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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.20 no.2 Belo Horizonte  2014

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2014v20n2p243 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2014v20n2p243

 

Anorexia: uma imagem desmascarada

 

Anorexia: an image unmasked

 

Anorexia: una imagen sin máscara

 

 

Alexandre Costa Val*; Paula Duarte Félix Marinho**; Roberto Assis Ferreira***; Márcia Rosa****

 

 


Resumo

Este artigo pretende discutir a anorexia baseado na hipótese de que ela pode ser uma das estratégias femininas da atualidade para lidar com o corpo. Para isso, é retomado o conceito de feminino e de mascarada fálica na psicanálise lacaniana, ressaltando o fracasso desse artifício nos sujeitos anoréxicos. É apresentado o caso clínico de uma mulher com sintomas anoréxicos, que sustentou a hipótese apresentada no artigo e seu desenvolvimento teórico.

Palavras-chave: Anorexia. Psicanálise. Imagem. Mascarada fálica.


Abstract

This paper discusses anorexia from the hypothesis that it may be one of actual feminine strategies of dealing with its body. For this, the concept of feminine and phallic masquerade in lacanian psychoanalysis is investigated, highlighting the failure of this artifice in anorexic subjects. It presented the clinical case of a woman with anorexic symptoms which led to the hypothesis and its theoretical development.

Keywords: Anorexia. Psychoanalysis. Image. Phalic masquerade.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la anorexia desde la hipótesis de que ésta puede ser una de las estrategias femeninas actuales para relacionarse con el cuerpo. Para ello, retomamos el concepto de femenino y de mascarada fálica en el psicoanálisis lacaniano, enfatizando el fracaso de este dispositivo en los sujetos anoréxicos. Se presenta el caso clínico de una mujer con síntomas anoréxicos que sirvió como base de la hipótesis presentada en el artículo y del desarrollo teórico.

Palabras clave: Anorexia. Psicoanálisis. Imagen. Mascarada Fálica.


 

 

Introdução

Os comportamentos alimentares excêntricos sempre estiveram presentes na história da civilização, apresentando objetivos e significados que variam de acordo com a cultura, com a época e com a subjetividade de cada um (Weinberg & Cordás, 2006).

Foi a partir do século XVII que o discurso médico passou a se interessar pela abstenção voluntária de alimentos, tendo como marco a descrição de dois casos com apresentação psicopatológica compatível com anorexia, realizada pelo médico Richard Morton, em 1689. O termo anorexia nervosa (AN) foi estabelecido por William Gull, em 1873, ressaltando que essa sintomatologia poderia acometer homens e mulheres. Nessa época, a preocupação com a imagem corporal ainda não fazia parte do quadro.

Em 1962, Hilde Bruch desenvolveu a primeira teoria sistemática a respeito da distorção da imagem corporal na AN, apontando-a como um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento e manutenção do quadro (Weinberg & Cordás, 2006). Realmente, a clínica evidencia que o que está em jogo é muito mais o incômodo com a imagem corporal que a restrição alimentar propriamente dita.

Atualmente, a AN é uma síndrome estabelecida no campo psiquiátrico entre os transtornos alimentares (TA) e representa um grande desafio para os profissionais de saúde. De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais IV (DSMIV-TR) (American Psychiatric Association, 2002), a AN é caracterizada por perda de peso intensa e intencional às expensas de dietas extremamente rígidas. Percebe-se uma busca obstinada pela magreza, distorção grosseira da imagem corporal e alterações no ciclo menstrual. Trata-se de um quadro grave que afeta, particularmente, adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, tendo repercussões clínicas, psíquicas e sociais importantes que podem culminar em óbito. Embora existam controvérsias entre os estudos epidemiológicos em relação ao real aumento desse tipo de manifestação, casos de AN são cada vez mais divulgados na mídia, e o aumento da demanda por tratamento pode ser verificado em diversos serviços de saúde do Brasil (Hoek & Hoeken, 2003; Hay, 2002; Vardar & Erzengin, 2011; Vilela, Lamounier, Dellaretti Filho, Barros Neto & Horta, 2004).

Os quadros atuais de AN apresentam algumas características que merecem ser destacadas. A primeira delas é que 90% dos casos ocorrem no sexo feminino, diferentemente da maioria dos quadros psiquiátricos que, em geral, não apresentam uma distribuição tão desigual entre os gêneros. Além disso, como já foi dito, a clínica evidencia que a distorção da imagem é o fenômeno central. Por último, o desencadeamento do quadro normalmente ocorre na puberdade, ou seja, em um momento da vida em que o corpo sofre importantes transformações direcionadas ao encontro sexual.

Assim, partiremos do relato de um caso clínico para revisitar a teoria psicanalítica lacaniana sobre o feminino e discutir a hipótese de que há algo na estratégia atual para lidar com o corpo feminino que favorece o desenvolvimento desses sintomas.

