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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.3 Belo Horizonte  2013

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n3p340 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n3p340

 

 

A escuta analítica: corpo, afeto e palavra*

 

The analytic listening: body, affection and word

 

La escucha analítica: cuerpo, afecto e palabra

 

 

Solange Serrano Fuchs**; Silvia Zornig***

 

 


Resumo

A dificuldade de muitos analisandos de entrar em contato com suas vivências afetivas e poder transmitir seus sentimentos e percepções nos convoca a buscar outras formas de acesso àquilo que não pôde ser nomeado, decorrente de vivências traumáticas e desestruturantes. A escuta analítica da dimensão não verbal, fundamental para a clínica contemporânea, pode nos ajudar no processo analítico desses pacientes, não somente como via de acesso ao processo de simbolização, mas sobretudo como possibilidade de uma vivência integradora no processo analítico. Com base em uma perspectiva teórico-clínica proposta por Ferenczi e desenvolvida por autores como Winnicott e McDougall, procuramos refletir sobre a especificidade da relação transferencial/ contratransferencial diante da impossibilidade do livre associar do analisando.

Palavras-chave: Linguagem corporal. Afeto. Clivagem. Transferência. Contratransferência.


Abstract

The difficulty of many of those analyzed to get in touch with their emotional experiences seems to be a result of traumatic and fragmented early experiences which prevents them from being able to share their feelings and perceptions, resulting from traumatic and destabilizing experiences confronts the psychoanalyst with the need to find new forms of working within the clinical setting. Listening to the non-verbal communication (related to bodily sensations and feelings) one can help some patients not only to have access to the symbolization processes, but to have an experience of integrating aspects of their psychic reality that have remained dissociated. Based on the contributions of Ferenczi, Winnicott and J. McDougall, this paper intends to reflect on the transference- counter-transference aspects of the analytic relationship.

Keywords: Body language. Affect. Splitting. Transference. Countertransference.


Resumen

La dificultad que muchas personas analizadas tienen para entrar en contacto con sus vivencias afectivas y poder así trasmitir sus sentimientos y percepciones, nos convoca a buscar otras formas de acceso a aquello que no puede ser nombrado, consecuencia de vivencias traumáticas y deconstructivas. La escucha analítica de la dimensión no verbal, fundamental para la clínica contemporánea, puede ayudarnos en el proceso analítico de estos pacientes, no solamente como vía de acceso al proceso de simbolización, sino principalmente, como posibilidad de una experiencia de vivencia integradora en el proceso analítico. Desde una perspectiva teórico-clínica propuesta por Ferenczi y desarrollada por autores como Winnicott y McDougall, intentamos, en ese texto, reflexionar sobre lo específico de la relación trasferencial/ contratrasferencial ante la imposibilidad del libre asociar del analizado.

Palabras clave: Lenguaje corporal. Afecto. Escisión. Trasferencia, Contratransferencia.


 

 

Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde. Toda a palavra é espelho onde o refletido me interroga (QUEIROZ, 2011).

O poeta lembra, em "Vermelho amargo", que a palavra nos interroga e também ajuda a nos desvelar; permite-nos descobrir, tornar claro; paradoxalmente, longe de elucidar, adverte o poeta, muitas vezes, a palavra encobre como um véu, distancia-nos do estranho em nós mesmos. Sabemos que essa foi sempre uma questão importante para a psicanálise, tanto no que diz respeito à sua teoria como à sua prática clínica, visando ao acesso à dimensão inconsciente, na tentativa de ajudar o analisando a entrar em contato e transpor, em palavras, a lógica encontrada em seus sonhos, em seus atos falhos, em seus sintomas corporais que se apresentavam como um enigma, uma linguagem a ser decifrada, endereçada a outro.

A psicanálise se constituiu como clínica, fundamentalmente, a partir de uma escuta na tentativa de acesso à dimensão inconsciente. Essa escuta, portanto, não se limita ao que é verbalizado, mas busca acessar o que se apresenta aquém da palavra, num contínuo de sentido; ainda que não ressoe como som, revela-se como um apelo à linguagem, como lembra Gil (2005).

Esse sentido é tecido por meio da transferência na situação analítica, em que também os gestos, os movimentos corporais, o silêncio ajudam a compor e dar forma à narrativa de nosso analisando, auxiliando o acesso por vias que nem sempre a palavra consegue dar.

