer um, com a condição de que esteja presente (p. 73).

Em 1916, Freud nos presenteia com um texto que foi convidado a preparar para um volume comemorativo, "O país de Goethe". O texto foi intitulado "Sobre a transitoriedade" e traz contribuições valorosas para esse tema, uma vez que aborda o tempo assim como a finitude das coisas. Nesse texto, Freud questiona se as coisas perderiam o valor se fossem propensas a acabar e constata que, pelo contrário, "O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição" (Freud, 1975 [1916], p. 345).

Porém Freud traz, na mesma elaboração, o fato de, por vezes, não conseguirmos usufruir a beleza ou os valores das coisas pelo luto que nos causa ao pensar que elas são acabáveis. Ele traz como exemplo a ideia de uma flor não deixar de ser bela por durar apenas uma noite. Muitas pessoas podem optar por não gostar de flores, por estas serem rapidamente perecíveis, não podendo contemplar sua beleza. Em outros casos, a adoração pode existir, ainda mais intensa, por saber que vão terminar. Suas ideias demonstram que as saídas para enfrentar a finitude e, consequentemente, a castração é da ordem da singularidade. Não foi distante de Freud que Lacan trouxe a problemática do tempo para seu ensino. A importância de diferenciar o tempo cronológico do lógico, próprio aos mecanismos inconscientes, tornou-se evidente.

Intensificando a importância dessa questão na sessão analítica, Lacan sublinha o "Nachträglich" de Freud, ou seja, o só depois, para a interpretação. Para o tempo de pulsação do inconsciente, encontramos uma abertura, pela qual vemos os chistes, sonhos, atos falhos ou escapatórias que evidenciam um a posteriori que necessita de um tempo de compreensão. Essa pulsação que implica uma abertura e um fechamento com modalidades temporais próprias desembocará nos movimentos de alienação e separação que são operações fundamentais para a compreensão de constituição do sujeito em Lacan, que veremos mais adiante.

 

O tempo lógico de Lacan

Lacan (1998a) traz, com base em um problema de lógica, uma reflexão sobre o tempo, em que este apresenta três instâncias constitutivas em um processo de sofisma. Nesse sofisma dos três prisioneiros, Lacan introduz a função da pressa que ele transporta para a sessão analítica.

Um diretor de uma prisão escolhe três prisioneiros e lhes diz que o vencedor de um jogo de apinhação poderá ganhar a liberdade. Explica que há cinco discos: três brancos e dois pretos. Depois de colado um disco nas costas de cada um dos três prisioneiros, eles deverão descobrir qual disco corresponde ao seu, e o primeiro a sair da cela com a resposta será o vencedor. O diretor então, sem que eles saibam, cola um disco branco em cada um. Depois de um tempo, saem os três juntos, pois a resposta do enigma dependerá do tempo de raciocínio de cada um, mas hipoteticamente os três podem sair ao mesmo tempo, pois ambos têm condições de fazê-lo. Mas, como se trata de um raciocínio lógico, digamos que quem sai primeiro é o prisioneiro (A). Ele se explica: penso que, se eu (A) fosse preto, transpondo-me para o lugar dos outros (B) e (C), ao me ver preto e supor que também fosse preto, evidenciaria para o terceiro que ele seria branco, já que só existem dois discos pretos. Como ninguém saiu com essa evidência, deduzo que não sou preto, sou branco. Trata-se de um sujeito de pura lógica. O que determina a conclusão de (A) é o tempo de parada de (B) e (C).

A modulação desse tempo consiste em três momentos da evidência: o instante de olhar, o tempo para compreender e o momento de concluir.

O instante de olhar

A primeira evidência do raciocínio é o momento de fulguração em que o tempo é igual a zero. Essa combinação corresponde a um sujeito impessoal, estando diante de dois pretos, sabe-se que é branco. Aqui, ainda não há um raciocínio ou subjetivação, apenas a constatação do que se pode ver.

O tempo de compreender

Tempo de formulação de uma hipótese e de meditação ao colocar-se no lugar dos outros e raciocinar. Se eu fosse preto, os outros se reconheceriam como brancos. Esse tempo é incomensurável. Sobre isso, Lacan acrescenta:

    Mas, desse tempo assim objetivado em seu sentido, como medir o limite? O tempo de compreender pode reduzir-se ao instante do olhar, mas esse olhar, em seu instante, pode incluir todo tempo necessário para compreender. Assim, a objetividade desse tempo vacila com seu limite (Lacan, 1998a, p. 205).

