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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.2 Belo Horizonte ago. 2012

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p175 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p175

 

Por que existe linguagem em vez de nada? Uma leitura discursiva e psicanalítica

 

Why is there language instead of nothing? A discoursive and psychoanalytical approach

 

¿Por qué existe lenguaje en vez de nada? Una lectura discursiva y psicoanalítica

 

 

Fabio Elias Verdiani Tfouni*

 

 


Resumo

Este trabalho**, situado no campo da análise do discurso de Pêcheux (AD) numa interface com a psicanálise, consiste numa investigação epistemológica a respeito das condições de possibilidade da existência da linguagem, tentando dar uma resposta à questão: por que existe linguagem (e língua) em vez de nada? Tratamos o interdito e o silêncio como constitutivos e fundadores do discurso. Resumidamente, afirmamos que, para que seja possível que se diga algo, é preciso que não se diga tudo. Com base nas modalidades aléticas da lógica aristotélica, fazemos uma abordagem dessas questões. A lógica subjacente é a lógica lacaniana, segundo a qual o excluído, ou a contradição, fundam o possível. Para tal tarefa, tratamos essas questões no quadrado das oposições numa leitura não aristotélica. Propomos e construímos um quadrado do dito e da enunciação.

Palavras-chave: Interdito, Silêncio, Discurso, Quadrado das oposições.


Abstract

Within the fields of Discourse Analysis (Pêcheux) and psychoanalysis, this work consists in an epistemological study on the conditions for the existence of language, by trying to answer the question: Why is there language instead of nothing? In short, we state that interdiction and silence are constitutive and founders of the discourse. We claim that what makes it possible to say anything is that is not possible to say everything. So, something must remain unsaid. We address these issues using the alethic Aristotelian modalities and the square of opposition (in a non-Aristotelian approach). The logical principle here is that the contradiction - the excluded - founds the possible. We also propose and build a square of saying or of utterances.

Keywords: Interdiction, Silence, Discourse, Square of opposition.


Resumen

El presente trabajo, situado en el campo del Análisis del discurso de Pêcheux (AD) en una interfaz con el psicoanálisis, consiste en una investigación epistemológica al respecto de las condiciones de posibilidad de la existencia del lenguaje, intentando dar una respuesta a la cuestión: ¿Por qué existe lenguaje (y lengua) en vez de nada? Tratamos el entredicho y el silencio como constitutivos y fundadores del discurso. Resumidamente, afirmamos que, para que sea posible que se diga algo, es necesario que no se diga todo. Hacemos un abordaje de esas cuestiones a partir de las modalidades aléticas de la lógica aristotélica. La lógica subyacente es la lógica lacaniana, según la cual el excluido, o la contradicción, fundan lo posible. Para tal tarea tratamos esas cuestiones en el cuadrado de las oposiciones en una lectura no-aristotélica. Proponemos y construimos un cuadrado de lo dicho y de la enunciación.

Palabras clave: Entredicho, Silencio, Discurso, Cuadrado de las oposiciones.


 

 

 

Introdução

Este trabalho dá continuidade à nossa pesquisa sobre o interdito e o silêncio (Tfouni, F. E. V., 1998, 2006, 2008, 2010) numa relação com as modalidades aléticas da lógica aristotélica. Nesses trabalhos anteriores, abordamos o interdito como fundador do discurso e propusemos que ele tem uma ligação forte com o silêncio, tal como tratado por Orlandi (1995). Retomamos a tese (Orlandi, 1995) de que o silêncio tem estatuto de fundador e de constitutivo, e propomos que ambos, o interdito e o silêncio, são fundadores e constitutivos do discurso e da linguagem. O objetivo de tais trabalhos era verificar quais as condições que permitem a existência da linguagem. Tentamos responder à questão: por que existe linguagem (e língua) em vez de nada? Podemos dizer que se trata de uma pesquisa que visa a compreender qual é a origem da linguagem, mas não de um ponto de vista histórico e sim lógico.