A proposta deste trabalho é refletir sobre os desafios na clínica atual diante da impossibilidade do livre associar do analisando decorrente não de processos de recalcamento, mas de vivências desestruturantes ou desorganizadoras que impediram a capacidade representacional. Para isso, nós nos propomos a retomar algumas contribuições de Freud para depois aprofundarmos nossa reflexão com base na concepção teórica de Ferenczi e contribuições de alguns autores que, influenciados direta ou indiretamente por suas postulações teóricas, auxiliam na reflexão sobre os impasses que a questão do corpo, do afeto e da palavra colocam para a clínica atual.

 

Corpo, afeto e palavra na concepção de Freud: algumas considerações

Os primórdios da clínica psicanalítica se constituem quando Freud abandona a hipnose e compreende o valor da verbalização para o paciente e da atenção flutuante, bem como do trabalho interpretativo como possibilidade de acesso à lógica inconsciente. Freud percebe o efeito terapêutico provocado pela evocação da recordação que traz junto de si a revivescência do afeto correspondente. A fala, nesse sentido, tem um efeito libertador, porque permite ato e descarga de afetos, mas nem sempre é possível o afeto estar ligado à representação.

O autor (Freud, 1996f ) distingue três mecanismos de transformação do afeto: ele pode sofrer a conversão no corpo, como no caso da histeria, pode ser deslocado para outras representações distantes do conflito original, nas obsessões, ou ainda apresentar uma terceira transformação, chamada por Freud de neurose de angústia. A preocupação com esse terceiro destino do afeto é demonstrada já em 1894, no esboço "Como se origina a angústia" (Freud, 1996b). Mas é em 1895 que Freud (1996g) vai desenvolver suas ideias em um artigo, no qual propõe separar síndrome da neurose de angústia e neurastenia. Freud relaciona, num primeiro momento, os estados de angústia como resultante do recalcamento libidinal. A angústia é decorrente do conflito entre as instâncias psíquicas. Em "Inibições, sintomas e ansiedade" (Freud, 1996c), Freud retoma essa questão, ampliando sua abordagem para outras situações ao longo do desenvolvimento libidinal, resultantes, todavia, de uma vivência de desamparo gerado por uma situação traumática, ou seja, por um afluxo incontrolável de excitações, seja de origem externa ou interna. Mas o enfoque aqui é a constituição de defesa diante do desejo e a ameaça de castração ligada a este.

Ao comparar os mecanismos que ocorrem na neurose de angústia e na histeria, Freud ressalta que há, nesta última, uma excitação psíquica que toma um caminho errado, numa direção exclusivamente somática, fazendo com que o conflito psíquico venha simbolizar-se nos sintomas corporais. Os sintomas somáticos da histeria contêm, portanto, um simbolismo, ou seja, uma relação pode ser encontrada entre a história infantil, os desejos e fantasias da histérica, e o que seu corpo comunica. Nesse sentido, podemos pensar o corpo da histérica como um corpo que transmite a maneira de a histérica apreender sua história, sua especificidade diante daquilo que a afeta. A experiência do sofrimento histérico é marcada por um movimento desejante, uma demanda endereçada ao outro. Dessa forma, a relação entre o corpo, afeto e palavra (representação) pode ser alinhavada, construída por meio do trabalho interpretativo que a transferência possibilita.

Assim, se nos primórdios da psicanálise, os sonhos trazidos pelas pacientes histéricas indicavam sua dimensão alteritária, remetendo-os a possíveis sentidos a serem tecidos na transferência, Freud percebe, mais tarde, que o sonho nem sempre representava a realização de desejos, mas também a vivência de angústias intensas que se repetiam na tentativa de elaboração de uma efração psíquica, resultante do trauma.

Rudge (2009) ressalta como Freud, a partir da Primeira Guerra Mundial, começa a refletir sobre as neuroses de guerra, reconhecendo que essa afecção não tinha a mesma etiologia sexual da histeria, mas era decorrente de uma fixação ao incidente traumático, que passaria a ser repetido nos sonhos.

Nesse momento, Freud inicia uma discussão que vai desenvolver mais tarde, em 1920, ou seja, que os pacientes repetem a situação traumática em seus sonhos (os sonhos traumáticos), e relaciona essa condição a uma compulsão a repetir.

Em março de 1919, Freud já trabalha num primeiro esboço de "Além do princípio do prazer" (Freud, 1996a) e formula o conceito de pulsão de morte. Ou seja, ao lado de Eros, haveria também a pulsão de morte. A noção de compulsão invocada desde "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1996e) está no centro de "Além do princípio do prazer" (1996a). A partir daí, o enfoque na teoria do trauma passa a ser intersistêmico e pulsional com a teoria dualística das pulsões e com a definição das estruturas psíquicas em termos de ego, id e superego desenvolvidas, posteriormente, em 1923 (Freud, 1996d).

Nessa última fase da teoria freudiana com relação à questão do trauma, que é iniciada com a revisão do conceito de angústia, Freud distingue as situações de perigo das situações traumáticas e faz referência a dois tipos de angústia: a automática e a angústia como sinal diante da aproximação de uma situação de perigo. Para Freud, a essência da situação traumática é a vivência de desamparo por parte do ego decorrente da impossibilidade de o psiquismo se defender da efração provocada pelo evento traumático, seja externo ou interno. Com o tempo, sua teorização a respeito da situação traumática tendeu para o crescente reconhecimento do papel preponderante do ambiente, ou seja, da necessidade de auxílio externo diante das situações geradoras de uma vivência de desamparo, mesmo que nunca tenha deixado de indicar que o trauma não se resume a um evento potencialmente traumatizante, mas na forma como essa situação incide sobre o psiquismo de cada sujeito. Podemos assinalar, no entanto, a verdadeira mudança de paradigma que representou para a questão do trauma a experiência da guerra, deslocando o traumático do terreno da sexualidade para ressaltar a importância dos perigos externos como desencadeantes de uma cisão no eu.

 

A dimensão corporal e afetiva na perspectiva ferencziana

Essa confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre presente e um passado insuportável e traumatogênico (Ferenczi, 1992a).

Em "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (Ferenczi, 1992a), artigo apresentado no Congresso de Wiesbaden, em 1932, Ferenczi apresenta importantes reformulações com relação à compreensão do trauma, deslocando o enfoque do excesso pulsional, gerado por processos intrapsíquicos, para a ideia de uma efração no psiquismo provocada por fatores externos que invadem o ego. Na concepção de Ferenczi, o ambiente, ou seja, a ação do objeto externo, passa para primeiro plano não somente com relação à origem do trauma, mas, principalmente, pelo desmentido que rompe qualquer possibilidade de significar, gerando a cisão no ego da criança dependente desse adulto. Tal processo impede o desenvolvimento da capacidade da criança de confiar nas próprias percepções com relação à realidade e aos próprios sentimentos.

Essas noções representaram importantes contribuições para o trabalho analítico, indicando a necessidade de se repensar a teoria e a prática clínica, conforme o quadro sintomático, anteriormente compreendido com base em processos intrapsíquicos gerados pelo excesso em termos pulsionais, é redimensionado a partir do reconhecimento da verdadeira fragmentação no ego causada pela violência do desencontro entre a linguagem da criança e a linguagem dos adultos.

Ferenczi (1992d), em artigo publicado após sua morte, apresenta reflexões sobre o trauma e nos ajuda na compreensão desses processos sintomáticos que observamos na clínica: pacientes que, diante da reação autoplástica ou clivagem no ego, desenvolvem uma forma de anestesia para "lidar" com a realidade externa, e o quanto delicado é nosso papel diante dessas situações na clínica.

O autor aponta para a necessidade de profundas mudanças na técnica e na teoria com relação ao lugar do analista, a forma de presença e a importância da contratransferência para a clínica de pacientes traumatizados.

Poderíamos dizer que Freud desenvolveu a técnica analítica tendo por base a experiência com pacientes neuróticos, capazes de expressar verbalmente seu sofrimento, anseios, desejos, ainda que, muitas vezes, por via indireta, ou seja, por meio de seus sonhos, sintomas, atos falhos. Ferenczi precisou adaptar, estender e mesmo desenvolver a técnica conforme a especificidade de sua clínica, na qual o recurso das associações, rememorações era substituído pelas repetições, atuações, somatizações e pela identificação projetiva, como lembram Kahtuni & Sanches (2009).

A comunicação corporal, assim como as sensações, o olhar, os gestos, o ritmo, o tom da voz, o silêncio oferecem indícios importantes, revelando, muitas vezes, mais sobre o paciente do que a verbalização. Essa perspectiva construída com base na escuta sensível à necessidade do paciente influenciou muitos psicanalistas, pois abrange a clínica ampliada, não restrita a pacientes neuróticos. Referimo-nos aos pacientes graves, psicóticos, ~borderline, bem como a pacientes psicossomáticos. Entre esses autores, citamos Winnicott e Joyce McDougall, que nos ajudam a refletir sobre os impasses na clínica diante da dificuldade nos processos de simbolização como consequência de vivências traumáticas ocorridas no processo de constituição subjetiva.

McDougall (1989) desenvolveu um importante trabalho com pacientes somatizantes e lembra que a reação que surge no corpo, nos estados de angústia, parece ser a resposta possível diante de uma dissociação do que não pode ser metabolizado psiquicamente. A autora ainda ressalta que, nos estados depressivos e na angústia, a psique tende a esmagar os afetos, restando ao corpo reagir. O sofrimento psíquico marcado principalmente por processo de clivagem, comum na clínica atual, corresponde a angústias que surgem da sensação de perda de si, como a sensação de esvaziamento e aniquilação subjetiva, descrita por McDougall (1983).

Ao se referir a esses pacientes, ela nos remete às observações desenvolvidas por Anzieu (1988) com relação às consequências da ausência de um objetosuporte, o que gera a sensação de um vazio interior.

Segundo o autor, a inconsistência do sentimento de si resulta da própria inconsistência da relação com o objeto primário, que não possibilitou a formação de um envelope narcísico constituído com base em um sentimento de tranquilidade, proporcionado pela experiência de continuidade nos cuidados, fundamentais no início da vida, quando a dependência é absoluta (Winnicott, 1983).

O sentimento de base (mesmice de ser) se constitui pela qualidade afetiva e pelas experiências de aconchego, de contato corporal e asseguramento proporcionado pela experiência de ser amparado, protegido e contido pelo outro materno. Essa vivência afetiva, sensorial e corporal que a mãe pode proporcionar para seu bebê possibilita o desenvolvimento de um sentimento de confiança e coincide com as noções de holding e handling desenvolvidas por Winnicott (1983).

Quando essa experiência de cuidado não pode se constituir ou quando, por alguma razão, há uma ruptura na relação de cuidado, ocasionada pela ausência afetiva da mãe (como nos estados depressivos), há uma quebra, uma ruptura no processo de desenvolvimento emocional do bebê. Não se trata, nesses casos, de uma simples quebra no ritmo que poderia ser retomado, gerando alívio para o bebê, mas sim na perda na continuidade de ser, que é a base da força do ego.

Green (1988) descreve essa situação como o "complexo da mãe morta", na qual o ego do bebê precisa organizar uma série de defesas, entre elas a descatexização do objeto.

    A mãe morta havia levado consigo, na descatexia da qual ela fora o objeto, a principal parcela do amor com que havia sido catexizada antes de seu abandono: seu olhar, o tom da sua voz, seu cheiro, a lembrança de sua carícia. A perda do contato físico trazia consigo a repressão dos traços de memória de seu toque (Green, 1988, p. 160).

Nesse caso, o ódio não é possível pelo estado depressivo da mãe, e a experiência de ódio resultaria num vazio sem resposta, sem o gesto materno vindo a proporcionar algum tipo de troca, algum amparo. O que se mantém, nos diz Green (1988), é um mimetismo com a finalidade de não se perder o objeto, que não se tem mais na verdade. A energia da criança não é usada para o agir espontâneo, mas sim para o reagir defensivo.

A clínica de pacientes que tiveram essa vivência é muito difícil, e o autor ressalta que, nesses casos, não cabe o trabalho interpretativo, mas que, por outro lado, o silêncio perpetua a transferência do luto em branco para a mãe. Essa indicação é preciosa, pois levanta muitas questões para nossa clínica quando o sofrimento psíquico resulta de experiências traumáticas vividas no início da vida, as quais impossibilitaram a formação de estruturas, de um sentimento de base.

As experiências muito primitivas, ligadas à constituição da imagem corporal, não passam por registros de representação, mas permanecem num campo de intensidades que pode ser comunicado na análise por meio do acolhimento, pelo analista, dessa dimensão sensorial e afetiva.

Muitas vezes, percebemos que a fala de nosso paciente destoa do que é transmitido corporal e afetivamente. Referimo-nos à dificuldade de alguns analisandos de entrar em contato com seus sentimentos e poder expressá-los mediante palavras ou de expressar as palavras com o conteúdo emocional correspondente. A sensação que esses pacientes transmitem muitas vezes é de que usam as palavras não como meio de expressão de seu mundo interno, mas como se as palavras pudessem ser usadas para afastá-los do mundo externo, como se pudessem ajudar a compor, palavra por palavra, uma verdadeira muralha. As palavras se apresentam esvaziadas afetivamente, desvitalizadas, fazem parte de um discurso racional, cheio de justificativas (McDougall, 1989).

Nesse sentido, poderíamos pensar a palavra a partir de uma ausência da possibilidade de exercer sua função primordial de transmissão, comunicação e aproximação entre o eu e o outro. O que esses pacientes conseguem nos comunicar, realmente, é uma dissociação entre seus afetos e o que é transmitido por suas palavras. Entrar em contato com seus sentimentos parece representar uma verdadeira ameaça para o equilíbrio conquistado por meio da formação de defesas que precisaram se constituir. Esses pacientes transmitem uma desafetação generalizada e ao descreverem, por exemplo, situações traumáticas vividas, parecem ter sido meros expectadores, sem nenhum envolvimento emocional com o incidente em si.

A fala, o discurso e os afetos vivenciados são marcados por um antagonismo, e essa contradição é comunicada pelo olhar, que transmite um profundo pesar, uma dor silenciada e muda. Esses analisandos demonstram guardar um grande ressentimento e mantêm uma espécie de "blindagem" tanto para a dor como para as experiências positivas. Apesar de conseguirem manter vínculos, procuram se proteger, sustentando esses vínculos numa certa superficialidade; demonstram grande dificuldade de criar elos afetivos mais profundos, o que representaria uma verdadeira ameaça, diante da dificuldade de lidar com os afetos. Por trás dessa máscara de superficialidade, sentem-se abandonados, o que gera um sentimento de profunda solidão. A dificuldade de perceber seus sentimentos e de lidar com eles gera um sentimento de vazio, de inutilidade ou mesmo de irrealidade, e essa falta de articulação entre seus afetos e os dos outros os leva, muitas vezes, a desenvolverem quadros depressivos. Esses pacientes nos colocam numa situação limite, paradoxal mesmo, se constatamos que qualquer interpretação pode ser tida como invasiva. Há, por outro lado, um pedido explícito de ajuda.

Que caminho podemos percorrer para termos acesso a esses analisandos, já que o associar livremente está tão distante para eles quanto distantes estão as palavras deles mesmos? É justamente nesse espaço que o corpo comunica e, muitas vezes, até mesmo contradiz a palavra.

O corpo ajuda a narrar uma história, uma história desconhecida e, muitas vezes, estranha para o próprio narrador. O corpo é a via que permite acesso à narratividade, especialmente em determinados analisandos, que nos comunicam muito mais a respeito deles mesmos nas lacunas, nos vazios, no silêncio, onde falta a palavra.

McDougall (1983) chama a atenção para o fato de que esses analisandos, mais do que comunicar em palavras, conseguem suscitar afetos no analista, que sente os sentimentos, as emoções do paciente, sua impotência, tristeza, irritação ou mesmo angústias. O enfoque aqui é a dimensão contratransferencial como possibilidade de acesso a esse paciente.

Nesse sentido, poderíamos considerar que, junto ao discurso falado, existe um "diálogo" muitas vezes silencioso que é intensivo e fundamental por nos ajudar a entrar em contato com o sofrimento psíquico em um espaço-tempo, de modo a poder viabilizar uma possível simbolização a ser construída na análise.

McDougall (1983), ao refletir sobre o papel da contratransferência, lembra que as emoções suscitadas no analista por essas infiltrações primitivas, ou seja, por esses índices sensório-motores captados de modo subliminar, trazem em potencial uma possibilidade de interpretação. É necessário que o analista receba as projeções dos medos e angústias de seu analisando, possa contê-las e metabolizá-las, transformando-as em um material tolerável, o que coincide com o que Bion (2004) chamou de capacidade de rêverie da mãe-continente, que recebe os medos e anseios de seu filho e os "desintoxica" para ele.

É necessário, num primeiro momento, que o analista acolha a linguagem não verbal emitida por seu paciente, considerando-a como uma forma de comunicação fundamental de acesso à dimensão inconsciente. O olhar, o tom de voz, o ritmo, a expressão facial, o movimento corporal e toda a gama de impressões sensoriais comunicam o inconsciente do analisando e, portanto, ajudam-nos a entrar em contato com o que estava silenciado. Trata-se, muitas vezes, de pequenas percepções, sutilezas, como sugere José Gil (2005); são índices significativos, pois abrem um campo de investigação do inconsciente.

É importante que o analista esteja sensível a essas manifestações corporais, consiga entrar em sintonia com esse ritmo e as acolha como uma "caixa de ressonância", permitindo sentir dentro de si como seu paciente se sente, conforme ressaltou Ferenczi (1992b) e, a partir daí, possa ajudar seu analisando a pôr em palavras aquilo que estava silenciado, marcado corporalmente e que pedia uma verbalização. Dessa forma, a primazia da contratransferência para a clínica é reconhecida como via possível de acesso ou de "escuta" diante da angústia não simbolizada. O analista, então, capta sensações que são transmitidas pelo analisando. Muitas vezes, essas sensações corporais e afetivas se contrapõem à fala e precisam ser traduzidas em palavras, traduzidas como questões para que o analisando possa entrar cada vez mais em contato com essa via reveladora do inconsciente, num processo de construção de sentidos e de integração egoica.

Há uma ampliação da interpretação, pois se trata de levantar proposições com base em uma experiência intensa e compartilhada na análise; experiência essa que se desenvolve de acordo com o ritmo do paciente e desde uma base de confiança que se constituirá pouco a pouco. Nenhum trabalho poderá ser efetivo sem essa base de confiança, pois é ela que torna possível o acesso a esses pacientes e pode oferecer alguma possibilidade de mudança.

Ferenczi (1992c) lembra que esses pacientes apresentam uma prevalência de atenção aguçada a detalhes, gestos e atitudes do analista, e que são extremamente sensíveis e atentos às percepções com relação ao entorno, sobretudo ao que possam provocar no analista. O trabalho interpretativo desenvolvido precocemente poderia ajudar, nesse caso, na criação de mais e mais defesas, resultando em sentimento de solidão e desamparo.

A palavra é fundamental, mas, em determinados casos, é preciso que se construam condições para que a palavra possa ter seu valor simbólico, possa ter seu valor de holding e não seja tomada como invasiva, como mais uma confusão de línguas (Ferenczi, 1992a). Esse processo é bastante complexo e, na verdade, vai depender de uma série de condições.

Essas condições estão relacionadas, em grande parte, ao analista, pois o destaque aqui é o manejo na análise, conforme ressaltou Winnicott (1988a; 1988b). A noção de tato, a flexibilização por parte do analista e a importância da construção de um ambiente de confiança são fundamentais para que o analisando possa vivenciar a análise como um processo estruturante, um processo de construção subjetiva.

A intensidade dessas vivências traumáticas aponta para a necessidade de uma clínica voltada para aspectos mais relativos à forma do que ao conteúdo, mais ao manejo do que à atividade interpretativa, para a necessidade da constituição na análise de uma experiência integradora, pois é nesse contexto que a palavra poderá vir a ter seu valor mutativo, de transformação, de fazer sentido, um outro sentido, talvez.

 

Referências

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*Artigo desenvolvido com base na dissertação de mestrado "A escuta analítica: as dimensões corporal, afetiva e sensorial na transferência", março de 2011.
**Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-RJ, psicanalista, membro-associado da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Endereço: Rua Miguel Lemos 41, sala 1011. Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22071-000. Telefone: (21) 2513-3566. E-mail:solangemsf@globo.com.
***Professora doutora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-RJ, coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica com Crianças da PUC-RJ, membro-fundadora da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê, membro da World Association for Infant Mental Health, psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Endereço: Rua Sara Vilela, 100. Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22460-180. E-mail:silvia.zornig@terra.com.br.