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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.3 Belo Horizonte dez. 2012

 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p373

 

O desenvolvimento da habilidade de assertividade e a convivência na escola: relato de experiência

 

The development of assertiveness ability and interaction in school: experience report

 

El desarrollo de la habilidad de la aserción y la convivencia en la escuela: relato de experiencia

 

 

Denise da Silva Maia;* Marcela Bortolini;**

 

 


Resumo

A aquisição de habilidades sociais, como a assertividade, inicia-se na infância e constitui-se como importante fator de proteção de problemas emocionais e comportamentais. Este artigo é um relato de experiência profissional referente ao desenvolvimento da habilidade de assertividade com alunos do terceiro ano do ensino fundamental I de uma escola de Porto Alegre. O objetivo foi auxiliar as crianças a desenvolverem um melhor repertório na habilidade de assertividade e obter uma melhora na convivência escolar. Foram realizados encontros semanais com uma turma de 24 crianças durante um ano; neste estudo, serão relatados alguns deles. Os materiais trabalhados nas aulas foram retirados da literatura e de reflexões da estagiária e da supervisora. Observou-se que o trabalho com a habilidade de assertividade possibilitou reflexões, autoconhecimento e mudanças de comportamento pelos alunos. Sugere-se que projetos destinados à promoção de habilidades sociais na infância atuem na prevenção de problemas futuros.

Palavras-chave Habilidades sociais. Assertividade. Ensino fundamental. Socialização.


Abstract

The acquisition of social skills such as assertiveness, begins in childhood and constitutes an important protective factor for emotional and behavioral problems. This article is a report of work experience for the development of assertiveness skills with students from third year of elementary school with a school in Porto Alegre. Its aim is to help children develop a better assertive repertoire and the ability to obtain an improvement in school life. Meetings were held weekly with a group of 24 children for one year; in this study only some of these will be reported. The materials worked on in class were taken from literature and reflections of the intern and the supervisor. It was observed that the working with assertiveness skills allowed reflections, self-awareness and change in behavior of students. They are suggested projects designed to promote social skills in childhood work for the prevention of future problems.

Keywords: Social skills. Assertiveness. Elementary education. Socialization.


Resumen

La adquisición de habilidades sociales, tales como la de la aserción, empieza en la infancia y constituye un importante factor de protección ante problemas emocionales y de comportamiento. El presente artículo es el relato de una experiencia profesional relativa al desarrollo de la habilidad de la aserción con estudiantes del tercer año de la enseñanza básica I de una escuela de Porto Alegre. Su objetivo era el de ayudar a los niños a desarrollar un repertorio mejor de la habilidad de la aserción y obtener una mejora en la convivencia escolar. Las reuniones se llevaron a cabo semanalmente con un grupo de 24 niños durante un año; en este estudio relataremos algunas. Los materiales trabajados en clase provienen de la literatura y de las reflexiones de la alumna en prácticas y de la supervisora. Se observó que el trabajo con la habilidad de la aserción permitió reflexiones, autoconocimiento y cambios de comportamiento de los alumnos. Se sugiere que los proyectos diseñados para promover las habilidades sociales en la infancia actúen en la prevención de problemas futuros.

Palabras clave:Habilidades sociales. Aserción. Enseñanza básica. Socialización.


 

 

Educar não é outra coisa que socializar, e por socialização entendemos todos aqueles processos que participam no desenvolvimento de determinadas capacidades e habilidades que ajudem meninos e meninas a se incorporarem e se integrarem à sociedade de uma maneira ativa e participativa. Esta consideração [...] implica colaborar, a partir dos sistemas educativos, na formação de indivíduos autônomos, reflexivos, dialogantes e capacitados para participar na resolução dos problemas e conflitos que surjam ao longo de sua própria história (Borrego de Diós, 1992).

A escola, além de um local de formação acadêmica, é um complexo cenário de convivência, formado por redes sociais de participação. Na escola, diferentes sistemas se organizam e se mantêm em funcionamento: as relações entre os adultos, entre os adultos e os alunos, e destes entre si (grupo de iguais).

Conflitos são inevitáveis no contexto da convivência humana e não há soluções fáceis ou receitas mágicas para as questões decorrentes da coexistência num mesmo local, ao mesmo tempo. Pelo contrário, a cada escola compete a elaboração e a realização de seu próprio projeto de convivência, baseado em atitude investigadora e espírito crítico (Ruiz et al., 1997). Assim, os educadores têm como papel fazer a gestão da convivência e proporcionar aos alunos vivências e aprendizagens que os levem à competência social.

