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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.20 no.2 Belo Horizonte  2014

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2014v20n2p297 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2014v20n2p297

 

Indianidades: repertórios mobilizados pela ioga transnacionalizada nos fluxos turísticos Brasil-Índia

 

Indianness: repertories mobilized through transnationalized yoga in tourist flux Brazil-India

 

Indianidades: repertorios movilizados por el yoga transnacionalizado en los flujos turísticos Brasil-India

 

 

Dolores Galindo*; Claudia Poletto**; Leihge Pereira***

 

 


Resumo

Pouco ainda se sabe sobre as paisagens da Índia negociadas no mercado turístico brasileiro. Viagens direcionadas às pessoas interessadas em ioga constituem um dos fluxos mais estáveis de turismo Brasil-Índia, as Yoga Journeys. Recorrendo à noção de repertórios interpretativos (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2003, 2010), este trabalho discute as maneiras de falar e de ver imageticamente a Índia que circulam no turismo brasileiro, fazendo-o por meio do estudo dos materiais de divulgação veiculados por agências nacionais de viagens que vendem pacotes turísticos à Índia voltados à prática da ioga. A essas maneiras de falar e ver a Índia nomeou-se indianidades, termo que busca escapar a essencializações fundadas em identidades nacionais. O corpus foi composto por materiais de divulgação utilizados por duas agências de viagens nos quais analisamos os informativos e páginas eletrônicas, sendo estudados os textos escritos, os roteiros de viagem e as imagens. Foram identificados três principais repertórios: exotismo, espiritualidade e bem-estar. Os primeiros se remetem à atemporalidade da Índia como país isolado e diferente do resto do mundo, e o último, ao movimento de aproximação entre as práticas antes consideradas espirituais e os serviços de saúde e lazer.

Palavras-chave: Repertórios interpretativos. Turismo. Indianidades. Yoga Journeys.


Abstract

Little is known about the prospect of India trade in Brazilian tourism market. Using the notion of repertoires (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2003, 2010), this article aim to study the Indianness conveyed in India-Brazil tourism. The corpus was composed of two travel agencies, which we analyzed newsletters and web pages. In analyzed materials repertoires identified on India released in packages specialized tour. Tours directed peoples' interest in yoga as one of the most stable fluxes of tourism between Brazil and India, Yoga Journeys. We identified three main repertoires: exoticism, spirituality and wellness. The presence of those repertoires indicate that in the opposite direction of increasing modernization shows that the country is on the right track (Pinheiro, 2010), repertories associated with timelessness and spirituality resist and give space to fissures and ambivalences which mark the contemporary India.

Keywords: Repertoires. Tourism. Indianness. Yoga Journeys.


Resumen

Sabemos poco todavía sobre los paisajes de la India comercializados en el mercado turístico brasileño. Los viajes dirigidos a las personas interesadas en el yoga constituyen uno de los flujos más estables del turismo Brasil-India, los Yoga Journeys. Recurriendo a la noción de repertorios interpretativos (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2003, 2010), este trabajo tiene como objetivo estudiar las diversas maneras de hablar y de ver la manera imaginaria de la India que circula en el turismo brasileño a través del estudio de materiales de divulgación vehiculados por agencias nacionales de viajes que venden paquetes turísticos a la India dirigidos a la práctica del yoga. A esas maneras de hablar y de ver la India las llamaremos indianidades, término que intenta huir de las esencializaciones fundadas en las identidades nacionales. El corpus fue compuesto por materiales de divulgación utilizados por dos agencias de viajes en los que analizamos los informativos y páginas electrónicas, estudiando los textos escritos, los recorridos de los viajes y las imágenes. Se identificaron tres principales repertorios: exotismo, espiritualidad y bien estar. Los dos primeros remiten a la atemporalidad de la India como país aislado y diferente del resto del mundo, y el último, al movimiento de aproximación entre las prácticas anteriormente consideradas espirituales y los servicios de salud y ocio.

Palabras clave: Repertorios interpretativos. Turismo. Indianidades. Yoga Journeys.


 

 

Neste artigo, discorremos sobre indianidades presentes em pacotes turísticos para a Índia negociados por agências brasileiras de viagem. Buscamos, numa perspectiva psicossocial construcionista, analisar repertórios interpretativos sobre a Índia como destinação turística, que circulam nos materiais de divulgação produzidos por agências brasileiras de viagem que negociam pacotes turísticos dirigidos a esse país e com foco na prática de ioga. Esses repertórios estão atrelados ao que os estudos póscoloniais vêm apontando como essencializações do Outro oriental (McRae, 2003; Said, 2007).

É com base na essencialização do Outro oriental, por meio de operações de indianização, que as agências de viagem mobilizam práticas discursivas e materialidades que, inscritas no tempo longo da história das relações entre Ocidente e Oriente, atualizam-se e adquirem novas feições capazes de produzir e sustentar fluxos de circulação de pessoas, ideias e objetos entre Brasil e Índia. Muito mais do que acentuar e tornar visíveis as distâncias geográficas e culturais, o orientalismo promoveu a diferença como estandarte político e econômico para o exercício de dominação "conhecer o Oriente" (inclusive como disciplina acadêmica), fomentou a hegemonia colonialista (Said, 2007) quando foram reforçadas fixações identitárias e nacionalistas, sendo as populações locais alçadas ao estatuto de objetos de estudo a serem descritos e preservados por aqueles que os tomam como foco de suas pesquisas.

