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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.2 Belo Horizonte ago. 2012

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p227 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p227

 

Subjetividade e indústria cultural: uma leitura psicanalítica da cumplicidade dos indivíduos com a lógica da mercadoria

 

Subjectivity and the cultural industry: the psychoanalytical explorer of a subjects' complicity in the consumer object logic

 

Subjetividad e industria cultural: una lectura psicoanalítica de la complicidad de los individuos con la lógica de la mercancía

 

 

Samara Megume Rodrigues;* Angela Maria Pires Caniato**

 

 


Resumo

Este artigo busca discutir o conceito de indústria cultural, cunhado por Horkheimer e Adorno (1985), e levantar reflexões articuladas à psicanálise freudiana. A indústria cultural é a subordinação da cultura a lógica da mercadoria. Com isso, o que deveria promover os elementos necessários à construção da autonomia, da individualidade e singularidade, passa a gerar normalização, padronização e submissão. A adesão dos indivíduos a esse fenômeno ocorre por meio de mecanismos inconscientes, principalmente pela identificação com os modelos perversos construídos socialmente. O vínculo estabelecido com a indústria cultural é de natureza libidinal (o indivíduo a idealiza, sem jamais ter o retorno afetivo desse investimento). Tal engolfamento configura-se como uma violência simbólica, em que o indivíduo familiariza-se com o sofrimento. Impedido de exteriorizá-lo, ocorre uma autoagressão: torna-se indiferente ao próprio sofrimento e ao sofrimento alheio e ou passa a gozar de sua dor, estabelecendo vínculos sadomasoquistas. Será possível sair da violência dessa cumplicidade?

Palavras-chave: Indústria cultural, Psicanálise, Processos identificatórios, Violência simbólica, Sadomasoquismo.


Abstract

Current investigation discusses the concept of cultural industry, coined by Hokheimer and Adorno (1985), and interpellates Freudian psychoanalysis. Cultural industry is the subordination of culture to market logic, or rather, that which should promote the necessary issues for the construction of autonomy, individuality and singularity produces normalization, standardization and submission. People's adhesion to such a phenomenon occurs through sub-conscience mechanisms, especially by the identification with socially constructed perverse models. Bonds with cultural industry are characterized by a libidinal foregrounding – the individuals idealize it without ever having an affection response to their efforts. This set of facts boils down to a symbolical violence in which the individuals familiarize themselves with suffering. Since they cannot externalize it, a self-aggression occurs: they become indifferent to their own pain and to that of others and/or take pleasure in their suffering with sadomasochist features. Will they release themselves from such complicity?

Keywords: Cultural industry, Psychoanalysis, Identifying processes, Symbolic violence, Sadomasochism.


Resumen

En este artículo se pretende discutir el concepto de industria cultural, acuñado por Horkheimer y Adorno (1985), y plantear reflexiones articuladas con el psicoanálisis freudiano. La industria cultural es la subordinación de la cultura a la lógica de la mercancía. Con esto, lo que debería promover los elementos necesarios para la construcción de la autonomía, de la individualidad y singularidad, comienza a generar normalización, estandarización y sumisión. La adhesión de los individuos a este fenómeno se produce a través de mecanismos inconscientes, principalmente a través de la identificación con modelos perversos socialmente construidos. El vínculo establecido con la industria cultural es de naturaleza libidinal (el individuo la idealiza, sin recibir nunca la contrapartida afectiva de esta inversión). Tal acto se presenta como una violencia simbólica, en la que el individuo se familiariza con el sufrimiento. Incapaz de exteriorizarlo, se produce una auto-agresión: se vuelve indiferente a su propio sufrimiento y al sufrimiento de los demás y/o comienza a disfrutar su dolor, estableciendo vínculos sadomasoquista. ¿Será posible salir de la violencia de esta complicidad?

Palabras clave: Industria cultural, Psicoanálisis, Procesos de identificación, Violencia simbólica, Sadomasoquismo.


 

 

 

O esvaziamento da cultura pela indústria cultural

Este artigo busca discutir o conceito de indústria cultural, cunhado por Horkheimer e Adorno (1985a), e levantar reflexões articuladas à psicanálise freudiana. Nesse trajeto, analisaremos as formas como ocorre a cumplicidade dos indivíduos na manutenção das atuais formas de violência social, vínculo que ocorre por meio de mecanismos inconscientes. A articulação entre essas duas escolas de pensamento (psicanálise e teoria crítica) torna-se pertinente, pois ambas partem da mesma perspectiva de homem, qual seja: que este é produto e produtor da cultura em que vive.

O conceito de indústria cultural, cunhado por Horkheimer e Adorno (1985a), é uma trama em que necessariamente se enlaçam outros conceitos (tanto da esfera social quanto da subjetiva). Eles tecem um momento histórico em que ocorre a mercantilização da produção simbólica dos homens e, com isso, a anulação da sua humanidade, uma vez que esses (sob a imposição da mercadoria)não podem ser a multiplicidade e singularidade que os caracteriza, mas se tornam homens coisificados, cuja interioridade é de tal forma violentada que, para eles dizerem "não", à reproduçãodos ditames sociais, é um processo muito difícil de ser feito porque fragilizada suas instâncias críticas norteadoras de uma ação emancipatória.

Em seu comércio, a mercadoria não aparece como produto de uma relação de produção humana, ou seja, o valor social nela se apaga, e ela apresenta-se como se valesse por si mesma, como se tivesse vida autônoma. A mercadoria passa a ter um caráter místico religioso, como se estivesse enfeitiçada: o fetiche da mercadoria (Marx, 1968).