Neste artigo, será abordado um projeto desenvolvido para melhorar a convivência na escola, com base no desenvolvimento de habilidades sociais. É descrita uma experiência realizada com alunos do 3º ano do ensino fundamental com ênfase no desenvolvimento da assertividade.

 

Desenvolvimento da habilidade de assertividade na infância

A infância é um período decisivo para a aprendizagem e o aprimoramento das habilidades sociais (Del Prette & Del Prette, 2005). Embora a construção de um repertório socialmente habilidoso se dê em interações entre pais e filhos, irmãos, colegas de escola, amigos, comumente ocorrem falhas nesse processo de aprendizagem, havendo déficits nas habilidades sociais (Gomide, 2003). Pesquisas demonstram que ser habilidoso socialmente constitui-se como um fator de proteção no curso do desenvolvimento humano (Cecconello & Koller, 2000), bem como mostram a correlação entre competência social e sucesso escolar, ajustamento pessoal e social, enquanto a incompetência social está associada a um amplo leque de desajustes e dificuldades, como baixa aceitação, rechaço, isolamento, problemas emocionais e escolares, psicopatologia infantil, delinquência juvenil e diversos problemas de saúde mental na vida adulta (Bandeira, Rocha, Pires, Del Prette & Del Prette, 2006; Rockhill, Stoep, Mccauley & Katon, 2009). Dessa forma, projetos destinados à promoção de habilidades sociais na infância atuam na prevenção de problemas futuros (Murta, 2005).

O ensino de habilidades sociais é competência e responsabilidade da escola (Ruiz et al., 1997). Del Prette e Del Prette (1999) definem habilidades sociais (HS) como classes de respostas comportamentais aprendidas pelo indivíduo que possibilitam agir de maneira adequada diante de diferentes situações. Explorando ainda esse conceito, Caballo (1998) refere que as HS são consideradas o conjunto de comportamentos de uma pessoa numa situação interpessoal, por meio dos quais manifesta, de modo apropriado, sentimentos, atitudes, desejos, opiniões ou direitos, o que costuma resolver os problemas imediatos, diminuindo a probabilidade de problemas no futuro. Outro autor refere que as HS são comportamentos desejáveis que propiciam a interação com o outro, por meio da verbalização, da expressão facial, da postura, do contato visual, dos gestos e da aparência física. Logo, ser socialmente habilidoso facilita a solução de problemas interpessoais, aumenta a autoestima, melhora a qualidade de relacionamentos e promove tranquilidade (Falcone, 2002).

Competência social é compreendida como "A capacidade de articular pensamentos, sentimentos e ações em função de objetivos pessoais e de demandas da situação e da cultura, gerando consequências positivas para o indivíduo e para a sua relação com as demais pessoas" (Del Prette & Del Prette, 2005, p. 33).

Neste trabalho, o foco se centra na abordagem da habilidade de assertividade, cuja definição, segundo os autores citados é:

    Uma classe de habilidades sociais de enfrentamento em situações que envolvem risco de reação indesejável do interlocutor, com controle da ansiedade e expressão apropriada de sentimentos, desejos e opiniões. Ela implica tanto na superação da passividade quanto no autocontrole da agressividade e de outras reações não habilidosas. (Del Prette & Del Prette, 2005, p. 1-5).

Além da assertividade, a passividade e a agressividade também se tornam foco deste trabalho, visto que ambas compõem o arsenal de maneiras de comunicações nas relações. Expressões passivas se caracterizam por uma comunicação mais encoberta de incômodo, mágoa, ressentimento, ansiedade, comportamentos esquivos ou de fuga das demandas interpessoais em vez de enfrentamento. Já o estilo agressivo se caracteriza pelo autoritarismo, coerção, negativismo, ironia, agressividade de forma física e verbal (Del Prette & Del Prette, 2005).

A assertividade oferece às crianças a habilidade de se adequarem a um contexto. A aquisição dessa habilidade favorece a manutenção de outras habilidades, como a civilidade, o autocontrole e a expressividade emocional (Oliveira, 2005). Com a assertividade a criança conquista a capacidade de defender os próprios direitos e de expressar sentimentos e crenças, de forma honesta, direta e apropriada, sem violar os diretos da outras pessoas (Falcone, 2001). Quando ocorrem déficits na assertividade, as crianças podem vivenciar perda de oportunidade, autoimagem negativa, frustração, tensão, incontrolabilidade e isolamento (Branco & Ferreira, 2006).