O interdito é fundador e constitutivo do discurso porque, se fosse possível dizer tudo, não se diria nada: se existisse uma enunciação ou um enunciado completo que dissesse tudo que há para dizer, após essa enunciação, não haveria mais nada a dizer. Assim, a existência de uma enunciação completa seria a morte da linguagem. Portanto, para que o campo do dizível permaneça aberto, é preciso que não se diga tudo e que a linguagem seja carregada também de um não dizer, de um interdito ao dizer, do equívoco, da falta. Assim, o interdito é um impedimento estrutural e estruturante ao dizer completo, impedindo que se diga tudo, e, por isso mesmo, permitindo que se diga algo. O dizer é sempre faltante, é sempre meio dito, dito no meio, dito pela metade: "inter-dito".

    Por isso distinguimos entre a) o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar e b) a política do silêncio que se subdivide em b1) silêncio constitutivo, o que nos indica que para dizer é preciso não dizer (uma palavra apaga necessariamente as outras palavras) e b2) o silêncio local, que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura) (Orlandi, 1995, p. 24).

Examinado o silêncio como constitutivo do dizer, Orlandi (1995) afirma que o silêncio é o espaço diferencial da linguagem, é o espaço que permite à linguagem significar. Para nós, ele é esse espaço, mas o que cria tanto o silêncio quanto o discurso é uma interdição, que é uma operação linguística: é a entrada da linguagem que cria tanto o discurso quanto o silêncio. Conforme Orlandi, haveria uma flutuação entre silêncio e dizer. Para nós, é uma interdição que funda essa flutuação.

Sobre esse espaço diferencial, Orlandi afirma que "A hipótese de que partimos é que o silêncio é a condição da produção de sentido. Assim, ele aparece como o espaço ‘diferencial" da significação: lugar que permite à linguagem significar" (Orlandi, 1995, p. 70). Aqui Orlandi já aponta algo fundamental para a tese do interdito: o fato de que, para que a linguagem diga algo, para que se instaurem sentidos linguisticamente, é preciso considerar que a linguagem necessita de um lugar "outro". Esse lugar "outro" ou "diferente" é o silêncio, que, por sua vez, é indistinto. Para que a linguagem signifique, ela precisa atualizar sentidos desse silêncio e, ao mesmo tempo, precisa recusar alguns sentidos. É assim que lemos a definição do silêncio como espaço diferencial da linguagem. Portanto a afirmação de Orlandi de que o silêncio seria o "lugar que permite à linguagem significar" aponta para a necessidade estrutural de um excluído para que a linguagem possa, enfim, significar. Isso quer dizer que tanto a existência do não dito quanto do impossível de dizer são estruturalmente necessários ao dizer, ao discurso e à enunciação.

A necessidade de um lugar outro para a linguagem é o fundamento da existência de uma flutuação entre o silêncio e a linguagem. Essa flutuação funciona do seguinte modo: sempre que algo é enunciado, algo também é silenciado. A lógica aqui seria a do dizer X para não dizer Y. Ao mesmo tempo, justamente por não se dizer tudo, é que sempre há ainda o que dizer. Nesse sentido, o não dito sustenta o dito, permitindo seu movimento, um movimento entre o dizer e o não dizer. A ligação do conceito de enunciação com o não dito e com o interdito pode ser vista no trecho seguinte de Pêcheux & Fuchs:

    Diremos que os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o "dito" e em consequência rejeitar o "não dito". A enunciação equivale, pois, a colocar fronteiras entre o que é "selecionado" e tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o "universo do discurso"), e o que é rejeitado (Pêcheux & Fuchs, 1993, p. 176)

Antes da enunciação, todos os dizeres são possíveis. O que é dito seria uma "escolha" contingente do enunciatário; segue-se que, uma vez dito X, esse X passa de contingente para impossível, pois não é possível que o sujeito não tenha dito X. O impossível é entendido aqui, ao mesmo tempo, como aquilo que não pode ser simbolizado e como aquilo que não pode ser de outro modo, como afirma Pêcheux: "‘há real", isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser ‘assim". (O real é o impossível... que seja de outro modo)" (Pêcheux, 1990, p. 29).