Em sua época, Marx já havia apontado que, na transformação do produto em mercadoria, o humano se anula e toda sua produção apresenta-se alheia a ele. Alguns teóricos da chamada Escola de Frankfurt, em especial Adorno e Horkheimer, aprofundam a proposição marxista de que a produção humana foi desqualificada, sendo que a própria cultura passou a ser regida pelas mesmas leis da mercadoria.

O fetiche da mercadoria, no desenvolvimento da história, é incrementado com o surgimento de todo um aparato técnico desenvolvido pela ciência: as revistas, o rádio, o cinema, a televisão. Esses meios de comunicação, pela propaganda, passaram a apresentar a mercadoria como tendo não apenas vida própria (descolada de sua função social), mas também como possuidora de um poder muito superior ao homem, como portadora da capacidade de lhe trazer a "felicidade", acabar com suas angústias e toda forma de tristeza.

Horkheimer e Adorno (1985a) cunham o conceito de indústria cultural em 1947 para se referir à manipulação pelo fetiche feita pelos diversos meios de comunicação, que têm o propósito de adaptar os indivíduos à sustentação do sistema econômico. Ela seria a expressão do fetiche do capital, ou seja, a generalização da dominação social pelo valor de troca da mercadoria, em que ocorre um ofuscamento (quiçá desaparecimento) das fronteiras entre a esfera econômica e a cultural. As mercadorias passam a ser tidas como bens culturais, e todos os conteúdos culturais passam a ser bens de consumo.

A "cultura" propagando a lei do mercado possibilita uma dominação para além do mundo do trabalho (via alienação do trabalhador), que se impõe de forma totalitária e imbricada em todos os aspectos da vida do indivíduo. Assim, a indústria cultural promove a interiorização da dominação pelo capital, forjando subjetividades homogeneizadas e acríticas. Segundo Adorno (1986a, p. 78):

    As malhas do tecido social vão sendo atadas cada vez mais de acordo com o modelo do ato de troca. Permite à consciência individual cada vez menos espaço de manobra, passa a performá-la de um modo cada vez mais radical, como que lhe cortando, a priori a possibilidade da diferença, que passa a reduzir à mera nuance dentro da homogeneidade da oferta.

O termo indústria cultural foi utilizado por Horkheimer e Adorno para substituir a expressão cultura de massa, a qual conduz a uma interpretação de que a cultura provém das próprias massas. A indústria cultural não pode ser entendida como cultura. A cultura é algo extremamente complexo. Segundo Adorno (1986a), sua própria definição nos escapa; defini-la seria subordiná-la e reduzi-la a leis que não são suas, visto que seu cerne é justamente seu caráter espontâneo e autônomo. Esse caráter a configura como um elemento de protesto às definições totalizadoras.

A cultura não tem apenas a função de formar indivíduos como seres sociais (que partilham das mesmas leis simbólicas), mas também tem a característica de protestar contra o real/factual da sociedade. Assim, ela possibilita a participação do indivíduo no coletivo e, ao mesmo tempo, a criação de uma distância entre ele e sua mera integração ao social, ou seja: a cultura dáelementos para a oposição crítica necessária aos processos de autonomia humana. A indústria cultural anulou justamente essa distância e impôs a assimilação total dos homens à sociedade, criando uma "falsa identidade do universal e do particular" (Horkheimer & Adorno, 1985a, p.114). O particular (indivíduo) passou a ser diluído na universalidade do social. Segundo Adorno (1986a, p. 79):

    Crítica é um elemento inalienável da cultura em si mesma contraditória e, com toda sua inveracidade, a crítica ainda é tão verdadeira quanto a cultura é inveraz. A crítica não é injusta à medida que demole – isso seria ainda a melhor coisa dela -, mas à medida que obedece mediante o não obedecer.

Para os frankfurtianos, cultura é um termo dialético, que congrega tanto as produções espirituais quanto as materiais da sociedade. Adorno e Hokheimer (1973a) analisam historicamente o conceito de cultura e constatam que, na modernidade do século XVIII e XIX, principalmente com a Revolução Industrial e com a corrente racionalista do pensamento ocidental, as palavras cultura e civilização passaram a ter sentidos distintos. Escrevem "a cultura sempre teve uma conotação de ‘cultura espiritual', enquanto civilização subentende um progresso material" (p. 93). No entanto, eles advertem que, em sua origem, a palavra civilização não se opunha à cultura, visto que designava o âmbito geral da humanidade, no sentido de humana civilitas: a necessidade da civilidade humana, cujo objetivo é a felicidade dos homens. No ocidente esse sentido foi transformado a fim de exaltar um progresso econômico-social, em oposição aos povos ditos bárbaros e feudais. Destarte, a cultura (Kurlur) se opõe à civilização (Zivilization) em seu sentido moderno (Adorno & Horkheimer, 1973a). Enquanto a primeira refere-se ao terreno da liberdade, a última ficou relegada a terreno da necessidade.

Freud (1996a) se opõe à divisão de significados entre cultura e civilização. Para ele, a cultura

    [...] designa a soma total de realizações e disposições pelas quais a nossa vida se afasta da de nossos antepassados animais, sendo que tais realizações e disposições servem a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação das relações dos homens entre si (Freud, 2011b).