 

O caso Bia

Bia é uma mulher de 30 anos que, desde a puberdade, apresenta uma preocupação exagerada com o seu corpo. Jejuns, dietas extremamente restritivas, vômitos, exercícios físicos extenuantes, abuso de medicações e até mesmo intervenções cirúrgicas dominam sua rotina, na tentativa de dar um tratamento para o excesso corporal que irrompe na puberdade.

No romance familiar, encontramos uma mãe bastante invasiva que desprestigiava o pai e não o colocava como norteador de seu desejo. Essa mãe era muito religiosa e parecia rechaçar radicalmente a sua própria sexualidade, o que a lançava em um ataque sádico ao corpo feminino da filha: criticava suas roupas decotadas e boicotava seus encontros amorosos. Bia, por sua vez, ficava à mercê desse imperativo superegoico caprichoso do desejo materno. O pai pouco aparecia em seu discurso e, ao longo do tratamento, é esclarecido que se tratava de um amor que deveria ser ocultado conforme os ideais maternos.

A solução encontrada por Bia para se fazer um corpo foi se afirmar narcisicamente como uma pura imagem que não passava pela dialética do desejo de um homem. Sua magreza era evidente e, ainda assim, sentia-se incomodada com as "gordurinhas localizadas", excesso não ordenado pela medida fálica. Sua preocupação estética nunca teve relação com a possibilidade de encontro com os rapazes. Aliás, os poucos relacionamentos que teve foram marcados pela queixa de que os parceiros queriam apenas o seu corpo, tratando-a como um troféu com o qual podiam desfilar. Nesse ponto, podemos localizar a inexistência da dimensão amorosa que permitiria a Bia se deslocar desse lugar tão objetalizado.

Quando andava pelas ruas, tinha a sensação de que era sempre olhada, o que mostra a irrupção do objeto olhar que não era velado pela máscara fálica. Devido aos sintomas alimentares, foi optando pelo isolamento: perdeu amigos, afastou-se de parentes, namorados e foi se tornando uma pessoa sozinha e infeliz. O curioso é que fazia de tudo para que ninguém percebesse essa infelicidade: "Escondo-me, coloco uma máscara, sorrio para todo mundo achar que estou bem...". No entanto, essa "máscara" não apresentava a sofisticação dialética da máscara fálica, que poderia lhe permitir fazer de seu corpo o significante do desejo de um homem, pois não apaziguava o efeito devastador da presença real do falo imaginário. Algo dessa "máscara" estava direcionada para um amor sem um contorno fálico direcionado ao Outro materno.

Diante do fracasso do velamento dos atributos femininos a partir da máscara fálica, o que restou para ela foi uma defesa diante do desejo devorador do Outro materno que consistia em se dar a ver: nada de corpo! Ou seja, uma defesa que podia ser entendida como uma imagem que não passava pela dialética fálica em que uma falta poderia ser inaugurada.

 

O falo e o feminino

A tentativa de definir o que é uma mulher acompanha a psicanálise desde sua origem. Joan Rivière, psicanalista inglesa pós-freudiana, forneceu, por meio do artigo "A feminilidade como mascarada" (1927), uma importante contribuição a esse enigma. Esse texto precede os célebres ensaios freudianos "A sexualidade feminina" (1931) (Freud, 1996a) e "Feminilidade" (1933) (Freud, 1996b), e apresenta a proposição de que o feminino seria uma máscara.

Para situarmos o que está em jogo na ideia de máscara, faz-se necessário retomarmos a noção de falo. O termo "falo" foi empregado por Freud, muitas vezes, como sinônimo de pênis, o que lhe causou certo embaraço. Inicialmente, ao tentar definir a posição tipicamente feminina, usou o termo "passivo" para, posteriormente, questioná-lo, dizendo que a passividade não recobriria toda a feminilidade (Freud, 1996b). Portillo destaca esse impasse ao afirmar que a mulher freudiana é essencialmente uma mulher que ama, deseja e goza em função do falo, acentuando a concepção da mulher como um ser inteiramente mediado pela castração (Portillo, 1994, p. 62).

Lacan, ao reler Freud, reviu o conceito de falo, definindo-o, em um primeiro momento, como o "falo imaginário" e, depois, como o "falo da mãe". Em "A significação do falo" (1958), o psicanalista sustenta que esse não é um objeto do registro imaginário1, mas, sim, um significante cuja função é designar os efeitos de significado (Lacan, 1998a). A partir da descoberta infantil da diferença entre os sexos, o pênis é revestido de valor fálico, mas isso não quer dizer que o falo e o pênis são a mesma coisa. Na verdade, nem o homem nem a mulher possuem o falo, afinal, esse só desempenha o seu papel como um simulacro, um significante2 do desejo.

