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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.1 Belo Horizonte Apr. 2013

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n1p74 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n1p74

 

Linha de Passe: adolescência e imaginário em um filme brasileiro

 

Pass Line: adolescence and imaginary in a Brazilian cinema

 

Línea de Pase: adolescencia e imaginario en una película brasileña

 

 

Aline Vilarinho Montezi*; Tomíris Forner Barcellos**; Fabiana Follador Ambrósio***; Tânia Maria José Aiello-Vaisberg4****

 

 


Resumo

Este trabalho tem como objetivo estudar o imaginário social sobre a adolescência, concebida como fenômeno socialmente produzido, de importantes ressonâncias emocionais. Metodologicamente, configura-se ao redor da abordagem psicanalítica da obra cinematográfica "Linha de passe", desde uma perspectiva teórica afinada com a psicologia concreta da conduta, defendida por Bleger e Politzer. Utiliza como material uma narrativa transferencial, elaborada com base na estrita observância das regras constitutivas do método psicanalítico, tendo em vista a produção interpretativa de campos de sentido afetivo (emocional ou inconscientes relativos). Apresenta e discute a criação/encontro de três campos denominados "Temos mãe", "Precisamos de (mais) alguém" e "Viver é lutar", segundo os quais se organiza a experiência dos personagens adolescentes. Conclui que o filme retrata, de modo claro e preciso, um imaginário compartilhado por parte da população brasileira com acesso à produção cultural, que reconhece que o processo de tornar-se adulto seria singularmente penoso pela ausência paterna e por falta de holding social.

Palavras-chave: Adolescência. Imaginário. Pesquisa psicanalítica. Cinema. Precariedade social.


Abstract

This work aims to study the social imagination of adolescence, conceived as a phenomenon socially produced through important emotional resonances. Methodologically, configures itself around the psychoanalytic approach of the cinematographic work entitled "Pass Line", from a theoretical perspective attuned to concrete psychology of conduct defended by Bleger and Politzer. Using as material a psychoanalytic narrative, elaborated from strict compliance of the constitutive rules of the psychoanalytic method, aimed at production interpretative of the fields affective- emotional sense or relatives unconscious. Presents and discusses the creation and finds of three fields called "We have mother", "We all need somebody" and "Live is a fight", according to which organizes the experience of teenage characters. It concludes that the film portrays so clear and precise an imaginary shared by part of the Brazilian population. With access to cultural production recognizing that the process of becoming an adult would be singularly painful, because of absent fathers and no social standing.

Keywords: Adolescence. Imaginary. Psychoanalytic research. Cinema. Precarious social.


Resumen

El presente trabajo tiene como objetivo estudiar el imaginario social sobre la adolescencia, concebido como fenómeno socialmente producido, con importantes resonancias emocionales. Metodológicamente, se configura en torno del enfoque psicoanalítico de la obra cinematográfica "Línea de Pase", desde una perspectiva teórica en sintonía con la psicología concreta de la conducta, defendida por Bleger y Politzer. Utiliza como material una narrativa transferencial, elaborada a partir de la estricta observancia de las reglas constitutivas del método psicoanalítico, llevando en consideración la producción interpretativa de campos de sentido afectivo (emocional o inconscientes relativos). Presenta y discute la creación / reunión de três campos denominados: "Tenemos Madre", "Necesitamos de alguien (más)" y "Vivir es luchar", según los cuales se organiza la experiencia de los personajes adolescentes. Llega a la conclusión de que la película retrata, de modo claro y preciso, un imaginario compartido por parte de la población brasileña, con acceso a la producción cultural, reconociendo que el proceso de convertirse en adulto sería singularmente doloroso por la ausencia paterna y por la falta de holding social.

Palabras clave: Adolescencia. Imaginario. Investigación psicoanalítica. Cine. Precariedad social.


 

 

Questões referentes às problemáticas ligadas aos adolescentes têm sido amplamente estudadas e discutidas, dentro e fora do ambiente acadêmico-científico. Constatamos, na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), um sinal de reconhecimento da sociedade em relação a um dever específico de proteção e cuidado às crianças e aos adolescentes, bem como de prepará-los para o enfrentamento dos desafios da vida adulta na complexa sociedade em que vivemos.