Nessa definição fica implícita tanto a produção de técnicas de extração e conquista de riquezas para a satisfação das necessidades quanto a criação de bens espirituais, cujo propósito seria o convívio social. Essa compreensão de Freud (1930) está em consonância com a humana civilitas. Nesse sentido, Freud (2011b) ainda acrescenta que a cultura seria então um elemento de amparo aos indivíduos, construída por eles próprios, pois teria depositada em si as aquisições históricas das atividades humanas que, por meio da relação entre os homens, tornam-se transmissíveis às gerações seguintes, a fim de que possam melhorar as condições de existência dos homens.

Adorno e Horkheimer (1973a), tal como Freud (2011b), compactuam da compreensão de que cultura e civilização têm uma relação de interdependência, dialética. No entanto analisam que "o que não se pode desconhecer é que as duas coisas que o espírito iluminista, desde Kant até Freud, quis ver estreitamente ligadas, vêm agora, de fato, se separando" (p. 97).

Adorno (1996a) analisa que, com as transformações que ocorreram no capitalismo avançado, a cultura do valor de uso se transformou em um valor de troca. Ela foi engolfada por um aspecto da civilização, qual seja: sua face instrumental. A concentração de capital nas mãos de poucos gera a produção de bens padronizados. Esse fenômeno ocorre também com os bens culturais. Com isso, o fetichismo intrínseco ao valor de troca das mercadorias não se limita mais àprodução, mas atinge o indivíduo e sua subjetividade. Conforme a cultura torna-se uma mercadoria, o consumidor passa a se relacionar com ela segundo seu valor de troca, por conseguinte o mundo torna-se reificado e sua consciência sobre ele, coisificada.

Entretanto é importante ressaltar que seria ingênuo evocar a cultura como a salvação para o processo contemporâneo da civilização. Adorno e Horkheimer (1973a, p. 97-98) afirmam que:

    O gesto de exorcismo, a exaltação da Cultura à custa da sociedade de massa, o diligente consumo de bens culturais como manifestação do próprio gosto superior na formação da alma, tudo isso é justamente, inseparável do que a civilização tem de desarticulado e desagregador.

Diante de um contexto em que o homem não é senhor dos bens que produz, visto que os instrumentos, instituições e bens produzidos não têm o propósito de melhorar a vida humana (tal como descrito por Freud, 2011b), os produtos da civilização mostram-se com um poder superior aos homens, subordinando-os. Se os meios técnicos (e a tecnologia) desenvolvidos subjugam-nos, a cultura só pode existir como indústria cultural. Portanto a cultura da crítica e do amparo, tratadas por Adorno (1986a) e Freud (2011b), respectivamente, tornou-se neutralizada em prol do lucro.

Por outro lado, a indústria cultural não pode ser entendida como indústria no sentido tradicional de produção de mercadorias, pois tem mais relação com a circulação do que com a produção (Cohn, 1986). Pode-se compará-la como indústria quando contrastada às suas atividades que estão voltadas para a massificação, padronização e aparente passividade dos indivíduos. Ou seja, ela é indústria no sentido em que expressa à racionalidade técnica.

Horkheimer e Adorno (1985b), ao analisarem a trajetória da razão ocidental, afirmam que, desde as epopeias gregas aos sistemas racionalistas contemporâneos, a razão humana se condena àsua própria idolatria. Assim, o esclarecimento proposto pela ciência moderna se converteu em uma nova mitologia. A ciência utilizou a razão para apagar todos os vestígios de contradições, reduzindo tudo àdimensão da lógica da identidade. Com o propósito de dominar a natureza e os homens, ela impôs a formalização, instrumentalização e coisificação da razão. Ou seja, "no trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade" (Horkheimer & Adorno, 1985b, p. 21). Essa racionalidade técnica cumpre uma função econômica na sociedade (que passa a ser ela toda "administrada").

A racionalidade técnica invade todas as esferas da vida humana, inclusive (e principalmente) a produção de bens culturais. A partir da reprodutibilidade mecânica desses bens, o que deveria promover a autonomia (singularidade/individuação) humana, passa a gerar nivelamento, normalização e padronização. Esses bens culturais são propagados por todo um aparato técnico construído pela ciência: revista, rádio, cinema, televisão. A fusão da cultura com a tecnologia minou o seu caráter revolucionário, pois impôs a assimilação acrítica como única função da "cultura"; assim, ela se tornou uma expressão da razão instrumental (que é o pensamento racional como instrumento do capital, isto é, do quantitativo). Toda a forma de pensamento qualitativo (reflexivo), de razão teórica e contemplativa, foi desprestigiada. Portanto a indústria cultural, por meio de uma reprodutibilidade mecânica, transformou o homem em estatística, um simples objeto de consumo. O consumidor não é rei como a indústria cultural lhe faz crer, mas seu objeto (Horkheimer & Adorno, 1985a).

A ciência, em sua face puramente instrumental, resignou-se à perversão dos elementos verdadeiramente humanos, sensíveis, àquantificação da racionalidade. Assim, a lógica propagada é sempre a mesma: a repetição, a falta de reflexão, o cumprimento da ordem estabelecida, ou seja, na indústria cultural, "todos os detalhes são clichês prontos para serem empregados arbitrariamente aqui e ali e completamente definidos pela finalidade que lhes cabe no esquema, confirmá-lo, compondo-o, eis aí a sua razão de ser" (Horkheimer & Adorno 1985a, p. 117-118).