Entendemos que adotar uma perspectiva psicossocial construcionista contribui para desnaturalizar práticas que essencializam e fixam identidades com base em critérios normativos fundados na cisão entre Ocidente e Oriente, que atribui racionalidade ao primeiro e, ao segundo, o lugar negativo, do desconhecido, da irracionalidade, do exótico. Iñiguez (2003) assinala alguns traços comuns às pesquisas empreendidas nesta perspectiva:

 

a) antiessencialismo aliado ao não dualismo entre sujeito e objeto;

b) antirrealismo, já que a realidade existe como produção sociomaterial e inexiste para ela qualquer acesso alinguístico;

c) uma visão antirrepresentacionista sobre o conhecimento, uma vez que não interessa analisar a correspondência entre uma suposta realidade e o conhecimento; e

d) problematização ética constante dos modos de vida e das maneiras como olhamos os outros e a nós mesmos.

 

No cenário pós-colonial, ex-colônias, entre elas a Índia, foram aconselhadas pelos antigos colonizadores a abrirem seus mercados aos investidores externos e a desenvolver políticas voltadas ao turismo (Graburn, Santos, Grunewald, Barretto, Steil, 2009). Nesse contexto, a construção de indianidades passa por práticas imaginativas produzidas dentro e fora da Índia, país que cada vez mais se abre a novos fluxos de circulação. A intensificação atual dos fluxos turísticos à Índia se faz sentir na venda de guias de viagem. Entre os 500 guias turísticos vendidos pela renomada Lonely Planet, o destino Índia se encontra entre os seis mais procurados atualmente (Singh et al., 2011).

Desde a década de 1960, a Índia tornou-se popular entre turistas estrangeiros, ávidos por experiências espirituais. Grupos de rock, como Beatles e Rolling Stones, visitaram o país, sendo uma forte referência de divulgação na época. Adeptos da contracultura também se fizeram presentes como turistas nesse período. A partir da década de 1980, cresceram e se consolidaram operadoras de turismo especializadas para viagens com programações de ioga (Sharpley & Sundaram, 2005). Desde a década de 1990, principalmente com a maior presença da internet e a inauguração de novas mobilidades, a ioga transnacionalizada impulsiona turistas de todo o mundo em busca de práticas e estudos na Índia, as chamadas yoga journeys ou yoga tourism (Aggarwal, Guglani, Goel, Kumar, 2008; Strauss, 1997).

As indianidades movimentadas pelo turismo se traduzem em repertórios interpretativos, isto é, em aglomerados de descrições, termos, objetos, imagens e figuras de linguagem. A noção de repertórios interpretativos permite estudar as maneiras como damos sentido ao mundo em suas dimensões de conteúdo, temporalidade e efeitos performativos no cotidiano (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2003; Spink, Galindo, Ribeiro, Ornellas, 2007). A noção de indianidades busca atender a uma dinâmica pós-colonial na qual as relações entre países são sobrepostas, disjuntivas e articulam diferentes fluxos e paisagens (scapes) (Appadurai, 1996). O autor diferencia, pelo menos, cinco principais scapes como característicos da circulação transnacional contemporânea: technicalscapes (artefatos, técnicas), mediascapes (mídias), ethnoscapes (culturas, pessoas), financialscapes (capital econômico) e ideoscapes (ideologias, ou mais propriamente, relações de poder). Apesar de didaticamente distinguíveis, no uso cotidiano, tais fluxos e paisagens se mesclam, como pode ser depreendido da análise dos repertórios em uso no turismo voltado à negociação de práticas de ioga na Índia, ainda que este não seja o nosso eixo de discussão neste texto.

A nossa compreensão de indianidades se aproxima do que propõe Roy (1998), autora que buscou problematizar a circulação de indianidades (indianness) e hinduidade (hinduness) dentro e fora da Índia no Período Colonial. O fio condutor da pesquisa de Roy (1998) se ateve à relação entre mestre e discípulo, especialmente entre o monge indiano Swami Vivekananda e a europeia Margaret Noble, no fim do século XIX e início do século XX. Para a autora, a discípula estrangeira se "hinduizou" por meio do discurso filosófico-religioso (político também) de Vivekananda. O desdobramento dessa "hinduinização", ou apropriação de elementos da cultura indiana, acabou por fazê-la mudar para Índia e ingressar na política local. Na discussão da autora, a noção de indianidades (indianness) tem uma estreita ligação com hinduness ("hindunização") que corresponde a uma concepção identitária indiana baseada em princípios hinduístas. Na nossa discussão sobre turismo contemporâneo entre Brasil e Índia, observamos que as indianidades e as hindunizações (neologismo criado para falar do processo de tornar algo hindu) permanecem ligadas, mas que outros repertórios não adstritos às práticas hindus são mobilizados.

Embora comumente associada à Índia, a expansão das técnicas, dos artefatos e das práticas ligadas à ioga, cujo termo está incorporado aos verbetes da língua portuguesa, fez desta um fluxo transnacional e mobilizadora de fluxos transnacionais (Ravindra, 2006). É sobre as indianidades acionadas pela ioga transnacional, mobilizadora de formas de ver e falar sobre a Índia nos fluxos turísticos Brasil-Índia, que se move a discussão que fazemos. Os repertórios mobilizados pela ioga transnacionalizada atravessam países do continente europeu, americano e, agora, também países emergentes, como o Brasil (Strauss, 1997). Algo semelhante ocorreu com o movimento transnacional que as artes marciais fizeram por meio da indústria cinematográfica hollywoodiana (Appadurai, 1996). Apesar da intensificação da circulação de imagens sobre a Índia no Brasil, falar sobre turismo àquele país requer não se esquecer do seu passado colonial, cujos contornos territoriais foram alcunhados de Oriente (Mignolo, 2003; Said, 2007) e distanciados do chamado Ocidente, no qual se inclui o Brasil.