A partir da revisão bibliográfica, percebemos que, nos últimos anos, houve um aumento significativo do número de artigos que focalizam a adolescência. Por exemplo, na base Pubmed, a palavra adolescência faz retornar 111 025 artigos publicados nos últimos cinco anos. Entretanto, pretendemos chamar a atenção do leitor para o fato de que a adolescência tem se constituído, entre pesquisadores brasileiros, como um tema reconhecidamente relevante. Pode-se constatar facilmente a veracidade dessa afirmação se fizermos uma consulta à base aberta que vem sendo mais frequentemente utilizada pelos cientistas de nosso País, o Scielo. Nela encontramos, ao acessar artigos publicados nos últimos três anos, um total de 239 artigos produzidos por pesquisadores das áreas de Medicina, Educação, Enfermagem e Psicologia. Percebemos uma tendência em focalizar questões problemáticas que despertam nossa atenção, não só de estudos realizados pela área Psi, mas também pelas anteriormente citadas, tal como o aumento do consumo de álcool e drogas (Florenzanou et al., 2010), tentativas de suicídio (Vieira et al., 2009) e condutas violentas e preconceituosas como o bullying (Antunes & Zuin, 2008). A maioria dos estudos, ao constatar o aumento das problemáticas colocadas em evidência, chama a atenção para a escassez de condições oferecidas pelo ambiente: fragilidade do vínculo com os pais, precárias condições de sobrevivência, despreparo do ambiente escolar frente à responsabilidade da socialização das crianças e uma concepção naturalizante ultrapassada desse momento do amadurecimento, que nada contribui para uma boa relação com os jovens (Senna & Dessen, 2012).

Diante desse cenário, consideramos pertinente produzir artigos que possam desvelar, de modo claro, em razão da metodologia, a dramática vivida pelos adolescentes e por aqueles que com eles convivem diretamente. Essa produção pode contribuir mais vivamente para a proposição de políticas públicas, sanitárias e culturais que tenham como objetivo prover o apoio social indispensável.

Viemos, há alguns anos, estudando o imaginário de diversos grupos sobre a adolescência (Barreto, 2006; Camps, 2003, 2009), na tentativa de trazer contribuição psicológica para este debate. Em nossos estudos, visamos a conhecer as regras lógico-emocionais que organizam as condutas humanas, atentando aos aspectos não conscientes que possam, porventura, estar presentes e atuantes na constituição de um ambiente preconceituoso e hostil. Em estudo realizado sobre o imaginário coletivo de professores a respeito da adolescência (Pontes, Barcellos, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2010; Montezi, Zia, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2011), encontramos uma visão pessimista, que pode se traduzir sob a forma da criação de condições desfavoráveis ao desenvolvimento emocional mais saudável, em um ambiente essencial ao jovem como é a escola. A nosso ver, tal pessimismo, examinado de perto, revela uma tendência preconceituosa que, de modo mais ou menos disfarçado, discrimina e patologiza a adolescência. Essa tendência também aparece em um estudo realizado com profissionais da área de saúde mental (Pontes, 2011), no qual o adolescente é visto como problemático por causa das causas sociais, familiares e por "índole".

Na tentativa de seguir produzindo conhecimento sobre o modo como a sociedade imagina a adolescência, abordamos, neste estudo, a produção cinematográfica "Linha de Passe"1 (Salles & Thomas, 2008). Essa escolha partiu da preocupação de levar em consideração o fato de a adolescência, tal como é amplamente citada atualmente, ser uma produção social, historicamente datada, da cultura ocidental. Dessa forma, o imaginário social seria o ambiente no qual a adolescência está sendo plasmada, já que é um dos principais responsáveis pelos diferentes modos de adolescer (Winnicott, 1963). Nessa perspectiva, consideramos que não existe, no mundo contemporâneo, "uma" adolescência, mas muitos modos de "não ser adulto" ou de "ser obrigado a ser adulto", sem ter meios para realmente sê-lo (Barus-Michel, 2005).

A produção cinematográfica foi tomada como um acontecer humano ficcional (Arós & Aiello-Vaisberg, 2009). Como obra coletiva, vale dizer, produzida por pessoalidades transindividuais (Goldmann, 1971), o cinema, a exemplo do que ocorre em todas as artes, presta-se à expressão de modos de ser e de viver prevalentes em determinados contextos, permitindo múltiplas leituras. Neste estudo, escolhemos uma obra nacional como possibilidade de pensar na realidade brasileira: "Linha de Passe". Foi selecionada em razão do fato de organizar-se, em termos de conteúdo manifesto, ao redor das diferentes experiências emocionais de quatro irmãos, três dos quais adolescentes, que vivem com uma mãe que não tem companheiro conjugal.