Antes da enunciação, o campo dos sentidos se abre como um real da significação, posto que é exterior à linguagem, sendo, nesses termos, impossível. Após a enunciação, o silêncio se configura como o que deixou de ser dito, mas que poderia ter sido dito; em outras palavras, o silêncio também é contingente.

Notamos que, para Milner (1987), o real da língua é o impossível. Já para Orlandi (1995), o real do discurso é o silêncio. Para Milner (1996), o impossível e o contingente constituem os dois lados do real. Ora, o silêncio, o dizer e o campo da enunciação são marcados por um real, devendo ser modalizados pelo impossível e pelo contingente. Ou seja: o real do silêncio é modalizado pelo impossível e pelo contingente. Para que algo desse real seja possível de dizer, é preciso um corte em seu todo, permitindo que se diga algo, e não tudo.

Em Orlandi (1995), o silêncio é a possibilidade de flutuação dos sentidos. Em nossa proposta, essa flutuação só seria possível a partir de um operador: a interdição ou o interdito. Essa operação seria o corte do interdito, que impede o dizer completo e que permite, por isso mesmo, a existência de algum dizer.

O objetivo do presente trabalho é continuar essa reflexão já feita sobre o interdito e o silêncio em suas relações com as modalidades lógicas aléticas aristotélicas, a saber, o possível, o impossível, o necessário e o contingente, utilizando para isso o quadrado das oposições (também chamado de quadrado lógico), sobrepondo a ele o quadrado das modalidades.

 

O quadrado das oposições

Apresentamos o quadrado das oposições (figura 1), com seus cantos (ou vértices) e com as relações entre os cantos.

No quadrado, são colocadas proposições categóricas. Segundo Copi (1978), as proposições categóricas têm uma qualidade e uma quantidade. O autor prossegue afirmando que "A qualidade de uma proposição é afirmativa ou negativa [...] segundo a inclusão de classe for afirmada ou negada pela proposição" (Copi, 1978, p. 143). Então as proposições universais afirmativas e particulares afirmativas (cantos A e I) são afirmativas em qualidade. As negativas são negativas em qualidade (cantos E e O).

Sobre a quantidade, Copi afirma: "A quantidade de uma proposição é universal ou particular segunda a proposição se refira a todos os membros ou só a alguns dos membros da classe designada pelo seu termo sujeito" (Copi, 1978, p. 143). Então as proposições dos cantos A e E são universais, e as dos cantos I e O são particulares.

O quadrado das oposições não é apenas uma figura geométrica, mas é uma figura na qual os cantos têm certas relações lógicas, de modo que as relações entre as proposições, que são relações de oposição, são determinadas pelas posições que estas ocupam no quadrado. É assim que lemos Copi:

    As proposições categóricas de forma típica que têm os mesmos termos sujeito e predicado podem diferir mutuamente na qualidade ou na quantidade ou em ambas as coisas. Os lógicos de outrora deram a essa espécie de diferença o nome técnico de "oposição" e certas relações importantes dos valores de verdade foram correlacionadas com várias espécies de oposição (Copi, 1978, p. 146).

 

Primeira versão do quadrado modal

Quanto ao primeiro quadrado modal (figura 2), também conhecido como quadrado semiótico (Darrault, 1976; Greimas, 1976; Costa, 1986), o que precisamos destacar para este trabalho é que ele apresenta as quatro modalidades: o possível, o impossível, o necessário e o contingente. Assim, este quadrado usa todas as quatro modalidades aristotélicas.

 

Segunda versão do quadrado modal

A diferença desse quadrado (figura 3)1 para o quadrado da figura 2 é que, enquanto naquele (figura 2) o canto O é modalizado pelo contingente, este (figura 3) traz o possível não modalizando o canto O. Para nós, este (figura 3) é um tratamento mais rigoroso do ponto de vista lógico, já que o contingente constitui-se daquilo que pode ser e daquilo que pode não ser,e o canto O, como negação do possível, deve ser modalizado por aquilo que não pode ser, ou seja, pelo possível não. Além disso, o contingente não pode ocupar o canto O, pois, para alguns, nessa posição, ele violaria2 a relação de subalternação ao impossível (canto E), já que, sendo aquilo que pode ser ou pode não ser,seria inadequado colocar o contingente no canto O em relação de subalternação ao impossível. Desse modo, temos o quadrado a seguir.