Encontraram-se alguns estudos de caracterização e avaliação das HS das crianças em escolas (Bandeira, Rocha, Freitas, Del Prette & Del Prette, 2006; Cia & Barham, 2009; Saud & Tonelotto, 2005; Bolsoni-Silva, Marturano, Pereira & Manfrinato, 2006), porém há poucos estudos de intervenção. O trabalho de Borges e Marturano (2003) evidenciou que crianças da primeira série, participantes de um programa com foco em solução de problemas interpessoais, obtiveram um melhor desempenho nessa habilidade social.

Caracterizando de uma maneira mais ampla o estado da arte das publicações nessa área, a meta-análise de Murta (2007) evidencia que, no contexto internacional, os programas preventivos são caracterizados por grupos psicoeducacionais e grupos de solução de problemas interpessoais implantados no contexto escolar, com sessões semanais ao longo de três meses. Porém, em contexto nacional, Murta (2007) mostra que os estudos são mais de identificação de fatores de risco e proteção ao desenvolvimento da criança e do adolescente, da discussão de problemas de pesquisa e realização de programas preventivos de comportamentos antissociais, assim como a identificação de prejuízos acadêmicos. Ainda são poucas as intervenções; apenas alguns relatos de experiência relativos a propostas intervenientes têm sido publicados. Logo, este estudo justifica-se pela relevância de se incluírem programas de intervenção focados no desenvolvimento das habilidades sociais, em especial a habilidade de assertividade, em ambiente escolar, assim como pela importância da habilidade de assertividade na infância. Este estudo apresenta um relato de experiência com o desenvolvimento dessa HS, que teve o objetivo de auxiliar as crianças a desenvolverem um melhor repertório na habilidade de assertividade, bem como melhorar a convivência escolar.

 

Estrutura e funcionamento

Em uma escola de Porto Alegre, foi elaborado, a partir de 2006, o projeto Aprender a Conviver na Escola, destinado à educação infantil (níveis A e B) e ao ensino fundamental I. Suas principais metas estão relacionadas ao aprendizado da convivência, à educação em valores e à prevenção do bullying. O trabalho é amparado no esquema referencial de Del Prette e Del Prette (2005), que propõem como HS relevantes na infância autocontrole e expressividade emocional, civilidade, empatia, assertividade, fazer amizades, solução de problemas interpessoais. A essência do projeto é o desenvolvimento de HS, de forma a oportunizar um aumento da competência social por meio da ampliação do repertório das crianças e habilidades sociais acadêmicas.

O projeto destina para cada ano do ensino fundamental I a aprendizagem de duas habilidades sociais, por meio de atividades semanais coordenadas pelas estagiárias de Psicologia, sob supervisão semanal da psicóloga da escola. A definição de cada habilidade social para cada ano considerou a faixa etária, atribuindo importância e atenção às características desenvolvimentais das crianças. Os responsáveis pelas crianças, ao matricularem seus filhos, estavam cientes de que esse projeto integrava o currículo da escola (currículo socioafetivo), assim como de possíveis trabalhos derivados deste.

Nesse relato, são referidas as vivências de aprendizagem da habilidade de assertividade, no período de março a setembro de 2011, com alunos de uma turma do terceiro ano do ensino fundamental I, constituída de 24 crianças, 13 meninas e 11 meninos. Os dados serão apresentados em forma de relato de experiência, ressaltando, sempre que conveniente, explicitações dos alunos para melhor caracterizar os momentos. Os encontros não foram gravados, porém foram relatados por escrito, por vezes com transcrições de falas. O conteúdo qualitativo manifesto nos encontros foi analisado para a elaboração deste estudo.

 

Características da turma

Segundo os professores, estagiária e psicóloga, essa turma sempre foi muito disposta a participar das atividades, mostrando-se engajada em qualquer tipo de tarefa, participativa em discussões e tendo senso de grupo em muitos momentos. No conselho de classe, também foi apresentado o sociograma, técnica aplicada a cada trimestre e usada com a finalidade de conhecer o sistema de relações existentes no grupo e o lugar ocupado por cada sujeito nesse sistema, apontando informações sobre a rede de inter-relações, de aceitação e de rejeição (Puig, Martín, Escardíbul & Novella, 2000). Não houve muitas oscilações do sociograma do primeiro para o segundo trimestre.

