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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.3 Belo Horizonte Dec. 2012

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p489 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p489

 

Os processos de subjetivação de deficientes intelectuais no mercado de trabalho: uma cartografia

 

The processes of subjectivation of intellectual mentally retarded on the job market: a cartography

 

Los procesos de la subjetividad de la discapacidad intelectual en el mercado de trabajo: una cartografía

 

 

Carlos Alberto Ribeiro;* Roberta Carvalho Romagnoli**

 

 


Resumo

A Este artigo tem como tema o estudo dos processos de subjetivação de jovens deficientes intelectuais inseridos em empresas no Município de Belo Horizonte, Minas Gerais. Seu objetivo principal é cartografar a trajetória de quatro deficientes intelectuais, maiores de 21 anos, a partir dos seus encontros com o mercado de trabalho, procurando rastrear as forças que atuam nesses territórios e que operam tanto endurecimentos quanto agenciamentos que possibilitam a invenção. Buscamos sustentação na Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, também conhecida como Esquizoanálise, que aborda a realidade por meio de planos que coexistem simultaneamente, em estado de imanência, formas e forças. Escolhemos como conceito-eixo para pensar essas realidades o de "território", entendido como segmento, estrato que se sustenta por meio das representações, mas também comporta fluxos, agenciamentos que permitem a expansão da vida.

Palavras-chave: Cartografia. Deficiência intelectual. Trabalho. Subjetivação.


Abstract

This article focuses on the study of subjective processes of intellectually disabled youths placed in businesses in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais. Its main objective is to map the trajectory of four intellectually disabled youths, over 21 years, from their encounters with the labour market, seeking to trace the forces that act on these territories which operate both as hardening assemblages that enable the invention. We seek support in the Philosophy of Difference Gilles Deleuze and Félix Guattari, also known as schizoanalysis, which addresses the reality through plans that coexist simultaneously in a state of immanence, forms and forces. Chosen as concept-axis to think these realities of the "territory", understood as segment stratum that holds through the representations, but alsobehavioural streams, assemblages that allow the expansion of life.

Keywords: Cartography. Intellectual disabilities. Work. Subjectivation.


Resumen

Este artículo se centra en el estudio de los procesos subjetivos de jóvenes con discapacidad intelectual en las empresas situadas en la ciudad de Belo Horizonte - Minas Gerais. Su principal objetivo es trazar la trayectoria de cuatro personas con discapacidad intelectual, mayores de 21 años a partir de sus encuentros con el mercado de trabajo, tratando de rastrear las fuerzas que actúan sobre estos territorios y que operan tanto endurecimiento, como conjuntos que permitan la invención. Buscamos apoyo en la filosofía de la diferencia de Gilles Deleuze y Félix Guattari, también conocida como la esquizofrenia, que aborda la realidad a través de los planes que coexisten simultáneamente en un estado de inmanencia, formas y fuerzas. Elegimos como un concepto para pensar en estas realidades eje del "territorio" como segmento comprendido estrato que se sostiene a través de las representaciones, sino que también incluye cursos de agua, asociaciones que permitan la expansión de la vida.

Palabras clave: Cartografía. La discapacidad intelectual. Trabajar. Subjetivación.


 

 

Da pesquisa

Este artigo pretende apresentar os resultados da pesquisa de mestrado intitulada "Territórios em movimento: os processos de subjetivação de deficientes intelectuais no mercado de trabalho", efetuada no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas. Esse trabalho teve como tema o estudo dos processos de subjetivação de jovens deficientes intelectuais, inseridos em empresas no Município de Belo Horizonte, Minas Gerais. Por meio do método cartográfico, procuramos rastrear as forças que atuam no território deficiente-trabalho e que operam em favor dos endurecimentos produzidos nesses encontros, bem como os agenciamentos que possibilitam a invenção. Assim, foram cartografadas a trajetória de quatro jovens deficientes intelectuais, maiores de 21 anos, a partir dos seus encontros com o mundo do trabalho.

Usamos a cartografia com o intuito de evitar o isolamento do observador de seu objeto, bem como permitir o acompanhar a vida no seu movimento, em cujo processo não há caminhos pré-escritos, mas sim linhas a serem desenhadas de acordo com tais movimentos. Na cartografia, método embasado na Filosofia da Diferença, o pesquisador ganha centralidade conforme seu encontro com o campo produz percepções, sensações e afeto (Romagnoli, 2009). Assim, o encontro do pesquisador com o campo se abre como um dispositivo para conhecer e que associa invenção, pesquisador, linhas e histórias. Empenhando-se em romper com a separação sujeito-objeto, teoria-prática, essa proposta persegue a complexidade e a processualidade, no nosso entender, presentes na inserção laboral dos deficientes intelectuais. Nesse viés, partindo da legislação brasileira, notadamente o Decreto 3.298 que estabelece a reserva de cotas para deficientes nas empresas (Brasil, 1999), e mergulhando na experiência do autor da pesquisa como psicólogo que atua na preparação e acompanhamento de deficientes intelectuais, fez-se uma intercessão que permitiu analisar os entraves e os avanços da inserção desse segmento da população no campo laboral.

