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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.20 no.3 Belo Horizonte set. 2014

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2014v20n3p427 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2014v20n3p427

 

 

A astúcia invisível de mulheres trabalhadoras de escola

 

The invisible cunning of school workers women

 

El deseo de partir: un estudio sobre intentos de suicidio

 

 

Jackeline Oliveira Silva*; Nedir Santana de Melo**; Ana Cláudia Leal de Vasconcelos***

 

 


Resumo

O trabalho realizado por auxiliares de serviços gerais e merendeiras de escolas públicas é socialmente marcado pela invisibilidade e desvalorização já que são atividades consideradas manuais, domésticas e naturalizadas como atributos femininos. No entanto essas profissionais têm um saber que vai além de normas e prescrições, o que garante a realização de trabalhos essenciais ao funcionamento das escolas. Com o objetivo de refletir sobre a manifestação da inteligência prática de trabalhadoras de escolas públicas de Manaus-AM, realizou-se uma pesquisa documental, fundamentada pelos pressupostos teóricos da psicodinâmica do trabalho. Identificou-se, nesta pesquisa, que as trabalhadoras elaboram soluções originais e criativas para lidar com as contradições, utilizando-se da inteligência prática, que é aprendida no ato de trabalho. Ao fazer uso dessa inteligência, conseguem realizar suas atividades com êxito e reduzir a possibilidade de descompensação psíquica ou somática, mesmo diante de condições e organização do trabalho precárias e deletérias à saúde.

Palavras-chave: Inteligência prática. Auxiliares de serviços gerais. Merendeiras. Escola pública. Psicodinâmica do trabalho.


Abstract

The work done by servants and school cafeteria workers in public schools is socially characterized by invisibility and devaluation in these activities which are considered manuals, domestic and naturalized as feminine attributes. However, these professionals possess a knowledge that goes beyond norms and requirements, ensuring the achievement of work essential to the functioning of schools. Aiming to reflect on the demonstration of practical intelligence of these workers a documentary research was conducted, substantiated by theoretical Psychodynamics of Work. It was found in this research that workers elaborate original and creative solutions to deal with the contradictions of using their intelligence for practices that are learned during the act of work. By making use of this intelligence they can successfully carry out their activities and reduce the possibility of decompensation psychic or somatic, even in the face of poor working conditions ,inferior work organization and deleterious to health.

Keywords: Intelligence practice. Servants. School cafeteria worker. School. Psychodynamics of work.


Resumen

El trabajo realizado por las servicios asistentes generales y las cocineras del escuelas públicas es socialmente marcada por la invisibilidad y devaluación en que las actividades se consideran manuales, nacional y naturalizado como atributos femeninos. Sin embargo, estos profesionales poseen un conocimiento que va más allá de los estándares y requerimientos, asegurando la consecución de un servicio esencial para el funcionamiento de las escuelas. Con el objetivo de reflexionar sobre la manifestación de la inteligencia práctica de estas trabajadoras se llevó a cabo la investigación documental, fundamentada en la psicodinámica del trabajo. Se encontró en este estudio que las trabajadoras elaboran soluciones originales y creativas para hacer frente a las contradicciones de usar su inteligencia práctica que se aprende en el acto de la obra. Al hacer uso de esta información puede llevar a cabo con éxito sus actividades y reducir la posibilidad de descompensación psíquica o somática, incluso en la cara de las condiciones y la organización del trabajo deficiente y perjudicial para la salud.

Palabras clave: Inteligencia práctica. Servicios generales asistentes. Cocineras. Escuela pública. Psicodinámica del trabajo.


 

 

Introdução

Pesquisas realizadas no Brasil demonstram que trabalhadores de escolas públicas, incluindo auxiliares de serviços gerais e merendeiras, desempenham seus trabalhos em um cenário marcado pelo reduzido número de profissionais, escassez de recursos materiais, inadequados ambientes de trabalho, desqualificação e desvalorização social do seu trabalho (Brito & Athayde, 2003; Muniz & Alberto, 2009; Nunes, 2000; Ribeiro, 2004; Ribeiro & Neves, 2009; Silva, 2003; Silva, Neves, Souza & Brito, 2013; Vasconcelos, 2009).