As atividades, realizadas semanalmente, com a duração de 50 minutos, foram desenvolvidas considerando-se as características grupais, o tema a ser trabalhado, as reações despertadas no grupo, assim como a faixa etária, visto que crianças de 9 e 10 anos ainda estão no período operatório concreto (Papalia, Olds & Feldman, 2006), o que possibilita o desenvolvimento de atividades como role play, escritas, dinâmicas grupais e discussões.

 

Os encontros

Os encontros com a turma ocorreram ao longo de um ano letivo. Ante a imensa quantidade de material, neste estudo serão elencados apenas alguns encontros para a ilustração do trabalho desenvolvido. Num primeiro momento trabalhou-se com o conceito de civilidade diante de acontecimentos do cotidiano dos alunos, cujas discussões e engajamento permitiram que se iniciasse posteriormente o trabalho com a habilidade de assertividade.

Nas primeiras aulas com a habilidade de assertividade, objetivou-se a compreensão teórica dos conceitos de assertividade, passividade e agressividade para que, posteriormente, os alunos conseguissem identificar-se nessas classes. Esse contato com os conceitos e características (tom de voz, postura, linguagem, expressões, entre outras) das três maneiras de reação foi permitido por meio de slides.

Após alguns encontros em contato com os conceitos de assertividade, com os mais diversos exemplos, solicitou-se aos alunos que desenhassem e escrevessem uma situação em que se comportaram de maneira passiva ou agressiva e, em seguida, imaginassem como seria essa mesma situação de maneira assertiva, passiva ou agressiva.

Diante dos assuntos trazidos para as aulas de assertividade, verificou-se a necessidade de trabalhar com o conceito de bullying. Assim, sugeriu-se que os alunos escrevessem uma situação em que haviam sofrido ou praticado bullying e como poderiam ter agido de maneira assertiva.

Depois de algumas discussões e esclarecimentos sobre o assunto bullying, solicitou-se que os alunos falassem sentimentos que experimentaram e que combinava com os sentimentos de alguém que sofria bullying. Essa atividade foi conduzida com o propósito de haver discussões referentes às condutas assertivas de quem sofre, faz e é testemunha de bullying.

Posteriormente, com o objetivo de trabalhar direitos e deveres, solicitou-se aos alunos que se reunissem em grupos e dramatizassem (role play) uma das situações que haviam escrito na última atividade. Essa atividade também almejou a reflexão sobre as consequências das maneiras de expressão, por meio de discussões com os alunos, a fim de auxiliar no desenvolvimento da habilidade de assertividade.

 

Relato de experiência com a habilidade de assertividade

O relato da presente experiência será apresentado em três momentos, os quais foram divididos a seguir de acordo com o andamento da turma quanto aos assuntos trabalhados.

Primeiro momento: identificando demandas e despertando o interesse

Os trabalhos realizados com a habilidade de civilidade, no princípio, estavam relacionados ao uso das "palavras mágicas": obrigado, com licença, por favor, desculpe-me. Porém, devido ao rápido envolvimento da turma com o assunto, emergiam discussões acerca das consequências das pessoas serem ou não civilizadas nas relações interpessoais. Em uma das discussões, um aluno mencionou: "Percebi, enquanto fazia um trabalho na aula, que um colega com quem eu nunca tinha conversado foi bem educado comigo, e eu me senti bem com ele, então acho que ser civilizado faz a gente ficar mais amigo".

Nessas discussões, as crianças apresentaram um grande envolvimento, obtendo muitos insights ante as verbalizações dos colegas. Outro aluno referiu: "Me dei conta, nos jogos de futebol, que eu não sou muito civilizado e ninguém gosta, vejo que tenho menos amigos por causa disso no futebol". As falas evidenciaram a presença de muitos comportamentos passivos e agressivos, assim como as suas consequências, como, por exemplo, as represálias a quem se comporta de maneira agressiva. Assim, com base nas demandas trazidas pelas crianças, decidiu-se introduzir, nesse momento, a habilidade de assertividade, com o objetivo de auxiliar os alunos na resolução dos seus conflitos.