Com base nessa intercessão e nesse desassossego, a pesquisa busca ainda sustentação na Filosofia da Diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, também chamada de Esquizoanálise. No mundo proposto por Deleuze e Guattari (1995), há, sobretudo, direção e movimento, pois o fixo, os lugares finais, são apenas uma forma de funcionamento da realidade. Realidade que se encontra em um processo constante, a partir de planos imanentes. Esses planos têm funcionamentos distintos, que sustentam relações diferentes; formas e forças. O plano das formas diz de um funcionamento dicotômico e dissociativo, que nos leva a uma codificação e classificação do que experimentamos, capturando a vida em modelos, estratos, segmentos que homogeneízam e organizam a realidade. Esse plano é composto ainda por linhas duras, que dão forma aos estratos. Por outro lado, o plano das forças revela um funcionamento heterogêneo e molecular em que a organização não faz a mínima diferença, uma vez que a potência é conquistada nos encontros, nos agenciamentos em busca do inusitado (Deleuze & Parnet, 1998).

Escolhemos como conceito-eixo para pensar essas realidades o de "território", abordado como uma sensação de sentir-se em casa por meio das representações que acreditamos serem fornecedoras da segurança de um nome, de uma profissão, dentre outras coisas formatadas, e também comporta a sensação do estranho. É a imanência que nos possibilita romper com esse território fechado e se abrir para novos modos de vida, essa desterritorialização, em que linhas duras e flexíveis se embatem para fazer emergir caminhos de fuga.

Mediante a Filosofia da Diferença, foi possível pensar essas vidas, as nossas vidas, como territórios atravessados por linhas duras que definem família, escola, trabalho, deficiência. Mas também cortado por linhas flexíveis que auxiliam na produção de caminhos de fuga que permitem inventar novas formas de ser e de viver. Desse modo, o território enfatiza as dimensões da subjetividade e seus processos: "Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam [...] no seio do qual o sujeito se sente ‘em casa’" (Guattari & Rolnik, 1986, p. 323).

Dessa maneira, se o território pode produzir uma subjetivação fechada em si mesmo por meio de conceitos já estabelecidos e naturalizados, como no caso da deficiência intelectual, também pode ser aberto para novas possibilidades de construções sociais, culturais, estéticas, cognitivas, dependendo das forças que atuam no encontro. A territorialidade acontece concomitantemente com um movimento de saída, de desterritorialização como passagem de um território a outro, como nos lembra Haesbaert (2006). Movimentos que constroem histórias.

Viver uma história é estar aberto a essa possibilidade de escapar do estabelecido. Como já indicaram Guattari e Rolnik (1986), estamos sendo convocados permanentemente para abandonar nossos territórios, nossa sensação de "sentir-se" em casa, pela ação das forças que agem sobre nossa subjetividade e nos chamam para a processualidade da vida. Assim, cartografar é mapear os movimentos condutores para a intersecção com o "fora", é buscar os agenciamentos produtores de linhas de fuga que constroem novos territórios. Segundo Romagnoli (2006), são essas linhas que compõem o território existencial, abrindo a possibilidade de invenção e criação processual da vida.

Tendo esse conceito como ferramenta, e no intuito de rastrear as linhas acima, além da observação e da própria inserção em campo, fizemos entrevistas semiestruturadas, com roteiro previamente estabelecido, com quatro jovens deficientes intelectuais, maiores de 21 anos, inseridos há mais de um ano em empresas de Belo Horizonte, Minas Gerais. O critério para a escolha dos agentes envolvidos na pesquisa recaiu nas "queixas" apresentadas pelas empresas de que esses jovens haviam mudado de comportamento, realizando alguma transgressão no ambiente de trabalho. Partindo das considerações de Gauthie (1999, p. 14) "[...] pesquisar é criar devires, exprimir o virtual incluído em sua situação, lançar multiplicidades que não podem ser presas nas grandes máquinas estatais, geralmente binárias", buscamos criar os devires mediante entrevistas, não como um instrumento fechado, mas como porta de abertura para que os personagens iniciem suas narrativas. Nessa perspectiva, acompanhamos os espaços geográficos nos quais se produz o trabalho formal, territórios impregnados de história e espacialidade onde ressoam velhos conceitos. Ao mesmo tempo rastreamos a emergência da vida, desconsertando as certezas conceituais, experimentações escapando do que está instituído, trazendo consigo a necessidade de fabricar novos conceitos diante do cotidiano atravessado pelo evento, pelo acontecimento, essa incorporalidade infinita que percorre nossas existências, nossos encontros.

