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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.3 Belo Horizonte  2013

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n3p371 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n3p371

 

 

Famílias homoparentais: tão diferentes assim?

 

Homoparental families: are they that different?

 

Familias homoparentales: ¿realmente tan diferentes?

 

 

Ana Laura Moraes Martinez*

 

 


Resumo

Neste artigo, embasando-me em duas vinhetas clínicas, abordarei a tão complexa e atual discussão a respeito das famílias homoparentais. Apresentarei alguns dos temores sociais e fantasmáticos vinculados a essas famílias, entre eles o temor do apagamento da diferença entre os sexos e o receio de que a criança criada nesse contexto se torne homossexual. Em seguida, mostrarei como problemáticas emocionais encontradas nessas famílias, e que podem contribuir para fixações no desenvolvimento psicossexual infantil, também podem estar presentes em famílias heterossexuais (situação que permite pensar mais nas semelhanças do que nas diferenças entre essas duas modalidades familiares). Destaca-se que um olhar mais aprofundado e cuidadoso sobre as famílias homoparentais, com suas semelhanças e diferenças com relação a outras configurações familiares, é fundamental para questionarmos compreensões preconceituosas que se difundem no meio social acerca delas.

Palavras-chave: Psicanálise. Homoparentalidade. Configurações familiares. Homossexualidade. Família.


Abstract

The present article, based on observations derived from two case studies, approaches the complex and actual discussion about homoparental families. I discuss some of these families' fantasized and social fears, some of which are the blaring differences between sexes and the fear that a child raised in a homoparental family might become homosexual. I also indicate that emotional problems found in homoparental families are no different from those found in heterosexual families, proposing a reflection on the similarities rather than on the differences between these two kinds of family configurations. I emphasize that a deeper and careful look at homoparental families, on their similarities and differences with other family configurations, is essential to question prejudiced views that are maintained and disseminated in the social environment of these families.

Keywords: Psychoanalysis. Homoparenthood. Family configurations. Homosexuality. Family.


Resumen

En el presente artículo, basándome en dos viñetas clínicas, trataré la tan compleja y actual discusión sobre las familias homoparentales. Presentaré algunos de los temores sociales y fantasmáticos relacionados a esas familias, entre ellos el temor a que se desaparezca la diferencia entre los sexos y la desconfianza a que el niño criado en ese contexto se convierta en homosexual. A continuación, mostraré cómo problemáticas emocionales encontradas en esas familias, y que pueden contribuir al surgimiento de obsesiones durante el desarrollo psicosexual infantil, también pueden aparecer en familias heterosexuales (situación que nos permite pensar más en las semejanzas que en las diferencias entre esas dos modalidades familiares). Destaco que una mirada más profunda y cuidadosa sobre las familias homoparentales, con sus semejanzas y diferencias respecto a otras configuraciones familiares, es fundamental para cuestionar los puntos de vista y los prejuicios que se difunden en el medio social acerca de esas familias.

Palabras clave: Psicoanálisis. Homoparentalidad. Configuraciones familiares. Homosexualidad. Familia.


 

 

Introdução

A família vem passando por profundas transformações nas últimas décadas. Enquanto na família do século XIX todos os membros familiares tinham papéis e lugares claramente definidos, hoje essa trama de configurações se torna mais complexa e difícil de ser mapeada. Naquela, cabia à mulher o papel de cuidadora da casa e da prole, enquanto ao marido cabia o provimento material e o poder de decisão a respeito dos assuntos familiares. Nesta, a mulher passa a ocupar inúmeros papéis (mãe, esposa, trabalhadora) e assistese a um paulatino enfraquecimento do poder paterno (Amazonas & Braga, 2006; Costa, 1983).

Atualmente muito se diz a respeito do fim da família, ideia esta contestável, visto que, por um lado, a família tradicional realmente não tem sido mais a norma; e por outro, a família, em uma concepção mais ampla, é tão antiga quanto a própria humanidade. Uma das razões para essa perpetuação da estrutura familiar, em suas diferentes configurações, deve-se ao fato de que o humano, desde o início de seu processo de hominização, necessitou encontrar proteção em laços familiares contra os perigos do mundo externo. Ao contrário de outras espécies animais, o ser humano necessita contar com uma rede de cuidado e proteção afetiva no início da vida para poder garantir sua sobrevivência física e psicológica, algo que é feito de forma privilegiada no interior da família.

Na psicanálise, a família é compreendida como o primeiro núcleo estruturante e socializador da criança; entidade fundamental para alicerçar as bases identitárias do indivíduo. Dessa forma, o inconsciente do infante se configura na família e em sua complexa e delicada rede de tramas geracionais e inúmeras determinações inconscientes, colocadas não só pelos genitores, mas também pelos pais e avós de cada um destes (Adena & Speller, 2001). Por isso, é consenso entre os pensadores da psicanálise atual (Correa, 2000; Kaës, 2001) que a compreensão do inconsciente do indivíduo não pode prescindir do que lhe transcende, ou seja, do que lhe é, ao mesmo tempo, familiar, porque o constitui, mas do que lhe escapa enquanto um discurso que é perpassado transgeracionalmente e do qual ele nada sabe.

Retomando a ideia apresentada sobre a multiplicidade de configurações familiares, uma dessas "novas" configurações familiares é a família homoparental. Utilizam-se as aspas porque, na realidade, essa não é uma configuração realmente nova. O que é nova é a sua nomeação e visibilidade social. Há muito tempo, homossexuais solteiros ou em parcerias criam crianças. Entretanto, a partir da década de 1960, começa a haver um movimento de engajamento maior dessas pessoas no sentido de terem reconhecido socialmente o seu desejo de serem pais e mães. Segundo Roudinesco (2003), esse foi um movimento de retorno à "normatização", já que, décadas antes, os homossexuais consideravam a família como o lugar privilegiado de enquadramento do indivíduo. Mais tarde, esses mesmos homossexuais começaram a expressar o desejo de terem reconhecidos os seus desejos de se casarem e terem filhos, assim como faziam as famílias heterossexuais.

Esse movimento organizado no sentido de expressão do desejo pela parentalidade começou nos Estados Unidos, entre 1965 e 1970, na costa da Califórnia, e se tornou particularmente intenso a partir de 1975; luta que foi reforçada pelos movimentos de descriminalização das minorias sociais, como homossexuais, negros e minorias étnicas.

A sociedade, sobretudo representada pelo discurso religioso, reagiu de maneira reacionária ao desejo dos homossexuais de se tornarem pais e mães, afirmando que a família era constituída por um homem e uma mulher, e que a aceitação de uma família formada por dois homens ou duas mulheres implicaria em um apagamento da diferença entre os sexos. Outro temor social despertado por essa configuração familiar dizia respeito à possibilidade de a criança vir a se tornar homossexual, embora muitos estudos longitudinais realizados nos EUA tenham mostrado que esse era um temor infundado, já que a porcentagem de crianças que se tornavam homossexuais era a mesma em famílias homoparentais e heterossexuais (Stacey & Biblarz, 2001; Patterson, 2004; Julien, Dubé & Gagnon, 2004; Golombok, 2002). A psicanálise, particularmente a francesa, foi convidada a entrar nesse debate acirrado e a se posicionar a respeito.

Muitos psicanalistas se eximiram do debate, argumentando que a psicanálise não tem condições de se posicionar com relação a questões sociais, já que seu objeto de estudo é o inconsciente em sua expressão individual e singular (Uziel, 2002). Outros, sobretudo Roudinesco (2003) e Parseval (1999), inseriramse no debate, promovendo uma flexibilização e relativização da discussão. Nesse debate acirrado, a própria psicanálise foi acusada de ser normalizadora do sujeito, por compreender que o inconsciente, para se estruturar como linguagem, necessita transitar pela configuração edípica. Tal crítica fazia referência à normatização proposta pela teoria edipiana de Freud (1996). O que não se considerou, nessa interpretação, foi o caráter mítico da conflitiva edípica e o fato de Freud falar não do pai concretamente, mas da função paterna, assim como falava do falo como representante do poder paterno e não do pênis em si. Da mesma forma, a confusão foi feita entre mãe e função materna.

Na tentativa de clarificar essa compreensão, Vieira (2001) explica, com relação às funções materna e paterna, que a pessoa que desempenha a função materna no cuidado com o infante deve estar disposta a identificar-se com as demandas e necessidades do bebê, fornecendo-lhe recursos para o atravessamento de sua situação de angústia e desamparo. Segundo o autor, essa função pode ser desempenhada independentemente do sexo biológico do cuidador, já que se trata de uma condição mental que não está relacionada necessariamente com o sexo feminino. Já a função paterna é realizada por aquele que, por meio de sua palavra, funda um terceiro junto à função materna e à criança, impedindo que esta seja tudo para a mãe e protegendo a dupla de uma relação fusional.

Por outro lado, neste debate, uma das regras fundamentais da psicanálise foi esquecida: não importa a configuração familiar da qual deriva um sujeito, mas sim as costuras inconscientes que o sujeito fez a partir do que lhe foi dado. Importa mais como o sujeito estruturou o seu psiquismo diante da cena edípica e, consequentemente, se elaborou ou não os difíceis e turbulentos sentimentos de exclusão e ódio que essa vivência provoca; experiência psicológica que todo ser humano terá de enfrentar, independentemente de qual tenha sido sua configuração familiar de origem (Bion, 1988).

A respeito do temor de que famílias homoparentais possam desenvolver a homossexualidade da criança, a psicanálise tem algumas contribuições a fazer. Conforme assevera Freud (1996), a homossexualidade é uma expressão direta da bissexualidade humana e está presente, de forma sublimada, nas amizades entre duas pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, Freud chama a atenção para o fato de que não há uma ligação natural entre a pulsão sexual e o objeto, o qual, no senso comum, é atrelado ao sexo oposto ao sexo biológico do sujeito. Segundo ele, entre a pulsão sexual e o objeto, existe apenas uma ligação tênue, já que a libido (nome que ele deu à pulsão sexual) pode catexizar vários objetos, inclusive o próprio corpo, como acontece no narcisismo. Freud afirma que a verdadeira homossexualidade é uma manifestação de uma escolha de objeto narcísica e reflexo de uma intensa fixação que o sujeito (aqui Freud se refere ao sujeito do sexo masculino) fez em sua mãe, algo que, no futuro, será revivido na escolha de objeto amoroso. Em outras palavras, o sujeito, agora identificado com sua mãe, buscará no parceiro a imagem refletida de si mesmo, amando-o assim como sua mãe o amou na infância.

Ainda nesse texto, Freud (1996) salienta que uma situação familiar que pode contribuir para a construção de uma identidade homossexual permanente é aquela em que a figura paterna é ausente ou fraca (normalmente enfraquecida pela mãe). Nesse caso, a mãe, como remanescente, absorve todo o amor da criança, dificultando o processo de separação e de identificação com a figura paterna. Por isso a psicanálise considera tão importante que haja a presença da função paterna, representante do falo, para realizar o corte na relação primordial mãe-criança.

Em resumo, viu-se até o momento que a homossexualidade e a homoparentalidade mobilizam temores sociais de ordens diversas, configurando-se como rótulos em volta dos quais transitam inúmeras fantasias e preconceitos. E que, seguindo os princípios norteadores da psicanálise, a orientação sexual de um sujeito e a configuração familiar de onde ele deriva devem ser compreendidas de forma ampla, pois o que importa são as amarrações internas que cada um fará de sua história e singularidade. Ainda, viu-se que, para a psicanálise, importa mais para o desenvolvimento do infante que ele possa contar com uma dupla de cuidadores, em que um realiza a função materna e outro realiza a função paterna.

Para questionar essa ideia fortemente arraigada no imaginário social (a de que famílias homossexuais necessariamente geram filhos homossexuais), há outro elemento importante a ser destacado. Trata-se do fato de que, mesmo em famílias heterossexuais, onde se estão garantidas a presença da mulher (mãe) e do homem (pai), ainda assim as funções materna e paterna podem não estar sendo desempenhadas a contento. Por uma série de entraves emocionais dos pais, o casal heterossexual pode ter dificuldade em desempenhar, cada um a seu modo, as funções materna e paterna: a primeira oferecendo um ambiente continente e acolhedor; e a segunda oferecendo à dupla o corte necessário, único capaz de inserir o infante no mundo simbólico, salvaguardando-o da psicose (Lacan, 2003). Ou seja, a presença de um homem e de uma mulher cuidando de uma criança não é garantia de que as funções materna e paterna serão desempenhadas a contento; ideia que contesta a premissa de que a família heterossexual seria, a priori, melhor para o desenvolvimento psicossexual da criança do que a família homossexual. Isso se dá porque as funções materna e paterna não estão ligadas à Biologia, mas à condição emocional de cada um dos genitores de desempenharem essas mesmas funções.

Freud já havia previsto que as dificuldades neuropáticas dos pais (heterossexuais) podiam trazer limitações ao desenvolvimento psicossexual infantil, não pela via da transmissão hereditária, mas pelo excesso de mimos, sobretudo por parte da mãe. Vejamos o que ele diz sobre isso:

    É verdade que o excesso de ternura por parte dos pais tornase pernicioso na medida em que acelera a maturidade sexual e também, mimando a criança, torna-a incapaz de renunciar temporariamente ao amor em épocas posteriores da vida ou de se contentar com menor dose dele. Um dos melhores prenúncios de neurose posterior é quando a criança se mostra insaciável em sua demanda de ternura dos pais. Por outro lado, são os pais neuropáticos que, em geral, tendem a exibir uma ternura desmedida (Freud, 1996, p. 211).

Levando-se em conta a discussão apresentada acima (a de que dificuldades emocionais que podem contribuir para entraves no desenvolvimento psicossexual da criança podem estar presentes tanto em famílias heterossexuais quanto em famílias homossexuais), passaremos a apresentar a síntese de duas entrevistas, a primeira realizada com um casal heterossexual e a segunda com um casal homossexual feminino, visando a demonstrar como problemáticas emocionais semelhantes mostraram-se presentes na dinâmica de ambas as famílias, independentemente do sexo biológico do casal.

Participantes

Casal 1 – Rubens (43 anos) e Célia (41 anos). No total, foram realizados cinco encontros com o casal no consultório particular da pesquisadorapsicóloga. Esses encontros foram norteados pelo referencial teóricometodológico da psicanálise e tiveram como objetivo a apreensão da psicodinâmica do casal, com vistas a se compreender as possíveis interferências dos inconscientes materno e paterno na sintomatologia do filho (3 anos e meio), sobre quem se buscou orientação. Nesse caso, pelo fato de o casal não ter solicitado atendimento para a criança e por se compreender que as dificuldades psicossexuais do filho estavam fortemente influenciadas pela psicodinâmica do casal, optou-se por dar seguimento somente com este. A análise do material dos encontros, bem como a condução terapêutica da pesquisadora, guiou-se, em grande parte, pelas elaborações teóricas de Soifer (1982). Por uma questão de espaço, optou-se por apresentar somente a síntese da primeira entrevista com o casal. Após o quinto encontro, Célia, mediante contato telefônico, disse à psicóloga que não seria mais possível continuarem o trabalho por estar com dificuldade para encontrar um horário para ir até o consultório.

Casal 2 – Joana (42 anos) e Mônica (52 anos). Foram realizadas duas entrevistas com o casal no consultório particular da pesquisadora-psicóloga, cada uma com uma hora de duração. Ressalta-se que essas entrevistas foram realizadas visando a compor o banco de dados que deu origem à tese de doutorado intitulada "Considerações sobre a homoparentalidade feminina: uma perspectiva psicanalítica" (Martinez, 2012), defendida pela pesquisadora.1

Neste caso, considerando o fato de se tratar de um objetivo de pesquisa e não terapêutico, o que significa que a demanda partiu da pesquisadora e não das participantes (situação muito diferente daquela vivenciada na clínica), deve-se levar em conta os inúmeros limites que esses dados contêm. Nesse sentido, não é propósito deste artigo, assim como não foi propósito da tese, a generalização desses dados para a compreensão psicodinâmica de todas as famílias homossexuais femininas.

Como será visto na entrevista, por se tratar de uma situação que necessitava de intervenção psicológica, ao final dos procedimentos, a pesquisadora realizou os encaminhamentos necessários.

Aspectos éticos

Em ambos os casos, os nomes e identidades dos participantes foram preservados, utilizando-se nomes fictícios. Além disso, foi apresentado a eles um termo de consentimento livre e esclarecido em que se explicitava, entre outras coisas, a possibilidade de os dados virem a ser publicados em revista científica.

 

Síntese da primeira entrevista do casal 1

Recebi o telefonema de Rubens, que me pareceu muito angustiado. Solicitava orientação para o filho que, segundo ele, estava solicitando a ele que lhe comprasse maquiagem "como a da mãe". Propus alguns horários, ao que ele me respondeu que seria difícil encontrar algum compatível, porque sua mulher trabalhava muito. No dia marcado, após alguns cancelamentos, eu os recebi no consultório. Notei algo curioso: apesar de Rubens mostrarse gentil com a esposa, ela não parecia aceitar de bom grado as gentilezas do marido. Por exemplo, no início da entrevista, ele sugeriu que ela se sentasse na poltrona, convite que ela recusou, tendo preferido se sentar na cadeira. Foi ele quem começou, contando-me que estava muito preocupado com o filho Pedro, porque o menino se vestia com as roupas e sapatos da mãe, além de querer usar as maquiagens dela. Além disso, só gostava de desenhos femininos, tais como Rapunzel e Encantada. O pai dizia isso visivelmente angustiado, parecendo temer pelos caminhos da sexualidade do filho. Célia o interrompia com frequência, dizendo que não há motivo para se preocupar, pois "se trata somente de uma fase" e que Rubens era muito preocupado. Diante do malestar instalado na sala, o qual eu captei contratransferencialmente, optei por fazer uma pequena intervenção. Disse a eles que talvez Rubens estivesse tentando dizer que temia que o filho estivesse perdendo a sua masculinidade, assim como ele próprio parecia se sentir um pouco sem voz ali. Com a minha intervenção, Rubens começou a falar de como se sentia na relação com Célia: sentia-se impotente; sentia que ela retirava a sua autoridade diante do menino e por isso ficava sem voz, demonstrando que há uma identificação do filho com ele: ambos como meninos emasculados. Ressaltou que, em inúmeros momentos, quando tentava propor brincadeiras "de menino" a Pedro, tal como jogar bola, a esposa interferia, dizendo que Pedro poderia se sujar ou cair. Célia acrescentou que, na sua casa, acontecia algo muito curioso e que deveria ter a ver com o que Rubens estava falando: ela ganhava muito mais que ele e praticamente sustentava a casa sozinha, algo que comunicava com um tom de triunfo. Ao longo da entrevista, percebi que Célia tinha muita dificuldade para se separar de Pedro. Contou-me que ainda dava "mamá" para ele de três em três horas durante a madrugada, tal como se fosse um bebê e que, para não ter trabalho de se levantar toda hora, acabava levando-o para a cama, enquanto Rubens dormia no sofá da sala. Não deixava o menino dormir na casa dos avós e, quando estava em casa, ficava todo o tempo "grudada" nele, temendo que se machucasse ou caísse. Com isso, impedia a aproximação do pai. Fiz outra intervenção, dizendo a ela que intuía haver algo muito sério, algo que ela temia muito que acontecesse com o filho e, por isso, não podia permanecer longe dele muito tempo. Nesse momento, Célia começou a chorar e me contou que deve ser porque perdeu um bebê aos oito meses de gestação e que tinha muito medo que o mesmo acontecesse com Pedro.

 

Análise e discussão da primeira entrevista

Já na primeira entrevista com esse casal, foi possível lançar alguma luz sobre as dificuldades emocionais que cada um deles enfrentava. No caso de Célia, parecia haver um sentimento de que separações implicavam em fissuras, em quedas, em catástrofes; experiência precoce ligada à separação inicial mãecriança que talvez ela própria tenha tido dificuldade para elaborar em seu desenvolvimento emocional. Essa hipótese foi confirmada quando, na segunda entrevista, Célia relembrou que era filha única e que era "muito grudada com a mãe até hoje". Diante da ameaça da separação, ela estabeleceu com Pedro uma relação fusional, da qual não conseguia se desvencilhar. Negando a passagem do tempo, concebeu o filho como um bebê que permaneceria para sempre em um estado dependente e fusional com ela. Diante do excesso materno, Pedro começava a apresentar alguns sinais de uma identificação excessiva com a mãe (vestir suas roupas, usar suas maquiagens), situação que aponta para a carência que sentia da função paterna, a única que lhe possibilitaria uma identificação com a figura masculina. Mas, pelo fato de Célia barrar o exercício de masculinidade e o estabelecimento do corte a ser feito pelo marido, com sua função paterna, a situação edípica da criança se configurava de um modo precário, ameaçando o estabelecimento das bases de sua identidade sexual masculina. O fato de ter sido Rubens a buscar auxílio, demonstra o seu estado de angústia e sofrimento diante da possibilidade de ver seu filho repetindo a sua história desenvolvimental, vindo a se tornar um homem fraco ou emasculado. Trata-se da situação familiar que Freud conceituou como sendo propensa ao estabelecimento da homossexualidade masculina, com excesso de função materna e carência de função paterna. Nos "Três ensaios", ele diz:

    Entre as influências acidentais exercidas sobre a escolha de objeto, vimos ser digna de nota a frustração (a intimidação sexual precoce), e observamos também que a presença de ambos os pais desempenha papel importante. A falta de um pai forte na infância não raro favorece a inversão (Freud, 1996, p. 138).

Em todos os casos investigados, constatamos que os futuros invertidos atravessaram, nos primeiros anos de sua infância, uma fase muito intensa, embora breve, de fixação na mulher, em geral a mãe, após cuja superação identificaram-se com a mulher e tomaram a si mesmos como objeto sexual. Ou seja, a partir do narcisismo buscaram homens jovens e parecidos com sua própria pessoa, a quem eles devem amar tal como a mãe os amou. [...] Em muitos casos, vê-se que a ausência de um dos pais (por morte, divórcio ou separação) em função da qual o remanescente absorveu a totalidade do amor da criança foi determinante do sexo da pessoa escolhida como objeto sexual, com isso possibilitando a inversão permanente (Freud, 1996, p. 216).

Não se trata obviamente de asseverar que Pedro irá permanecer, em termos de desenvolvimento psicossexual, no Édipo invertido (vindo a se tornar futuramente homossexual), já que, conforme se sabe, a psicossexualidade humana é extremamente plástica e só se pode falar em termos da constituição de uma identidade psicossexual após a puberdade. Entretanto essa situação familiar, conforme descreveu Freud, parece ser propícia a esse tipo de estabelecimento, na medida em que Célia se encontra com dificuldades para se desprender do filho e Rubens com dificuldades no sentido de oferecer um corte a essa relação fusional e, consequentemente, impossibilitado de se apresentar como uma figura identificatória masculina para o filho.

 

Síntese da primeira entrevista do casal 2

Joana contou que aceitou participar da pesquisa porque estava preocupada com seu filho, Marcos, que vinha apresentando alguns comportamentos "estranhos", tais como pegar coisas da bolsa dela e de mochilas de colegas da escola, além de relatar manter conversas com um amigo imaginário.

Diante disso, estava em busca de orientações. Desejava saber se esse seu comportamento tinha algo a ver com a homossexualidade dela ou com a ausência do pai. Pedi que me contassem suas histórias, desde que se conheceram. Ambas se conheceram há 20 anos e, desde então, romperam e reataram diversas vezes. Questionadas sobre o motivo desses rompimentos, Joana disse que não tinha certeza do que sentia pela companheira Mônica, sentimento que se acentuou com o nascimento do filho. Solicitada a explicar melhor o que queria dizer com isso, ela disse que era algo "estranho", porque ela não deixava a companheira se aproximar dela, mas também não permitia que ela fosse embora. Em um desses rompimentos, provocados por Joana, ela se envolveu ocasionalmente com um homem e engravidou de Marcos. Depois disso, ela retornou para Mônica, que aceitou cuidar do filho com ela. Até o momento, Marcos nunca tinha se encontrado pessoalmente com o pai, mantendo contato telefônico com este somente pelo telefone, ainda que residissem na mesma cidade, apesar de o filho solicitar constantemente que ela proporcionasse um encontro entre os dois. Questionada sobre o seu temor em promover esse encontro, Joana disse que temia que o pai rejeitasse o seu filho, algo que ela não iria tolerar.

Ao ser questionada sobre o que teria mudado depois do nascimento do filho, com relação à parceira, Joana contou que, desde que Marcos nascera, ela não conseguia mais manter relações sexuais com Mônica porque sentia "estar traindo o filho". Em casa, apesar de Marcos ter um quarto, ele dormia desde pequeno na cama com a mãe, enquanto Mônica dormia em um colchão ao lado da cama. Alegou ainda que toda vez que tentava sair a sós com Mônica, sentia "um oco, um vazio insuportável", que a fazia voltar rapidamente para casa para ficar ao lado de Marcos. Por outro lado, lamentava-se por "perder a cabeça" frequentemente com o filho, chegando a agredi-lo fisicamente, algo que, segundo ela, era ocasionado por situações em que ele solicitava muita atenção dela e quando ele "aprontava", pegando coisas na escola ou mentindo. Mônica, que até então permanecia em silêncio, disse que era muito difícil essa situação, porque Joana parecia ter muito ciúme dela com Marcos e que toda vez em que ela, Mônica, tentava se aproximar do menino, a mãe impedia ou fazia ameaças como "não se apegue muito à tia Mônica, porque ela pode arrumar um namorado e partir". Grande parte desse ciúme se devia ao fato, alegado por ambas, de que Marcos tinha muito medo de que a "tia Mônica" partisse e nunca mais voltasse (temor que ele manifestava com frequência). Além disso, segundo Joana, era muito difícil perceber que Marcos acabava recorrendo mais à Mônica nos momentos de temor do que a ela, embora ela soubesse que isso era porque "ela não tinha muita paciência". Joana chegou a dizer que ela "só havia parido Marcos", mas quem fazia mais o papel de mãe era Mônica. Ambas nunca conseguiram conversar abertamente com Marcos sobre a relação que mantinham. Ressalta-se que, ao final das entrevistas, soube que o pai de Marcos faleceu, sem que o menino o tivesse visto uma só vez. Ao longo das entrevistas, soube também que Joana tivera sérios problemas com alcoolismo no passado.

 

Análise e discussão da primeira entrevista

Winnicott (1994) considera que o comportamento infantil de roubar objetos (situação que se configura como um comportamento antissocial) pode surgir em situações de privação afetiva. Nesse caso, o comportamento de pegar algo representa, para a criança, um movimento de esperança no sentido de poder encontrar um objeto continente capaz de acolher a tensão resultante de seu comportamento impulsivo. Nesse caso, o ambiente (sobretudo o materno) é testado em sua capacidade de suportar a agressão contida no ato transgressor. Caso o ambiente seja eficiente nessa contenção, o bom objeto pode ser encontrado e reintegrado ao ego. O mesmo psicodinamismo pode ser aplicado à situação do amigo imaginário que surge em situações em que a criança se vê incapaz de lidar sozinha com tanta pressão interna. O amigo imaginário representa a esperança de que ela possa ter alguém que a compreenda integralmente em suas necessidades. Nesse caso específico, Joana parecia encontrar dificuldade, pelas suas próprias questões emocionais, em se oferecer como um objeto continente para o filho, devolvendo a ele, de maneira não impulsiva, a angústia que Marcos não estava conseguindo conter em si; situação que poderia estar provocando o comportamento de pegar coisas na bolsa da mãe e a criação de seu amigo imaginário. Como ela não conseguia supri-lo no que ela considerava uma demanda excessiva por atenção, mas, ao contrário, mostrava-se impulsiva, criou-se, na relação entre ela e Marcos, uma espécie de círculo vicioso, em que cada vez mais ele roubava em busca de encontrar um objeto continente e mais Joana reagia com violência e impulsividade.

Enfocando agora o sentimento de "oco e vazio insuportável" de Joana, este pode ser remetido a possíveis falhas de elaboração nos primeiros movimentos de separação da relação primordial mãe-bebê. Nesse caso, diante da separação do filho (que possivelmente a fazia reviver a separação primordial), o ego de Joana ficava esvaziado e oco, demonstrando que não foi possível haver uma adequada introjeção de bons objetos, os únicos que podem auxiliar o ego a suportar, sem tantos traumas, a separação eu/outro (Klein, 1996). Pela impossibilidade de se elaborar uma distância segura entre ela e o objeto (algo que também era reeditado na relação com a parceira - "não consigo deixar que ela fique comigo, nem que vá embora"), a relação com Marcos era tumultuada e marcada por oscilações entre os polos da fusão e da expulsão. Pela impossibilidade de elaboração dessa situação primordial, suas vivências no âmbito da configuração triangular/edípica também ficaram prejudicadas. Daí a dificuldade em manter relações sexuais com a parceira e o sentimento de estar "traindo o filho", situações que indicam para o fato de que as relações triangulares traziam muita ameaça e angústia ao seu ego frágil.

Em termos do estabelecimento das funções materna e paterna, conforme palavras da própria Joana, tudo indica que Mônica, por ter uma melhor condição emocional de se oferecer a Marcos como um objeto continente, era quem desempenhava a função materna (daí o temor do menino de vir a perdê-la). Essa configuração familiar possibilita questionarmos exatamente a ideia de que a biologia necessariamente implica no desempenho da função materna (premissa que é contestada neste caso).

 

Correlações possíveis entre as duas entrevistas

O intuito inicial de se colocarem os dois materiais em diálogo foi o de propor um questionamento e reflexão acerca da prerrogativa, assentada em uma visão normativa de família, de que casais homossexuais necessariamente contribuem para o desenvolvimento da homossexualidade de seus filhos. Sabese, pela psicanálise, que cada indivíduo é único em suas amarrações e costuras inconscientes, assim como cada família é única e tem seu psicodinamismo próprio. Daí a impossibilidade de se lançar qualquer visão generalista sobre um indivíduo ou sobre um tipo de família. Cada indivíduo e cada unidade familiar devem ser investigados com base em seu universo próprio.

Além disso, partindo das contribuições de Freud (1996) a respeito da homossexualidade, é sabido que as condições ambientais elencadas por ele, que seriam propícias a fixações sexuais em um objeto do mesmo sexo, podem estar presentes em qualquer configuração familiar, inclusive nas ditas famílias "tradicionais", composta por pai, mãe e criança (situação que se evidencia no casal 1). Problematizando essa premissa de que é a orientação sexual dos pais que definirá a psicossexualidade da criança, toma-se a dinâmica do primeiro casal como exemplo que contraria essa argumentação. Nesse caso, apesar de os pais terem uma orientação heterossexual (casal formado por um homem e uma mulher), os dados apontam para a dificuldade que os genitores vinham encontrando na elaboração de suas vivências emocionais, edípicas e pré-edípicas (situação que parecia estar interferindo no desenvolvimento psicossexual de Pedro).

Correlacionando dados das duas situações clínicas, é possível se delinearem diferenças entre cada um deles, mas também algumas semelhanças, sobretudo no que se refere ao psicodinamismo da figura materna, percepção que pode auxiliar na problematização de até que ponto o psicodinamismo das famílias homossexuais são tão diferentes assim de configurações mais "tradicionais". Obviamente, por se tratar de um único caso, não é proposta deste estudo propor generalizações em termos do psicodinamismo das famílias homossexuais. Por outro lado, acreditamos que o diálogo entre dados de duas famílias com configurações tão diferentes pode auxiliar na desmistificação do contexto de cuidado homoparental.

Mas vejamos mais detidamente algumas das possíveis semelhanças encontradas no psicodinamismo de Célia e de Joana. Embasando-nos no material das entrevistas, é possível considerar dois pontos que se destacam em termos de semelhança: 1) a dificuldade de separação delas com relação aos filhos; 2) sentimento de hostilidade e ciúme dirigido à figura do terceiro (no caso 1, Rubens; e, no caso 2, Mônica). Existem vários vértices interpretativos para esses dois fenômenos, semelhantes em ambos os casos, mas, por ora, será priorizado o vértice, central à psicanálise, que é aquele vinculado à psicossexualidade das genitoras e de seus filhos. Diz Freud nos "Três ensaios":

    Em cada uma das etapas do curso do desenvolvimento porque todos os indivíduos são obrigados a passar, um certo número deles fica retido, de modo que há pessoas que nunca superam a autoridade dos pais e não retiram deles sua ternura, ou só o fazem de maneira muito incompleta. Em sua maioria são moças que, para a alegria dos pais, persistem em seu amor infantil muito além da puberdade e, é muito instrutivo constatar que é a essas moças que falta, em seu posterior casamento, a capacidade de dar ao marido o que é devido a ele. Tornam-se esposas frias e permanecem sexualmente anestesiadas. Com isso se aprende que o amor sexual e o que parece ser um amor não sexual pelos pais alimentam-se das mesmas fontes, ou seja, o segundo corresponde apenas a uma fixação infantil da libido (Freud, 19096, p. 215).

Partindo dessa contribuição freudiana (central ao pensamento psicanalítico), é possível hipotetizar que o apego excessivo de Célia e de Joana com relação a seus filhos deve-se à dificuldade que ambas encontraram no sentido de elaborarem suas experiências edipianas. Esse apego excessivo, do ponto de vista psicanalítico, representa, conforme palavras do próprio Freud, um enamoramento delas para com eles; sentimento derivado de suas próprias vivências edípicas precoces (dirigidas, sobretudo, à figura materna) que não puderam ser devidamente elaboradas. Com isso, nem Célia nem Joana puderam dar aos seus parceiros, Rubens e Mônica, o que lhes era devido, ou seja, uma vida sexual satisfatória e feliz; situação que explica, por exemplo, por que Joana sentia estar "traindo" o seu filho quando tentava manter relações com a parceira. Hipotetiza-se que, em termos inconscientes, a partir de uma identificação narcísica com o filho, ela sentia que o casal de pais (representado por ela e por Mônica) estava cometendo uma traição contra ela (representada por seu filho) ao manterem relações sexuais prazerosas; situação geradora de muita turbulência e ódio. Talvez tenha sido pela impossibilidade de tolerar os sentimentos de exclusão e ódio que a cena primária mobiliza que ela tenha feito uma "escolha" pela homossexualidade que, em seu caso, era vivida com muita ambivalência. A mesma situação de enamoramento com relação ao filho (graças à dificuldade de elaboração de vivências edípicas precoces) parece estar presente no caso de Célia, que leva seu filho "bebê" para dormir no quarto do casal, enquanto Rubens segue dormindo no sofá da sala. Nesse caso, a interpretação é confirmada quando ela diz ter sido sempre muito "grudada" com a mãe. Fica aqui em aberto a questão da escolha dos sintomas: porque Célia, apesar de suas dificuldades, ainda assim casou-se com um homem enquanto Joana "escolheu" a homossexualidade, ainda que de forma ambivalente. De qualquer forma, essa configuração (de enamoramento com o filho e, consequentemente, exclusão do terceiro - situação que se observou nos dois casos) leva-nos ao segundo ponto: a presença de fortes sentimentos de hostilidade e ciúme dirigido ao terceiro da relação edípica.

No tópico intitulado "Supervalorização do objeto sexual", Freud, argumentando sobre as dificuldades em se rastrearem os vestígios da vida amorosa/sexual das mulheres, diz, em nota de rodapé, que, nos casos "típicos", ainda que falte à mulher uma supervalorização sexual do homem, esta (supervalorização) quase nunca se acha ausente com respeito ao filho que ela dá à luz. É importante frisar aqui que Freud, apesar de não deixar claro, parece ter utilizado propositalmente o termo filho (e não filha). Isso se deve ao fato de que ele partia da premissa de que a mulher, movida por uma intensa inveja inconsciente do pênis, via em seu filho a possibilidade de resgatar o pênis tão desejado do qual fora privada. Para ele, deriva daí o ódio mais profundo que a mulher nutre por um homem, situação que a faz competir inconscientemente com ele. Este aspecto teórico (da competição e rivalidade com o pênis) pôde ser observado no caso 1. Quando Célia se recusa a receber as gentilezas do marido e quando diz, com prazer, que ela ganha muito mais que ele, é possível deduzir que podem estar presentes sentimentos de competição e rivalidade com o pênis. Da mesma forma, demonstrou certo prazer ao perceber que o filho está se identificando mais com ela do que com o pai. Deduz-se, neste caso, que, pela ação de potentes sentimentos invejosos com relação ao homem, Célia não podia valorizar a palavra paterna, destituindo-a de sentido e valor (situação que fazia com que o marido se sentisse castrado). Esse psicodinamismo do casal eclodiu na sintomatologia do filho, que, apesar de ser menino, estava se tornando emasculado, exatamente como o pai se sentia.

No caso 2, algo um pouco diferente se passava. O sentimento de ciúme e hostilidade que Joana nutria pela parceira, ao que tudo indica, devia-se mais a uma percepção da maior capacidade de acolhimento e continência da parceira com relação às angústias de Marcos (situação que o fazia ter clara preferência por ela). Dessa forma, parecia predominar em Joana um sentimento de menosvalia com relação à parceira, no que se refere à capacidade de maternagem, algo que despertava sentimentos de rivalidade e inveja. De qualquer forma, em ambos os casos, não havia uma configuração de casal em que ambos, em um clima de parceria e auxílio mútuo, cuidavam de uma criança, mas parecia predominar um clima de competição e rivalidade, sobretudo partindo das genitoras. Esses conflitos emocionais acabaram por dificultar o exercício de parentalidade de ambos os casais, exercício este muito mais importante do que o sexo biológico dos cuidadores.

 

Considerações finais

Esperamos, com este artigo, ter demonstrado que foram os conflitos emocionais, muito mais do que a orientação sexual dos cuidadores, o grande entrave para que esses casais pudessem realizar um bom exercício de parentalidade. Ampliando essa discussão, impregnada de rótulos e estigmas sobre o que é ser um bom pai ou uma boa mãe, Laia (2008) chama atenção para o fato de que, diante do desejo de qualquer pessoa ou casal de ter um filho (através da adoção, das tecnologias reprodutivas ou pelas vias "naturais"), o que essas pessoas devem se indagar e serem auxiliadas a se indagarem é o seguinte: conseguirei, efetivamente, sustentar na lida diária com os cuidados que um filho exige o consentimento de minhas responsabilidades para com esse ser? Ou seja, há um desejo real e genuíno de sustentar diariamente as funções materna e paterna, fundamentais para o desenvolvimento da criança?

Concordamos com o autor que o questionamento maduro acerca desse desejo, mais do que a orientação sexual dos pais, é um caminho possível para podermos nos desvencilhar de rótulos e saberes já prontos sobre o que é saudável ou não para uma criança.

 

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*Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), mestra e psicóloga formada pela FFCLRP-USP, psicóloga clínica de orientação psicanalítica. Endereço: Rua Eliseu Guilherme, 1033 – Jardim Sumaré, Ribeirão Preto-SP. CEP: 14025-020. Telefone: (16) 3024-1686. E-mail:contato@psicologiaribeiraopreto.com.br.
1 Tese desenvolvida pela pesquisadora no Programa de Psicologia da FFCLRP-RP e defendida em 16 de dezembro de 2011, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Valéria Barbieri. O banco de dados contou com mais dois casais homossexuais de mulheres.