Os produtos a serem consumidos pela indústria cultural são hierarquizados segundo o padrão de consumo. Como salientam Horkheimer e Adorno (1985a), os indivíduos devem preocupar-se em consumir os produtos dedicados ao seu nível, ao grupo no qual estão enquadrados, para que, de maneira nenhuma, entrem em contato com o diferente. Aliás, essa estratégia de equalização dos indivíduos esconde a igualdade dos produtos consumidos, e o sujeito acredita piamente que o que consome é diferente do que o consumido pelo outro.

Esse esquematismo não se deve à diferença de necessidades entre indivíduos divididos em categorias de consumo, uma vez que a diferenciação dos produtos não existe, porque eles acabam por revelar que são sempre a mesma coisa (Horkheimer & Adorno, 1985a). O que se busca com esse esquematismo é manter o indivíduo (glamorosamente exibido como autônomo e livre) na falsa sensação de ter liberdade de escolher, mesmo que entre objetos e produtos idênticos entre si.

Para que esses produtos possam ser consumidos pelos indivíduos ditos autônomos e livres, é preciso que eles tenham necessidades idênticas, sejam equalizados. Pela indústria cultural ocorre o processo de geração de necessidades e, ao mesmo tempo, o processo de retroatividades dessas.

Marx (1968) aponta que toda mercadoria satisfaz uma necessidade, seja ela do estômago ou da fantasia. Essas necessidades são sociais, ou seja, são produzidas por um processo de produção social (Marx & Engels, 1987). Adorno analisaráque essa produção de necessidades é fundamental na reprodução do capitalismo, sendo que o próprio valor de troca da mercadoria (e, consequentemente, seu fetiche) torna-se objeto de necessidades humanas e sociais. Segundo Horkheimer e Adorno (1985a, p. 114):

    [...] os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. De fato, o que explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa.

É assim que a indústria cultural é a própria ideologia, no sentido em que apresenta uma falsa realidade que é internalizada pelos indivíduos, que acabam por reproduzi-la. O conceito de ideologia em Adorno não corresponde a um mero conjunto de ideias utilizadas como dominação por uma classe para encobrir uma dada realidade, mas ela é uma falsa experiência do real. A ideologia, para o autor, é "um processo responsável pela própria formação da consciência social" (Cohn, 1986, p. 11). Ela bloqueia a reflexão, pois impossibilita que o indivíduo consiga identificar e analisar as contradições sociais. A realidade passa a ser unidimensional, naturalizada. Sobre a ideologia:

    [...] além de ser um processo formador de consciência e não apenas instalado nela, opera no nível do inconsciente, no sentido forte do termo: ela não apenas oculta dados da realidade, mas os reprime, deixando-os sempre prontos a retornar à consciência, ainda que de novo sob formas ideológicas (Cohn, 1986, p. 17).

Nisso a indústria cultural demonstra seu poder: a ideologia que transmite atua não só na consciência, mas também no inconsciente; ela imprime necessidades idênticas em indivíduos homogeneizados. Desta maneira:

    A cultura tornou-se ideológica não só como suprassumo das manifestações subjetivamente acalentadas do espírito objetivo, mas na mais ampla escala, também como esfera da vida privada. A vida se converte em ideologia da reificação e, a rigor, em máscara mortuária(Adorno, 1986a, p. 87, grifos nossos).

A ideologia se apresenta não apenas no espírito objetivo: nas instituições sociais, na ciência, na arte, na técnica etc., mas principalmente no subjetivo. O indivíduo formado pela ideologia é o homem-mercadoria, que se exibe ornado de suas glórias e conquistas mercadológicas. Ele é a pura exterioridade e superficialidade, a aparência dissimulada e glamorizada. Mas toda essa fachada esconde sua subjetividade já mortificada. No interior desse indivíduo, encontram-se, apenas, os restos do cadáver: o sujeito pensante, da diferença qualitativa e do discernimento afetivo já desapareceu.

A indústria cultural atua de forma intensa pela glamorização. Ela seduz o indivíduo, transmitindo-lhe o que ele pode ser, pode ter, pode conseguir e possuir, desde que se submeta, desde que consuma, participe. Ele será um rei, identificando-se, vestindo-se com o véu da cultura que a indústria cultural insiste em transmitir e chamar como tal. No entanto, é o rei destronado, porque é o ser do conformismo, da subordinação, mas que goza do status que lhe é conferido. Torna-se, então, mesmo sem o saber, cúmplice do processo psicossocial que o violenta.

A indústria cultural atua nos indivíduos por meio da semiformação: que não significa uma deformação, mas uma falsa formação (Maar, 2001). O indivíduo acredita estar recebendo cultura quando, na realidade, os bens culturais como mercadorias não passam de semicultura, que é "a multiplicação de elementos espirituais sem vinculação viva a sujeitos vivos, nivelados em opiniões que se adaptam aos interesses dominantes" (Adorno, 1996b).

Os indivíduos são remetidos a uma massificação e idiotização, já que o conteúdo apresentado é sempre o mesmo. Um espectador, desde o começo do filme,já sabe como ele termina, quem é o vilão, quem é o mocinho e quem será recompensado. Soma-se a isso o fato de que o indivíduo acaba por regozijar-se com esse saber, o qual foi calculado pelos produtores para ser facilmente dedutível pelos espectadores (Horkheimer & Adorno, 1985a). Assim, a falta de criatividade e a anulação da imaginação tornam-se imperativos.