Vale pontuar que as indagações que sustentaram a cartografia realizada já estavam presentes no cotidiano do pesquisador por meio da sua prática de preparação dos jovens deficientes para o trabalho, mas faltava o chamado, esse afetamento capaz de desejar a invenção. Assim, em 2006, ao entrar em contato com uma empresa e ouvir queixas em relação ao comportamento "indesejável" de alguns jovens deficientes, aflorou o movimento em direção a este estudo. É preciso salientar ainda que a cartografia tem como eixo de sustentação do trabalho metodológico a invenção e a implicação do pesquisador, uma vez que ela baseia-se no pressuposto de que o conhecimento é processual e inseparável do próprio movimento da vida e dos afetos que a acompanham (Rolnik, 1989). Nesse contexto, fomos afetados por quatro encontros que revelariam o quanto de abertura cada um de nós, pesquisador e pesquisado, conseguiríamos. As entrevistas semiestruturadas realizadas e os registros do diário de bordo confirmam as considerações de Rolnik (1989) ao lembrar que buscamos na cartografia aprender o movimento que surge da tensão entre fluxos e representações; fluxos que escapam da organização de territórios (deficiente/não saber) e desestabilizam as representações e trilham caminhos impensados. Desse modo, um dos focos das entrevistas realizadas foi entender a "transgressão" cometida por esses jovens. Contudo é no encontro que a vida descola do formatado, e uma vida inventada aparece. Em Deleuze e Parnet (1998), encontramos o entendimento de que o devir é jamais imitar, ajustar-se a um modelo, não havendo um termo de onde se parte ou no qual se deve chegar. Ainda nesses autores, no trato da entrevista, privilegiei não só as falas, mas principalmente as sensações que delas emergiram. Cabe ressaltar, antes de apresentar as quatro histórias, que cada entrevistado recebeu um adjetivo que não pudesse ser colado nas limitações, mas que expressam o sonho e as conexões que em determinados momentos liberam a invenção.

No movimento de cartografar essas vidas, os entrevistados fizeram emergir os personagens por meio de enredos originais, pois indicaram que a vida não somente se repete, a vida se inventa e reinventa. Ao surgir o personagem, é preciso que ele ganhe um adjetivo capaz de sintetizar sua história, afinal estamos também num mundo formatado por meio de estratos. Desse modo, um personagem fala do que parece aprisioná-lo, outro dirige para além de um ônibus, há o que sonha em gerenciar e aquele que descobre. Assim, ganham vida nesse artigo o Sonhador, o Motorista, o Descobridor e o Falante. No surgimento desses personagens, nossa viagem cartográfica é empreendida. Nesse deslocamento, o "eu" e o "nós" se misturam, o tempo passado se confunde com o presente e tenta sentir o futuro. São os verbos se confundindo ao lembrar que muito do passado histórico ainda nos habita, que muitas das linhas que nos constituem ainda soam duras, embora a presença destas não impeça a emergência de novos estados.

 

Das linhas que atravessam os territórios

No cotidiano de trabalho com os deficientes, observo que o estigma da incapacidade, de uma parada no desenvolvimento do funcionamento intelectual é buscado no diagnóstico apresentado. Entretanto, nesses processos de avaliação, não raro, somos convidados a olhar nos olhos dos familiares desses deficientes. Aqui as linhas duras desenhadas nos códigos internacionais de doenças são confrontadas com as linhas flexíveis produzidas na vida. O especialista com a descrição da patologia (F70 – F79) faz o seguinte relato: "Parada do desenvolvimento ou desenvolvimento incompleto do funcionamento intelectual, caracterizados essencialmente por um comprometimento, durante o período de desenvolvimento, das faculdades que determinam o nível global de inteligência" (Organização Mundial de Saúde, 1997, p. 361).

Percebemos nessa descrição uma tentativa de manter o estigma sustentado pelas linhas duras. No entanto há o encontro com mães que buscam, na religião, no sagrado, a justificativa para as limitações de seus filhos. O filho é anunciado como um presente, aquele que não escolhemos, apenas recebemos sem nem ao menos sabermos se o desejamos. Assim, a impossibilidade circula nas falas como um devir de reconhecimento celebrado como dádiva dos abnegados. Sim, é a vontade de Deus concretizada no presente, o sagrado sustentando a promessa que não se cumpre. Na concretude do cotidiano, essas palavras se traduzem nos discursos em que ter um filho deficiente é uma escolha do campo do divino, como emerge em algumas falas: "Deus não escolhe qualquer uma para ter esse filho". Ou seja, os filhos são como bênçãos de Deus, e elas, as "escolhidas" para terem filhos especiais, afinal, têm mais condições que as demais mulheres. São essas as forças que circulam no encontro, o estabelecido e a busca de caminhos de fuga desse estabelecido.

E, desse modo, no nosso percurso encontramos pessoas aprisionadas na "parada do desenvolvimento", sujeitos descritos pela ciência moderna como o anormal que precisa ser classificado, normalizado (Canguilhem, 1990). Linhas duras que nos tornam estrangeiros diante desse outro ou, nas palavras de Paiva (2007, p. 69), "[...] alguém que vem de fora, se estabelece, mas não se torna membro pleno do grupo". Corremos sempre o risco de "sentir em casa" diante da diferença como algo julgado como negativo e que aprendemos a conceituar por meio dos conhecimentos científicos, que, muitas das vezes, normatizam as subjetividades. Ao estudar as relações de poder em estreita associação com o saber, Foucault (1979) assinala a vigilância e a classificação da diferença, muitas das vezes tomada como patológica e perseguida para ser igualada ao que se considera normal. O saber científico, como um conjunto de regras que delimitam os objetos possíveis, a posição do sujeito em relação a eles, os conceitos e os problemas, exerce mecanismos de submissão e assujeitamento das subjetividades. Porém cartografar não é somente rastrear as linhas duras, mas é também abrir-se para as forças que circulam no encontro, buscar pelas linhas flexíveis e as saídas dos universos formatados e predeterminados.