Para Lacan, o falo tem uma função constitutiva na dialética da introdução do sujeito em sua existência e em sua posição sexual. No momento da dissolução do complexo de Édipo, é justamente o lugar desse significante, seja para o homem ou para a mulher, que é posto em questão para que o desejo seja reconhecido como tal. Assim, Lacan revisou a teoria freudiana da sexualidade feminina e da diferença sexual, mostrando que o complexo de Édipo consiste numa dialética "hamletiana" do ser: ser ou não ser (o falo), ter ou não ter (o falo) (Lacan, 1998a).

No início da década de 1970, Lacan desenvolve, em "O seminário, livro 20: mais, ainda", um quadro para abordar a divisão dos sexos entre os seres falantes, denominando-o como quadro da sexuação. Esse quadro é um matema3 da identidade sexual pelo qual Lacan promove uma superação do falicismo freudiano, estabelecendo sua própria concepção da sexualidade feminina e da diferença sexual. Nessa época, ele enunciou o que denominou de fórmulas da sexuação, ou seja, quatro proposições lógicas (Lacan, 1985).

As duas primeiras são proposições universais: uma afirmativa ("todos os homens têm o falo") e outra negativa ("nenhuma mulher tem o falo"). Essas duas proposições resumem a posição freudiana da libido masculina como a única possível. Segundo Lacan, essa posição é inaceitável, pois avaliza a fantasia de uma complementaridade entre homens e mulheres, desembocando em uma concepção do Um como negação da diferença e exclusão da castração. Dessa forma, ele propõe duas outras fórmulas, que são particulares e negativas. A primeira, "todos os homens, menos um, estão submetidos à castração", refere-se a um conjunto dado, "todos os homens, que só pode existir logicamente se existir outro elemento distinto do conjunto (no caso, o pai, originário da horda primitiva e que pode ter todas as mulheres). A outra, "não existe nenhum X que constitua uma exceção à função fálica", implica que, já que não existe para o conjunto feminino um equivalente do pai que escape à castração (o "pelo menos um" do conjunto dos homens), todas as mulheres têm acesso ilimitado à função fálica (Lacan, 1985).

Assim, o psicanalista estabelece dois modos de subjetivação para o desejo e o gozo sexual: um que ele denominou lado homem e, outro, lado mulher. Tais denominações não designam identidades sexuais, mas posições do sujeito em relação ao falo, ao desejo e ao gozo4. O autor propõe que todo ser falante, independentemente do sexo anatômico, inscreve-se em um dos lados desse quadro e se movimenta de um lado para o outro (Lacan, 1985).

 

 

Do lado esquerdo do quadro, localiza-se a inscrição da posição homem onde existe ao menos um não submetido à lei da castração. Essa exceção é encarnada pelo pai da horda que pode gozar de todas as mulheres, permitindo que todo homem esteja totalmente submetido ao gozo fálico. Já no lado mulher, localizado ao lado direito, não existe essa exceção, o que impede qualquer universalidade, esta que diz respeito à função fálica. Nesse ponto, podemos deduzir o aforismo lacaniano de que não existe A mulher, mas sim as mulheres. Elas serão sempre "não todas" submetidas ao gozo fálico . Pelo fato mesmo de serem "não todas", as mulheres têm, em relação ao gozo fálico, um gozo que Lacan nomeia como suplementar. Essa articulação se distancia da ideia freudiana de que o feminino é a falta do falo. Afinal, não é por elas serem "não todas" inscritas na função fálica que deixam de estarem nela de todo (Lacan, 1985).

 

A mascarada fálica

Em "O seminário, livro 5: as formações do inconsciente", Lacan aborda o feminino a partir do caso clássico relatado por Rivière, elucidando a estratégia da mascarada fálica (Lacan, 1999). O caso relatado pela psicanalista é o de uma mulher que tinha uma vida profissional de destaque entre os homens, o que indicava uma aparente assunção masculina. Era uma propagandista militante, o que a obrigava, essencialmente, a falar e a escrever. Não obstante, preenchia todos os critérios de uma feminilidade plenamente realizada, uma vez que era boa esposa e dona de casa. Isso evidenciava uma grande capacidade de se adaptar à realidade e de manter boas relações com quase todas as pessoas de seu conhecimento (Rivière, 1999).

No entanto, conforme avançava em sua análise, a repetição de uma cena que lhe causava intensa angústia se configurava como um problema para esse sujeito. Apesar de ser extremamente qualificada no trabalho, após a demonstração pública de suas proezas intelectuais, adotava uma postura excessivamente modesta em relação a alguns homens quanto à qualidade do que havia feito. Tentava tranquilizar-se provocando, de modo mais ou menos dissimulado, os cumprimentos e o interesse sexual desses homens (Rivière, 1999).