Para alguns autores, não existe, em linguagem natural ou formal, um nome adequado para o canto O, no sentido de que esse canto pode ser preenchido, mas não por único item lexical, apenas por meio de perífrases. So não existe nome primitivo em linguagem natural ou formal para o cabre isso Béziau afirma: "Tem sido afirmado que nto O desse quadrado. Nós temos todo, algum, e nenhum, mas não temos um nome primitivo para não todo" (Béziau, 2003, p. 2).3 Por isso, Blanché nomeou o canto O de canto sem nome.4

Quanto às versões modais do quadrado (figuras 2 e 3), note-se que existem em linguagem natural ou formal os termos (itens lexicais) possível, impossível e necessário, mas não existe nenhum termo que afirme a negação de um possível (um possível não). Como não existe um nome para ele, o canto O não é preenchido lexicalmente no quadrado (como dissemos acima). Por isso, o contingente não corresponde ao canto O do quadrado. O canto O permanece como nameless corner nas versões modais do quadrado (figuras 2 e 3). Então, o contingente ocupa outro lugar no hexágono de Blanché (e não o lugar da particular negativa - o canto O). Sobre a não lexicalização do canto O, Béziau (2003) afirma que na versão modal do quadrado, o canto O também não é lexicalizado: "Na versão modal do quadrado das oposições o canto O também não é lexicalizado: nós temos necessário, possível e impossível, mas nenhum nome primitivo para não necessário" (Béziau, 2003 p. 3).5 Blanché então propõe um hexágono (figura 4), e não um quadrado, para formalizar as relações lógicas entre as modalidades. O vértice absolutamente inferior do hexágono é o que corresponde ao contingente propriamente dito. Então, o que Blanché faz pode ser visto como uma correção dos quadrados anteriormente mostrados (figuras 2 e 3) no que tange à modalidade que se refere à particular negativa (nenhuma modalidade ocupa esse lugar), que seria, para Blanché, o nameless corner.

Trazemos ao leitor o hexágono de Blanché (figura 4) apresentado por Béziau (2003), no qual se pode ver que a particular negativa (o canto O) é não lexicalizada (o autor indica a não lexicalização com três pontos de interrogação - ???). Nesse processo, o contingente passa a ocupar um outro lugar: o canto inferior (canto Y) do hexágono (figura 4).

 

Um exercício no quadrado das oposições

A lógica subjacente ao nosso trabalho não é a aristotélica e sim a lógica lacaniana, na qual a contradição (o excluído) funda o possível. Há, portanto, uma relação direta com o interdito e o silêncio como fundadores do campo do dizer: o silêncio é o excluído desse campo e, justamente por ser excluído, torna possível a linguagem. Assim, a tese do silêncio como fundador seria, nesse caso, uma tese na qual a contradição, o excluído, funda o possível (aqui, funda o possível de dizer ou a possibilidade de se dizer). O que faremos pode ser visto no momento como um exercício que pretende verificar como ficariam os quadrados se aplicarmos neles o princípio lacaniano de que o excluído (a contradição) funda o possível. Uma proposta para trabalhos futuros seria a de buscar algum sistema lógico paraconsistente que sustente, por meio de seus fundamentos e cálculos, o que é dito aqui, já que essas lógicas aceitam alguns tipos de contradição. Sobre as lógicas que aceitam a contradição, afirma Costa:

    A lógica paraconsistente não condena a contradição, de início, como necessariamente falsa. Mas, em geral, se uma contradição é verdadeira ou falsa isto não depende tão somente de fatores lógicos. Uma contradição que ocorre, por exemplo, na física, para ser julgada, avaliada, tem que ser vista como que mergulhada no domínio da física e não apenas como fato lógico (Costa, 1986, p. 32).