Em minha experiência profissional, as saídas foram desenhadas no encontro com esses universos aos quais aprendemos a chamar "deficientes". Nesse ponto, é importante relatar como essa pesquisa foi sendo desenhada por esses encontros. Encontro que começou na década de 1990 em uma instituição pública em Belo Horizonte, Minas Gerais, e que abrigava crianças com deficiência. Perto de 30 garotos com deficiência e idade variando entre 12 a 14 anos habitavam essa casa. A casa, assim como seus habitantes, era estranha para mim porque estava iniciando minha trajetória profissional, e aquela realidade não fazia parte do meu cotidiano nem tampouco se inscrevia como perspectiva de atuação na minha graduação. Os muros da faculdade estão aquém do concreto, são abstratos, em geral, distantes da vida, atolados nas teorias, muitas das vezes eficazes, mas, muitas das vezes, distantes da realidade, da prática. Assim, encontrar essa realidade, no dia a dia, era como pular o muro do conhecimento acadêmico hierarquizado e cheio de certezas e penetrar na vida com seus fluxos que desconhecem o estabelecido pelo saber científico, arriscar, experimentar. Entrava-se por um corredor no qual a primeira imagem era de um imenso banheiro coletivo, para, em seguida, ver-se uma sala retangular com bancos encostados pelas paredes e uma televisão que ficava ligada na maior parte do tempo e, da lateral da sala, via-se um quarto com várias camas.

O odor do lugar era próprio, melhor, impróprio. A limpeza que os olhos anunciavam era contraditória com aquele odor. Percebo que a estética, a aparência física não é restrita ao olhar, os cheiros guardam sentidos estéticos. Aquele cheiro era inumano para mim, embora fosse resultado de dejetos puramente humanos, da fisiologia humana. Lembro-me dos livros de "Fisiologia Humana Básica" usados na formação do psicólogo que descrevem o sistema digestivo, não os odores, como aqueles que eu começava a reconhecer.

Depois de atravessar o corredor, encontrava, pela primeira vez, com o deficiente, não na pluralidade, mas no plural. Havia, naquele momento, o medo de não saber aproximar, lidar com toda aquela diferença pensada por mim a partir de forma identitária e livresca. As diferenças, como o que escapa do "normal", surgiam naquele momento grafadas nos corpos. Era minha subjetividade, meu território existencial sendo convocado a penetrar num outro mundo. Era um convite para deixar ser atravessado pelo estranho. Desse modo, aquele encontro se anunciava como um convite, mas não se aceita um convite sem antes nos deixar afetar, sem que antes encontremos uma porta de saída para as certezas cristalizadas e naturalizadas.

Eu era o estrangeiro vindo de fora com fantasias de encontrar o exótico e, não sendo esse o seu lugar, produz um encontro artificial com os nativos. O que aqueles garotos revelavam era o meu desconhecimento de que, ao classificar como patológico um sintoma, esquecemos que aquilo que os faz patológico é sua relação de inserção na totalidade orgânica na qual a doença se torna uma espécie de mal: "Quando classificamos como patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual" (Canguilhem, 1990, p. 64-65).

Afinal, como lembra Canguilhem (1990), o que nos interessa como acadêmicos é o diagnóstico e a cura, ou seja, voltar ao normal. Eu era o estrangeiro simmeliano, "[...] alguém que vem de fora, se estabelece, mas não se torna membro pleno do grupo" (Paiva, 2007, p. 69). Por outro lado, as pessoas denominadas deficientes ganhavam as formas do inesperado ao se moverem no meu entorno e ao não atenderem o que era determinado nos livros que havia estudado. Segundo Canguilhem (1990), na perspectiva do normal e do patológico, o homem só é sadio quando capaz de muitas normas. Dessa maneira, interferir nos corpos é aproximá-los do pretensamente original.

É como estrangeiro/psicólogo que realizava o meu primeiro encontro com o deficiente. Minha presença produzia uma agitação no ambiente. Nesse primeiro encontro, via a deficiência, a negação da estética do belo, a sensação de impotência, do "não saber o que fazer" diante do deficiente. Emergia o medo do desmanche de um território seguro e conhecido e de me transformar em outra coisa. O que desestabilizava minha subjetividade era ver materializada a figura anormal e patológica, era encontrar cara a cara com o dogma da cientificidade endossada pela Biologia e pela Medicina. Eu, o normal, essa entidade descrita em Canguilhem (1990) como ponto de referência em relação àqueles anormais que esperavam, conforme preconizado pela ciência moderna, serem classificados, normatizados. Por outro lado, o encontro produziu uma descontinuidade dessas linhas duras e o próprio medo presente anunciava uma quebra nos paradigmas, novas direções, linhas flexíveis que desestabilizam meu território, permitindo sentir o corpo vibrátil que não se sujeita ao saber definido, ao transcendente. O vibrátil dos corpos, como lembra Rolnik (2006), essa emergência da nossa vulnerabilidade diante do outro que não se reduz a uma projeção de imagens preestabelecidas. Ao contrário, é uma presença viva, produzida e produtora de forças capazes de atravessar nossos territórios como abalos sísmicos fazendo rachar nossas fronteiras, misturando corpo e mundo para além das figuras de sujeito e objeto. Nessa perspectiva, a pesquisa desenvolvida procurou rastrear essas vidas e os espaços por elas habitados, e o primeiro movimento ao entrar no campo de pesquisa foi lançar a atenção rastreira em busca de um alvo móvel, uma meta, como sugere Kastrup (2007). Assim, surgiu o cenário em que a vida se movimentava, e que, no caso deste estudo, foram oficinas profissionalizantes de uma escola especial, uma empresa de transporte coletivo e um hospital, todos localizados em Belo Horizonte, Minas Gerais. Esses espaços se encontravam ao aproximar o deficiente do trabalho. A oficina preparando os corpos para o labor, sendo preciso que tais corpos adormecessem ao som das normas e que Foucault (1979) já vislumbrava ao falar das tecnologias de poder (disciplina e regulação) que introduziram o vetor tempo e o vetor espaço para produzir os corpos dóceis necessários para a produção e que na contemporaneidade, de acordo com Giacomel, Ghisleni, Amazarray e Engelman (2003), mediante a regulação, que operassem sobre a vida dos homens. Esse operar sobre a vida dos homens também era visível nas empresas que pesquisamos, com suas formas prontas e na própria legislação que, juntos, configuraram o território trabalho. Mas a vida comporta para além do formatado e foi por meio desse encontro deficiente-trabalho que as linhas flexíveis deram novos contornos para os territórios existentes mediante abertura/endurecimento, movimento/ parada e um devir que se atualizava cotidianamente e ganhava visibilidade desde quatro jovens deficientes intelectuais e seus encontros com outros mundos, outras subjetividades.