Rivière (1999), a partir dos sonhos e fantasias infantis desse sujeito, conclui que sua postura era justificada pelo temor inconsciente da represália por parte dos homens que a remetiam à figura paterna. O seu pai era escritor, o que mostrava sua identificação na escolha profissional. Sua adolescência foi marcada por rivalidade com o pai e desprezo por este, fato que deu contorno à sua fantasia de castração. Assim, suas apresentações assumiam o sentido de uma exibição que tendia a mostrar que ela tinha o pênis do pai, após tê-lo castrado. Por isso, o receio da vingança paterna era seguido de providências no intuito de enfatizar que ela não tinha o falo, que era puramente mulher e, portanto, deveria permanecer imune às possíveis represálias (Rivière, 1999).

Dessa forma, disfarçava-se de mulher castrada e "Sob esse disfarce, não apenas o homem não poderia descobrir nela nenhum objeto roubado, que ele deveria tomar de volta a força, mas ele a consideraria atraente e, além disso, a tomaria como objeto de amor" (Rivière, 1999, p. 30). A autora esclarece que a feminilidade, nesse caso, foi usada mais como um modo de se evitar a angústia do que propriamente como um modo primário de gozo sexual, ressaltando que não há uma diferença entre a feminilidade verdadeira e a mascarada. Ao final, interroga sobre a essência de uma feminilidade plenamente desabrochada e conclui: "A concepção da feminilidade enquanto máscara, por trás da qual o homem suspeita um perigo dissimulado, esclarece desde já este enigma" (Rivière, 1999, p. 34).

A concepção de Rivière da feminilidade como uma máscara é de suma importância para o estudo da sexualidade feminina e converge com a teoria lacaniana:

 

[...] assim como não se pode ser e ter sido, também não se pode ser e não ser. Se é preciso que o que não se é seja o que se é, resta não ser o que se é, ou seja, empurrar o que se é para o parecer, que é exatamente a posição da mulher na histeria. Como mulher ela se faz máscara. Faz-se máscara precisamente para, por trás dessa máscara, ser o falo (Lacan, 1999, p. 392).

 

Na falta de um significante que designe a mulher, o feminino encontra na mascarada sua forma de apresentação. Segundo Serge Andrè (1987), essa máscara funcionaria como um véu que protegeria a mulher da angústia causada pela ausência de um significante que a especifique. Lacan (1998a) ressalta que a feminilidade encontra seu refúgio nesse artifício em virtude da verdrängung (recalque) inerente à marca fálica do desejo.

Podemos entender o jogo da mascarada como uma encenação na qual a mulher finge dar o que não tem, ou seja, o que está em jogo é a ilusão do ter. Escrito de outra maneira, a mascarada se localiza no campo do sê-lo sem o ter (o falo).

A estrutura simbólica desse jogo é clara, uma vez que visa ao parceiro sexual, ou seja, ao falo do homem. Essa visada ao Outro sexo permite uma dialética entre o ser sem o ter. Trata-se de uma estratégia que remete ao desejo e marca a presença de um laço discursivo. Seguindo esse raciocínio, Éric Laurent (1993) afirma que a mascarada é uma estrutura simbólica mergulhada no imaginário, noção lapidar para o entendimento da consistência simbólica dessa encenação.

Embora a mascarada em si não encerre a questão sobre o feminino, ela é um recurso possível para que se constitua uma posição feminina. E o que acontece quando o sujeito feminino não apresenta essa estratégia para dar conta de seu corpo e de sua subjetividade? O que ocorre quando não há esse recurso sintomático e o gozo do corpo entra em um regime mortífero e segregador do laço com o Outro?

 

Ser e ter um corpo

Na prática clínica atual, podemos observar, com mais frequência e intensidade, sujeitos que se identificam maciçamente com seu corpo, colocando-se em posição de ser um corpo e não de ter um corpo.

As formulações da psicanálise sobre a constituição do corpo se distinguem, desde seu início, daquelas de um corpo entendido sob o ponto de vista puramente fisiológico e anatômico, como ocorre, habitualmente, na Medicina. Freud, ao escutar as histéricas, entendeu que o corpo era afetado pelas palavras, outorgando importância decisiva para a participação do psiquismo na gênese das manifestações sintomáticas. A teoria freudiana representou uma ruptura epistemológica no pensamento da época, apresentando uma concepção de corpo regido por mecanismos do inconsciente diferente da concepção médicobiológica dominante.

