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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.17 no.3 Belo Horizonte Dec. 2011

 

ARTIGOS

 

Crime passional ou homicídio conjugal?

 

Crime of passion or conjugal homicide?

 

¿Crimen pasional o homicidio conyugal?

 

 

Lucienne Martins Borges*

 

 


RESUMO

O homicídio conjugal, também chamado crime passional, requer estudos mais aprofundados – a começar pela sua denominação. Apesar da ausência de dados sistemáticos relativos à sua prevalência no Brasil, supõe-se que a dimensão desse fenômeno seja tão grande neste país quanto noutros. O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão inicial, a partir de uma revisão da literatura, sobre homicídios que ocorrem no âmbito das relações de intimidade e tentar estabelecer um termo que venha a qualificar, de forma adequada, o objeto dessas pesquisas. Diante de sua especificidade, percebeu-se que o termo homicídio conjugal parece delimitar melhor o campo de estudo dos homicídios que ocorrem entre pessoas que estão ou estiveram vinculadas uma à outra, inclusive aqueles nos quais a paixão se apresenta como elemento de compreensão desse fenômeno.

Palavras-chave: Homicídio conjugal, crime passional, violência.


ABSTRACT

Conjugal homicide, also called crime of passion, requires deeper studies in Brazil – beginning with its denomination. Despite the lack of systematic data on its prevalence in Brazil, this phenomenon's dimension is supposed to be as large in Brazil as in other nations. This article's objective is to present initial thoughts, based on literature review about homicides which occur within the sphere of intimate relationships, and attempts to establish an expression that may properly define the object of these studies. Considering its peculiarity, it has been realized that the expression conjugal homicide seems to delimitate more accurately the field of study of homicides between people who have been or who are related to one another, including the cases in which passion presents itself as an element necessary to the understanding of this phenomenon.

Keywords: Spousal homicide, violence, passional crime.


RESUMEN

El homicidio conyugal, tambien llamado crimen pasional, requiere estudios más profundos - empezando por su denominación. A pesar de la ausencia de datos sistemáticos relativos a su prevalencia en Brasil, se supone que la dimensión de ese fenómeno sea tan grande en Brasil como en otros países. El objetivo de este artículo es presentar una reflexión inicial, desde una revisión de la literatura, sobre homicidios que ocurren en el ámbito de las relaciones de intimidad e intentar establecer un término que califique adecuadamente el objeto de esas investigaciones. Considerando su especificidad, se ha percibido que el término homicidio conyugal parece delimitar mejor el campo de estudio de los homicidios que ocurren entre personas que están o han estado vinculadas una a la otra, incluyendo aquellos en los cuales la pasión se presenta como elemento de comprensión del fenómeno.

Palabras clave: Homicidio conyugal, crimen pasional, violencia.


 

Crime passional ou homicídio conjugal?

O homicídio conjugal é uma das categorias da classificação dos homicídios (Bénézech, 1996), representado por um gesto violento, a saber, um ato agressivo que se inscreve no âmbito de uma relação conjugal, independentemente de os parceiros estarem juntos ou separados (Dutton, 2001). Entre os pesquisadores que se interessam por esse tema, observa-se um consenso no que se refere a algumas considerações gerais relacionadas ao homicídio conjugal. Eis algumas delas: 1) presença de violência conjugal no histórico da relação conjugal; 2) impacto da separação; 3) abuso de bebidas alcoólicas; 4) prevalência do gesto homicida na população masculina; 5) impacto dos transtornos psicológicos e do perfil de personalidade (Websdale, 1999, 2010; Bourget, Gagné & Whitehurst, 2010; Frigon & Viau, 2000; Wilson & Daly, 1993). Nos homens, o gesto pode ser entendido como sendo a expressão de um sentimento de possessibilidade ou de rejeição da perda do controle de sua parceira. Além disso, o risco de um eventual homicídio aumenta quando o parceiro desconfia que sua parceira esteja sendo infiel ou quando ela decide terminar a relação. Dutton (2001) postulou que os afetos de abandono, mais do que a separação, têm um papel significativo nos homicídios conjugais cometidos por homens. No que se refere às mulheres, elas tendem a cometer um homicídio conjugal em situação de defesa — quando confrontadas com a violência do parceiro — para proteger a própria vida ou a de seus filhos (Websdale, 1999, 2010; Wilson & Daly, 1993). Assim, as circunstâncias que conduzem ao homicídio conjugal variam segundo o sexo dos agressores (Houel & Laporte, 2009; Houel, Mercader & Sobota, 2003; Frigon & Viau, 2000; Wilson & Daly, 1993).