Se, para Fuganti (1990), é preciso acordar os homens que sonham em vigília porque eles acreditam na invenção, na história cotidiana desses jovens, o sonho que escapava do território fechado era o de ser motorista, decorador, entre outros, e tomar para si a construção da sua própria existência. Mas era também um discurso formatado e incorporado em que o trabalho produzia "passeio elegante", "reforma da casa", enfim, o que é caro ao modo de viver capitalista, submetendo, alienando as subjetividades ao capital. E, quando a vida parecia capturada, era o momento em que se empreendia uma linha de fuga, em que se deixava vazar o formatado e se encontrava outra forma. Como vimos anteriormente, as linhas de fugas convergem em processos que arrastam para o novo, a partir das desterritorialização, da abertura das linhas flexíveis (Deleuze & Parnet, 1998). Desse modo, foram sendo configuradas as histórias narradas a seguir.

 

Das histórias

Segundo Barraclough (1964), ao olharmos para uma história, não devemos buscar as semelhanças com outras já contadas, mas acreditar nas distinções, naquilo capaz de fazer as diferenças. Desse modo, procuramos dar voz a esses jovens, para que emergissem suas singularidades no cotidiano. Logo, entre nossos entrevistados, o Sonhador, oniricamente queria ser decorador e empresário; o Motorista queria dirigir, nem que fosse a vida; o Descobridor descobria a sua deficiência no outro; e o Falante, reconhecia na fala o que o aprisiona.

O Sonhador conferia mercadorias com data de validade vencida e ou danificadas, impróprias para serem vendidas pelo supermercado. Em suas palavras, emergiam a definição do labor "Meu lugar de trabalho é impróprio, de produtos vencidos, eu sou responsável por cada setor ali do impróprio, eu tenho que manter o impróprio limpo", era convocado, como pesquisador, a pensar no impróprio que nos atormenta e nos aprisiona em lugares determinados, ausência da vida, pois aqui existe a repetição e não emerge a invenção. É nesse impróprio que os nossos contornos podem endurecer: "[...] sou (diferente)! Um pouquinho diferente, eles acham que eu sou o melhor para fazer tudo, por outro lado, não conversam comigo, não explicam, já mandam fazer as coisas e eu acho uma diferença, eles são melhor que a gente. Tem um desrespeito com a gente, não entendem o problema que a gente tem">. Mas também ser afetado pelo novo: "Tive capacidade de ir mais pra frente".

Ao ser promovido como anotador do impróprio, omitiu do supermercado um dos marcadores que usamos para indicar sua deficiência: a ausência da capacidade de escrita. O Sonhador era o não escritor, portanto, sentia a ameaça que sua situação podia produzir nessa viagem pelo território trabalho e omitia sua condição: "[...] no momento, ainda eles não têm um pouquinho de conhecimento não". O território trabalho desconhecia o não escritor, mas o não escritor suspeitava do movimento da maioria: "[...] bem dizer, eu fui especial daqui para lá, só que, às vezes, eles vê a capacidade da gente, mas, por outro lado, não vê a dificuldade do estudo, dificuldade de desenvolver igual uma pessoa que está ali. Às vezes, a pessoa desenvolve mais do que você, e eles acaba colocando a pessoa no lugar da gente" (sic).O jovem, ao justificar a omissão da deficiência na escrita, lembrava que o riso das pessoas era perigoso. Mais uma vez, aparecia o riso sarcástico demarcando as fronteiras normal/anormal. Contudo, o trabalho sinalizava também para linhas de fuga, para o sonho de Fuganti (1990), que se sustenta num mundo a ser inventado, quando este afirma que "A realidade é produção desejante, não acomodação resignante" (p. 69). Nas palavras do sonhador, "Esquecer os problemas que está para trás para poder colocar meus projetos em prática. Eu não vou desistir desse sonho, vou até o fim, eu acredito que vai dar certo e vai. Eu tive uma oportunidade"(sic).