Especificamente, no que tange ao trabalho desempenhado por auxiliares de serviços gerais e merendeiras,4 além do cenário apresentado, destaca-se a maneira como essas categorias profissionais são percebidas tanto pela comunidade escolar quanto pela sociedade. De acordo com Silva (2003), essas profissionais, na hierarquia da divisão social do trabalho, são inseridas no estrato dos trabalhadores manuais responsáveis por atividades consideradas menos qualificadas dentro da escola. As práticas profissionais que realizam são fortemente atravessadas por relações sociais, como de gênero, sendo associadas à esfera doméstica e, por isso, marcadas pela invisibilidade decorrente da naturalização como atividade da mulher. Historicamente, cozinhar e limpar são atos considerados comuns ao dia a dia das mulheres, como se fossem atividades naturais, do hábito feminino, logo se opera socialmente sua desqualificação profissional e, consequentemente, a desvalorização do trabalho que realizam (Brito, 1999; Nunes, 2000; Ribeiro & Neves, 2009; Silva, 2003).

Assim, essas atividades são desvalorizadas, principalmente, quando comparadas com os ditos trabalhos intelectuais, como os de professores, pedagogos e diretores, que têm seu saber mais valorizado em virtude da qualificação necessária para que assumam tais funções, estando, então, em um nível mais elevado dessa hierarquia. Como afirma Nunes (2000): "Essa é a forma como a sociedade se organiza, divide os trabalhadores, separa as pessoas e dificulta as relações intersubjetivas dentro e fora dos ambientes de trabalho" (p. 74).

Diante das condições e organização do trabalho apresentados, o objetivo deste artigo é discorrer sobre os mecanismos criativos desenvolvidos por auxiliares de serviços gerais e merendeiras para continuar realizando suas atividades, mesmo submetidas ao quadro apontado. Nesse sentido, discute-se sobre o uso que fazem da sua capacidade subjetiva de identificar, interpretar e reagir às adversidades do seu trabalho, utilizando-se da iniciativa, inventividade e criatividade.

Segundo Dejours (2008a), essa capacidade de subverter o sofrimento em criatividade pode estar combinada com a mobilização da chamada inteligência prática. Essa mobilização demonstra que os trabalhadores não estão passivos ao sofrimento, sendo capazes de reagir e organizar-se cognitiva, afetiva e fisicamente, engajando-se em sua relação com o trabalho em busca de sentido, identidade e realização de si num processo que envolve a sua história, suas experiências afetivas anteriores e suas expectativas atuais (Dejours & Abdoucheli, 2009).

Para uma aproximação da dinâmica relacionada à inteligência prática de auxiliares de serviços gerais e merendeiras, usaram-se materiais de diagnósticos, intervenções e pesquisas desenvolvidos no Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho da Universidade Federal do Amazonas sobre trabalhadores de escolas públicas da cidade de Manaus-AM. Os pressupostos teóricos da psicodinâmica do trabalho foram utilizados na análise dos materiais obtidos. Essa abordagem é uma das principais referências acerca da saúde mental no trabalho, principalmente dos processos de subjetivação manifestados na subversão da vivência de sofrimento em prazer ou na intensificação do adoecimento (Dejours, 2008a).

Justifica-se a relevância desta análise pela escassez de estudos que evidenciem a relação de saúde mental e trabalho nessas categorias. A importância também é reforçada pelo fato de essas profissionais desenvolverem um trabalho manual, considerado naturalizado e de fácil realização. São vistas como profissionais inferiores, das quais não se espera ou se supõe que sejam capazes de conceber ou produzir conhecimento a respeito de seu trabalho. No entanto, essas profissionais desenvolvem um trabalho mais complexo do que se pode supor, tendo um papel importante na educação que não se limita a preparar refeições/merendas e higienizar os espaços. Apresentam uma "sensibilidade para outras questões, outras dimensões da vida, possuem um conhecimento de ordem prática e que deveria ser considerado/reconhecido no processo de formação de comportamentos e atitudes relativos à ética e à convivência social" (Nunes, 2000, p. 147).