O cinema pode ser considerado, atualmente, uma das mais importantes formas de produção cultural. Sua história é complexa e multifacetada, de modo que praticamente todas as condutas humanas vêm sendo abordadas por essa arte que, desde sua realização até sua fruição pelo público, faz-se em contextos coletivos (Mascarello, 2008; Kemp, 2011). Como manifestação da conduta de seres humanos concretos, produções cinematográficas podem ser abordadas pelas diferentes ciências humanas, desde perspectivas psicológicas, antropológicas, sociológicas, históricas, econômicas e outras. A Psicologia psicanaliticamente orientada corresponde a uma perspectiva interpretativa que atenta para os determinantes lógico-emocionais subjacentes às condutas manifestas, vale dizer, para determinantes emocionais inconscientes (Bleger, 1963). A análise de produções artísticas é uma prática consagrada, no campo psicanalítico, que foi inaugurada pelo próprio Freud (1976).

Apesar do desinteresse freudiano pelo cinema (Rivera, 2008), a notória semelhança entre obras cinematográficas e sonhos não passou despercebida pelos psicanalistas (Fernandes, 2005; Magalhães, 2008), que viram os filmes como projeções do inconsciente.2 De modo mais amplo, que não pede adesão ao pensamento metapsicológico, parece predominar, entre psicanalistas, a ideia de que valeria a pena buscar, nas produções cinematográficas, conhecimentos sobre dimensões importantes da vida humana (Rivera, 2008). Desde essa perspectiva, o cinema destacar-se-ia, entre as diferentes produções culturais, por oferecer a possibilidade de pensar a vida em movimento, o que favoreceria o surgimento de novos pensamentos a partir do encontro do espectador com a obra cinematográfica (Telles, 2004).

Adotando a abordagem preconizada por Politzer (1928), em termos de considerar a Psicanálise, em suas teorizações clínicas não metapsicológicas, como a melhor realização de uma Psicologia concreta, concebemos o cinema como uma possibilidade fecunda de expressar a dramática da vida. As diversas manifestações humanas, apresentadas nos filmes (narrativas, imagens, personagem, músicas, que tocam a sensibilidade do expectador) permitem a busca do substrato emocional a partir do qual emergem a interpretação de seus inconscientes relativos (Hermann, 1979). Esses inconscientes plurais têm sido designados como campos de sentido afetivo-emocional, numa tentativa dos autores de tornar claro seu empenho por superar uma visão do inconsciente como fenômeno psíquico individual.

Acreditamos que o estudo das produções cinematográficas possa lançar luz sobre os modos como figuras sociais são imaginariamente produzidas pela sociedade, revelando aspectos fundamentais dos ambientes humanos em que vivemos. No que tange especificamente à adolescência, esperamos encontrar, no estudo de filmes nos quais aparecem personagens adolescentes, indicações precisas que permitam tanto a identificação de condutas imaginativas como a produção interpretativa de campos de sentido afetivo-emocional, ou inconscientes relativos, com base nos quais se sustentam.

 

Estratégias metodológicas

Esta pesquisa se faz por meio do uso do método psicanalítico de investigação, segundo a concepção freudiana que o inscreve como logicamente anterior às teorias que podem derivar do seu uso, bem como dos procedimentos clínicos por meio dos quais ele pode se concretizar nas práticas de atendimento (Hermann, 1979; Laplanche & Pontalis, 1963). Tal concepção se harmoniza facilmente com a Psicologia concreta aqui adotada. As regras fundamentais que regem o método, atenção flutuante e associação livre de ideias, são aqui observadas em todas as etapas da pesquisa. Elas exigem, a nosso ver, a adoção de uma atitude fenomenológica, que consiste na provisória suspensão de apego a teorias, crenças e outros conhecimentos anteriores (Barreto & Aiello-Vaisberg, 2010).

Empregado em pesquisa psicanalítica empírica, realizada fora do dispositivo padrão, esse método se desdobra em três tipos de procedimentos investigativos: procedimentos de configuração do acontecer ou encontro inter-humano, procedimentos de registro e procedimentos de produção interpretativa de campos de sentido afetivo-emocional ou inconscientes relativos (Hermann, 1979). A clara distinção entre tais procedimentos, que correspondem a diferentes etapas investigativas, tem facilitado a publicação de nossos trabalhos, já que favorece a comunicação com pesquisadores qualitativos que adotam outras abordagens teóricas.3

O procedimento de configuração do acontecer ou encontro inter-humano corresponde, aqui, à exposição ao filme, em estado de estrita observação das regras fundamentais de atenção flutuante e abertura para associação de ideias e ressonâncias afetivo-emocionais. A produção cinematográfica passa a ser compreendida como expressão de um encontro entre pesquisador e obra, vista como conduta expressa sob forma de produção cultural.