Desse modo, as linhas que formam o território trabalho atravessavam a existência do Sonhador. Primeiro, dizendo para empacotar em silêncio, com cuidado para escapar do cômico que seu jeito provocava ao ameaçar a organização e ordenamento que constituem o território trabalho. Mas esse mesmo silêncio fazia nascer a vontade de falar, questionar o lugar imposto, duvidar da normalidade dos eficientes. É no trabalho que ele questionava outro silêncio, não o dele, mas do contemporâneo, em que palavras como "inclusão" viram clichês quando tentamos aproximar o deficiente, por meio dos nossos modelos de educação e inserção, no pretensamente normal, clone do que estabelecemos como ajustado.

Em contrapartida, com o Motorista a fragilidade da vida se revelava. Enquanto eu caminhava ao seu encontro percebia a paisagem rude do provisório das casas, da loucura da numeração que não atendia ao que aprendemos (ímpar de um lado da rua, par do outro, crescente, decrescente), mas era nesse cenário que a delicadeza das pessoas sem pressa me ensinava que números não são importantes, pessoas e seus nomes sim. É pelo nome, e não pelo endereço que me encontrava com o Motorista. Já se passaram quase dois anos do nosso último encontro, e guardo a lembrança de sua emoção ao falar, não da transgressão, mas do desejo de ser motorista. Em 2006, o Motorista, que deveria lavar ônibus em uma empresa de Belo Horizonte, havia manobrado o veículo e batido em outro na garagem, mesmo advertido, disse que continuaria a dirigir, pois havia descoberto o que queria ser: motorista.

No final de 2008, o Motorista, aos 23 anos, teve um acidente vascular cerebral que o deixou com uma paralisia do lado esquerdo. A entrevista acabaria girando em torno do painel do ônibus: "[...] coisa muito grande", que era para além das funções laborativas rigidamente pensadas para o Motorista. Se o território trabalho, ao encontrar com o território deficiência, se sustentava em linhas que justificavam um labor mecânico e desprovido de significados, as forças que circulavam ultrapassavam a percepção do painel do ônibus como forma, revestindo-o da potência que convocava para a sensação de assumir a direção ônibus/vida. Talvez por isso, não atribuísse importância para o acidente que teria provocado ao manobrar o ônibus. O assombro não era o acidente, e sim o painel e todas as possibilidades que aí pulsavam. Era emergência da força que acenava para a uma nova configuração da existência, de si, do mundo e das relações que os envolvia. Mas era também assombro, força convocando "[...] a lutar para que essa configuração se afirme na existência e inscreva-se no mapa em vigor, sem o que a vida não vinga" (Rolnik, 2002, p. 2). O trabalho acenou para o jovem com carteira assinada e com os colegas que ensinaram a limpar os ônibus. Mas esse locus não se viu imune ao endurecimento, à padronização que insiste em buscar sinais que identificam o outro com base em atributos reconhecidos como negativos. Assim, ao ser perguntado como era o tratamento dos colegas, o Motorista recorria a uma economia de palavras: "Bem!".

Entretanto, sua mãe, ao passar pela sala, oferecia palavras e lembranças "[...] não é bem assim, você vivia reclamando que eles colocavam apelido de especial, doidinho, que doido não sabe fazer nada mesmo". A dureza das palavras não encontrava ressonância no jovem que retomava o sonho de dirigir, afinal era preciso empreender a tal fuga postulada por Deleuze (1992) ou, pelo menos, apostar no devir. Mas é, antes, um gesto de contrariar e fazer vibrar as linhas segmentárias desenhadas pela macropolítica. Como lembram Deleuze e Parnet (1998), uma linha de fuga permite produzir o real, criar a vida, encontrar uma arma.

Nas palavras do Motorista, aprendemos que a inclusão não pode ser compartimentada, assim, ao encerrar nossa entrevista o jovem lembrou que "[...] ninguém ligou, veio aqui". Suas palavras indicavam que a inclusão não se restringia ao funcional e profissional, ela, essa palavra tão usada atualmente, envolvia também o social, alteridade.

Por outro lado, o Descobridor, contratado como auxiliar de serviços gerais em um hospital, após um ano e sete meses de trabalho, estava limpando uma sala de descanso dos funcionários, e um colega aumentou o volume do som da televisão e saiu. A supervisora chegou e chamou sua atenção. Seguiu-se uma discussão, e ele mandou a supervisora para "[...] aquele lugar". O inesperado na sua entrevista foi a temática girar em torno de amputação de membros "Fico curioso, que tinha gente cortando perna, tipo, pessoa sofrendo, pessoa dormia e ia acordar e não senti a perna [...] Ficava imaginando como é fica assim, ficava com aquilo na cabeça [...] Eu sou deficiente, e eles vão ser também. Se nascesse, era diferente, a pessoa normal fica deficiente. Fica mais difícil, né? Você não sabe a hora quando pode ficar. Eu não, todo mundo já falou que eu sou deficiente, então não tem importância" (sic). O que tentava nos dizer? Qual a descoberta produzida nesse encontro com o trabalho? Parece que o entrevistado, no encontro com o trabalho, realizou outro encontro/ aprisionamento: com a deficiência produzida.