A divisão entre Ocidente e Oriente (e o duplo passado colonial que marca Brasil e Índia) contribui para que saibamos tão pouco sobre os fluxos de paisagens indianas no Brasil, reificando uma geopolítica acadêmicocientífica na qual os estudos sobre práticas sociais orientais se concentram em poucos pesquisadores (Restrepo, 2004; Said, 2007). O denominado orientalismo advém de um contexto colonialista europeu, cuja finalidade se estendia desde a dominação geopolítica até a institucionalização como disciplina acadêmica (Said, 2007). A dicotomia instituída entre Ocidente e Oriente, entre tradicional e moderno possibilitou (e ainda mantém) relações de dominação que se sustentam em fluxos entre os países. Não esqueçamos que a homogeneização e a cristalização do Outro oriental exigem um trabalho contínuo de produção de textos, imagens e fixação de alguns dos seus usos, sendo essa faceta aquilo que nos mostra o estudo dos repertórios interpretativos em uso no turismo.

No Brasil recente, a Índia, convertida em tema de filmes e telenovela premiados, adquiriu destaque, fazendo-se presente no cotidiano também daqueles que não viajam ou não estão a ela ligados por vínculos estáveis. Em 2009, a novela televisiva "Caminho das Índias" disseminou roupas e adereços considerados indianos e, no ano seguinte, o filme americano "Comer, rezar e amar" (2010) obteve um impacto tal, que chegou a ser apelidado "efeito Júlia Roberts", por ter sido responsável por levar muitos turistas às terras indianas. Esse efeito também foi visível no turismo brasileiro.

Tendo em vista discutir as indianidades que circulam nos pacotes turísticos negociados no Brasil, no primeiro segmento, refletiremos a respeito do papel das agências de viagem no turismo contemporâneo e os resultados de pesquisas sobre experiências de ocidentais que viajaram à Índia. Em seguida, depois de descrevermos os procedimentos metodológicos que empregamos, analisamos os repertórios sobre a Índia veiculados nos pacotes negociados a um nicho específico, professores, praticantes e ou simpatizantes de ioga, que constituem um dos fluxos mais estáveis no turismo Brasil-Índia, as Yoga Journeys. Por fim, retomamos os resultados da análise à luz da problematização sobre o contexto pós-colonial das relações entre Brasil e Índia.

Devemos salientar a caracterização interdisciplinar deste trabalho, que se dá na interface entre Psicologia social e Turismo. Vinculando-nos a uma perspectiva construcionista antiessencialista e antirrepresentacionista, partimos da noção psicossocial de repertórios (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2003; 2010) e dialogamos com a literatura não utilitarista sobre o turismo contemporâneo (Edensor, 2001; Franklin & Crang, 2001; Franklin, 2003; McRae, 2003; Rojek & Urry, 1997; Urry, 2001) à luz da discussão pós-colonial sobre as relações entre os designados Ocidente e Oriente (Bhabha, 1998; Said, 2007; Spivak, 1989; Roy, 1998).

 

Agências de viagens na promoção de fluxos turísticos

Na contemporaneidade, os fluxos turísticos se intensificaram pela expansão dos meios de comunicação e inovações tecnológicas no setor dos transportes. Os deslocamentos de pessoas, que podem circular, virtual ou geograficamente, criam ordenações espaciais complexas e, junto a estas, novas paisagens (Appadurai, 1996). O consumo de deslocamentos, como lembra Bauman (1999), inaugura novas polarizações: para alguns, a liberdade de circular; para outros, a prisão numa localidade que inelutavelmente se move sob seus pés. Ou ainda, àqueles que têm o capital de rede para usufruir uma vida móvel (incluindo viagens) em que terceiros, relativamente imobilizados, possibilitam as mobilidades dos primeiros (Elliott & Urry, 2010).

Ao entrar em uma agência de viagens, nós deparamos com vários materiais de divulgação, como cartazes e panfletos repletos de imagens e textos que acenam horizontes que ultrapassam aquele espaço. Até mesmo a decoração de vários desses estabelecimentos se dá por meio de paisagens: grandes painéis com cenários paradisíacos, em que atrativos turísticos emblemáticos tentam encantar os clientes pelos olhos, daí a conotação imagética ser tão essencial à empresa turística.

Agências de viagem que negociam pacotes com deslocamentos para a Índia, frequentemente, veiculam paisagens desconhecidas por aqueles que as adquirem; mencionam produtos que não podem ser tocados, vistos, degustados ou cheirados antes da viagem. Porém, mesmo sendo uma paisagem desconhecida, cabe à agência mobilizar materiais de divulgação, relatos e outras materialidades, a fim de gerar o desejo pela viagem a ser adquirida. Negociam-se, principalmente, as experiências atribuídas à visitação aos locais recomendados nos pacotes. Como assinalam Swarbrooke e Horner (2002), a viagem adquirida inicia mesmo antes que o turista pise no destino visitado, já que o momento de compra aciona experiências que, sem a mediação das agências, seriam, possivelmente, diferentes.