Propõe-se, portanto, uma reflexão sobre as formas de conceber o trabalho e o investimento criativo das auxiliares de serviços gerais e merendeiras em escolas públicas; e, com base nessa reflexão, tornar visível a complexidade dos modos operantes desse trabalho "invisível", considerado de execução e desprovido do uso do intelecto.

 

Trabalho e subjetividade: o uso da inteligência prática no processo de subversão do sofrimento em prazer

Na perspectiva da psicodinâmica, o trabalho é considerado um aspecto central para o equilíbrio psíquico do sujeito, visto que influencia na construção da identidade, na realização de si mesmo e na saúde mental (Dejours, 2008b). O trabalho jamais é neutro em relação à saúde, logo pode constituir-se como um fator de adoecimento ou de desenvolvimento e equilíbrio, articulando, assim, o processo de saúde e doença. Nesse processo, a saúde não é algo estável; pelo contrário, é algo que se tenta conquistar como um objetivo, um ideal que, no entanto, é impossível de ser alcançado plenamente. O que se pode alcançar é um estado de normalidade, que não significa ausência de doença, mas sim uma luta contínua para atingir a saúde. Por isso há constante mobilização por parte dos indivíduos diante, por exemplo, dos constrangimentos vivenciados no trabalho (Dejours, Dessors & Desrlaux, 1993; Dejours, 2008c).

As situações de trabalho são permeadas por constrangimentos,

[...] panes, incidentes, anomalias de funcionamento, incoerência organizacional, imprevistos provenientes tanto da matéria das ferramentas e das máquinas quanto dos outros trabalhadores, colegas, chefes, subordinados, equipe, hierarquia, clientes (Dejours, 2004, p. 28).

Esses constrangimentos colocam o trabalhador diante da realidade do trabalho e, consequentemente, diante do contraste entre o trabalho prescrito - que é planejado, constituído por normas técnicas e procedimentos - e o trabalho real - que consiste no inesperado, no que "ainda não está dado pela organização (prescrita) do trabalho" (Dejours, 2008b, p. 138).

É desse confronto que o trabalhador vivencia o sofrimento, que é inevitável, visto que as normas e prescrições não são suficientes para a realização do trabalho, demandando-lhe, então, um investimento físico e sociopsíquico para que consiga realizá-lo com qualidade e eficácia (Dejours, 2008b; Mendes, 2007). Portanto, trabalhar consiste em preencher o espaço entre o prescrito e o real, o que implica, necessariamente, a vivência de sofrimento. A defasagem entre esses dois polos faz com que o trabalhador experimente o fracasso, de onde podem surgir sentimentos de frustração, raiva, medo, impotência que se revelam diante da resistência do real aos procedimentos, aos atos técnicos, às previsões e ao saber fazer (Dejours, 2004, 2007).

O trabalhador desenvolve, portanto, seu trabalho na busca por solucionar essas discrepâncias. O desfecho dessas soluções depende da maneira como o sofrimento será subjetivado pelo trabalhador, que é influenciado pelos seus recursos pessoais decorrentes da sua história de vida e também pelas características da organização do trabalho. Assim, o sujeito pode vivenciar duas possibilidades: o desequilíbrio psíquico (estabelecido pelo sofrimento patológico) ou o prazer advindo do sofrimento criativo, que implica um processo em que o trabalhador deixa de ser apenas executor de prescrições e se torna sujeito da ação, criando estratégias que poderão proporcionar sentido e valor a esse sofrimento (Dejours & Abdoucheli, 2009).

O sofrimento, então, não é de todo negativo. Como afirma Dejours (2004), esse não pode ser considerado como o resultado final do encontro com o real, pois também é um ponto de partida conforme, ao vivenciá-lo, o trabalhador tem a possibilidade de agir, superar e até mesmo transformar as prescrições e as adversidades do trabalho por inovação e criação resultantes de uma mobilização subjetiva que se manifesta pela inteligência prática (Dejours, 2008a).