 

O momento de concluir

Nesse terceiro tempo, encontramos a função da pressa, já que é preciso concluir em certa urgência, antes que os outros o ultrapassem. É como se a resposta já chegasse com certo atraso. Esse tempo é o prosseguimento do tempo de compreender e figura uma certeza antecipada, pois só é possível se verificar nela mesma. Como afirma Erik Porge (1994, p. 84), "A certeza está ligada a uma lógica de ação; mais ainda, ela é antecipada por essa ação, ato de concluir". Nesse caso, evidenciamos uma pressa no advento de uma verdade, diferentemente da pressa contida na aceleração que ressaltamos no movimento da cultura em relação ao consumo.

 

Tempo na clínica

Lacan (1998a) trouxe esse raciocínio lógico para a sessão analítica, que passou a não mais se submeter ao tempo cronológico, fato que causou muita polêmica à psicanálise regulamentada pela IPA (International Psychoanalytical Association). O tempo nas sessões psicanalíticas passou a não ser mais pautado no fato de marcar ou não o cronômetro. É preciso refletir sobre a função que ele passa a ter se o isolarmos, para que possamos articulá-lo ao saber elaborado em uma análise.

As sessões psicanalíticas em tempo não determinado se encontram em um plano que não é o da burocracia e sim o da lógica do inconsciente. A temporalidade não pode ser externa à sessão analítica, em que o analista fica submetido a ela e o analisante recebe garantias. Nesse contexto, o ato analítico não é entendido como uma ação, mas uma consequência da associação livre do paciente, que produz na hiância de seus enunciados, enunciações na contingência do encontro com um analista.

Em um seminário denominado "A erótica do tempo", Jacques-Alain Miller (2000) propõe pensarmos o tempo em dois vetores (T1 e T2), sendo o primeiro o que progride e o segundo o que retroage. Essa reversão temporal precipita o presente no passado, e a experiência é atualizada na presença do analista, marcando uma produção de saber. Segundo ele, "[...] O analista se dedica a encarnar na atualidade o instante do passado. É por isso que não se trata simplesmente de saber e sim de sujeito suposto saber" (Miller, 2000, p. 52).

Em um início de análise, o tempo está regido por um saber suposto ao analista, suposto já estar aí, pelo qual o analisante aguarda sob a forma de interpretação. Assim, a partir de escansões e não respostas, a interpretação se revela não ser uma tradução prevista e regular de enunciados, mas um acontecimento que contém uma modalidade temporal própria, de surpresa. A posição do analista consistirá justamente em colocar em suspenso um saber prévio, evidenciando a especificidade própria ao ato analítico.

    Mas que é um ato para a psicanálise? O ato falho pode nos dar uma pista, sendo este um ato em que o desejo inconsciente vai mais longe que as intenções do sujeito. O ato é falho porque o sujeito se intromete. É somente numa retomada significante que o ato falho tem valor de ato, pois o verdadeiro ato recupera a dimensão do sujeito numa temporalidade especial, no só-depois (Vicente, 2004).

Mas e na singularidade do sujeito? Como pensar o tempo para cada um? Tais ponderações, tratadas até aqui, indicam como o tempo se articula na psicanálise para que possamos indagar o sujeito da atualidade e suas relações com o discurso vigente. Pensar como os sujeitos vêm respondendo ao "hiper" indicado por Lipovetsky (2004), faz-se necessário e, para tal, apoiamo-nos na teoria psicanalítica, levando em consideração como o sujeito se constitui e como o tempo participa dessa dialética.

 

Tempo no sujeito

Lacan (1998b) em "O Seminário", livro 11, recorre às operações de alienação e separação para teorizar sobre a constituição do sujeito. Ele opõe dois campos: o do sujeito e do Outro, indicando uma circularidade entre eles. O sujeito emerge entre dois significantes (S1-S2). Com isso, indica que é em uma cadeia simbólica, a qual contempla uma temporalidade, que o sujeito advém como um efeito da articulação significante. Lacan (1999), em "As formações do inconsciente", fala da pisão, ou "spaltung", do sujeito, escrita pela primeira vez como barrado (). Nesse caso, a barra determina a ação do significante incidindo sobre o sujeito.