Antes da onipresença das páginas eletrônicas e da comunicação imediata pelos informativos eletrônicos (newsletters) distribuídos pelos e-mails, era necessário receber um material impresso, assistir a um vídeo ou ainda se deslocar até uma agência para visualizar o destino num cartaz ou prospecto. Esses materiais, muitas vezes, não podiam ser levados para além dos limites físicos do estabelecimento. Com a consolidação e a credibilidade do comércio eletrônico, a configuração da venda de serviços de viagens vem sofrendo mudanças. Se antes o cliente necessitava se deslocar até uma agência para consultar e comprar seu pacote, atualmente, ele acessa uma gama de informações sobre o destino e efetua a compra de qualquer lugar pelo computador, bastando usar um cartão de crédito.

Sabemos que a propaganda turística exerce um importante papel na circulação de repertórios, por meios impressos e televisivos (Medrado, 2000). Na divulgação de destinações turísticas, as ilustrações e roteiros fazem próximo o distante, criando experiências sensoriais de uma paisagem que se deseja conhecer e fazem fugir do cotidiano. As imagens e os textos nos materiais turísticos devem ser mais do que uma pessoa normalmente esperaria (Urry, 2001), devem anunciar possibilidades de experiências que apenas poderiam ser vividas na destinação negociada.

Com a internet, o cenário de venda de destinos turísticos se complexificou, pois as agências se valem dos canais eletrônicos para divulgar os produtos que negociam, mas estes impõem um novo desafio: as agências veem-se instadas a reafirmar, a cada novo pacote turístico, a necessidade dos trânsitos entre destinações em contraponto aos trânsitos virtuais. Afinal, por que viajar se o que é negociado nos pacotes pode ser vivido pela navegação virtual? Por que ir à Índia se podemos ver na internet imagens e textos sobre ela?

 

Notas sobre o turismo contemporâneo na Índia: viagens por ocidentais

Bandyopadhyay (2009), em estudo realizado nos Estados Unidos, buscou comparar as imagens da Índia contidas na literatura britânica do século XIX com as divulgações turísticas contemporâneas. As suas fontes de dados contemporâneos foram materiais turísticos, tais como brochuras, artigos, revistas, guias turísticos e jornais dos Estados Unidos ("Leisure + Travel", "National Geographic Traveller", "Wall Street Journal", "The New York Times" e "Los Angeles Times"). Da literatura de viagens do século XIX, estudou as obras "Bits about Índia", de Holcomb (1888); "India and its people", de Read (1858); "The Oriental and its people", de Hauser (1876).

Com base no material analisado, contrastando os dois períodos diferentes cobertos em seu estudo, Bandyopadhyay (2009) subdividiu os repertórios turísticos sobre a Índia em quatro categorias: atemporal, pobreza, mulheres exóticas e homens não ocidentalizados (também apreendidos como efeminados). Compõe o repertório de atemporalidade a celebração da Índia como refúgio de espiritualidade não maculado pela passagem do tempo. A pobreza remete ao país como um grande mercado aberto ao olhar ocidental. Sobre as mulheres e homens, as primeiras são ligadas a um exotismo sensual, com imagens dos templos hinduístas, ou ao desamparo; os últimos contrastam como as imagens de masculinidade do Ocidente, sendo ligados ao sagrado, identificados por roupas coloridas e tradicionais.

Uma das principais conclusões de Bandyopadhyay (2009) é que o turismo vem enfatizando a superioridade ocidental diante de uma Índia parada no tempo, à espera do interesse pelo exótico que a demarca como um outro. As características encontradas pelo autor vão ao encontro do orientalismo estudado por Said (2007), em que obras literárias agenciadas pelo colonialismo falavam de uma "área [Oriente] de interesse definida por viajantes, empresas comerciais, governos, expedições militares, leitores de romances e de relatos de aventuras exóticas" (Said, 2007, p. 226). Por meio de rótulos amplos, multiplicidades foram reduzidas a uma espécie de abstração, cujas extensões territoriais são variáveis (o Oriente).

Na contracorrente dos resultados da análise dos materiais de divulgação turísticos analisados por Bandyopadhyay (2009), as pesquisas que discutiremos neste tópico indicam formas de falar sobre a Índia que escapam à noção de exotismo. Iniciemos com os resultados de uma pesquisa inglesa sobre motivações para viagem à Índia e experiências entre turistas ocidentais no Ashram Sri Aurobindo e na comunidade Auroville, no sul da Índia, na cidade de Pondicherry (Sharpley & Sundaram, 2005). A palavra ashram provém da raiz sânscrita srama, que significa exercício religioso ou um retiro espiritual hindu liderado por um sábio, guru. Já a comunidade foi fundada para cumprir uma espécie de utopia fraterna universal de convivência. Em 28 entrevistas semiestruturadas, realizadas em cafés, uma vez que o acesso aos locais considerados sagrados era controlado, o estudo mostrou que poucos responderam haver viajado à Índia (e visitado o Ashram) para satisfazer uma necessidade espiritual. Alguns estavam ali movidos pela curiosidade, muitos para aprender e praticar ioga laicizada como exercício ou uma experiência incomum, outros, simplesmente, porque os locais faziam parte da rota turística. Chamou a atenção dos pesquisadores que alguns dos entrevistados reconheceram certa artificialidade na experiência vivida no Ashram, já que esperavam lugares sagrados com a presença de mestres e sem qualquer intuito comercial, o que não se observa, já que vários desses espaços se converteram em centros de lazer e de comércio. Em vez de encontrar um Ashram exótico e espiritualizado, o visitante depara com um local conhecido e facilmente assimilável a um centro de práticas de ioga que poderia conhecer fora da Índia.