 

Os modelos identificatórios e a violência simbólica da indústria cultural

Diante do atual contexto em que a indústria cultural apresenta a realidade mediada pela racionalidade técnica, instrumental, ocorrem alterações/ distorções na estrutura psíquica do ser humano, principalmente em seus processos da consciência (pensamento, julgamento, discriminação, decisão), deixando o indivíduo à mercê de manipulações identificatórias e de seus impulsos destrutivos inconscientes.

A identificação é um mecanismo importante para o processo de socialização do indivíduo, uma vez que esse mecanismo orientará o modo como ele pode comportar-se e expressar seu desejo, garantindo a sua especificidade como "um-indivíduo" que se sabe diferente e em relação com o outro da alteridade.

Segundo Freud (2011a) a identificação é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, pois é um trânsito desejante inconsciente. Ela é o processo psíquico responsável pela formação da personalidade e possibilita ao indivíduo assimilar características totais ou parciais de outra pessoa. Por meio de uma série de identificações, o indivíduo constrói a sua identidade, tornando-se pessoa diferenciada.

Horkheimer e Adorno (1985a) desenvolvem a tese de que, no passado, a identificação com o status quo era obtida por meio do controle sob os impulsos do id sobre o ego e superego. No entanto, com a indústria cultural, a assimilação do indivíduo passou a se dar de forma mais direta. Nas palavras dos autores:

    Não é mais possível dar uma solução ao conflito pulsional em que se forma a consciência moral. Em vez da interiorização do imperativo social – que não apenas lhe confere um caráter mais obrigatório e ao mesmo tempo mais aberto, mas também emancipa da sociedade e até mesmo faz com que se volte contra a sociedade – tem lugar uma identificação pronta e imediata com as escalas de valores estereotipadas (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 185).

Os autores afirmam que a indústria cultural atua no indivíduo por meio de falsas identificações. Não há alternativas sublimatórias para/ na individualização, para a instauração do processo de construção da alteridade/diferenciação entre os indivíduos, porque o funcionamento psíquico se apoia em identificações primitivas inconscientes e deixam restos mnêmicos que não são avaliados/peneirados pela consciência (ego/superego). Essa seria uma tentativa dos processos psíquicos de conduzir tais identificações na trilha da verdadeira história relacional do indivíduo. Ao contrário dessas falsas identificações, só pela liberdade de pensar e refletir é que o indivíduo captura, na relação social com os demais, aquelas características/valores em consonância com a sua verdade existencial. Nessas verdadeiras identificações, a individualização não é um processo doloroso, mas sim conflitivo e reparatório. Já, na falsa identificação, não ocorre esse exame consciente e o indivíduo nega a sua interioridadeao imitar/repetir o objeto; ele apenas assimila escalas de valores estereotipadas, ou seja, ocorre uma perversão do processo identificatório. No processo de identificação verdadeiro, existe a possibilidade de construção de autonomia, fato que leva à crítica social e à possibilidade de emancipação. Pela indústria cultural, os indivíduos identificam-se mimeticamente com os atores e atrizes e, por meio deles, com todo o sistema social.

Freud (2011a) afirma que a identificação ainda pode surgir de uma internalização, sob sedução, de características vinculares que sustentam relações de dominação e que são impostas sutilmente ao grupo para manter a todos sob controle. Os laços dos indivíduos na massa, segundo Freud (2011a), formam-se justamente com base numa característica comum a todos, que mantém o vínculo de idealização com o tirano.

Adorno (2010), ao analisar o conteúdo das falas e panfleto dos agitadores fascistas norte-americanos, identifica que esse material não se preocupa com tópicos políticos concretos e tangíveis. Eles focam-se em aspectos de nível pessoal, sempre pobres em ideias. O autor (embasado em Freud) conclui que a adesão da população a esses materiais não ocorre de forma consciente (argumentos políticos), mas irracional. Adorno (2010) afirma que os indivíduos estabelecem um vínculo de natureza libidinal com o agitador fascista. Segundo ele, vivemos uma época que, por motivos socioeconômicos, testemunha um novo tipo de padecimento psicológico, que é o declínio do indivíduo, seu enfraquecimento e vontade de se entregar às "agências coletivas e poderosas", sua cumplicidade com o opressor, que lhe impõe formas de se expressar alheias àquelas que o vivificariam baseadas no desejo e na relação afetiva com o outro.

Adorno (2010) aponta que o agitador fascista (o tirano na análise freudiana) é idealizado pelos indivíduos. Essa idealização é uma projeção coletiva de si mesmo. Assim, todos "amam" o tirano, que se engrandece com essas reverências. Pelo fato de todos investirem no mesmo objeto, os indivíduos de per se sucumbem a uma identificação narcísica destrutiva.

Adorno analisa a forma como o totalitarismo de Estado atua como uma expressão de tendências psicossociais do capitalismo. Já na década de 1950, ele vislumbrou como as sociedades contemporâneas (pelo capitalismo tardio) engendrariam essas tendências dentro da "democracia" ou sistema político dito democrático.

A indústria cultural atua nas subjetividades à semelhança do tirano. Ela gera e estimula a reprodução de ideias totalizadoras e totalizantes, sendo a lógica da mercadoria o núcleo de todas elas. Os indivíduos passam a idealizar as "mercadorias culturais" por ela difundidas e, por isso, se enlaçam na massa. Ser alguém reconhecido e respeitado (visto como um integrante da sociedade) é ser um consumidor, um reprodutor da indústria cultural.