A sexualidade, por sua vez, se instaura no campo do sujeito pela falta e se faz a partir do drama colocado alhures. Duas faltas se recobrem: uma na qual gira a dialética da constituição do sujeito, que necessita dos significantes que estão no campo do Outro; e a outra que a retoma, sendo anterior, em um movimento de retroação temporal. Sobre isso, Lacan (1998b) esclarece:

    A falta real é o que o vivo perde de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. Essa falta é real, porque ela se reporta a algo de real que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte inpidual (p. 195).

A partir do advento do sujeito em relação a sua dependência significante ao lugar do Outro, Lacan (1998b) traz as operações de alienação e separação, sobre as quais tentaremos pensar em uma temporalidade lógica. Sobre a alienação descreve:

    O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por consequência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se a gente pretende guardar uma dessas partes, a outra desaparecendo em cada caso (Lacan, 1998b, p. 200).

Como exemplo, Lacan traz a metáfora "a bolsa ou a vida!". Se escolhermos a bolsa, teremos nem um, nem outro. Em relação à separação, é uma segunda operação, tão essencial quanto à primeira, que põe fim a circularidade da relação do sujeito ao Outro. Encontramos aí a temporalidade que nos interessa, a partir das duas faltas que se recobrem. A falta encontrada pelo sujeito no Outro (nos intervalos de seu discurso) o remete à própria falta primeira, a real, antecedente de seu próprio desaparecimento. "É uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta suscitada pelo tempo seguinte" (Lacan, 1998b, p. 203).

Assim, podemos dizer que essa relação do sujeito com o Outro, contemplando as operações de alienação e separação, consiste em uma não reciprocidade e a uma torção no retorno que apontam para um tempo não exatamente cronológico e sim em uma funcionalidade lógica. A separação é uma operação que não anula a alienação, que é constitutiva, mas imprime uma escolha do sujeito e podemos pensá-la como uma alternativa para fazer barreira ao que é imposto pelo Outro da cultura ou social. Aqui, trata-se de pensar a separação, privilegiando nessa abordagem, aquilo que pode apontar, na singularidade dos sujeitos, uma forma de enfrentar os excessos, indicados anteriormente como paradigmas da atualidade.

Da mesma maneira como apontamos a temporalidade na alienação e separação, podemos pensar inversamente se essas operações não poderiam se aplicar ao tempo lógico e cronológico. Esses são necessários ao sujeito, e cada um poderá ter a função de separador nas situações em que se cristaliza uma das formas de temporalidade. Se um dos tempos prevalecer, em detrimento do outro, poderíamos ter uma alienação, seja ao tempo cronológico ou ao tempo lógico. Como exemplo do tempo que está sempre defasado em relação ao controle e à marcação cronométrica, o coelho de "Alice no país das maravilhas", ao retirar apressado o relógio do bolso, diz: "Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Vou chegar atrasado!" (Carrol, 2010, p. 11). Esse personagem faz Alice correr atrás de um tempo real, impossível de alcançar, e demonstra que "Só se transpõe uma porta se for de seu tamanho, aprendendo com o coelho apressado efetivamente a medida da absoluta alteridade da preocupação do passante" (Lacan, 2004, p. 8).

Com isso, queremos dizer que, mesmo quando se trata do tempo cronológico o sujeito está implicado, seja sob forma de alienação ou separação. O modus operandi de cada época marca a produção de um sujeito fruto de seu tempo. Não pretendemos fazer uma incursão sobre as modalidades temporais e suas consequências para a vida dos homens, sejam elas vistas em seus aspectos históricos ou formais. O que nos interessa é apenas apontarmos para o uso que o sujeito faz do tempo e indicar uma nova cronologia da urgência, na contemporaneidade, que afeta a clínica psicanalítica. Interessa-nos verificar como a lógica temporal subjetiva, em algumas situações, pode subverter o controle e o cumprimento de exigências do tempo instantâneo que visa a eliminar distâncias. Esse fato pode ser mais visível nas psicoses.