Numa segunda etapa, após a exposição ao filme, foram elaboradas narrativas transferenciais como forma de registro (Granato & Aiello-Vaisberg, 2004; Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron & Beaune, 2009; Granato, Corbett & Aiello-Vaisberg, 2011). Estas devem ser compreendidas como possibilidade de comunicação, que valoriza o mundo vivido como campo de experiência, a partir do qual o conhecimento pode ser criado, sem afastar-se da dramática humana, preservando múltiplos sentidos existenciais. Tais narrativas guardam estreita relação com o conceito winnicottiano de apresentação, uma vez que o narrador apresenta a experiência vivida, de modo a favorecer que outros leitores possam, diante delas, encontrar e criar novos sentidos (Medeiros, 2009).

Compreendemos a interpretação psicanalítica, desde nossa perspectiva concreta e relacional, em termos de criação/encontro de campos de sentido afetivo-emocional ou inconscientes relativos. Nesta linha, o inconsciente é concebido como um campo que não se encontra "dentro" mas "entre" as pessoas. Todas as manifestações humanas seriam, assim, emergentes de campos afetivo-emocionais intersubjetivos, interpessoais, que, em sua maior extensão, seriam inconscientes. A interpretação dos campos pode ser levada a cabo quando as narrativas transferenciais são revisitadas à luz da observação de três palavras de ordem: "deixar que surja", "tomar em consideração" e "completar o desenho ou delineamento do sentido" (Hermann, 1979). Por este caminho, torna-se possível alcançar o substrato afetivo emocional subjacente às condutas manifestas em exame.

 

Campos de sentido afetivo-emocional

A complexidade inerente às narrativas ficcionais, literárias, teatrais ou cinematográficas gera, no encontro com múltiplos olhares do espectador preparado para sua fruição, um material rico e multifacetado. Contudo, abordado com base na atenta observação dos passos constitutivos do método psicanalítico, essa riqueza expressiva permite a produção interpretativa de campos de sentido afetivo-emocional, que seriam como que lugares existenciais, regidos por determinadas crenças, lógicas e valores. Neste caso, foram criados/encontrados os seguintes campos ou inconscientes relativos: "temos mãe", "precisamos de (mais) alguém" e "viver é lutar", com base nos quais ganham sentido as condutas dos personagens adolescentes do filme.

 

"Temos mãe"

Esse campo de sentido afetivo-emocional organiza-se ao redor da crença de que a figura materna ocupa posição central na subsistência dos filhos, mesmo adolescentes, mantendo a união familiar, mesmo sem contar com a colaboração do genitor paterno. A mãe consegue prover necessidades materiais e emocionais dos filhos, apresentando-se como elemento agregador, moralizador e protetor.

 

"Precisamos de (mais) alguém"

Esse campo de sentido afetivo-emocional é regido pela regra lógicoemocional de que os jovens sentem necessidade de pessoas que os auxiliem em suas dúvidas e escolhas. Seria como se percebessem que, com o apoio de adultos suficientemente realizados, teriam mais liberdade para experimentar alternativas, bem como maior segurança para transitar entre elas.

 

"Viver é lutar"

Esse campo se organiza ao redor da crença de que o viver humano seria um empreendimento inerentemente penoso, uma verdadeira batalha, da qual não são poupados os adolescentes pobres. Os recursos conseguidos para a sobrevivência (quando alcançados) sempre pressupõem um custoso labor, que pode chegar a implicar empreitadas moralmente questionáveis. Sob a vigência desse campo, até transgressões apresentam-se como uma possibilidade. Nessa vida "árdua", nesse clima de guerra, a construção de laços pode ser uma estratégia de combate, e a manutenção da união familiar teria significado de resistência, de persistência, de sobrevivência.

 

Reflexões teórico-clínicas

Com base nos três campos de sentido afetivo-emocional, interpretativamente produzidos, foi possível perceber que a adolescência daqueles que vivem em situação precariedade material figura fundamentalmente, no imaginário social, como luta árdua e sofrida. As diferentes opções dos irmãos, tentativa de sucesso como jogador de futebol, cultivo de bom comportamento com ajuda religiosa ou busca de prazer erótico e de ganhos por via delinquente, correspondem, todas elas, às trajetórias pontuadas de obstáculos e dificuldades. Todas são estratégias por meio das quais visam a entrar no mundo adulto e estão, todas elas, intimamente relacionadas ao cenário da vida brasileira, onde o futebol é uma paixão, onde as desigualdades sociais e econômicas podem se apresentar, num plano vivencial, como tão profundamente inaceitáveis a ponto de justificar atos delinquenciais, onde a religião pode ser buscada como consolo e freio contra a revolta.