Seguindo a análise do turismo praticado na Índia pelos estrangeiros ocidentais, o estudo realizado por Chaudhary (2000) buscou saber as percepções do pré e pós-viagem. Por meio de uma amostragem de 152 pesquisados, aos quais foram aplicados questionários estruturados, foram coletados dados sociodemográficos, tendo como objetivo principal conhecer as atitudes dos turistas estrangeiros pelo discurso de (multi) atributos. Os atributos escolhidos foram identificados previamente em artigos na mídia sobre a Índia e também por um pequeno levantamento entre turistas, pelo qual foram inquiridos sobre como descreviam a Índia. A pesquisa foi voltada a instrumentar alternativas para o incremento do turismo indiano. Ela foi realizada durante dois anos, nas cidades de Deli, Pune e Chandigrah, em aeroportos e hotéis. A maioria dos turistas encontrados foi de homens, entre 30 e 50 anos, solteiros e europeus que viajavam por conta própria, sem pacote turístico ou suporte de agências. A principal motivação identificada foi a crença e o interesse em diversas seitas religiosas. Entre as expectativas (préviagem) positivas levantadas, o patrimônio cultural foi o mais citado e, já no rol das negativas, a falta de segurança foi evidenciada em maior escala. Na verificação da satisfação (pós-viagem), houve convergência entre a expectativa e a satisfação no item que se refere a patrimônio cultural, sendo a falta de qualidade nos serviços turísticos o problema mais apontado.

Num recorte diferente, Dwivedi (2007) se debruçou sobre a análise dos depoimentos, relatos e fóruns de discussão de usuários que compartilharam suas experiências subjetivas positivas e negativas em rede (usuários, presumidamente turistas que viajaram para e na Índia). Em etnografia aplicada à internet, analisou duas comunidades "Lonely Planet's the Thorn Tree" (400.675 membros/2007) e "Indiamike.com" (29.236 membros/2008). A pesquisa pôde constatar que os depoimentos positivos e negativos se misturavam. Comentários atuavam ora como dicas, orientações, ora como conselhos ou advertências.

O artigo levantou alguns tópicos apontados pelos turistas, tais como água potável, higiene da comida, distúrbios estomacais, pechincha como experiência genuína indiana, falta de limpeza nos hotéis, trânsito caótico, segurança das mulheres turistas, poluição, barreiras linguísticas, música indiana, festivais, falta de manutenção em lugares históricos, hospitalidade dos indianos, porém a pobreza e a sujeira se evidenciaram na maioria dos comentários dos usuários. O dado tido como surpreendente foi que, no material analisado, a Índia foi mencionada como "mística" apenas duas vezes, em contraste com outros destinos, que foram 92 vezes caracterizados pelo mesmo adjetivo. A pesquisa mencionada não indica quais foram os demais destinos comparados à Índia, apenas refere que estão contidos no guia "Lonely Planet". Esses resultados indicam possíveis fissuras nos antigos repertórios de exotismo e espiritualidade, historicamente vinculados ao turismo colonialista na Índia. Em vez de experiências espirituais, os turistas relatam o horror diante da miséria, os incômodos diante do que atribuem como falta de higiene e problemas característicos dos centros urbanos, como o tráfego.

Quais indianidades são colocadas em circulação para venda de pacotes turísticos no Brasil? É essa pergunta que guia a análise dos repertórios presentes nos materiais turísticos. Indagamos se, nos materiais turísticos divulgados pelas agências brasileiras, estaria presente a caracterização apontada pelas análises dos relatos de viagem identificados por Chaudhary (2000) e Dwivedi (2007) que indicam a substituição dos repertórios de espiritualidade e exotismo pelo incômodo diante da miséria e da crescente metropolização das cidades indianas. Afinal, quais indianidades são comuns ao turismo brasileiro e podem ser identificadas por meio dos repertórios vistos nos textos escritos, imagens e roteiros apresentados nos materiais de divulgação?

 

Rotas metodológicas para estudos dos pacotes turísticos Brasil-Índia

Sabe-se que o uso da internet para a busca e o planejamento de viagens é uma forte e inegável tendência no turismo contemporâneo (Pan & Li, 2011). Atuando como qualquer pessoa em busca de um destino turístico, com embarque entre outubro de 2010 e fevereiro de 2011, nós lançamos a expressão viagens à Índia no mecanismo de busca Google. Entre o universo de agências on-line, nossa amostra se voltou para duas, ao longo deste trabalho, referidas como A1 e A2. A primeira delas disponibilizava pacotes para todos os continentes do mundo, incluindo a Índia, sob duas perspectivas:

 

a) viagens exóticas; e

b) viagens com destino à Ásia. A segunda agência, por sua vez, dividiu suas viagens por temáticas: gastronomia, aventura, Brasil, roteiros sugeridos e, finalmente, viagens de conhecimento, na qual a Índia estava inserida.

 

Foram estudados dois tipos de materiais:

 

a) roteiros dos pacotes turísticos oferecidos pelas agências de viagem que continham a descrição das atividades previstas e os lugares para a visitação; e

b) informativos de divulgação dos pacotes negociados que apresentavam imagens e chamadas com descrições resumidas das atividades contempladas. O material foi localizado nos sites das duas agências de viagem e em informativos eletrônicos (newsletters) recebidos via e-mail cadastrado na página eletrônica de uma das agências.

 

Para proceder à análise dos repertórios, compusemos quadros que continham as seguintes colunas:

 

a) descrição das cidades e atividades previstas nos roteiros, bem como termos e imagens associadas;

b) chamadas de divulgação dos pacotes turísticos; e

c) descrição das imagens voltada às pessoas, objetos e cenários presentes. O processo de análise não se resumiu à descrição dos materiais levantados. Buscamos as funções e os efeitos das palavras e imagens em uso conforme foram interrogadas sob o ponto de vista das indianidades que colocavam em circulação, sendo possível discernir três grandes maneiras de falar e ver a Índia, às quais nomeamos exotismo, espiritualidade e bem-estar.

 

Para remeter ao exotismo, enaltecem-se características que seriam tipicamente indianas. O repertório é composto por imagens e textos que realçam a diversidade e multiplicidade cultural da Índia em relação à do Brasil. Esse repertório ressalta a indumentária, os monumentos arquitetônicos, as performances gestuais, as diferenças na circulação de animais no perímetro urbano. A fim de fazer presente a espiritualidade, são trazidas chamadas textuais e gestos corporais que remetem a concepções filosófico-religiosas que evocam a perspectiva espiritualista milenar da Índia. Sítios sagrados, cerimônias e rituais são utilizados para serem vendidos por meio de repertórios de espiritualidade, caracterizados também pela sensação atemporal e imaculada do que é comunicado e que se torna palpável pelos produtos oferecidos nos materiais de divulgação. Por fim, o repertório bem-estar é composto por imagens e textos que remetem a cuidados com o corpo, mesclando o que seria uma tradição milenar ao conforto das instalações ocidentais. Deve-se salientar que os repertórios de espiritualidade e exotismo estão vinculados ao tempo longo da história das relações entre Ocidente e Oriente, enquanto o repertório bem-estar é mais recente e, vigorosamente, vem sendo acionado para vender viagens aos países asiáticos, que são impulsionadas pelo turismo médico, isto é, pela busca de serviços de saúde de menor custo quando comparados aos ofertados por países desenvolvidos.

 

Indianidades nos pacotes turísticos brasileiros

Mesmo na contemporaneidade, atravessada pelos fluxos da globalização, em que a cultura pode ser entendida em termos processuais e dinâmicos (Hannerz, 1997), o aspecto estático, nostálgico é enfatizado nas propagandas turísticas que têm como destino a Índia (Bandyopadhyay & Morais, 2005). Os repertórios de espiritualidade, exotismo e bem-estar possibilitam compreender o jogo de essencialização operado pelo turismo, pois atuam numa dinâmica que se dá na fixidez de determinadas formas de falar e ver a Índia que a colocam no plano atemporal e idílico de um Oriente criado para e pelo Ocidente (propagandas produzidas por outros países) que, entretanto, não estão insuladas, pois vão ao encontro da invenção do Oriente pelo próprio Oriente (como é o caso da propaganda governamental indiana).

Na pesquisa às páginas eletrônicas, localizamos 12 pacotes, 7 dos quais classificamos como especializados, por terem nichos específicos, dos quais 4 eram exclusivos para praticantes e simpatizantes de ioga, sendo estes os que constituíram nosso foco de interesse. Nesse tipo de turismo especializado, tudo é passível de ser programado: visitas a templos religiosos, práticas de meditação, compras em bazares tradicionais, estudos da filosofia indiana e até mesmo a realização de serviços voluntários. As atividades incluídas nos roteiros proporcionavam facilidades e confortos devidamente ajustados para a obtenção de experiências que só poderiam ser vividas naquele país.

O exotismo talvez seja o mais antigo entre os repertórios mobilizados para falar das viagens à Índia, pois sua gênese está vinculada ao tempo longo das grandes viagens de exploração empreendidas no Período Colonial. A Índia, assim como o Brasil e outras ex-colônias, ocupou o lugar do exótico (do maravilhoso) na imaginação ocidental das viagens de colonização precursoras do turismo contemporâneo. Esse repertório, quando acionado nos materiais de divulgação das agências, mobiliza nos turistas a expectativa de que entrarão em contato com um país cuja cultura, pessoas e a vida cotidiana são radicalmente diversas daquelas que conhecem.

Na figura 1, veiculada num dos materiais informativos, veem-se mulheres com vestes coloridas, consideradas tradicionais: véus, saias, sáris, colares dourados e pulseiras coloridas que se diferenciam nitidamente da indumentária associada ao Ocidente. Para produzir o efeito de exotismo, as imagens não remetem ao processo de ingresso cada vez mais forte das roupas consideradas ocidentais no cotidiano indiano. Para ativar um efeito de exotismo, é necessário excluir qualquer conexão que não seja aquela de uma diferença identitária irredutível que aprisiona o outro num conjunto de clichês construído ao longo do tempo longo das relações coloniais.

 

 

Por que utilizar imagens em propagandas turísticas do destino Índia? De um lado, essas imagens são o resultado da imaginação nacionalista indiana em que a diferença em relação ao ocidente foi intensificada e propagada (Chatterjee, 1993); do outro, é a ideia de que o exotismo está muito atrelado ao orientalismo: uma projeção do Oriente no Ocidente (Said, 2007), na qual "um aspecto importante do discurso colonial é a sua dependência do conceito de "fixidez" na construção ideológica da alteridade" (Bhabha, 1998, p. 105).

Bandyopadhyay (2009) já tinha observado a fixidez do repertório de exotismo em propagandas turísticas americanas sobre a Índia, confirmando que "formas textuais e visuais reproduzem discursos de alteridade" (Edensor, 1998, p. 13). Isso também foi notado em nossa análise. O enaltecimento do exótico em propagandas turísticas sobre a Índia advém de um jogo de repertórios que essencializam o país, em que camelos, macacos, palácios, templos, turbantes, sáris, estátuas em poses de meditação formam paisagens que diferem com as do cotidiano brasileiro. Vale pontuar que o exotimo também é mobilizado nos fluxos turísticos para países ocidentais, o que o singulariza no caso da Índia é a menção a determinados monumentos e práticas sociais que remetem exclusivamente àquele país, sendo o exemplo mais saliente a onipresente menção ao Taj Mahal, destino que estava presente em todos os pacotes vendidos.