Também denominada de astuciosa, criativa, do corpo ou operária, a inteligência prática é mobilizada diante do real do trabalho, ou seja, ante o imprevisto, daquilo que não pode ser realizado apenas com os modos operatórios prescritos. Trata-se de uma inteligência subversora, pois é a partir dela que o trabalhador transgride as normas definidas pela organização do trabalho, construindo maneiras autênticas de lidar com os imprevistos a fim de atender aos seus desejos e necessidades, bem como aos objetivos de produção viabilizados por procedimentos mais eficazes do que os impostos (Dejours & Abdoucheli, 2009).

A inteligência prática é resultante da percepção e intuição dos trabalhadores decorrentes da articulação da sua experiência individual adquirida no fazer do seu trabalho com sua história particular. Por isso tem como base um saber enraizado no corpo do trabalhador; não é inato, mas construído no cotidiano de trabalho pela mobilização do corpo inteiro, o que inclui os seus sentidos e não apenas o cérebro (cognição e intelectualidade). É por dados sensoriais (e.g.: um barulho, um cheiro, um sinal visual, uma vibração), baseado nas experiências prévias no trabalho e articulado com o conhecimento das prescrições que o trabalhador perceberá os problemas que o impedem de atingir os objetivos de produção e então buscará formas para solucioná-los. Além disso, é uma inteligência que prioriza o uso de habilidades em detrimento do uso da força, conferindo ao trabalhador obter o máximo e o melhor possível de resultados com o mínimo de esforço e sofrimento. Está presente em todos os tipos de trabalhos manuais ou teóricos; é potencialmente vivenciada pelos homens desde que tenham uma boa saúde, visto que um corpo debilitado compromete o uso da criatividade. Ao mesmo tempo em que tem um caráter pulsional, sendo manifestada espontaneamente pelos trabalhadores, também é uma busca pela sua identidade e pelo sentido do trabalho, não sendo, portanto, apenas resultado de uma pulsão. Logo, para que seja efetiva, é necessária a vontade do trabalhador de contribuir com a organização do trabalho, e isso ocorre quando a organização possibilita o uso da inteligência prática, o que não significa a eliminação das prescrições, mas sim a sua flexibilização (Dejours, 2008a).

Ainda, é necessário que essa inteligência se torne visível, pois se encontra num nível individual, sendo importante que seja compartilhada entre os trabalhadores e também validada por estes; assim, passa a ser uma sabedoria prática. Isso implica a importância do coletivo de trabalho, pois, como afirma Dejours (2004), trabalhar não é apenas produzir, é também viver junto; o trabalho é social. Logo, mesmo que os investimentos individuais existam, estes não são suficientes para mudar a realidade do trabalho, sendo necessário o engajamento do coletivo manifestado na cooperação, que é a vontade das pessoas em trabalhar coletivamente, a fim de superarem as situações de sofrimento que surgem na organização do trabalho, caracterizando-se pela construção coordenada e conjunta para desenvolver uma ideia, serviço, produto comum com base na confiança e solidariedade (Dejours, 2008d; Mendes, 2007). Assim, para que a inteligência prática seja socializada, é necessário um espaço público de fala na organização, onde os trabalhadores possam se expressar, compartilhando estratégias de mediação ante as adversidades dos diferentes contextos de produção. Ainda, pressupõe-se um processo de reconhecimento, que, segundo Dejours (2008d), é um modo específico de retribuição simbólica dada ao sujeito pela hierarquia, pares e clientes, como compensação por sua contribuição à organização do trabalho, pelo engajamento da sua subjetividade e da sua inteligência.