Lacan (1999) indicou que era necessário que o organismo chegasse a se incorporar na linguagem, para tornar-se efetivamente um corpo humano. Como desenvolvido anteriormente, é importante ressaltar que, na relação do corpo com a linguagem, um órgão privilegiado, o pênis, entra no simbólico como significante, o falo. É a partir de sua entrada no discurso como significante, que o homem pode encontrar a função não só desse órgão, mas também de todos os outros. Afinal, o falo é o significante que traz ao sujeito os efeitos de significação. Se o que faz do corpo um corpo humano é a linguagem e, mais precisamente, o significante que tem incidência sobre o corpo, é esse corpo simbólico que "dá corpo" ao corpo físico, ou seja, é a linguagem que confere um corpo ao sujeito. Dito de outra maneira, é pela apreensão desse corpo na cadeia significante dentro de um discurso que o sujeito vai encontrar as funções para o próprio corpo.

Pelo discurso, atribuímo-nos um corpo antes de nos identificarmos a ele. Falamos de "ter um corpo" e não de "ser um corpo", o que implica a disjunção do sujeito e do corpo. Em relação à identificação do ser com seu corpo, sabese que os animais podem fazê-lo; já na espécie humana, não acontece o mesmo. Nesse caso, estamos diante de um corpo falante, que existe também como significante para além da vida natural, fisiológica, já que ele é, de certa maneira, duplicado pela "vida significante". A partir do momento em que tomamos o sujeito como sujeito do significante, este não pode identificar-se com seu corpo.

Para Lacan (1999), não há lugar para a identificação do ser com o corpo, pois isso acarretaria o apagamento do sujeito. Há uma exterioridade do saber inconsciente em relação ao ser, em relação ao corpo. Justamente por essa razão, a falha dessa identificação entre o ser e o corpo é o que determina as formações do inconsciente, a produção do sintoma e, por consequência, a própria existência da psicanálise. Por habitar e ser habitado pela linguagem, o corpo é indissociável do sexual, o que lhe proporciona sua dimensão de gozo.

Assim como ocorre com o corpo, também existe uma exterioridade do saber em relação ao ser. A falha dessa identificação total entre o ser e o corpo é o que determina as formações do inconsciente, a produção do sintoma e a própria existência da psicanálise.

 

[...] as relações do homem com seu corpo atém-se inteiramente ao fato de o homem dizer que o corpo, seu corpo, ele o tem [...] Isso nada tem a ver com qualquer coisa que permita definir estritamente o sujeito, que, por sua vez, só se define de modo correto na medida em que é representado por um significante junto a outro significante (Lacan, 1999, p. 150).

 

Nesse contexto, as manifestações contemporâneas do sofrimento, como as anorexias, são bastante ilustrativas. Nelas, habitualmente, verifica-se o apagamento do sujeito, já que este parece estar congelado na dimensão de ser um corpo impossibilitado de dar sentido ao malestar que o acomete.

 

As anorexias contemporâneas

A fenomenologia clínica das anorexias se refere justamente à tensão entre o ser e o ter o falo. Na psicanálise, a dimensão do ser recai sobre o campo da identificação, que tem como função a reparação do "falta a ser"5 estrutural do sujeito (Recalcati, 2007). Nesse sentido, o feminino apresentará uma maior tendência a se localizar no terreno do ser. Freud já apontava a particularidade da relação do feminino com o espelho e com a imagem, destacando que a importância que as mulheres atribuem aos seus corpos seria uma forma de compensação da falta fálica (Freud, 1996b). No entanto esse aspecto não é suficiente para esclarecermos as características das anorexias contemporâneas.

Lacan (2003), na década de 1930, em seu texto "Os complexos familiares na formação do indivíduo" (1938), ressaltou a importância fundamental da função da imago paterna6 na estruturação psíquica do sujeito. Já nessa época, o psicanalista anunciava um declínio social dessa imago e a consequente "crise psicológica" que colocaria o sujeito à mercê das catástrofes do progresso. Nesse contexto, localiza a "grande neurose contemporânea" e, com ela, o auge da psicanálise (Lacan, 2003).

Atualmente constatamos que o "Nome do Pai", conceito lacaniano que descreve a função do pai como metáfora da impossibilidade de uma satisfação pulsional absoluta, já não domina mais o modo de subjetivação. A proeminência do imaginário pode ser constatada pela mídia que nos bombardeia com imagens que são, caracteristicamente, instantâneas e sem qualquer conexão com o registro simbólico. Como efeitos dessa proeminência, observamos uma declinação dos semblantes fálicos, entre os quais podemos incluir o Ideal do eu7 e a própria mascarada fálica (Eidelberg, Schejtman, Dafunchio & Ventoso, 2003). Assim, podemos dizer que os impasses quanto ao feminino observados na clínica contemporânea seriam, de certa maneira, decorrentes da inflação do gozo narcísico e da fragilidade simbólica.

Nesse sentido, as apresentações atuais das anorexias se tornam paradigmáticas, afinal os sujeitos com esses sintomas dedicam todo o seu ser a uma busca obstinada por uma coincidência com a imagem, sem qualquer intermediação simbólica. Portanto, há algo da regulação simbólica do Ideal do eu - I(A) - que não opera (Eidelberg, Godoy, Schetjman & Dafunchio, 2009). Nesse ponto, o sujeito lança mão da imagem para tentar recobrir, com uma espécie de prótese imaginária, o "falta a ser". Como efeito, podemos observar uma espécie de absolutização do ser em detrimento ao ter, à custa da imagem e da estética (Recalcati, 2007).

É interessante constatarmos que Lacan tratou do fenômeno anoréxico desde o primeiro momento de seu ensino. Em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958), por exemplo, a respeito da relação entre a anorexia e o desejo da mãe, comenta:

 

[...] quando o Outro, que também tem suas ideias sobre as necessidades dela, se intromete nisso, e, no lugar daquilo que não tem, empanturra-a com papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor. É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental) (Lacan, 1998b, p. 634).

 

Nessa época, Lacan usava como referência para o entendimento da anorexia o "sonho da bela açougueira". Este é retomado em "O seminário, livro 5: as formações do inconsciente", no qual o autor localiza, a partir do relato do sonho de uma paciente histérica de Freud, a dialética do desejo e da demanda8 na histeria. O sonho relatado a Freud pela paciente é o seguinte:

 

Eu queria oferecer um jantar, mas o único mantimento que tinha em casa era um pouco de salmão defumado. Quis sair para fazer compras, mas lembrei-me de que era domingo à tarde e todas as lojas estavam fechadas. Quis telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava pifado. Assim, tive de renunciar ao desejo de oferecer um jantar (Lacan, 1999, p. 372-373).

 

Lacan afirma que a manutenção do desejo insatisfeito é necessária para que a histérica constitua um Outro que não seja inteiramente imanente à satisfação recíproca da demanda, impedindo que o desejo do sujeito seja capturado inteiramente pela fala do Outro9 (Lacan, 1999). Ou seja, a histérica se priva daquilo que demanda - o falo - para encarná-lo no lugar de recebê-lo. Seguindo essa leitura, o sujeito anoréxico visa ser o falo para o Outro, revelando que o que está em jogo é a localização de uma falta neste para provocar o seu amor (Recalcati, 2007). Assim, a anorexia é inserida em uma lógica fálica que envolve a dialética do desejo. No entanto, é preciso destacar que, atualmente, o que se observa com maior frequência na apresentação desses fenômenos é algo de outra ordem.

O gozo fálico se inscreve na articulação com o simbólico, tendo como apoio um corpo erogenizado, marcado pela castração. Trata-se de um gozo que se localiza fora do corpo, apesar de não o dispensar. Já o gozo do ser, também denominado gozo do corpo, origina-se no mais-além, no estático, onde o corpo "em bloco", sem partição, se oferece ao dilaceramento. Na anorexia, o que se observa é um corpo de gozo em oposição ao corpo do prazer. Afinal, este não pode ser vivido como objeto de desejo, seja para si mesmo ou para outrem. As sensações de privação10 (do objeto) e, prioritariamente, a fome instauram uma espécie de tentação que se torna fonte de gozo. Refugiar-se no corpo implica "colar-se" a ele ao máximo, evitando sofrimentos e pensamentos que se impõem. Assim, o corpo estaria intensamente presente (ainda que exaurido de seus recursos libidinais). Portanto a anoréxica contemporânea revela o que seria esse gozo do corpo, gozo da privação, fora do sexo, para além do gozo fálico (Bidaud, 1998).

Como desenvolvemos no início, uma das posições possíveis do feminino inclui o artifício da máscara em que a mulher encarna o falo para fisgar o desejo de um homem, direcionando o seu desejo para o falo que encontrará na parceria com o outro sexo. Há, portanto, um movimento dialético entre o seu próprio ser e o ter (o falo) por meio da parceria com um homem. Apesar de tanto a anoréxica quanto a mulher se alojarem na lógica do ser falo, a primeira apresenta a particularidade de ser o falo para o desejo materno e, a segunda, para o desejo de um homem. Como efeito, a anoréxica fica aprisionada a uma relação especular com o Outro materno, evidenciando a dimensão devastadora da relação mãe e filha (Eidelberg et al., 2009).

Assim, na anorexia, o falo não funciona no registro simbólico, ou seja, não encarna o significante da falta e, portanto, não visa ao desejo e ao amor de um homem. O que predomina nesse ponto é o estatuto imaginário da fetichização do próprio corpo, ou seja, há aí uma tentativa de equivalência entre o próprio corpo e o falo imaginário onde se localizam os efeitos de deformação da imagem que são encontrados na clínica das anorexias.

Conforme a anoréxica não dialetiza o seu próprio ser com o ter (o falo) no corpo de um parceiro, ela se recusa a encarnar a alteridade do sexo para um homem, ficando aprisionada à mesmice da Coisa11 do corpo materno. Essa Coisa irrompe como objeto olhar na imagem, manifestando-se como um excesso. Uma vez que a anoréxica não pode fazer com que os seus atributos femininos passem pela lógica da castração, através da dialética da mascarada, estes são vivenciados como excesso que retorna ao espelho na forma de uma gordura que não cede Eidelberg et al., 2009).

 

Para concluir

O caso apresentado nos remete à afirmação de Lacan que, para ser o falo, o significante do desejo do Outro, uma mulher deve rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada (Lacan, 1998a, p. 701). Parece que é justamente desse buraco real do feminino, desse ponto inominável, que Bia não abria mão, colocando-o em cena ao mostrar o seu emagrecimento exagerado, o que a tornava uma pura imagem fadada à solidão.

Ao longo do tratamento, em um dos atendimentos, Bia fala, com muita vergonha, que aguardava, ansiosamente, o dia da próxima sessão, sugerindo certo enamoramento pelo analista. Este afirmou que esse afeto fazia parte do tratamento e que iria passar. Após essa intervenção, Bia começou a falar mais do pai. A partir daí, parece que foi possível tocar em algum ponto que permitiu certo resgate da função paterna. A operação efetivada pelo Nome do Pai possibilita, pelo menos parcialmente, a inscrição da mulher na normatização fálica, o que a coloca em um conjunto. Nesse sentido, dizer que ela experimenta algo que outros também vivenciam, permite que ela se inscreva em um grupo. Como foi apresentado, Lacan, ao desenvolver o quadro da sexuação, ressalta que não é pelo fato de a mulher estar não-toda inscrita na função fálica que ela deixa de estar nela de todo (Lacan, 1985). Essa inscrição, mesmo que parcial, do feminino na norma fálica impede que a mulher fique à deriva de um gozo louco e sem sentido. Uma vez que a função paterna ganha a cena, Bia esboça a criação de uma espécie de armadura simbólica para o corpo12, deslocando-a de uma posição puramente imaginária. Assim, ela, aos poucos, vai deixando de se incomodar tanto com a imagem corporal.

 

Referências

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Texto recebido em janeiro 2013 e aprovado para publicação em novembro de 2013.

 

 