A imagem do Taj Mahal é mobilizada sem que seja necessário todo um trabalho de justificação da visita a esse destino turístico. Dos pacotes negociados voltados às práticas de ioga, todos aludiam ao Taj Mahal e dois dos generalistas ofereciam extensões das viagens de maneira que, ao término da programação regular do pacote, o turista poderia estender sua estadia na Índia para visitar o monumento. Na figura 2, veicula-se a emblemática visão do mausoléu mulçumano promovida pela agência A1, em sua página eletrônica. Essa imagem era a principal referente nos pacotes à Índia.

 

 

O exotismo aparece também na descrição da programação dos roteiros. Veja-se o exemplo de dois roteiros que envolvem a cidade de Agra e o Taj Mahal, veiculados pelas duas agências de turismo:

 

8º dia – Agra: após o café da manhã, visita panorâmica ao Taj Mahal, maravilhoso monumento em mármore branco construído pelo imperador Shah Jahan em homenagem a sua linda esposa, a princesa Mumtaz Mahal e que levou 22 anos para ser finalizado. Em seguida, visita ao Forte Agra, construído em arenito avermelhado, na mais original forma das arquiteturas Islâmica e Hindu, e abriga palácios, palacetes salas de audiências, bazares, lagos e mesquitas. Tarde livre, para desfrutar das diversas atividades que o hotel oferece ou percorrer as ruas principais do comércio, visitando pitorescas lojas de artesanato, tecelagens, bijuterias e joalherias. (A1, 2010).

 

26/02/2011 - 8º dia - Agra - Orchha: bem cedo iremos visitar um dos pontos altos da viagem: visita ao Taj Mahal. Esse indescritível monumento, construído em 1630 pelo Imperador Shah Jahan, é um mausoléu em mármore branco e com pedras semipreciosas incrustadas, em homenagem à rainha Mumtaz Mahal. (A2, 2010)

 

Quando se fecha a Índia numa caixa de estranheza, não há espaço para os fluxos conte mporâneos que o país vem passando. Busca-se uma Índia que sempre esteve não lá, mas aqui, no imaginário ocidental sobre o chamado Oriente. Não é à toa que o país tenha se tornado uma marca de viagens espirituais no mercado dos pacotes turísticos, sendo traduzida em edificações de templos hindus e divindades e práticas religiosas. Na figura 3, divulgam-se imagens de templos e divindades.

 

 

Termos como sagrado, mestre e peregrinação inserem-se no repertório de espiritualidade sobre a Índia, demarcando o que seria espiritual em meio ao mundano, dando ao exótico uma tonalidade mística. No pacote chamado de Grupo simplesmente ioga, o exercício de imaginação da Índia espiritual transforma o roteiro em uma peregrinação:

 

[...] por fim, conheceremos Tiruvanamalai, onde viveu um dos grandes santos da Índia, Ramana Maharshi, junto à auspiciosa montanha Arunachala. Esta viagem é aberta a pessoas que desejem compartilhar uma incrível jornada de crescimento pessoal, cultural e espiritual com um grupo de sinceros peregrinos do autoconhecimento (A2, 2010, destaque nosso).

 

Até aqui falamos de exotismo e espiritualidade, mas a Índia se traduz, também, de maneira laica, na prestação de um serviço: o bem-estar. Os benefícios das práticas de ioga e meditação são divulgados em vários meios midiáticos, tais como revistas, sites, programas de tevê e até mesmo em artigos científicos. São informações que circulam globalmente. Para vender a ioga como um produto indiano, é necessário realçar a autenticidade do local. Ou seja, não basta meditar (o que pode ser realizado em qualquer país); para uma experiência autêntica, seria necessário meditar na Índia. É na alusão ao espaço geográfico indiano (meditar na Índia) que o país inscreve sua singularidade como sendo o lugar ideal e autêntico para a meditação, como ocorre com a venda de estada em spas indianos. Sabemos que um spa brasileiro não difere muito do indiano ou americano em termos de técnicas e serviços, mas este ganha ares de produto singular, por ser veiculado como autenticamente indiano e irreprodutível em outro local.

Na figura 4, vê-se a imagem de divulgação de um spa indiano. Roupas claras e arejamento na paisagem que aproximam as práticas milenares realizadas no cotidiano indiano das expectativas sobre os espaços e serviços destinados ao bem-estar construídos no Ocidente. Num processo de colonização tardio, a Índia se reveste das indianidades construídas para atrair mais usuários, reservando, contudo, as práticas milenares para os momentos nos quais estão entre si. A prática de ioga na Índia ou entre indianos não requer trajes brancos, postura sentada de pernas cruzadas e olhos fechados. Essa é uma imagem construída pelo Ocidente e reforçada pela própria Índia, no sentido de se converter numa destinação turística interessante.