O adolescente comparece, no imaginário constelado no filme, como ser que vivencia claramente a necessidade e a falta de apoio suficiente. Contam com a mãe, que os mantém unidos como família, que cria e mantém vínculos, enquanto buscam sucedâneos da figura paterna em diferentes contextos. É interessante notar como se encontra preservada a ligação dos personagens adolescentes com a mãe, personagem paradoxal justamente porque aquilo que aparentemente impede uma melhor resolução dos problemas materiais é exatamente o fato de engravidar sucessivamente (dando vida a filhos que, depois, tem dificuldade de ajudar). Notamos, aqui, um elemento muito importante, a nosso ver, que inclusive se contrapõe a uma visão muito arraigada no campo da Psicologia, que tende a culpabilizar as mães por toda sorte de dificuldades enfrentadas pelas pessoas: a de uma mãe que faz o que pode, cuida e provê dentro de suas limitações. Trata-se, portanto, de um momento, digamos assim, em que o imaginário social pode conceber a mãe sem desmedidas exigências e críticas. Não recai sobre seus ombros a responsabilidade total pela realização de seus filhos.

Cabe, entretanto, insistir em afirmar que, no "Linha de Passe", a mãe dos adolescentes não é a mulher classe-média que se profissionalizou e entrou no mercado de trabalho, alcançando maior autonomia pessoal, ainda que ocupando posições subalternas ou recebendo salários inferiores aos dos homens. Ao contrário, trata-se de uma mulher pobre que, pela pouca escolaridade e pela profissão exercida, não alcança condições de segurança e estabilidade material. Desse fato resulta a necessidade de os jovens terem de contribuir, desde cedo, com o pagamento de contas relativas às necessidades básicas.

A falta de suporte, tanto social como emocional, fica clara quando nos remetemos ao campo "precisamos de (mais) alguém", que comunica justamente a necessidade de amparo vivida pelos personagens adolescentes. Aparentemente, o personagem Dario encarna o adolescente que está em busca da realização de um sonho: no caso, ser jogador de futebol. Sem o apoio de adultos confiáveis que pudessem cuidar dele, viveria um conflito entre suas aspirações e as condições que lhe são apresentadas, bem como a frustração de saber que tem um preparo físico evidente nessa modalidade, mas não conta com o necessário suporte financeiro. Ora, mesmo a necessidade de dispor de certa quantia está claramente vinculada, no filme, ao fato de pessoas usarem o processo de profissionalização daqueles que querem entrar na carreira futebolística como fonte de ganho financeiro, algo que deixa claro que todos estão lutando para conseguir dinheiro.

O campo de sentido afetivo-emocional "viver é lutar" significa, primordialmente, no contexto desta obra cinematográfica, luta pela sobrevivência material, que atravessa todas as demais aspirações dos jovens irmãos, que, diga-se de passagem, já surgem restritas e empobrecidas, dados os limitados horizontes impostos por sua condição social. Podese depreender, com base no que o filme mostra de modo tão desenvolto, que, no imaginário social do brasileiro, para quem o filme foi realizado, faz todo sentido admitir que os adolescentes pobres sofrem na passagem para a vida adulta. Há, contudo, que se refletir sobre o grau em que essa situação é ou não é socialmente reconhecida como fruto de determinações históricas, econômicas e geopolíticas. O filme retrata a situação vivida pelos personagens, denuncia a pobreza, precariedade, necessidade de amparo, mas cala sobre as condições determinantes das desigualdades sociais. Quase não há referência sobre as razões do não atendimento de carecimentos radicais e de direitos individuais (Heller, 1977; Heller & Feher, 2002).

 

Considerações finais

O filme "Linha de Passe" nos permitiu acesso a uma história que descortina diferentes modos pelos quais pessoas pobres podem adolescer atualmente, em um grande centro urbano brasileiro. Esses diferentes modos obtêm ressonâncias no imaginário social do público que frequenta as produções do cinema nacional contemporâneo.