Apesar de a prevalência dos homicídios entre parceiros ser menor do que a dos outros tipos de homicídios, os dados que se referem aos primeiros não deixam de chamar a atenção (Millaud et al., 2008). Nos Estados Unidos, entre 1976 e 1996, 20 311 homens e 31 260 mulheres foram assassinados pelo(a) parceiro(a) (Websdale, 1999) e aproximadamente 1 200 mulheres foram assassinadas anualmente entre 2000 e 2007 pelo seu parceiro ou ex-parceiro (Campbell, Webster & Glass, 2009). No Canadá, a mulher corre nove vezes mais risco de ser assassinada pelo seu parceiro do que por um estranho (Wilson & Daly, 1993). No Estado do Québec, região francófona do Canadá, entre 1989 e 2000, foram repertoriados 198 homicídios conjugais, sendo 166 (83,8%) perpetrados por homens e 32 (16,2%), por mulheres. Em 1995 e 1996, o homicídio conjugal representou 38% e 35%, respectivamente, do número total dos homicídios cometidos no Estado de Québec (Borges, 2010).

Não existe um levantamento sistemático dos homicídios conjugais cometidos em território brasileiro. Alguns estudos oferecem uma amostra muito parcial do problema. De acordo com o Mapa da Violência 2011 (Waiselfisz, 2011), a taxa anual de homicídios de mulheres no Brasil, entre 1998 e 2008, foi de 4,25 homicídios para cada 100 mil mulheres, o que representa uma média anual de mais ou menos 3 800 homicídios de mulheres. No que se refere aos homicídios conjugais cometidos por homens, Guerra e Lemos (2002) afirmam que, no Brasil, 50% dos homicídios de mulheres são cometidos pelos próprios parceiros. Em um estudo realizado em Porto Alegre sobre homicídios/suicídios, em 81% dos casos, os homens mataram suas (ex-)parceiras e se suicidaram em seguida (Sá & Werlang, 2007). Os autores não trazem informações sobre os homicídios cometidos por mulheres. No que se refere aos homicídios em geral, segundo Crespo (2003), a taxa de homicídios dolosos em Florianópolis (sem especificação da ligação entre a vítima e o agressor) aumentou de forma significativa desde 1998: 27 em 1998, 27 em 1999, 36 em 2000, 64 em 2001 e 89 em 2002 (Crespo, 2003). Em Curitiba, de acordo com Geoprocessamento – Mapa do Crime, 80% dos homicídios estão ligados diretamente ao tráfico de drogas, e outros 10% se referem a brigas familiares ou entre conhecidos (Estado do Paraná, 2008).

Apesar da ausência de dados sistemáticos, pode-se supor que as consequências inpiduais e coletivas de tais gestos são tão importantes no Brasil quanto em outros países estudados. Porém a escassez de dados dificulta a realização de pesquisas sobre esses tipos de homicídios e de medidas preventivas para a redução dos gestos e de suas consequências. O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão inicial sobre os homicídios que ocorrem no âmbito das relações amorosas e tentar estabelecer, com base no retorno teórico apresentado, um termo que venha a apresentar, de forma adequada, o objeto dessas pesquisas.

 

Homicídio conjugal, crime passional ou uxoricídio: Três denominações e suas implicações

O termo "homicídio"; refere-se à violência interpessoal e outros atos dirigidos contra outra pessoa, que não ocorrem em situação de guerra e que provocam a morte (Wilson & Daly, 1993). Na língua francesa, de acordo com Le Petit Robert (Robert, 2000), o vocábulo homicídio é utilizado tanto para definir "a ação de matar um ser humano"; quanto para designar a "pessoa que mata um ser humano";. Em português, o termo indica "morte de uma pessoa praticada por outrem"; (Ferreira, 1986, p. 904). Essas definições, semelhantes nas duas línguas, não estabelecem uma relação específica (afetiva, etc.) entre o inpíduo homicida (a pessoa que comete o homicídio) e a vítima (aquela que morreu); o que está em causa nessa definição é somente o assassinato de um ser humano por outro ser humano.

