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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.1 Belo Horizonte Apr. 2012

 

RESENHAS

 

Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume.

 

A estrutura e a constituição da clínica psicanalítica:uma abordagem crítica

 

The structure and constitution of psychoanalytic clinic: a critical approach

 

La estructura y la constitución de clínica psicoanalítica: una aproximación crítica

 

 

Ednei Soares*

 

 

 

É lugar comum que as obras de Freud e de Lacan carregam a ambição fervorosa de especificar as características do tratamento analítico e de manter viva a psicanálise na cultura. Mas quais foram as práticas que constituíram a práxis analítica tal como a conhecemos hoje? Quais práticas sociais que historicamente contribuíram para a constituição desse tratamento tão singular?

Sem perder de vista a singularidade que define a clínica psicanalítica, Christian Ingo Lenz Dunker responde a questões como essas no decorrer das 658 páginas de seu robusto "Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento" (2011).

A obra em questão demonstra fôlego em tratar da sua temática e evidencia soluções autênticas de Dunker, quem abriga as teses freudianas e lacanianas em discussões estimulantes, dialogando com um exame arqueológico e genealógico enriquecedor. Justamente por reivindicar um pensamento crítico e dialógico que o trabalho de Christian Dunker dá condições para sobrepor suas chaves de leitura a um lacanismo habituado a respostas vinculadas por meio de uma retórica alienante e obscurantista.

A versão brasileira de "The constitution of the psychoanalytic clinic: a history of its structure and power" foi lançada em setembro de 2011 pela editora Annablume, após o lançamento de sua versão inglesa pela Karnac Books, em dezembro de 2010. A versão brasileira, além de ter a tradução revista da versão em inglês, ganhou capítulos inéditos em relação à última: "A controvérsia do método" e "A construção do caso clínico".

Quanto às origens do livro, seus pontos de partida derivam, sobretudo, da inquietação característica do pensamento do autor. O potencial crítico e original de Dunker encontrou solo fértil nos diálogos levantados com seus orientandos, assim como nos debates gestados em seu Seminário sobre a Obra de Jacques Lacan (desde 2001) e nas atividades do Latesfip (Laboratório Interdepartamental de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP). A consequência dessas discussões produziu sua tese de livre docência na conclusão do pós-doutorado na Manchester Metropolitan University, na Inglaterra.

Conhecermos o tipo de crítica ingênua e comum fundada no fato de que uma investigação densa sobre as raízes da psicanálise através da história das práticas terapêuticas, de cura e de tratamento (desde a Antiguidade até o século XXI) não oferece nenhuma aplicação clínica imediata. Ora, interrogar a psicanálise com base em razões arqueológicas e genealógicas não só ilumina a leitura da obra de Freud e de Lacan como também demarca problemas concernentes às condutas da clínica psicanalítica e às temáticas do poder e da política, muito pouco investigadas nas pesquisas em psicanálise.

O modo como o livro recupera as origens da prática analítica reanima esse campo de investigação, tão habituado a localizar sua gênese prática somente na medicina. Muito além da conhecida frequentação do jovem Freud no hipnotismo, nosso autor traz de volta os tratamentos morais, a retórica, a política e outras estratégias sociais que empregaram a fala no tratamento do sofrimento humano e confronta o discurso da psicanálise com tais práticas.

Se Dunker recupera exemplos e práticas historicamente tão remotas em relação à psicanálise, é justamente para relançar questões absolutamente atuais em relação à prática analítica. Sem considerar a psicanálise imune aos inquéritos arqueológicos e genealógicos, Dunker não se silencia frente às regiões instáveis da prática e do discurso analítico, acenando para o problema do poder em jogo no tratamento analítico e no âmbito da saúde em geral.

Partindo da "Dúvida de Ulisses" e passando pelo teatro terapêutico do "Ato de Antígona", o autor revela o potencial terapêutico das práticas narrativas investigando, em cada capítulo, uma prática e suas questões, como a mitologia, o cuidado de si dos helênicos, o xamanismo, as terapias de compromisso e a medicina da alma. Assim, o poder se mobilizou tanto por mecanismos que envolvem a palavra quanto pela sugestão do psicoterapeuta (tema de discussão tão caro ao primeiro Freud), por sua influência ou pela autoridade clínica do médico.

Enviesado por tal questão, Dunker vai de Empédocles, Hipócrates e Platão até Montaigne, Descartes, Kant e Hegel, alcançando as formas clínicas que se prolongam na Modernidade e atingindo então o texto central de Lacan sobre o tema, "A direção da cura e os princípios de seu poder", de 1958.

Contrariamente a uma mera revisão histórica, as soluções autorais de sua abordagem de pesquisa demarcam ainda mais precisamente o domínio da práxis psicanalítica. Isto é, a preocupação do autor com as consequências produzidas pela temática do poder em psicanálise, em vez de enfraquecer o discurso psicanalítico e sua prática, contribui com este. Assim, o psicanalista consegue observar a especificidade das relações de poder e seu manejo no tratamento psicanalítico.

Tal especificidade é esclarecida pela observação de Dunker sobre a estrutura lógica da experiência analítica, que demarca o lugar do analista, a emergência do sujeito e suas formas de alienação no Outro, como também as mutações da transferência e a separação do objeto a. O autor tampouco ignora a presença de outros modelos dentro da obra de Lacan e se mostra atento ao fato de que eles atendem a anseios distintos da estratégia estruturalista, como, por exemplo, a "Descrição fenomenológica da experiência psicanalítica" pretendida em "Para além do princípio de realidade", de 1936.

Vê-se derivar, desde as elaborações de Lacan (a teoria das estruturas, a proposição dos quatro discursos, as formulações sobre a sexuação e a teoria dos três registros), a grande potencialidade crítica da teoria lacaniana frente à razão diagnóstica e seus mecanismos de poder. Eixo de pesquisa tão caro ao autor do livro em questão.

Enfim, pelo livro, notamos que essa diversidade de operadores de leitura da clínica psicanalítica não deve ser hierarquizada, pois é diante da tensão entre a multiplicidade de racionalidades diagnósticas que observamos a fertilidade clínica da psicanálise via ensino de Lacan.

 

 

* Mestre em Psicologia pela PUC Minas, docente do curso de Psicologia do Centro Universitário UNA e do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Ipatinga-MG, psicanalista.