Como o campo em que trabalhamos é o da análise do discurso e da psicanálise, a questão da contradição deve ser vista com base nesses campos e não descartadas a priori. Portanto é no sentido apontado acima por Costa (1986) que tratamos o interdito e o silêncio, pois o princípio que norteará este trabalho é o lacaniano, segundo o qual "o excluído funda a regra". Por isso não se trata apenas da lógica estrita, mas da lógica no campo de investigação em questão, que aqui é a análise do discurso (AD) numa interface com a psicanálise. Ao discutir a lógica da sexuação, Lacan afirma que a exceção funda a regra:

    À esquerda, a linha inferior, indica que é pela função fálica que o homem encontra seu limite na existência de um x pelo qual a função é negada, [...] O todo repousa, portanto, aqui, na exceção colocada, como termo, sobre aquilo que, esse o nega integralmente (Lacan, 1985, p. 107, grifo nosso).

Nosso trabalho se dá com base em uma leitura particular de Lacan sobre a lógica aristotélica, na qual ele realiza as formulações acima. Percebemos que o autor (Lacan, 1985) afirma que "o todo repousa na exceção", afirmando que a "existência de um x pelo qual a função é negada" é fundadora nesse processo. Ou seja, a sexuação masculina estrutura-se com base em um elemento que não é submetido à função fálica: o todo se funda na exceção ou na contradição. Desse modo, a estruturação do homem é resultado de uma aporia lógica (ou de uma lógica alternativa à tradicional).

Para nós, essa outra lógica vai resultar, entre outras coisas, numa modificação do quadrado por meio de uma inversão das posições das modalidades. Por isso o resultado não será o que se obteria na lógica aristotélica. Isso servirá de modelo para tratarmos questões do dizer, do silêncio, do interdito e do não dito no quadrado do dito ou da enunciação (figura 10).

O que Lacan descreve acima é o lado masculino de sua versão do quadrado, no qual o autor coloca as fórmulas da sexuação. Podemos notar que a universal afirmativa

ocupa a linha inferior, e a particular negativa ocupa a linha superior. É esse movimento que pretendemos realizar aqui, mais adiante, movimento que expressa a lógica de que a contradição funda o possível, de modo que a contradição da universal afirmativa passa a ter anterioridade sobre esta.

O que faremos será tomar a lógica lacaniana e colocá-la no quadrado, o que já foi feito por Lacan em certa medida quando este criou o que Costa (1986, p. 33) chama de "diagrama das fórmulas quânticas da sexuação de Lacan". Falando sobre a lógica lacaniana, mais precisamente sobre os deslocamentos lacanianos sobre a lógica tradicional, afirma Costa:

    Do prisma lógico, já de saída, vê-se que a lógica resultante é digna de estudo profundo. E isto se torna ainda mais interessante se tivermos em mente que o quadrado das modalidades está intimamente relacionado com o quadrado das oposições e com o que poderíamos batizar de diagrama das fórmulas quânticas da sexuação de Lacan (COSTA, 1986, p. 33).

Em um dos diagramas da sexuação em Lacan (figura 5) (Costa, 1986), podemos ver a universal afirmativa

e a particular negativa nas suas posições corretas, ou seja, nas posições esperadas por uma abordagem tradicional ou aristotélica.

Para nós, a lógica lacaniana de que "a contradição funda a regra" vai exigir uma mudança nas posições dos preenchimentos dos cantos do quadrado. Leite (1994) comenta essa inversão lógica na psicanálise lacaniana quando afirma que o tratamento das fórmulas lógicas da sexuação em Lacan realiza essa inversão, em consonância com a lógica de que a exceção funda a regra. Afirma Leite:

    A modalidade do necessário vai se constituir, portanto, deste pelo menos um que, exterior ao domínio da lei universal, funda o campo do possível por ela delimitado. É a particular negativa 6 que define o necessário, diferentemente de Aristóteles para quem o necessário era da ordem da universalidade da lei. Esta definirá em Lacan a modalidade do possível (Leite, 1994, p. 91).

Nossa leitura é a de que, quando Leite afirma que a particular negativa ocupará o lugar do necessário, ela está afirmando que pela lógica lacaniana, pode-se realizar o movimento de colocação da proposição do Canto O no lugar da proposição do canto-A. O que está inteiramente de acordo com a lógica segundo a qual o excluído enquanto contradição funda o possível. Assim, a universal afirmativa passaria a ser subalterna à particular negativa, ocupando ela (universal afirmativa) o vértice do possível.

Tomando o quadrado de Costa (figura 5) e aplicando nele a lógica de que a exceção funda a regra, bem como as observações de Leite (1994), construímos outro quadrado (figura 6). Neste vemos que a particular negativa corresponde ao canto do necessário, ou canto A, e que a universal afirmativa ocupa o canto do possível, ou canto I.

Nessa lógica em que a contradição (o excluído) funda a regra, esse elemento excluído é o pai primevo de Freud (1995), que é a figura em relação à qual se dá a possibilidade de estruturação da sexuação humana. O pai primevo como elemento excluído, contingente e contraditório, como o um que não é submetido à função fálica , é o pivô em torno do qual se funda a sexualidade masculina como submetida à lei, de onde temos que o excluído é o fundador e se constitui como estruturante do todo . Mais ao final, veremos como isso se relaciona com o dito, o não dito e o interdito.

Notamos que Leite (1994), em comentários sobre o trabalho de Loparic (1991), aponta as dificuldades do tratamento lacaniano do quadrado. Percebe-se que a leitura lacaniana realiza uma série de violações sobre a lógica tradicional e sobre as relações dos cantos do quadrado, bem como violações sintáticas no cálculo de predicados. Ao mesmo tempo, as autoras apontam que essas violações seriam intencionais e não um descuido de Lacan.

Para o que está sendo discutido neste trabalho, a principal violação da lógica tradicional seria justamente o princípio lacaniano no qual nos baseamos que, como já dissemos, afirma que "a exceção funda a regra", constituindo-se numa contradição. Segundo Copi (1978), a contradição é uma relação onde uma proposição é a negação da outra, tanto na qualidade quanto na quantidade, não podendo ser ambas verdadeiras nem falsas. Afirma Copi: "Duas proposições são contraditórias se uma delas for a negação da outra, isto é, se não puderem ser ambas verdadeiras e não puderem ser ambas falsas (Copi, 1978, p. 146). Então os usos lacanianos não estão de acordo com os princípios da lógica nem com as relações tradicionais do quadrado porque violam quase todas as relações e escritas lógicas tradicionais. Ainda de um ponto de vista tradicional, outros problemas surgem quando colocamos a modalidade do canto O no canto A (como por exemplo, o problema na relação de subalternação entre o canto A e o canto I.)

Dito isso, seguimos com nossa tentativa de colocação das questões do dizer e do não dizer no quadrado das oposições. O que fazemos é a inversão das modalidades no quadrado usando o princípio lacaniano de que o excluído (a contradição) funda o possível. Seguimos o quadrado já comentado (figura 6) no qual a modalidade do canto O vai ocupar o canto A. Temos então uma figura (figura 7) em que a particular negativa (canto O) vai ocupar o lugar da universal afirmativa (canto A).

Aplicando esse movimento no primeiro quadrado modal (figura 2) com o contingente no canto O, obtemos uma nova figura (figura 8):

Realizando esse movimento na figura 3, obtemos a figura 9.

 

O quadrado do dito ou da enunciação

Aqui tomamos os quadrados acima para propor um quadrado do dito ou da enunciação(figura 10) que se constrói com base na proposição da universal afirmativa tudo se diz.Sua contrária, a universal negativa, seria então nada se diz. A subalterna da universal afirmativa seria a particular afirmativa algo se diz, e a subalterna da universal negativa, a particular negativa algo não se diz.

O quadrado do dito e da enunciação (figura 10) pode ser visto como uma projeção dos quadrados anteriores. Projetando a figura 3 na figura 10, obtemos a figura 11.