 

Quando a psicose faz seu contratempo

Na clínica das psicoses, os sujeitos apresentam uma especificidade de funcionamento do laço social e, consequentemente, do uso do tempo. Alguns vivem alienados ao seu próprio tempo e mostram dificuldades em corresponder à cronologia do Outro da cultura. Outras vezes, pelo contrário, a marcação do tempo é precisa e nada pode sair desse rigor, pois a submissão ao tempo é radical, já que alguns sujeitos estão tão alienados ao tempo do Outro que se colocam como objetos a seu serviço. Em ambos os casos, a psicose nos oferece, pela dificuldade na operação de separação, um contratempo ao laço social. Essa clínica, portanto, auxilia-nos sobre como a questão temporal se coloca, uma vez que aponta para outro registro que não o da neurose e nos permite, assim, localizar os alguns parâmetros que determinam o discurso da contemporaneidade. Esse discurso pode produzir respostas, construídas socialmente, com base em ficções, com o propósito de os sujeitos neuróticos se defenderem justamente daquilo que, nas psicoses, aparece como impotência: proteger-se da invasão incondicional do gozo do Outro. Paradoxalmente, com essa forma de funcionamento, esses sujeitos podem, também, criar barreiras à massificação imposta pelo discurso capitalista, quando não respondem ao apelo do consumo e aos parâmetros de beleza impostos pela moda, que são construídos socialmente. Muitas vezes, o sujeito psicótico fica à margem dos padrões estabelecidos e sem os recursos dessa construção social, pois sua relação com o tempo obedece a uma lógica própria, que indica alienação radical ao Outro, não regulado pelo gozo fálico, mas pelo gozo do Outro, devastador.

O analista, na clínica das psicoses, não trabalha pela via da interpretação (que implica um tempo que progride e outro que retroage), ele busca, na singularidade de cada caso, meios para acolher e secretariar o sujeito alienado no tempo do Outro. Talvez, com base nessa especificidade, seja possível operar algum tipo de separação e construir com o paciente, em seu tempo, uma forma na qual seja possível funcionar com menos sofrimento, a partir de certa estabilização e economia de gozo. É pelo recurso da invenção que se pode circunscrever e criar barreiras para a invasão promovida pelo gozo do Outro. Aqui utilizamos a psicose na tentativa de apontar que a psicanálise não recua ao que se impõe fora dos discursos vigentes, na pesquisa e intervenção sobre o que toca o singular da alma humana.

Miller (2003), em "A invenção psicótica", faz uma passagem pelos tipos clínicos e aponta em seu texto o que seria a invenção nesses casos, sublinhando que há uma falta de recursos nos discursos estabelecidos. "Para o paranoico, não se trata do problema da relação com o órgão ou ao corpo que não está preso a um discurso estabelecido, mas do problema da relação com o Outro" (p. 11). Ele é então levado a inventar uma relação específica que o proteja do Outro. No dito esquizofrênico, Miller coloca que

    [...] o problema do uso dos órgãos é especialmente agudo e que ele deve ter recursos sem o socorro de discursos estabelecidos, ou seja, ele é obrigado a inventar um discurso, é obrigado a inventar seus socorros, seus recursos, para poder usar seu corpo e seus órgãos (p. 11).

Esses discursos estabelecidos das duas citações de Miller são os que esses sujeitos não dispõem, que podemos hipoteticamente incluir o capitalista. Não podem participar tão facilmente da lógica do laço social. A invenção necessária, nessa clínica, remete-nos aos efeitos da psicanálise e do ato analítico, independente da estrutura, uma vez que é na singularidade e no funcionamento lógico do sujeito que estará o tratamento ao gozo. O que se apresenta nos movimentos de massificação são efeitos da singularidade do sujeito que se identificam e se produzem no coletivo, fazendo uso dos aparatos simbólicos, precários na psicose. A partir desse suporte, podemos nos desprender do diagnóstico para indicar que, independente da estrutura, são as modalidades temporais e seus excessos que queremos enfatizar. O tempo na psicanálise, entendido para além das estruturas (neurose, psicose ou perversão) faz uma marca na sociedade, descrita anteriormente como aquela da corrida contra o tempo, do "viver o hoje antes que o tempo acabe".

 

Considerações finais: o discurso capitalista e a pressa para não concluir

Em "O Seminário", livro 17, Lacan introduz os quatro discursos (mestre, histérica, universitário e analista) com base nos quais podemos nos orientar a respeito do laço social, já que este é produzido no e pelo discurso (Lacan, 1992). Mais tarde, ao introduzir o quinto discurso (capitalista), Lacan possibilita pensar a dinâmica capitalista regida pela ética do consumo. Pensar a questão do tempo com base nisso é contextualizá-lo nesse imperativo de gozo irrefreável, em que o sujeito experimenta outra temporalidade da qual tem de se haver.