* Doutorando em Saúde Coletiva pela Fiocruz, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), médico psiquiatra, membro do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (Hospital das Clínicas- UFMG). Endereço: Rua Bernardo Guimarães, 1209, sala 406 - Funcionários, Belo Horizonte-MG. CEP: 30140-080. E-mail: alecostaval@yahoo.com.br.
** Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), psicóloga, psicanalista. Endereço: Rua Santa Rita Durão, 321, sala 1506 - Funcionários, Belo Horizonte-MG. CEP: 30140-110. E-mail: paula.duarte.felix@terra.com.br.
*** Doutor em Ciências da Saúde pela UFMG, professor emérito da Faculdade de Medicina da UFMG, membro do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (HC-UFMG), membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, médico pediatra, psicanalista. Endereço: Avenida Alfredo Balena, 190, sala 267 - Santa Efigênia, Belo Horizonte-MG. CEP: 30130-100. E-mail: robassisf@uol.com.br.
**** Pós-doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora em Literatura Comparada pela UFMG, Professora na Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da UFMG, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, psicóloga, psicanalista. Endereço: Avenida Antonio Carlos, 6627 - Cidade Universitária, Pampulha, Belo Horizonte-MG. CEP: 31270-910. E-mail:marcia.rosa@globo.com.
1 Lacan estruturou o inconsciente freudiano a partir de três registros: simbólico, imaginário e real. O registro simbólico é o lugar do código fundamental da linguagem. A partir de 1936, Lacan empregou o termo "simbólico" para designar um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia. Ele é a lei responsável pela inserção do sujeito na cultura, denominada por Lacan de grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro semelhante. Esta última se refere ao registro imaginário, conceito inicialmente correlato ao "estádio do espelho". O imaginário é o lugar da construção do eu, das ilusões, da alienação, do engodo e daquilo que participa da formação do corpo humano como unidade. Já o real é o que sobra como resto do imaginário e que o simbólico é incapaz de capturar, não devendo ser confundido com a noção corrente de realidade. O real é sem ordem, não tem lei e pode ser definido como resto, impossível ou indizível por se tratar daquilo que não pode ser simbolizado e, portanto, só pode ser aproximado ou contornado, jamais capturado.
2 Significante: termo introduzido por Saussure no quadro de sua teoria estrutural da língua para designar a parte do signo linguístico que remete à representação psíquica do som em oposição ao significado. Os significantes, articulados em uma rede, têm efeitos de significado. Retomado por Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante transformou-se, na psicanálise, no elemento significativo do discurso (consciente ou inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica. O significante está isolado do significado como uma letra, um traço ou uma palavra simbólica, desprovida de significação mas determinante, como função, para o discurso ou o destino do sujeito (Roudinesco & Plon, 1998, p. 708).
3 Matema: termo criado por Lacan, em 1971, para designar uma escrita algébrica capaz de expor cientificamente os conceitos da psicanálise. Com ele, Lacan expôs, em termos estruturais, a escrita "do que não é dito, mas pode ser transmitido". O matema inclui os matemas, isto é, todas as fórmulas algébricas que pontuam a história da doutrina lacaniana, permitindo a sua transmissão (Roudinesco & Plon, 1998, p. 502-503)
4 Gozo: inicialmente ligado ao prazer sexual, o conceito de gozo implica a ideia de uma transgressão da lei, desafio, submissão ou escárnio. Lacan estabelece uma distinção essencial entre prazer e o gozo, residindo na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Posteriormente, o gozo foi repensado pelo psicanalista no âmbito de uma teoria da identidade sexual, expressa em fórmulas da sexuação que levaram a distinguir o gozo fálico do gozo feminino (ou "gozo suplementar") (Roudinesco & Plon, 1998, p. 299-300).
5 "Falta a ser": relaciona-se com o objeto do desejo que se esquiva por não poder ser representável, tornando-se, assim, um "resto" não simbolizável que, ao mesmo tempo, remete à própria causa do desejo. Em outras palavras, a verdade do desejo permanece oculta para a consciência, porque seu objeto é um "falta a ser" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 551-552).
6 Na época desse texto, Lacan ainda não dispunha dos recursos do estruturalismo de Jakobson e Lévi-Strauss, denominando de imago paterno aquilo que viria a ser conhecido em seu ensino como "Nome do Pai". O "Nome do Pai" é o significante que substitui outro significante, o desejo materno, por meio da operação da metáfora paterna. Essa operação introduz a função normativa e ordenadora da castração, limitando o gozo e, ao mesmo tempo, introduzindo a significação fálica. Dessa forma, o desejo materno passa a ser orientado à incógnita fálica, separando mãe e filho.
7 Freud utilizou a expressão Ideal do Eu para designar o modelo de referência ao eu, simultaneamente substituto do narcisismo perdido da infância e produto da identificação com as figuras parentais e seus substitutos sociais. Lacan em "O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud" (1953-1954), afirma que o Ideal do Eu é o outro como falante, o outro na medida em que mantém com o sujeito uma relação simbólica sublimada na qual o manejo dinâmico é, ao mesmo tempo, igual e diferente à libido imaginária (Roudinesco & Plon, 1998, p. 362-363).
8 Lacan diferenciou o desejo da necessidade biológica, introduzindo, em 1953 e 1957, o termo demanda. Esta é endereçada a outrem e, aparentemente, incide sobre um objeto. Mas esse objeto é inacessível, porquanto a demanda é demanda de amor. Em outras palavras, na terminologia lacaniana, a necessidade de natureza biológica, satisfaz-se com um objeto real (o alimento), ao passo que o desejo nasce da distância entre a demanda e a necessidade.
9 Outro: termo utilizado por Lacan para designar um lugar simbólico (o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente) que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intrassubjetiva em sua relação com o desejo (Roudinesco & Plon, 1998, p. 558).
10Em "O seminário, livro 5: as formações do inconsciente", Lacan distingue, a propósito do complexo de castração, três formas de falta: a castração, a frustração e a privação. A frustração é de ordem imaginária, mas se refere a um objeto real (como no fato da menina não receber o pênis do pai). Já a privação é absolutamente real, embora se refira a um objeto simbólico. A castração amputa simbolicamente do sujeito alguma coisa imaginária (Lacan, 1999, p. 288-289).
11 A partir de "O seminário, livro 7: a ética da psicanálise" (1959-1960), Lacan entende Coisa (das Ding) como o objeto impossível, "fora do significado" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 300).
12 Nieves Soria, com base no texto freudiano "Psicologia da massas e análise do eu", esclarece que a identificação que ocorre em alguns sintomas histéricos, como a tosse que Dora imita do pai, ocorre a partir de uma regressão ao objeto de amor. Dessa forma, propõe que, nas histéricas, o amor dirigido ao pai possibilitaria uma segunda volta sobre a identificação primária pré-edipiana que teria a função de armadura para o corpo. Nesse percurso, a psicanalista retoma o quadro da sexuação para localizar que o amor ao pai, na paciente histérica, teria a função de envolver o conjunto aberto de seu gozo, permitindo a inscrição de seu corpo no campo sexual (Eidelberg et al., 2009, p. 49-66).


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