Nesse imaginário, há lugar para sensibilidade com relação ao sofrimento dos adolescentes pobres. Há condição de compreender frustrações e, a certa distância, até atos ilegais, como os cometidos pelo adolescente motoboy. Contudo, o que parece ausente nessa obra, e, consequentemente, no imaginário daqueles a que se destina, é justamente a visão de determinações geopolíticas, econômicas e sociais. Essa ausência é preocupante, pois parece indicar que se tem consciência de que a situação precária de grande parte da sociedade brasileira é geradora de sofrimento, mas, por outro lado, de que não se tem ideia clara sobre as causas do fenômeno. Essa cegueira, evidentemente, age a favor da manutenção do status quo, conforme uma visão de que, na verdade, o futuro não existiria, a não ser como inevitável e fatal repetição do passado (Santos, 2006).

Segundo o imaginário trazido pelo filme, as angústias dos jovens das classes menos favorecidas são peculiares e singulares, pois, desde cedo, estariam expostos à noção de que a vida é uma luta, sem contar com o apoio necessário, mesmo quando ainda vivem em família, ainda que estruturada em termos de mãe presente e pai ausente. Possivelmente, trata-se de um imaginário simplificador e defensivo que pode, inclusive, servir para ocultar o fato de que adolescer num país marcado por fortes contradições, como o Brasil, gera sofrimento significativo mesmo naqueles que não pertencem às camadas mais desfavorecidas (Camps, 2009).

Como sabemos, a dimensão imaginária, aqui pesquisada, não se opõe à realidade; antes, contribui para sua configuração. Não temos como ocultar a existência das precárias condições da maioria da população, de modo que o imaginário social ressoa sensivelmente diante do filme "Linha de Passe". Neste momento, muitos reconhecem o problema, mas provavelmente não ultrapassam uma linha, uma linha que lhes permitirá alcançar uma visão mais acurada das determinações econômicas, sociais e geopolíticas que estão na base do problema. Mantendo-se aquém desta linha, provavelmente não concebem, não imaginam um futuro que possa ser, de fato, diferente deste presente.

 

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* Doutoranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, mestra em Psicologia e graduada em Psicologia pela PUC Campinas, integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ/USP Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade. E-mail:linocamtz@yahoo.com.br.
** Mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, bolsista CAPES, integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ/USP Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade. E-mail:tomirisfb@hotmail.com.
*** Mestra em Psicologia e graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, bolsista Capes de doutorado pela PUC Campinas. E-mail:fabfoll@uol.com.br.
**** Professora livre-docente pelo Instituto de Psicologia da USP; orientadora dos Programas de Pós-graduação em Psicologia do IPUSP e da PUC Campinas; coordenadora da ‘Ser e Fazer': Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e do NEW (Núcleo de Estudos Winnicottianos) de São Paulo. E-mail:tania.aiello@me.com.
1 O "Linha de Passe" fala da história de Cleusa, uma mulher que trabalha como empregada doméstica e mora no subúrbio paulistano com seus quatro filhos em diferentes momentos do adolescer. Dario sonha em ser jogador de futebol. Dinho é um frentista e dedica-se à religião. Denis é motoboy, tem dificuldade em se manter e é pai solteiro de um menino. Reginaldo, o mais novo, falta às aulas para passear de ônibus na expectativa de encontrar seu pai, que seria, pelo que sabe, um motorista negro. Apesar das dificuldades, Cleusa, grávida do quinto filho, luta muito para sustentá-los.
2 Adotando uma perspectiva psicanalítica inter-relacional, não concebemos a produção cinematográfica como possibilidade de "projeções do inconsciente", pois não acreditamos em um inconsciente objetivado. Considerando que o objeto de estudo da Psicologia psicanalítica são as condutas concretas, entendemos o inconsciente como conceito que elucida o sentido da experiência e da atividade humana, inerentemente complexas e contraditórias, tal como mostram Bleger (1963) e Politzer (1994).
3 Recomendamos que os interessados em aprofundar o conhecimento sobre o modo como tem sido usados esses procedimentos investigativos, bem como aqueles que desejam conhecer melhor o conceito e uso do conceito de campo, consultem os seguintes trabalhos: Ávila, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2008); Couto, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2007); Russo, Couto e Aiello-Vaisberg (2009); Pontes, Cabrera, Ferreira e Aiello-Vaisberg (2008); Cabrera, Pontes, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2007); Fialho, Fernandes, Montezi e Aiello-Vaisberg (2012); Martins e Aiello-Vaisberg (2009); Barcellos, Tachibana e Aiello-Vaisberg (2010); Barreto e Aiello-Vaisberg (2010).