Por meio dos modelos identificatórios da mídia, o indivíduo assimila a forma heterônima que ele deve ter (falsa identificação). Ele idealiza esses modelos. Assim, todos estão fundidos, e apenas a dimensão destrutiva de seu narcisismo o compele à ilusão de ser maravilhoso como o modelo o é. Isso desperta o desejo de cada vez mais se aproximar das qualidades exibidas por esse modelo, sem jamais ser por ele verdadeiramente reconhecido e acolhido.

Os astros e grandes ícones da "cultura enlatada", transmitidos pelos meios de comunicação de massa, são mostrados como pessoas comuns. No entanto, eles têm algo que fez com que se diferenciassem da grande massa da população. Esse algo é sempre o mesmo: a prisão obsessiva nos ideais difundidas pela mídia, que eles assimilam como meta de vida. A modelo de passarela passa uma imagem de uma mulher obstinada, que foi pobre, mas que seguiu até o último momento o clichê "não desista de seus sonhos". Com isso, ela se envolve em uma parafernália de glamour, em que toda a sua existência consiste em atingir a fama, a qualquer custo, e exibi-la diante de toda a humanidade. A afirmação de que qualquer um pode ser como ela só exige que a pessoa não pense, em especial, não questione os ideais impostos socialmente, que seja sempre obediente e servil.

Ainda é dito para o indivíduo, quando malsucedido em atingir a fama, que ele não foi premiado com a sorte, pois todos têm as mesmas possibilidades. Assim, tudo é mostrado como sendo definido pelo acaso. Mas,

    Só uma [pessoa] pode tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é [...] (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 136).

É assim que os indivíduos equalizados e subordinados ao prêmio e ao acaso são altamente substituíveis e descartáveis.

As identificações dos indivíduos com tais modelos se processam no âmbito de um simbólico enganoso, no qual a irracionalidade dessa maquinação social se torna facilmente assimilável pelas fantasias inconscientes do sujeito. Os modelos identificatórios impostos socialmente são preparados de forma cuidadosa para se tornarem atraentes (sob glamour) e, porque escamoteadas suas dimensões de opressão, servem à imediatez não seletiva do princípio do prazer. Eles portam o signo de uma suposta superioridade social que todos almejam e freneticamente assimilam porque massivamente difundidas pela mídia. Só aí, quando todos estão destituídos de sua identidade particular, um passa a ter sentido e valor para o outro (Aulagnier, 1985). As individualidades tornadas estereotipias são partilháveis entre os sujeitos porque assimiladas falsamente como se fossem próprias a cada um.

O ser humano é o ser do desamparo que necessariamente precisa do outro para se desenvolver (Freud, 2011b). É exatamente nessa necessidade mais primeira que se encontra a brecha para a subordinação e submissão desse humano aos ditames econômico-sociais. Por meio dos processos identificatórios (essenciais à constituição humana), a lógica da mercadoria é interiorizada nos indivíduos. Como consequência, a criatividade, a reflexão e toda a potência de transformação e criação que o ser humano tem são reduzidas a uma mera reprodutibilidade mecânica da vida – ou, como diria Adorno (2008), da vida lesada.

A sociedade de consumo exige que cada um e todos os indivíduos sejam servos fiéis de um único senhor, que lhes promete alçarem o mundo dos "prazeres infindáveis". Seus reais desejos estão em suspensão, seus sentimentos voltados para um único objeto (a mercadoria), e seus pensamentos estão sob o controle inconsciente da farsa das ideologias consumistas. A felicidade está deslocada da vida de relações entre os homens e se expressa na captura da libido pela mercadoria e na satisfação de ter o vínculo amoroso sexual substituído pelo contentamento de ter dinheiro para tomar o "banho de loja" (Arreguy & Garcia, 2002).

Esse engolfamento ideológico do indivíduo configura-se como uma violência, no entanto, como aponta Guinsberg (1991), uma violência que não se apoia em armas, mas "apela à interiorização de suas premissas, normas, leis e ideias na subjetividade". Uma violência simbólica, em que a repressão direta ocorre apenas contra o transgressor dessas concepções ideológicas. Diz o autor:

    Uma violência que não produz feridas físicas como as da tortura, não elimina pessoas nem as "desaparece", não reprime manifestações nem atividades opositoras, mas age de uma forma que impede ou dificulta toda a atividade de oposição (total ou parcial) incompatível com um sistema de dominação, mas desde a própria subjetividade dos próprios homens a partir do medo ou da adaptação (preferentemente desta última e, em última instância, do primeiro) (Guinsberg, 1991, p. 7, grifos nossos).

O ser humano passa a familiarizar-se com a violência, torna-se indiferente na relação com os seus iguais. Pior ainda, internaliza essa violência da sociedade e, não podendo usar sua agressividade vital (amálgama com libido) para se proteger dos seus algozes (violência social e mais-repressão social), descarrega contra si próprio toda a hostilidade que, de bom grado, teria usado contra seus inimigos. Fica prostrado na destrutividade, em face da autopunição do "sentimento inconsciente de culpabilidade" (Freud, 2011b). Assim, o indivíduo sente-se como o único responsável por sua infelicidade e seu insucesso social. Ele deve se sentir como um incompetente por não conseguir se enquadrar nos ideais (inatingíveis) da indústria cultural.