 

 

Dessa forma, o repertório de bem-estar vinculado ao turismo na Índia configura-se como tradução contemporânea dos fluxos entre o que se designa Ocidente e Oriente, diminuindo as fronteiras que os delimitavam estanques. Nesse repertório, a essencialização do Outro oriental (McRae, 2003; Said, 2007) aparece sob uma nova roupagem, a da experiência. Agora não se quer apenas ver o outro, mas partilhar das suas práticas, tendência do turismo contemporâneo. Numa matéria publicada no jornal "The New York Times", à mesma época em que procedíamos à análise, lia-se que grandes cadeias hoteleiras nos Estados Unidos, como Hyatt, Four Seasons e Marriot, já agregaram a ioga como serviço aos hóspedes: "A ioga vem se tornando um tipo de amenidade quase que obrigatória [...] Hóspedes querem aliviar o stress, ir à internet, checar e-mail e depois fazer cinco minutos de ioga. É o yin e yang da viagem" (Higgins, 2010, tradução nossa).

A ioga veiculada como produto de bem-estar vai ao encontro da campanha governamental daquele país, nomeada "Índia impressionante", que circula no Brasil sob a forma de brochuras distribuídas pelo Consulado Indiano e numa versão traduzida ao português de sua home page. Nela, os produtos e segmentos de atividades turísticas foram classificados em 11 categorias: esporte e aventura, desertos, ecoturismo, trens luxuosos, praias, vida selvagem, retiros interessantes, retiros reais (de realeza), eventos MICE (meetings, incentives, conferences & exhibitions), bem-estar e espiritualidade. Cada um desses nichos desdobra-se como produto turístico a ser consumido sob a forma de roteiros nos quais são negociados isoladamente ou como pacotes dos quais formam uma parte.

Para a categorização da ioga num dos 11 tipos de turismo, os especialistas viram-se em meio a dificuldades. Incluí-la como prática espiritual? Tornála prática de saúde e bem-estar? A opção da campanha foi situá-la na categoria bem-estar e saúde. A Índia, assim como outros países emergentes, a exemplo do Brasil e Argentina, vem se tornando um destino global de saúde. O setor governamental de turismo da Índia reserva um espaço específico ao turismo médico. No endereço oficial, www.medical-tourismindia. com, várias facilidades no cuidado com a saúde são enfatizadas, entre elas o preço, a mão de obra e a tecnologia.

A categorização da ioga como uma prática de saúde na campanha governamental indiana e as práticas de ioga oferecidas nos pacotes turísticos não exclui a espiritualização mobilizada para falar do país, ainda que, em certa medida, o exotismo seja deixado em segundo plano, já que deve ser assegurado que o spa indiano tem as vantagens de ser autêntico sem perder a qualidade higiênica associada a esses espaços. As imagens e textos sobre bem-estar se juntam à atmosfera de espiritualidade. Isso não é peculiar da ioga. No treinamento aos guias turísticos indianos e brasileiros que fazem os trânsitos entre os dois países, enfatiza-se que o turista deve ser considerado uma divindade. No material de divulgação da campanha governamental "Índia impressionante", o Ministério de Turismo Indiano usa uma frase de cunho filosófico-religioso para definir o que nomeamos como turista: Atithi Devo Bhava, cujo significado é "O convidado é Deus" (Banerjee, 2008). Essa frase não se faz presente nos materiais que analisamos, mas vai ao encontro do repertório de espiritualidade que os perpassa.

 

Considerações finais

As indianidades colocadas em circulação nos pacotes turísticos não coincidem com a aceleração econômica e tecnológica que tem alterado a dinâmica dos grandes centros urbanos (Pinheiro, 2010), tampouco com o clima de tensão política que vem provocando intensas mudanças nos países daquela região.

Quando contrastamos as indianidades veiculadas nos pacotes turísticos com os resultados de pesquisas junto a viajantes ocidentais (Chaudhary, 2000; Dwivedi, 2007), percebemos que a fixidez de repertórios presentes nos primeiros atualiza hierarquias colonialistas nos vínculos atuais entre Brasil e Índia. A análise dos materiais turísticos parece reafirmar a observação de que "o oriente está num passado, nunca autorizado a ser moderno ou contemporâneo" (McRae, 2003, p. 248).

Todavia um aspecto merece atenção. Enquanto neste artigo foram apontados repertórios que impulsionam propagandas turísticas do destino à Índia no turismo brasileiro, resta saber quais indianidades são colocadas em circulação pelos turistas brasileiros que retornam das viagens em busca das práticas da ioga transnacionalizada na Índia. As narrativas e os objetos trazidos das viagens, ou seja, na volta ao Brasil, reverberam as mesmas indianidades presentes nos pacotes turísticos? Percurso aberto a novas pesquisas.

 

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Texto recebido em fevereiro de 2012 e aprovado para publicação em janeiro de 2014.

* Doutora em Psicologia Social pela PUC São Paulo, com estágio doutoral na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB); docente do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Estudos de Cultura Contemporânea, onde coordena a linha de pesquisa Epistemes Contemporâneas, e do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT); líder do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Ciências e Contemporâneo (TECC/UFMT) e membro do Grupo de Pesquisa Práticas Discursivas e Produção de Sentidos (PUC SP); integrante da Rede Centro-Oeste de Ensino e Pesquisa em Arte, Cultura e Tecnologias Contemporâneas (Rede CO3); vice-presidente da Regional Centro-Oeste da Abrapso (2011- 2012). E-mail: dolorescristinagonesgalindo@gmail.com.
** Mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO/UFMT); graduada em Turismo pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB); membro do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Ciências e Contemporâneo (TECC/UFMT) e do Grupo de Pesquisa Práticas Discursivas e Produção de Sentidos (PUC SP).E-mail: claudiawanessa@gmail.com.
*** Graduanda do Curso de Psicologia na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Ciências e Contemporâneo (TECC/UFMT). E-mail: leihgeroselle@gmail.com.


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