Acostumado a ouvir de sua deficiência "[...] todo mundo já falou", talvez tenha acreditado que o mundo se divide entre os deficientes e os não deficiente. Agora descobria que essa linha pode ser tênue, dormir "normal" e acordar "sem perna". Sentir a tristeza do outro, essa que poderia ser a minha tristeza ao ser aprisionado na deficiência. A fuga anunciada em Deleuze (1992) é esse descolamento de que "sempre fui", não é o movimento que produz a deficiência, são os discursos que denunciam a impossibilidade. É o discurso de uma inclusão clichê sendo confrontado com a alteridade que escapa da fronteira normal/anormal em que o deficiente não tem o que dizer. E, ao dizer, não apenas revela sua voz, mas denuncia as ambiguidades e os paradoxos de nossas políticas de inclusão. Afinal, a deficiência diferente do que "[...] tudo mundo já falou" não é o natural que demarca o deficiente/não deficiente como entidades distintas e inconciliáveis. Durante sua existência, o Descobridor acreditava que ser deficiente era uma marca exclusiva dele e de seu grupo homogeneizado no termo "deficiência". Mas, no território trabalho, encontrava com o tênue das fronteiras que contornam nossas existências. Isso ficava na cabeça, afinal o outro também seria deficiente. Mundo laborativo que não segurava o silêncio do Descobridor, mas fazia gerar nele novas palavras que não saíam da cabeça, inquietação e impulso de querer usá-las, essa coisa vista, por ser coisa, podia ser recheada com uma palavra, qualquer palavra. Discurso ganhando a visibilidade como arma pela qual e com a qual se lutava. Imagem do poder que se deseja assenhorear, poder como exercício, ação, prática que classifica, inclui/exclui como pontua Foucault (1971).

Agora o caso do Falante, que, ao ser auxiliar de serviços gerais em uma empresa, beijou a feia funcionária (descrição dele) e, sorrindo, revelou que ela havia colocado o apelido que o incomodava, aqui nosso discurso pode endurece ao se confirmar"[...] os deficientes têm uma sexualidade exacerbada", mas, ao contrário, esse movimento pode sinalizar para o trabalho se convertendo em campo de luta, de resistência. Enfrentamento do riso sarcástico diante do diferente que ameaça romper a fronteira normal/anormal.

Trabalho sendo traduzido em uma de suas falas que circulou durante nosso encontro: "[...] fazer tudo direitinho, cortar batata, tomate, tudo". Ao repetir insistentemente seu labor, o Falante nos fazia refletir que o incômodo produtor do riso sarcástico que esteve presente no seu encontro com o trabalho sinalizava para o fato de que o decreto 3.298 (Brasil, 1999) não ensina a ver o deficiente "descascar", a produzir nesse ato o trabalho, tornando-se eficiente e desafiando o discurso macropolítico que nomeia deficiente. Todavia, aproxima territórios que se julgam tão diferentes hierarquicamente e abre caminho para confrontar as linhas duras que insistem em comparar, julgar, tentando trazer o trabalho para o discurso binário do bom ou ruim.

Cenário que pode fazer emergir uma exclusão que se sustenta num discurso de inclusão e que rompe com o binarismo exclusão/inclusão. É o Falante que acusava sua fala como responsável pela deficiência: "Se não fosse assim, eu não tinha problema". Mas era o mesmo falante que se emocionava ao ouvir sua voz aprisionada no gravador, talvez fantasiando que aquilo capaz de denunciá-lo estivesse finalmente aprisionado. Nesse momento, percebi o êxtase do falante ouvindo sua própria voz em meio ao silêncio do cenário da entrevista, sendo visível sua emoção de ouvir, pela primeira vez, o que ele acusava de ser o denunciador da deficiência: a fala.

 

Considerações finais

Em nosso estudo, pretendemos traçar as linhas e os territórios que emergem na relação entre o deficiente e o mundo do trabalho por meio da inclusão desses sujeitos em empresas de Belo Horizonte. Ao rastrear os endurecimentos e os agenciamentos que estão presentes nesse território trabalho, foi possível dar voz não apenas a quatro jovens deficientes intelectuais, mas dar visibilidade à nossa pouca capacidade de lidar com as diferenças, quase sempre desqualificadas, pensadas como negativas e vivenciadas como ameaçadoras da pretensa estabilidade dos espaços sociais. Vale lembrar que tal ameaça não se restringe ao trabalho, mas se torna presente na maior parte dos nossos encontros com o que não é igual. Quando se escuta o crescente discurso em defesa da inclusão social das diferenças, observo que o encontro com esses universos rastreados na pesquisa indica que sabemos muito pouco de como nos aproximar dessas vidas na realidade, no embate cotidiano, locus em que as diferenças, de fato, se fazem presentes.

Não se abandona completamente a história produzida, registrada. Por isso, é preciso inventar também uma nova história, em que o passado permita refletir sobre os caminhos que queremos traçar rumo à incorporação de todas as diferenças nas práticas sociais. História efetiva, não linear e singular que revelam forças descontínuas. Assim, a primeira indagação que perpassa esse texto é tentar dizer "o que é isso?". Essas pessoas que, para a maioria, são apenas diferenças aprisionadas nos livros e sobre quem cabe aos especialistas falarem. Desse modo, tem se falado da inclusão nas academias, nos relatórios, nos discursos sem gagueira dos diversos profissionais da área de saúde e educação. Ao serem falados, esses entes se tornaram etiologias, figuras sobre as quais recaem modelos de educação e de inserção laborativa, isso para os que leram e estudaram sobre essas subjetividades, pois muitos ficam presos a esses discursos, não só em alguns momentos. Para os outros, imersos no imaginário social acerca da deficiência, predomina um dó que quase sempre despotencializa a capacidade inventiva dos deficientes.