Diante de um contexto social diariamente violentador, o indivíduo apenas consegue agredir um igual ou a si mesmo. Banaliza sua dor e ou passa a gozar com ela. Como testemunha Dorfman (2000, p. A-15), no artigo "Novo Chile apostava no esquecimento":

    Fiz o que fazem tantos de meus compatriotas (e de seres humanos em geral) quando confrontados com uma tarefa que lhes parece acima de suas forças: suprimi meus desejos, acomodei minha consciência para suportar a inevitabilidade do mal, acostumei-me com a sombra do general em nosso meio (Dorfman, 2000, p. A-15, grifos nossos).

 

A cumplicidade e o sadomasoquismo. Existe alternativa para a cultura?

    Na falsa sociedade, o riso atacou – como uma doença – a felicidade, arrastando-a para a indigna totalidade dessa sociedade. Rir-se de alguma coisa é sempre ridicularizar-se (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 132).

O controle da indústria cultural sobre os consumidores sofre mediação da diversão. Contudo a indústria cultural é indústria do entretenimento, cuja finalidade é colocar os homens de acordo com a ordem dominante e, ao mesmo tempo, gerar neles a própria necessidade da diversão: necessidade de consumir a "mercadoria cultural" imposta diariamente. A diversão nada mais é do que produzir a distração para a banalização do pensamento.

Tal diversão, sob o império do capitalismo, é um prolongamento do trabalho. Ela é utilizada para manter o indivíduo em condições de voltar a trabalhar novamente. O indivíduo mal interrompe a atividade laboral e é tragado pela necessidade de entretenimento com mercadorias produzidas pela indústria cultural. Sua consciência sofre novos momentos regressivos, que o mantém preso à opressão imposta pelo sistema produtivo. Essa diversão é enganadora conforme o indivíduo se distancia, cada vez mais, da possibilidade de entender e reagir diante do massacre em que vive. Assim, a diversão pela indústria cultural está sob a mesma lei do processo de trabalho: a lógica da mercadoria. Até o descanso é apenas a falsa ideia de desocupação, que o prepara para o trabalho do dia seguinte (Horkheimer & Adorno, 1985a).

Na televisão e nos filmes comerciais, a lição ensinada pelo protagonista é a de que todos devem se acostumar com as surras, pois, ao fim, tudo valerá a pena. O indivíduo deve renunciar à sua própria vida, uma vez que o que lhe é oferecido (exibido) é "sempre superior". A indústria cultural, dessa maneira, fundamenta-se numa promessa de satisfação que nunca se realizará, num aguçamento do desejo que leva o indivíduo a pensar que pode fugir de seu cotidiano (dito sem graça). Nessa ilusão, "o prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência contra o espectador, a diversão em esforço [...]" (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 130).

Tudo não passa de uma vitrine. As necessidades geradas e estimuladas pela indústria cultural nunca encontram o objeto de satisfação, justamente para que o indivíduo continue insatisfeito. Dessa forma, ele é fisgado em um jogo em que as falsas necessidades desfilam aos seus olhos como um cardápio que, compulsivamente, não pode parar de ser olhado. Assim, para se enquadrar nos padrões propagados como ideais, ele vive na falta e desenvolve traços peculiarmente masoquistas (Horkheimer & Adorno, 1985a), tornando-se indiferente à insatisfação continuada e ao próprio sofrimento.

Freud (2011b) escreve que a cultura necessariamente gera mal-estar, pois impõe sacrifícios aos indivíduos. Para viver em sociedade, é preciso abrir mão da satisfação continuada dos impulsos libidinais e agressivos e integrá-los em um nível superior das exigências psíquicas. Porém as frustrações propostas pela indústria cultural não promovem no indivíduo o desenvolvimento interno, mas o conduzem ao aumento do consumismo insaciável. A "sublimação" vira justificação e não conduz ao aperfeiçoamento dos indivíduos por meio do trabalho, mas conduz a uma busca de adaptação substitutiva a essa realidade hostil e à relação de desconfiança com os outros homens. As artes também se tornam promíscuas e revelam um caminho, apenas, de consolos ou compensações. No entanto, como analisam Horkheimer e Adorno (1985a, p. 143),

    A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo no preenchimento da condição sob a qual ele está autorizado a levar uma vida inexorável. O indivíduo deve aproveitar seu fastio universal como uma força instintiva para se abandonar ao poder coletivo de que está enfastiado.

A repressão dos impulsos parece não encontrar caminhos para a verdadeira sublimação, visto que a cultura, convertida em indústria cultural, não possibilita os elementos necessários a ela. Ao contrário, ela utiliza tal repressão para que novamente o indivíduo se submeta, dando adesão a ideologias totalizadoras, negando sua individualidade humana.

Freud (1996b) afirma que, por meio da cultura, em especial da obra de arte, é possível levar a pulsão à simbolização: a sublimação. Nesse processo, a pulsão é direcionada para um objeto não sexual, possibilitando a construção da fantasia sem negar a realidade. Trata-se de um mecanismo libertador, que possibilita o avanço social, por meio da ciência e da arte. No entanto, a indústria cultural impossibilita que se desenvolva a sublimação, uma vez que:

    A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto de desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito de renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 131).

Ela estimula o prazer sexual e o aprisiona na imagem transmitida e ainda oferece a mercadoria como promessa de satisfação, propagando: "compre determinado perfume e conseguirá ter uma mulher tão sensual quanto a personagem que se apaixona pelo mocinho, ou use determinado xampu e será tão bela quando a protagonista, que seduz todos os homens". As pulsões não sublimadas jogam o indivíduo na repetição compulsiva de seu sofrimento.