Para se referir aos tipos de homicídios nos quais as vítimas e os inpíduos homicidas têm um vínculo particular (vínculo sanguíneo, relação afetiva, etc.), muitas definições podem ser encontradas na literatura científica. No caso de um homicídio que ocorre no contexto familiar, os autores se referem a termos como "crime passional";, "homicídio conjugal";, "uxoricídio";, "mariticídio";, "filicídio";, "neonaticídio";, "familicídio";. As quatro primeiras denominações ("crime passional";, "homicídio conjugal";, "uxoricídio";, "mariticídio";) se referem, em geral, ao homicídio de um(a) parceiro(a). Para falar do homicídio de um filho (com menos de 18 anos), cometido por um dos pais biológicos, adotivos ou pelo padrasto ou madrasta, alguns autores utilizam a denominação "filicídio";;1 o "neonaticídio";sendo o termo reservado às vítimas com no máximo 24 horas de vida (Dubé, Léveillée & Marleau, 2003). O "familicídio"; compreende mais do que um homicídio dentro da mesma família, isto é, o homicídio de um parceiro2 e de um filho (ou vários filhos), acompanhado ou não do suicídio do inpíduo que cometeu os homicídios (Wilson, Daly & Daniele, 1995). Outros tipos de homicídios podem igualmente acontecer dentro da família: entre irmãos (fratricídio), um filho que mata o pai (parricídio) ou a mãe (matricídio) (Marleau, Millaud & Auclair, 2001).

A definição de um termo específico para homicídio de um(a) parceiro(a) é a problemática central aqui apresentada. No familicídio, além de um dos filhos, o companheiro também é uma das vítimas. Porém, para que a problemática do homicídio que ocorre entre parceiros seja mais bem compreendida, tratar-se-á, neste artigo, unicamente dos homicídios nos quais a única vítima foi a(o) parceira(o), tendo sido esse homicídio seguido ou não do suicídio do(a) agressor(a). Os familicídios (companheiro e filhos), assim como os filicídios, os fratricídios, os parricídios e os matricídios foram excluídos dos estudos consultados.

A denominação desse tipo de homicídio (crime passional, homicídio conjugal, uxoricídio, homicídio por parceiro íntimo) e suas respectivas definições variam de acordo com o país, as culturas e as disciplinas (Borges, 2010; Weir, 1992). Além disso, observa-se uma evolução na compreensão da problemática, compreensão essa que se inscreve no tempo, de acordo com as mudanças sociais e políticas, com os interesses de pesquisa e as novas metodologias científicas.

Na linguagem popular, para se referir ao homicídio de um parceiro (e mais precisamente de uma parceira), a expressão "crime passional"; é a mais frequentemente utilizada. Essa combinação terminológica (crime e paixão) pode parecer paradoxal com a definição, também popular, da paixão. A paixão é compreendida, em geral, como um impulso amoroso que conduz um ser em direção a outro, sem a presença de intenções malevolentes. Porém, de acordo com a definição do Dicionário Aurélio(1986, p. 1248), a paixão é definida como um "sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão";. A compreensão popular parece ter sido assim formada dessa noção da paixão como potência amorosa, mas igualmente da utilização feita do termo no contexto jurídico. Segundo Houel, Mercader e Sobota (2003), no Direito Antigo, e isto até 1791, o crime passional gozava de um reconhecimento legal. Os inpíduos homicidas podiam ser desculpados de seu crime quando este tivesse sido cometido sob influência da paixão e do amor. Essa denominação desapareceu das referências jurídicas, mas permanece uma referência popular. Essa continuidade da utilização do termo na Europa pode ser explicada, segundo esses autores, pela popularidade crescente dos artigos jornalísticos sobre os crimes passionais a partir do fim do século XIX.

A noção de "crime passional"; supõe que as circunstâncias que envolvem o homicídio são a expressão de uma paixão, de um amor e, pelas mais variadas razões, da impossibilidade da realização e da continuidade desse amor, principalmente do ponto de vista da pessoa que comete o homicídio. Esse termo ("crime passional";) leva a entender que a paixão permanece o indicador principal que levaria à compreensão do gesto homicida e, assim, as outras variáveis passíveis de estar relacionadas com o gesto (violência conjugal, psicopatologia, etc.) perdem seu valor. Ao excluir as outras explicações possíveis (psicológicas, criminais, etc.) e ao reduzir o crime ao contexto da paixão, ele se torna um crime cometido por uma pessoa dita "normal";, mas excedido, ultrapassado pela paixão. Assim, a gravidade do gesto é atenuada, como se todo ser humano, em uma situação similar de exacerbação de uma força passional irresistível e comum a todos, pudesse efetivamente cometer o mesmo tipo de gesto. O termo "crime passional"; não é recente na literatura científica. Lombroso (1991) descreveu o caráter do "criminoso-nato"; e do "criminoso por paixão";; Claude (1932) distinguiu os crimes passionais dos crimes relacionados com as perversões sexuais; De Greeff (1973) determinou dois tipos de crimes passionais: os crimes utilitários e os verdadeiros crimes passionais; Pinatel (1987) e Bénézech (1996) falam do homicídio passional.

Como foi apontado anteriormente, do ponto de vista jurídico, a noção de "passional"; não é mais considerada como motivação ao gesto homicida. Os estudiosos da área são unânimes ao afirmarem que existem outras variáveis implicadas no homicídio de um parceiro – além da paixão; que a problemática revela-se mais complexa do que ela se mostrava no fim do século XIX e durante uma parte considerável do século XX. Porém, alguns autores, principalmente europeus,3 continuam a tratar esse tipo de homicídio pela referência ao "passional"; sem, porém, estudá-los pelo ângulo da paixão. Para alguns autores, como Weir (1992), a referência ao crime passional se faz principalmente nos casos em que o ciúme é considerado como a razão principal do crime. Bénézech (1996) utiliza o termo homicídio passional para os crimes cujo "autor mata, pois é incapaz de suportar a separação ou a ameaça de separação ou abandono por parte da pessoa investida afetivamente"; (p. 170). Para outros, essa distinção não parece ser feita, e o passional permanece sendo a expressão de um transbordamento "amoroso";. Essas diferentes concepções do crime "dito passional"; nos leva a entender que essa definição não faz jus à complexidade da problemática estudada.

Na América do Norte, e mais precisamente nos Estados Unidos, a denominação "uxoricídio"; é frequentemente utilizada na literatura científica para se referir ao homicídio conjugal cometido pelos homens (Millaud et al., 2008; Wilson & Daly, 1993; Weir, 1992). Dubois, Mitterand e Dauzat (2001) definem o "uxoricídio"; como o assassinato da esposa pelo esposo, e o termo é originário do latim uxoricidium (uxor: esposa, mulher casada). Nas línguas francesa e portuguesa, apesar da existência do termo mariticídio (Frigon, 2003), que designa o assassinato do esposo pela esposa, essa noção é pouco usada pelos autores em ciências humanas e sociais. Essa ausência de um termo específico aos homicídios conjugais cometidos pelas mulheres parece se justificar pelo uso inapropriado do termo, quando certos autores (Lescovelli, 1995) utilizam o uxoricídio para se referir tanto aos homicídios conjugais causados pelos homens quanto aqueles cometidos pelas mulheres. Essa ausência de um termo específico pode igualmente explicar-se pelo fato de serem raros os estudos sobre tais homicídios quando cometidos por mulheres.

Entretanto, quer seja o uxoricídio ou o mariticídio, esses termos supõem que o tipo de vínculo entre as pessoas é sempre aquele estabelecido pelo casamento (esposa, esposo). Esses termos não contemplam, por sua vez, toda a realidade observada. Como poderiam ser denominados, então, todos aqueles homicídios cujos protagonistas estavam ligados um ao outro, mas nem sempre por meio do casamento? Qual termo corresponderia melhor aos homicídios cometidos por inpíduos que estão ou estiveram ligados um ao outro por um vínculo afetivo, seja ele estabelecido pelo casamento, pela união estável ou pelo namoro?

Alguns pesquisadores sobre a violência contra mulheres e o risco de homicídios nesse contexto utilizam a denominação "homicídio por parceiro íntimo"; (Teixeira, 2009; Campbell, Webster & Glass, 2009; Kiss, 2009). Outros pesquisadores, principalmente americanos, franceses e canadenses (Frigon, 2003; Grana, 2001; Dutton, 2001; Bourget, Gagné & Whitehurst, 2010; Websdale, 1999, 2010; Bénézech, 1996; Cusson & Boisvert, 1994; Wilson & Daly, 1993), que se interessam pela problemática dos homicídios cometidos por homens ou mulheres nas relações de intimidade, priorizam a denominação "homicídio conjugal";, independentemente do tipo de vínculo legal ou oficial que une as duas partes implicadas e de os protagonistas estarem juntos ou separados. Assim, o homicídio conjugal se mostra como o termo utilizado para designar o homicídio de uma pessoa, quando esse acontece dentro de uma relação de intimidade, durante a relação ou após a separação, independentemente do tipo de vínculo (oficial ou não) estabelecido entre os protagonistas.

Propõe-se aqui, então, que o termo homicídio conjugal é o mais adequado a ser utilizado nos homicídios que ocorrem em uma relação de intimidade. Tendo em vista a importância de se distinguir entre aqueles cometidos por mulheres e por homens, as expressões "homicídio conjugal masculino"; (o homem é o instigador do homicídio) e "homicídio conjugal feminino"; (a mulher é a instigadora do homicídio) serão utilizadas para estabelecer a distinção quanto ao sexo da pessoa que comete o homicídio. A expressão "relação de intimidade"; leva em conta todos os casais heterossexuais que, no momento do homicídio, viviam uma relação amorosa ou estavam separados de seu parceiro, seja no caso do casamento, da união estável, ou do namoro. Segundo Korn (2003), esse tipo de homicídio

    implica habitualmente que uma relação afetiva e sexual existe ou existiu entre as pessoas, que se apreciaram um ao outro e que sentiram um pelo outro, pelo menos em um dado momento da experiência objetiva, atração e sentimentos amorosos e que, depois de uma situação conflituosa de natureza afetiva ou sexual, de ruptura ou de crise conjugal ou de desentendimento crônico, uma delas vai, mais ou menos impulsivamente, matar a outra, independentemente dos prejuízos causados à sua própria pessoa (Korn, 2003, p. 22).4

Neste enunciado, encontra-se a noção de relação conjugal, com elementos afetivos e sexuais, a noção de conflito relacional, de dinâmica relacional, de ruptura e de homicídio, temas principais encontrados em pesquisas sobre tais homicídios.

 

Considerações finais

Com base nas observações aqui expostas, dos dados que indicam um aumento das taxas de homicídios (Crespo, 2008, Estado do Paraná, 2008), da prevalência de homicídios de mulheres cometidos pelos próprios parceiros (Guerra & Lemos, 2002) e do número elevado de homicídios de mulheres (Waiselfisz, 2011), podemos concluir que essa problemática necessita de uma maior investigação no Brasil.

A relativa raridade dos homicídios conjugais, principalmente aqueles cometidos por mulheres (quando sua frequência é comparada àquela dos homicídios em geral), não justifica que perdure um relativo tabu em torno dessa problemática. Vários autores se referem a entraves que tornam difícil a realização de tais estudos: falta de uniformidade dos dados, acesso restrito aos agressores, frequência de homicídios inferior àquela de outros homicídios, etc. No que se refere à revisão de literatura, outra dificuldade encontrada se refere à terminologia utilizada. Quando os autores falam de crimes passionais, de homicídio por parceiro íntimo, de homicídio conjugal, de uxoricídio, estariam eles se referindo à mesma realidade? Como apresentado, o termo crime passional foi privilegiado por vários autores, mas ele parece introduzir um viés no que se refere à compreensão das motivações implicadas no ato. Seriam tais atos inspirados pela paixão? Dar continuidade à utilização desse termo excluiria um grande número de casos, além de supor que a causa do homicídio (ou a variável principal) seria a paixão. O termo homicídio conjugal parece delimitar melhor o campo de estudo dos homicídios que ocorrem entre pessoas que estão ou estiveram vinculadas uma à outra, pelo casamento, união estável ou namoro, inclusive aqueles nos quais a paixão se apresenta como um elemento importante de compreensão de tal fenômeno.

 

Referências

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Texto recebido em julho de 2011
aprovado para publicação em novembro de 2011

 

 

* Pós-doutora em Psicologia (Université Laval, Canadá), doutora em Psicologia (Ph.D., Université du Québec à Trois-Rivières, Canadá), mestra em Estudos Literários (Université du Quebec, Canadá) e mestra em Psicologia (Université Laval, Canadá), graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás, professora adjunta I na Universidade Federal de Santa Catarina.E-mail:lucienne@ cfh.ufsc.br
1 Segundo Marleau, Poulin et Laporte (2001), o termo filícidio foi utilizado pela primeira vez por Resnick em 1969.
2 O masculino é utilizado para designar tanto as mulheres assassinadas pelo companheiro do que os homens assassinados pela companheira.
3 Dentre eles, Houel et al. (2003, 2009) e Bénézech (1996), na França; Korn (2003), na Bélgica; Weir (1992), na Irlanda.
4 Tradução livre.