Como romper ou pelo menos tentar avançar rumo à outra história? Neste estudo, foi feita uma aposta na vida pensada como imanência, como um devir, uma possibilidade coletiva, um espaço em branco pedindo para ser preenchido por algo que emerge do encontro, não qualquer encontro, mas de um em que a alteridade dos participantes se faz presente. A aproximação do deficiente com o trabalho foi sendo construída historicamente, portanto, a história também produz avanços, e o Decreto 3.298, ao abrir espaço para os deficientes no mercado de trabalho por meio do sistema de cotas nas empresas, representa uma porta de entrada em territórios até então fechados (BRASIL, 1999). Mas abrir uma porta é se deparar com o desconhecido pedindo para ser conhecido. Nesse ponto, nessa cartografia, procuro também dar visibilidade ao medo, essa sensação tão atual que pode nos paralisar e, em algumas circunstâncias, também nos convocar a avançar. Essa é a segunda reflexão que se pretende nesta pesquisa. Deixar que esse outro entre pela porta, afete-nos e mude nossa rotina, nossas crenças, mesmo que, em alguns momentos, os microfascismos apareçam sem pedir licença; mas se alteridade circula, esse outro faz resistência e nos ensina a olhá-lo como parceiro contemporâneo.

A viagem ao meu passado profissional sinaliza que, quando esses universos que aprendemos a distanciar pelos discursos científicos tradicionais invadem nossa realidade, isso acaba por nos tornar multiplicidade. Nesse sentido, o encontro com o deficiente produz uma aproximação entre a realidade e a academia, que, justapostas, passam a povoar nosso discurso, sinalizando ora para flexibilidade, ora para o endurecimento. É encontro produzindo abalos que podem mudar a história cotidiana e burlar a nossa macropolítica e nossos microfascismos.

Ao cartografar a trajetória desses quatro jovens, levei para nossos encontros todas as marcas, as desestabilizações produzidas, não apenas na minha formação, também aquelas que a antecederam transformadas nos livros que me foram ensinados. Portanto, o que encontrei, ou penso ter encontrado, é um convite para refletir mais uma vez, perguntando "o que é isso?". Isso que deseja participar do coletivo, não para ser entendido como pretendemos.

O que existe é o Sonhador que, sabendo das armas que usamos para classificar sua diferença, responde com o "não dizer" da ausência do escritor, assim inverte o jogo, o deficiente que "não sabe" "sabe que não deve mostrar o que buscamos para classificá-lo como deficiente". O Motorista, questionando as atividades mecânicas reservadas para os deficientes intelectuais, descobrindo no trabalho que é preciso dirigir a vida num movimento de alteridade conquistada. O Descobridor, por sua vez,encontrando no trabalho as tênues fronteiras que os livros omitem, a deficiência pode ser produzida no inusitado da vida, mas deve não restringir a capacidade inventiva e produtiva, não pode dividir os homens e mulheres em eficientes e deficientes. O Falante, denunciando nossos microfascismos que zombam do que não conhecemos com o intuito de diminuí-lo e, ao fazê-lo, acreditamos poder agarrar e dominar o que nos ameaça.

Em suma, acredito que essas subjetividades nos convidam, de fato, é para deixar a porta aberta para a entrada das diferenças como capazes de fazer a diferença nesse mundo tão pretensamente formatado, homogeneizado. Mas esse, com certeza, não é um convite fácil de aceitar, pois implica em colocar em xeque nosso discurso, nossas práticas e, assim, convivermos com a gagueira até que novas palavras surjam para entender o que é isso. Não que devamos explicar o que é isso, talvez devamos apenas sentir a presença desse vivo que está a tanto tempo sendo capturado pela fala dos especialistas. E, assim, produzir caminhos rizomáticos em que essas pessoas com os quais esbarramos nas esquinas do cotidiano possam dirigir suas existências, sonhando, descobrindo e falando por suas próprias vozes. Termino com a mistura de fragmentos da fala do Sonhador, do Motorista, do Falante e do Descobridor. Fragmentos que traduzem o devir presente na narrativa desses jovens a quem aprendemos designar como deficientes intelectuais: "Eu não vou desistir desse sonho, vou até o fim, eu acredito que vai dar certo e vai. Você põe na cabeça que não dá conta e descobre que dá. Tudo direitinho. Todo mundo já falou"(Sonhador, Motorista, Falante, Descobridor, 2010).

 

Referências

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* Mestre em Psicologia pela PUC Minas, psicólogo da Escola Estadual "Pestalozzi". Endereço: Rua São Lázaro, 85, apto. 1 - Bairro Sagrada Família, Belo Horizonte-MG. CEP: 31030-420. E-mail:carl.ribeiro@ig.com.br..
** Doutora em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo, mestra em Psicologia Social pela UFMG, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas, psicóloga. Endereço: Rua Terra Nova, 101, apto. 401 - Sion, Belo Horizonte-MG. CEP: 30315-470. E-mail:robertaroma@uol.com.br..