Segundo momento: reflexões e tentativas de praticar a assertividade

O contato, por meio de slides, com os conceitos de assertividade, passividade e agressividade suscitou uma ampla participação dos alunos; alguns deles dramatizaram situações e expressões, contaram histórias repletas de sentimentos, como tristeza, medo e raiva, relacionados com os diferentes modos de agir. Foi uma atividade que proporcionou a identificação de uns com os outros; os alunos perceberam que, em muitas situações do cotidiano, tinham os mesmos sentimentos e se comportavam de maneiras muito parecidas. Evidenciou-se também um ambiente repleto de confiança entre os alunos no compartilhamento dos sentimentos.

Após a familiarização dos alunos com os conceitos de assertividade, solicitou-se que desenhassem e escrevessem uma situação contemplando comportamentos passivos ou agressivos e, após, como seria essa mesma situação de maneira assertiva, passiva ou agressiva. Nessa atividade escrita, diferentemente do que vinha acontecendo nas atividades orais, alguns alunos apresentaram dificuldades de reconhecer suas maneiras de reação. Tais dificuldades estavam relacionadas à mobilização dos alunos ao se enxergarem passivos ou agressivos e aos sentimentos embutidos nessas maneiras de expressão. Despertar a afetividade mostrou-se, então, fator relevante para insights posteriores.

Na mesma atividade mencionada, emergiram sentimentos de medo, vergonha e tristeza. Um aluno mencionou: "Eu estou triste porque eu sei que, em muitos momentos, eu sou passivo. Quando eu chego em casa, eu choro porque uma colega aqui dessa turma fica gozando de mim todos os dias, e eu não faço nada". Nessa situação, compreendeu-se o sofrimento expressado e a dificuldade para modificar o próprio comportamento, e valorizou-se a identificação pelo aluno do seu comportamento e a própria percepção das consequências que esse estilo de expressão proporciona. Com base nas reflexões, procurou-se estimular essa criança a pensar sobre outros comportamentos que poderia ter. Crianças do ensino fundamental têm condições de adquirir ou completar ferramentas cognitivas que possibilitam a instrumentalização para se tornarem socialmente competentes. Existe a capacidade de descentrar o pensamento para favorecer o desenvolvimento de comportamentos pró-sociais.

Na aula seguinte, foi realizada uma discussão acerca da atividade anterior. A estagiária inicialmente valorizou a expressão dos alunos ante a tarefa e reconheceu o quão difícil, muitas vezes, era se deparar com o sofrimento, o qual frequentemente gerou resistência às atividades. Um exemplo pode ser percebido na fala de uma aluna: "Mas não pode só colocar assertiva? Eu não sou passiva e nem agressiva". Nessa discussão, as crianças também trouxeram muitas vivências com atitudes passivas e agressivas, e grande parte dos alunos envolveu-se na reflexão sobre como as pessoas poderiam se comportar de maneira assertiva.

Terceiro momento: em busca de uma melhor convivência

Nas atividades anteriores, emergiram assuntos relacionados ao bullying, como verbalizações de alguns alunos acerca de conflitos recorrentes, principalmente referentes a gozações e exclusões; assim, trabalhou-se com atividades que abordavam tanto o bullying quanto a assertividade.

Após observar o movimento da turma, explorou-se a dificuldade das crianças ao se depararem com os maus-tratos ante a atividade de escrever sobre uma situação em que sofreram ou maltrataram alguém. Um aluno disse: "É muito difícil escrever que a gente maltrata alguém". Perguntou-se sobre o porquê dessa dificuldade, e uma aluna disse: "Porque a gente não quer se dar conta que a gente faz mal para alguém". Os alunos reconheceram os maus-tratos em suas ações e mencionaram esse comportamento como negativo ao assumirem a perspectiva do outro. Logo, mesmo que essas falas estejam (ainda) no nível verbal, valorizou-se a reflexão da aluna, visto que as crianças estão se desenvolvendo, reorganizando e integrando competências.

Na mesma atividade, aqueles alunos que escreveram sobre serem maltratados falaram da dificuldade de agirem de maneira assertiva, principalmente pelo medo de revelar que sofriam maus-tratos e piorar a situação. Novamente foi valorizada a capacidade de reconhecer e explicitar os sentimentos permeados à passividade, assim como foi pensando sobre os modos assertivos de agir. A compreensão da história de vida e das características individuais de cada aluno faz com que haja uma valorização de cada insight, das mobilizações, das discussões, dos comportamentos tidos pelas crianças, ou seja, cada movimento de cada aluno foi recebido como positivo nessa caminhada para uma melhor convivência na escola.

Com o intuito de estimular reflexões sobre o maltratar, juntamente com a assertividade, foram escritas no quadro algumas palavras que os alunos explicitavam acerca das situações de maus-tratos ocorridas na turma. Com a observação dessas palavras, realizou-se um trabalho de empatia com as crianças que sofrem maus-tratos, tentando usar sempre as palavras trazidas por eles, e posteriormente pensar sobre a assertividade nas situações. Assim, solicitou-se que os alunos pensassem como era um dia de uma criança maltratada: ao acordar, ao chegar à escola, nos recreios, durante os períodos de aula, na saída da escola, em casa, ou seja, em todos os momentos, buscaram-se identificar quais seriam os sentimentos da pessoa maltratada e quais comportamentos estariam relacionados à assertividade. Uma criança falou: "Nessa situação de gozação, o G. poderia olhar bem sério para a pessoa e falar que ele estava se sentindo humilhado e que era para ele parar de fazer aquilo". Nesse momento, foi recordado o conceito de empatia, que os alunos já haviam tido contato no segundo ano e que sempre esteve contemplado nas atividades durante todo o terceiro ano. Com base na proposta de dramatizações, os alunos refletiram sobre o porquê daqueles que sofrem serem passivos, não tomando atitudes para defender seu direito de não sofrer maus-tratos. Quando questionados acerca dessas questões, muitos alunos mencionaram que as crianças não defendem seus direitos pelo medo de sofrer mais. E, em relação às crianças que maltratam, afirmaram que elas não mudam seus comportamentos porque todas as outras crianças ficam do lado destas por medo de ser a próxima vítima. As reflexões posteriores foram direcionadas para direitos e responsabilidades, almejando o desenvolvimento da moralidade.

 

Discussão e conclusões

A partir dessa experiência, compreende-se a importância de se realizarem ações específicas que possibilitem o desenvolvimento de HS entre as crianças e, consequentemente, a melhora da convivência. Esse aspecto é fortemente recomendado na literatura sobre bullying, especialmente nas experiências realizadas nas escolas públicas espanholas (Borrego de Diós, 1992; Ruiz et al., 1997; Ortega, Del Rey & Gómez, 2002). Bandeira, Rocha, Freitas, Del Prette e Del Prette (2006) referem que pensar sobre maneiras de resolver problemas interpessoais resulta na diminuição da ocorrência de comportamentos problemáticos.

As relações interpessoais são contextos cruciais para o desenvolvimento sadio ou para a formação de distúrbios (Campos & Marturano, 2003). Piaget (1994) refere que o desenvolvimento das crianças ocorre na sua integralidade; junto com a evolução da inteligência, ocorrem alterações relacionadas à afetividade, à socialização e à moralidade. Logo, cabe à escola também atentar para outros aspectos do desenvolvimento, além do cognitivo. Confirmando a posição de Piaget, Morales (2009) afirma que uma educação completa destinada aos bons relacionamentos deve envolver a presença desses três níveis (cognitivo, emocional e moral), a fim de que as HS fluam sem esforço.

Um dos requisitos para pensar assertivamente é a capacidade de avaliar e predizer as prováveis consequências do comportamento assertivo ou não assertivo (Del Prette & Del Prette, 2005). Para exercitar esse pensamento consequencial, a criança é auxiliada a dar-se conta de que as suas ações geram reações nos outros (Borges & Marturano, 2010). Sabe-se que o desenvolvimento da habilidade de assertividade envolve outras habilidades, como a empatia (Del Prette & Del Prette, 2005). A incapacidade de prever consequências futuras e de se colocar no lugar do outro se associa com comportamentos agressivos (Pinheiro, Haasea, Del Prette, Amarantea & Del Prette, 2006).

A literatura corrobora as observações feitas nos encontros. Cerca de 50% dos que sofrem maus-tratos não informam o ocorrido nem aos professores e nem aos seus responsáveis (Lopes Neto, Monteiro & Saavedra, 2003). Del Prette e Del Prette (2005) referem que, para haver assertividade, é necessário que haja a compreensão sobre os direitos e deveres que correspondem a cada um dos que estão participando de uma interação social, visto que se a criança compreende que ela tem o direito a alguma coisa, ela tem igualmente que compreender seus deveres. Formar alunos capazes de refletir sobre os valores existentes significa criar situações nos conteúdos das disciplinas em que escolhas, reflexões e críticas sejam possíveis de serem realizadas.