Miller (2000), ao evocar a história do tempo, percebe certa tendência em foracluir o tempo e que isso "expressa apenas a dependência fundamental da ciência com relação ao sujeito suposto saber, ou seja, que, do ponto de vista do sujeito suposto saber, o tempo não conta" (p. 24). Se o tempo não conta, nessa interpretação, pode-se inferir que a foraclusão leva à aceleração e que apaga os tempos de compreender e concluir, restando apenas o instante do olhar.

Perguntamo-nos que relação o sujeito contemporâneo tem com o tempo, que faz com que existam tentativas e crenças em eternizá-lo, seja pela via da ciência, seja pela via da religião, e como a pressa está inserida nesse contexto. Temos aqui um paradoxo: por um lado, a pressa no acesso aos objetos de consumo; por outro, a necessidade de postergar o encontro com a falta. Com base na oposição pressa x postergação, podemos evidenciar que ambas são tentativas de resposta ao horror da castração e da morte que produzem efeitos contraditórios à lógica temporal. O discurso capitalista pode ser utilizado como defesa neurótica do sujeito ao deparar a falta no Outro, que remete à castração, e a pressae o acesso direto aos objetos de consumo parecem, de forma ilusória, proteger o ser falante dos encontros que são sempre faltosos. Nesse sentido, queremos enfatizar que, no discurso capitalista, a pressa está colocada no movimento de acesso e substituição de objetos produzidos pela ciência e oferecidos diretamente ao sujeito para que nada lhe falte. Diferentemente, na clínica psicanalítica, o momento de concluir, como evidenciamos anteriormente, tem na pressauma função de precipitação específica no advento de uma verdade, mesmo que seja não toda.

No discurso hipermoderno, que acreditamos traduzir a lógica temporal contemporânea, a pressa é justamente para não concluir, para que uma verdade não possa emergir. Por se tratar de uma lógica de discurso afinada com o capitalismo, que visa ao tamponamento da falta, os laços sociais ficam mais limitados e os sintomas inpiduais, como vimos no início desta exposição, proliferam. Entretanto, nesses casos, mesmo com restritas possibilidades de laços, inscrevem-se algumas formas de tratamento possível ao mal-estar contemporâneo. Como vimos na especificidade das psicoses, os sujeitos, não dispondo de recursos que se apoiem no laço social, experimentam a finitude, na radicalidade do tempo do Outro, mas podem criar seus socorros.

No tempo dos excessos, as irrupções do real remetem ao horror de fenômenos que pululam na nossa civilização, produzindo novas defesas. A escuta e o ato analítico não recuam frente a esses desafios, e o tempo de uma análise, ou de uma sessão, também deve incluir essa lógica de funcionamento, ou seja, um manejo temporal. Dessa forma, podemos encontrar possibilidades singulares que não estejam condenadas ao movimento coletivo de defesas que sirvam para todos.

Não pensamos concentrar a solução para os impasses temporais em sua difícil relação com o capitalismo, apenas pela via da psicanálise, pois muitos sujeitos encontram ou inventam saídas usando outros recursos. Traçamos apenas, em ponderações psicanalíticas sobre o tempo, contribuições que advêm dessa reflexão, apoiadas na teoria e na clínica. O sujeito pode criar anteparos ao que lhe parece imposto, valendo-se da operação de separação frente à alienação, operações que se movimentam e trabalham juntas. Com isso, queremos enfatizar que, apenas no uso singular da separação, o sujeito pode responder ao que lhe é imposto socialmente, deixando assim sua marca no coletivo. Nesse trabalho, utilizamos também como exemplo a psicose, com sua especificidade de se situar em outro registro, marcando uma lógica persa do laço social da atualidade e consequentemente do discurso capitalista. Utilizamos essa específica forma de funcionamento do sujeito, marcando que a invenção não é um recurso exclusivo dessa clínica. É preciso fazer surgir algo da singularidade que barre uma identificação universalizante, coletiva e absoluta, e que, ao mesmo tempo, possa indicar o tempo de cada um, que assim não se deixa devorar de forma radical pelo tempo do Outro.

 

Referências

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Texto recebido em dezembro de 2010
aprovado para publicação em maio de 2011

 

 

*Doutoranda do curso de pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ, participante do núcleo de pesquisa Clínica Psicanalítica (Clinp UFRJ), participante do núcleo de pesquisa "Curumim" da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro E-mail:jmarcia.mgarcez@gmail.com.
**Professora doutora adjunta do curso de pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ.