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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.1 Belo Horizonte Apr. 2012

 

RESENHAS

 

Graña, Roberto B. (2009). Transtornos da identidade de gênero na infância: escritos selecionados. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

Critical review of the book: ender identity disorders in childhood

 

Reseña crítica del libro: Trastornos de la identidad de género en la infancia: escritos seleccionados

 

 

Marília Etienne Arreguy*

 

 

O livro do psicanalista Roberto Graña aborda, com suficiente rigor conceitual e com base em vasta experiência clínica com crianças e adolescentes, os transtornos de identidade de gênero na infância.

Graña apresenta argumentos consistentes ao abordar a questão desde um ponto de vista etiológico, em que situa fatores sistêmicos relacionados à dinâmica familiar, principalmente no que concerne ao vínculo estabelecido entre pai e mãe, e o que essas figuras representam no psiquismo dos filhos. Com base em leitura crítica dos clássicos estudos de Stoller, o autor estabelece alguns parâmetros essenciais ao diagnóstico e tratamento dos transtornos de identidade de gênero, elencando como prioritárias as seguintes apresentações: transexualismo, travestismo (ou transvestismo), fetichismo, escopto-exibicionismo e sadomasoquismo, feminilização e conduta homossexual, que caracteriza como "atipias" ou diferentes formas de organização subjetiva da identidade de gênero. Graña dedica também um capítulo a um caso de masculinização de uma menina, além de detalhar inúmeros casos clínicos apoiados na proposta winnicottiana do desenho compartilhado (squizzle).

Sustenta a tese de que, em geral, esses transtornos (disorders) de identidade de gênero estão relacionados a profundas alterações e conflitos na constituição psíquica da criança a partir da relação com seus pais e, em certa medida, da reprodução de padrões repetitivos (patterns) transgeracionais, considerando de grande importância as figuras das avós e dos avôs na constituição de uma "distorção profunda da matriz transgeracional de gênero da família, operando no nível das identificações primordiais"(p. 15). Graña afirma também que não há nenhum estudo consistente que estabeleça determinantes genéticos para esses "transtornos". O autor recomenda que se deve compreender essa fenomenologia com base nas relações de objeto e identitárias, já que as experiências psíquicas arcaicas marcam fortemente a corporeidade da criança. Graña recorre à ideia de imprinting da etologia, mas salienta que tal abordagem, quando alterada pela ausência ou estereotipia de uma das figuras parentais,1 sempre deverá ser relativizada por uma leitura psicanalítica, a qual depende necessariamente de uma análise retrospectiva pautada pela chave conceitual freudiana do a posteriori (Nachtraglichkeit). Desse modo, Graña põe em cheque qualquer tentativa de predição do futuro da criança com base exclusiva na apresentação da sintomatologia infantil. No entanto, não acredita que esses transtornos não tenham implicações, uma vez que se apresentam aos olhos do terapeuta como fonte de sofrimento para a criança e para a família, devido às representações fantasmáticas onipotentes produzidas na criança e à inadequação de suas atitudes para com a norma social (muito comuns de se apresentarem quando começa a frequentar a escola), principalmente nos casos em que implicam em uma necessidade, vivida pela criança como insuportável, de transformação em relação aos seus genitais, também percebidos como inadequados.

Se, a princípio, o autor parece um tanto desenvolvimentista, por vezes suscitando no leitor a impressão de que seria preconceituoso, já que suas formulações se apresentam aparentemente contrastantes aos estudos de gênero e ao forte movimento de liberação das sexualidades diferenciais, ao longo do texto, Graña critica a sua própria perspectiva inicial na clínica, em que supunha, em consonância com os pais e a sociedade, que os "transtornos de identidade de gênero" pudessem ser corrigidos a partir da experiência transferencial com um analista que viesse a reapresentar, reconfigurar ou a permitir uma reidentificação da criança com o seu sexo biológico. Entretanto é importante notar que aquilo que, a princípio, chama de "desvios" ou "manifestação desviantes" será objeto de um denso autoquestionamento ético e de uma mudança de posição do autor, com base em um procedimento de pesquisa longitudinal com ex-pacientes.

No que se refere aos aspectos psicopatológicos, o autor se recusa a categorizar essas crianças no âmbito estrito da perversão. Em primeiro lugar, pela própria ideia freudiana de que toda sexualidade se apresenta na infância como perverso-polimorfa; em segundo lugar, porque o autor compartilha de uma tradição psicanalítica ampla, referendando-se às escolas inglesa, argentina, francesa e também brasileira, muitas das quais atribuem a possibilidade de alteração das organizações subjetivas ao longo da infância e da adolescência; em terceiro lugar, pelo teor estigmatizante que um diagnóstico estrutural pode vir a ter. Nesse mesmo sentido, acha importante evitar fornecer diagnósticos fechados para os pais e para a escola, pois, por mais que isso possa, a princípio, fornecer um alívio para a família, em geral, não contribui para o prognóstico nem para a evolução do tratamento.

A leitura do texto de Roberto Graña tem, portanto, grande valia pela profundidade e detalhamento de diferentes organizações psíquicas da identidade de gênero na infância, cada vez mais presentes na contemporaneidade. Seu mérito também se ancora na dupla coragem de escrever sobre um tema tão controverso e analisar suas próprias dificuldades na contratransferência, fazendo desse livro um recurso fundamental tanto na formação clínica quanto na transmissão acadêmica dos fundamentos de uma psicanálise aberta no trato mais diferentes apresentações da sexualidade.

 

 

* Associada ao Fórum do CPRJ, professora adjunta I (Psicologia e Educação), Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:mariliaetienne@id.uff.br
1 É importante ressaltar que, no modelo etológico, a primeira ou principal pessoa que tem contato com a criança (ou animal) será a figura primordial na definição de comportamentos imprinted repetitivos.