Agora aplicaremos, na figura 10, a tese de que o excluído funda o possível por meio do movimento feito nos outros quadrados (figuras 7, 8 e 9), o que vai fazer com que "algo não se diz" seja anterior a "tudo se diz", de modo que o não dito tenha anterioridade sobre o dito, no sentido de que é justamente por não se dizer algo (algo não se diz), que se abre o campo da enunciação (algo se diz).

Essa concepção de linguagem é cara a Pêcheux (lembramos ao leitor a citação acima de Pêcheux & Fuchs, 1993), que afirma a importância da seleção de certos enunciados que serão ditos e de outros que serão excluídos (não ditos ou silenciados, diríamos). Ou seja, para nós, como para Pêcheux e para Orlandi (1995), o não dito tem anterioridade sobre o dito, o não dito precede e possivelmente determina o dito. Para tratar o não dito como anterior e constitutivo do dito, realizaremos uma inversão no quadrado, como já foi apontado anteriormente.

O movimento feito nos outros quadrados (figuras 7, 8 e 9) agora é colocado no quadrado do dito ou da enunciação (figura 10). Nesse movimento, o algo não se diz passa a ocupar o lugar de tudo se diz. Com isso, apresentamos uma nova figura (figura 12).

Podemos dizer que, nos dois casos (seja com o canto O modalizado pelo contingente, seja pelo possível não - figuras 2 e 3), o "algo não se diz" passa a anteceder o "algo se diz", motivo pelo qual tanto faz se a modalidade correspondente a esse canto é o contingente ou se é o possível não. Nos dois casos, é a modalidade do canto O que passa a ocupar o lugar da modalidade do canto A, ou seja, é a particular negativa (preenchida pelo contingente ou pelo possível não) que ocupa o lugar do necessário (como se vê na figura 7). Portanto, em consonância com a lógica de que é a exceção que funda a regra, notamos que é a particular negativa que funda e constitui o campo do dizer tal como o temos pensado.

Percebe-se claramente que o movimento feito no quadrado (figura 12) segue a lógica lacaniana, na qual o excluído, a contradição mesmo, funda o possível. Como já dissemos, essa inversão seria inaceitável do ponto de vista da lógica clássica, porém a lógica lacaniana é uma lógica na qual a contradição funda o possível, de modo que o possível passa a ser subalterno do possível não (ou do contingente).

 

O quadrado quantificado

É possível continuar a tratar o quadrado do dito ou da enunciação (figura 10) por meio de outro quadrado (figura 13), chamado de quadrado do dito ou da enunciação com fórmulas quantificadas.Colocamos nos vértices as proposições quantificadas para "tudo se diz", que corresponde à fórmula “nada se diz”, que corresponde à formula “algo se diz”, que tem como fórmula e “algo não se diz”, cuja fórmula é:

Realizamos, no quadrado quantificado (figura 13), o movimento de colocação da particular negativa no lugar da universal afirmativa (figura 14). Isso se justifica conforme a existência de um não dito é fundamento para a abertura do campo do dizer. É justamente por não ser possível que se diga tudo que se diz alguma coisa. Para nós, parece haver ao menos uma relação de analogia entre nosso tratamento do dito, do interdito, do silêncio e da linguagem; com a lógica lacaniana da sexuação, na qual a exceção é que funda a regra. Podemos perceber a particular negativa como fundadora, nos dois casos, fundando o possível.

 

Considerações finais

Acreditamos que o exposto é suficiente para corroborar nossa tese de que o interdito é fundador do discurso (e para discuti-la com base no quadrado lógico). Essa tese é a de que é preciso que não se diga algo para que seja possível alguma enunciação. A interdição de uma parte do domínio do dizer e do discurso é fundadora e constitutiva, já que, para dizer X, deixamos de dizer Y. O todo do silêncio não pode se atualizar como todo, então é preciso que restem enunciados não ditos ou silenciados para que exista discurso. Se fosse possível dizer tudo, se existisse um enunciado completo, que dissesse tudo, esse enunciado seria a morte da linguagem.

A discussão por meio do quadrado lógico permitiu a construção de vários quadrados, nos quais fazemos uma inversão das posições colocando a particular negativa (canto O) no lugar da universal afirmativa. Isso é sustentado pela tese de que é um contingente excluído (uma contradição) que funda o campo do possível, um X qualquer que, por ser impossível, funda o possível. Essa é a lógica da sexuação em Lacan, na qual o excluído funda o possível.

Na lógica da sexuação, o pai primevo, como único que não é submetido à função fálica, funda a possibilidade de estruturação da sexuação humana. É justamente porque esse um(esse pai) excluído não é submetido à lei, à função fálica, que todos os homens o são. Em relação ao dizer, afirmamos, de modo análogo, que é também a existência de um excluído que funda o possível. Esse excluído ocupa a posição do canto O no quadrado do dito, independentemente se consideramos que esse canto é modalizado pelo contingente ou não.

Propomos e construímos o "quadrado do dito e da enunciação", em mais de uma versão. Neles, temos o tudo se diz ou (necessário), o algo se diz ou (possível), o nada se diz ou (impossível), e o algo não se diz ou (que corresponde ao canto O, independente do preenchimento desse canto ser pelo contingente ou possível não). De um ponto de vista lógico, talvez devêssemos excluir o tratamento do quadrado com o contingente no canto O.

As mudanças nos dois tipos de quadrado (a colocação do canto O no lugar do canto A) indicam que a modalidade do canto O (particular negativa) tem anterioridade sobre o possível (canto I). Então, independentemente do canto O ser modalizado pelo contingente, ou pelo possível não, a particular negativa muda de lugar, tendo antecedência sobre a particular afirmativa. A conclusão é de que a modalidade (ou a proposição) que ocupa o lugar da particular negativa é a fundadora. No caso do quadrado do dito ou da enunciação, a particular negativa é preenchida com a proposição "algo não se diz". Então essa proposição tem estatuto de fundadora. Diremos então que a linguagem precisa de um ponto excluído, de um ponto faltante (um blind spot), para que, a partir dessa falta, se possa dizer alguma coisa.

Na linha da lógica segundo a qual a contradição funda a regra, podemos dizer que é a existência de um não dito que torna possível o dito. O não dito que precede o dito para que algo seja possível de se dizer.

Uma das propostas de continuidade dessa linha de trabalho sobre as relações entre interdito, silêncio, discurso e psicanálise será a de incluir conceitos freudianos como os de Bejahung e Austossung.

 

Referências

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* Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – Araraquara, professor adjunto do Departamento de Letras da Universidade Federal de Sergipe, psicólogo formado pela USP Ribeirão Preto.
** Uma versão deste trabalho foi apresentada no 2nd World Congress on the Square of Opposition, realizado em Corte, Córsega, França, no período de 17 a 20 de junho de 2010. Agradeço especialmente à Prof.ª Dr.ª Mónica Zoppi-Fontana, minha supervisora de pós-doutoramento na Unicamp. Agradeço também aos professores doutores Jean-Yves Béziau e João Madeira.
1 Esse quadrado aparece em Geerts & Melis (1976).
2 Provavelmente o contingente esteja mais bem posicionado em outra figura, o hexágono de Blanché, tal como apontado em Béziau (2003). Em trabalho posterior, faremos o tratamento desse hexágono.
3 Tradução do trecho: "It has been pointed out that there is no primitive name in natural and formal languages for the O-corner of this square. We have all, some, and no, but no primitive name for not all".
4 Tradução do termo nameless corner(ver Béziau, 2003).
5 Tradução do trecho: "In the modal version of the square of oppositions, the O-corner is also not lexicalized: we have necessary, possible and impossible, but no primitive name for not necessary.
6 Por uma questão de concisão, não esclarecemos ao leitor, de maneira mais detalhada, como Lacan concebe essas fórmulas da sexuação. Usamos nossa própria notação aqui, diferente da de Leite, que usa como notação da negação um traço sobre o fi . Vale explicitar ao leitor que esse símbolo na fórmula representa a função fálica.