O ideal na indústria cultural é o indivíduo que aceita sua derrocada e goza de seu próprio sofrimento: o prazer na dor. Esse masoquismo também apresenta um sadismo, visto que:

    Em última análise, a elogiada têmpera para a qual se é educado significa pura e simplesmente indiferença à dor. E não se faz tanta distinção assim entre uma e outra. Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir (Adorno, 1986b, p. 39).

Sob o império da destruição mútua, a alteridade é anulada e a diferença, negada. Esse processo tem como suporte subjetivo o sadomasoquismo, em que o direcionamento da destrutividade é retroativo: ao ser negada a identidade do outro, o si mesmo está sob destruição.

Os indivíduos "[...] transformam-se em algo análogo à matéria bruta e omitem-se como seres autodeterminantes. Isso combina com a disposição de tratar os indivíduos como massa amorfa [...]" (Adorno, 1986b, p. 40). Massificados, padronizados e introduzidos sutilmente num coletivo de subjetividades homogêneas, esses indivíduos tendem a tratar os outros como coisa. Consequentemente, direcionar a destrutividade para uma coisa, um objeto humano destituído de humanidade, é o processo pelo qual o indivíduo tenta, desesperadamente, garantir a sobrevivência de um ego desativado.

A satisfação da necessidade produzida pela indústria cultural funciona sob catarse (Horkheimer & Adorno, 1985a), pois os objetos oferecidos por ela "satisfazem" parcialmente; logo o sujeito precisa estar consumindo produtos contínua e incessantemente. É nesse contexto que o divertimento é convertido em esforço penoso, seja jogando o indivíduo na identificação com o protagonista surrado (uma sombra fantasmática), seja pelo aguçamento de necessidades que jamais serão completamente atendidas, o que leva o indivíduo a desenvolver traços de caráter masoquista.

O sujeito executa não apenas a repressão do impulso de destrutividade interno, mas, principalmente, a internalização da violência simbólica externa (expressa principalmente pelas ideologias), direcionando ambas para o seu próprio ego, pois é impedido de exteriorizá-las, caracterizando o sentimento de culpabilidade - descrito por Freud (2011b) em O mal-estar na cultura. Esse jogo identificatório perverso, em que é o objeto (mercadoria) que está repleto de todas as qualidades, retém a destrutividade como sendo apenas o que resta ao indivíduo, que se acusa e busca continuamente novas punições.

Além disso, para ser incluído, não é preciso que o indivíduo esteja diretamente vinculado ao sistema social, como um trabalhador, um empregado ou consumidor fisgado. A própria miséria dele é objeto da indústria cultural. "No liberalismo, o pobre era tido como preguiçoso, hoje ele é radicalmente suspeito. O lugar de quem não é objeto da assistência externa de ninguém é o campo de concentração" (Horkheimer & Adorno, 1985a, p. 141).

A condição de flagelado do indivíduo é, dessa forma, o meio pelo qual se expressa a "solidariedade" entre os homens. A indústria cultural, portanto, chama de solidariedade a "assistência aos flagelados", um fictício interesse humano. Sob a aparência esplendorosa de um amparo fervoroso se esconde/ desvela um cinismo hipócrita administrado pelos senhores guardiães da "felicidade humana": funcionários do Estado e mídia a serviço dos poderosos.

Assim, o último reduto no qual o indivíduo ainda é considerado como inserido na sociedade, mesmo que perversamente, são essas instâncias assistencialistas. Na condição de ter que ser assistido, o indivíduo está entregue e passa a ser o meio pelo qual a sociedade se afirma bondosa, caridosa e solidária.

Sob esse contexto opressor o indivíduo é esvaziado ou impedido de fazer uso de suas habilidades humanas e, entre elas, a de administrar, para sua própria integração, desenvolvimento e conservação, as suas capacidades de julgar, decidir, discriminar, escolher, amar e se relacionar com a alteridade (de ser, enfim, agente de sua realidade, sujeito da história e de sua própria vida). Será possível sair da cumplicidade desse sadomasoquismo instituído socialmente?

Adorno e Horkheimer (1973b, p. 55) escrevem que "sociedade, que estimulou o desenvolvimento do indivíduo, desenvolve-se agora, ela própria, afastando de si o indivíduo, a quem destronou. Contudo, o indivíduo desconhece esse mundo, de que intimamente depende, até o julgar coisa sua".

A cultura da crítica (Adorno, 1986a) e do amparo (Freud, 2011b) só poderá ser construída quando os indivíduos assumirem a condição de construtores dessa cultura, quando entenderem que a sociedade e os bens produzidos por ela são "coisa sua". Somente assim as atuais condições de existência poderão ser transformadas de forma criativa, humanizada e humanizante.

 

Referências

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* Psicóloga formada pela Universidade Estadual de Maringá-PR, integrante do projeto de pesquisa-intervenção "Phenix: a ousadia do renascimento do indivíduo sujeito – fase III", vinculado ao Departamento de Psicologia (DPI-UEM), onde atua na intervenção com grupos de adolescentes em uma escola na periferia de Maringá. E-mail:samara_meg@hotmail.com.
** Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1995), mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), titulada em Psicologia Clínica e Social pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), graduada em Psicologia (Licenciatura e Formação de Psicólogos) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1968). E-mail:ampicani@onda.com.br.