Razera e Nardi (2006) expõem que, na formação prática da moralidade nos contextos escolares, esta deveria ser trabalhada em atividades que mostrassem relações humanas e que seus conflitos pudessem proporcionar reflexão sobre melhores situações para todos os envolvidos. Nesse sentido, optou-se por trabalhar em vários momentos com dramatizações, para que os alunos refletissem sobre as relações de conflito da maneira mais próxima da realidade. Mesmo que as falas das crianças estivessem no nível verbal e na dramatização, é importante a valorização destas, visto que as crianças estão se desenvolvendo, reorganizando e integrando competências, adquirindo recursos internos e externos para lidar com as questões proeminentes à sua faixa etária (Campos & Marturano, 2003).

O trabalho conjunto entre supervisora, estagiária e professora foi muito importante para o bom andamento e elaboração das atividades, assim como para a compreensão das demandas presentes nas turmas. Del Prette e Del Prette (2005) referem que o sucesso da intervenção depende, em grande parte, da interação de esforços entre todos os profissionais que lidam com as crianças.

Observou-se que o trabalho com a habilidade de assertividade favoreceu o trabalho indireto de outras habilidades e de outras questões que compõe o desenvolvimento socioemocional. Assim, este trabalho evidencia que outras questões emocionais e sociais surgiram ao longo dos encontros, e achou-se importante salientá-las, para mostrar como um trabalho abre outras possibilidades de reflexões, as quais refletem a complexidade vivida em uma sala de aula, frente às demandas emocionais da turma.

A escola é uma das influências mais significativas sobre o comportamento infantil e pode contribuir de diferentes maneiras para a formação do indivíduo por meio do desenvolvimento de comportamentos, habilidades e valores, favorecendo a presença de comportamentos adaptativos ou desadaptativos (Pinheiro, Haasea, Del Prette, Amarantea & Del Prette, 2006). O apoio social proporcionado por essa instituição assim como a conquista da competência social em crianças revelam-se como fatores de proteção (Garmezy & Masten, 1994). Cabe às escolas a preocupação e consciência do seu papel na formação dos seus alunos, atentando para a literatura referente à promoção de saúde e de prevenção.

A aquisição das HS ocorre por meio do processo de aprendizagem. A infância é um período crítico para o desenvolvimento dessas habilidades, por isso a necessidade de atentar para a construção destas nesse período desenvolvimental (Del Prette & Del Prette, 1999). Ensinar HS, em específico a habilidade de assertividade, foi uma experiência repleta de sentimentos. Por um lado, várias vezes, a equipe se deparou com o desejo de observar nas crianças comportamentos civilizados e assertivos em grande parte das situações, almejando a conquista de insights e de mudança de comportamento e, quando essas expectativas não se confirmaram, a frustração foi inevitável. Por outro lado, também esteve presente o entendimento de que as crianças estão em desenvolvimento moral, afetivo e cognitivo e, assim, a aquisição das HS ocorre mediante pequenos avanços, tais como despertar de sentimentos, troca de experiências, verbalizações, olhares atentos, por vezes silêncios, desenhos. Ou seja, essas são conquistas importantes dos alunos frente à caminhada na aquisição da competência social e, como tal, devem ser valorizadas e incentivadas, o que requer também um aprendizado e uma sensibilização do olhar dos adultos envolvidos.

Sugere-se para futuros estudos que outros meios de avaliação da habilidade de assertividade sejam realizados, como, por exemplo, questionários, entrevistas, instrumentos específicos para a avaliação dessa habilidade, assim como por meio de diferentes informantes. Neste estudo priorizou-se a observação como meio de acesso da habilidade de assertividade, visto que esta é um instrumento essencial no cotidiano escolar, com base na qual se intervém de diferentes maneiras com cada turma e com cada aluno. Entretanto, compreende-se que se caracteriza como uma limitação do estudo.

 

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* Psicóloga, especialista em Psicologia Escolar e Educacional, mestre em Educação. E-mail:denisedsmaia@gmail.com.
** Psicóloga, mestranda em psicologia do desenvolvimento do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRGS. E-mail:bortolini.marcela@gmail.com.