Em síntese, é o próprio sofrimento que guia essa inteligência ao permitir que o trabalhador possa intuir e criar soluções para transformar ou, pelo menos, dar sentido ao sofrimento que, quando transformado em criatividade, traz uma contribuição benéfica à identidade, uma vez que, ao vencê-lo, o trabalhador transforma-se a si mesmo e descobre-se mais hábil e competente, aumentando a resistência ao risco de desestabilização psíquica e somática (Dejours & Abdoucheli, 2009; Dejours, 2008d).

 

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, documental e bibliográfica desenvolvida com base em materiais originais produzidos no Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho (Lapsic) da Universidade Federal do Amazonas sobre trabalhadores de escolas públicas da cidade de Manaus-AM. O material de pesquisa é constituído por publicações, documentos e transcrições de entrevistas e grupos; referentes a uma pesquisa empírica e dois projetos de pesquisa e intervenção desenvolvidos no Lapsic, entre 2009 e 2011.

O tratamento do material foi realizado a partir da seleção dos documentos e análise de núcleo de sentido (ANS), técnica adaptada da análise de conteúdo categorial (ACC) desenvolvida por Bardin (1999). A ANS é uma técnica de análise de textos produzidos pela comunicação oral e, ou, escrita, que tem como finalidade reunir o conteúdo latente e manifesto do texto a partir do desmembramento em núcleos de sentido (Mendes, 2007). Para análise dos documentos, utilizaram-se os pressupostos teóricos da psicodinâmica do trabalho na construção das categorias de análise dos materiais com base no eixo "inteligência prática".

Neste artigo, discutem-se os resultados referentes ao trabalho realizado por auxiliares de serviços gerais e merendeiras, tendo como foco as formas de manifestação da inteligência prática utilizadas por essas profissionais diante das adversidades vivenciadas no trabalho, bem como o papel dessa inteligência no processo de transformação do sofrimento em vivências de prazer e no fortalecimento da saúde.

 

Resultados e discussão

A busca por compreender a manifestação da inteligência prática das profissionais de limpeza e de alimentação nas escolas públicas conduz a caracterizar, primeiramente, as cenas de seus trabalhos.

 

 

 

 

As cenas do Quadro 1 demonstram as percepções, angústias e dificuldades em relação ao trabalho de auxiliares de serviços gerais e merendeiras. Essas falas revelam um panorama do trabalho dessas profissionais, uma realidade semelhante à nacional, marcada pela precarização das condições e organização do trabalho, que vêm acarretando prejuízos à saúde física e psíquica, como indicam pesquisas já realizadas com esses gêneros profissionais (Nunes, 2000; Ribeiro & Neves, 2009; Silva; 2003; Silva et al., 2009).

Mas, apesar do cenário negativo observado, percebe-se que essas trabalhadoras continuam realizando seus trabalhos, prezando pela qualidade, segurança e eficácia: "A gente acaba fazendo um jeito que dá, mas de uma forma que não venha a prejudicar muito a gente e nem também o trabalho que é realizado" (merendeira).

Isso nos faz refletir sobre como essas trabalhadoras enfrentam essas adversidades e, sobretudo, quais os mecanismos e adaptações que utilizam para permanecer nas situações de trabalho. De acordo com Dejours & Abdoucheli (2009), na tentativa de ajustar o trabalho prescrito ao trabalho real, no sentido de dar conta das adversidades, os trabalhadores mobilizam-se subjetivamente, de maneira engenhosa, criativa, inovadora. Utilizam-se, portanto, da inteligência prática.

Para melhor compreender a utilização da inteligência prática por essas profissionais, faz-se necessário contextualizar os seus trabalhos, apresentando primeiramente a organização do trabalho e o processo de desvalorização dessas categorias. Em seguida, discute-se sobre como utilizam a inteligência prática diante dessas situações de trabalho.

 

A organização do trabalho de auxiliares de serviços gerais e merendeiras

As auxiliares de serviços gerais precisam varrer, passar pano, limpar a área externa das escolas, jogar o lixo e lavar banheiros diariamente, entre o término de um turno de aula e o início de outro. Além da limpeza geral da escola, desempenham atividades que são de atribuição de outras categorias: auxiliar na merenda, monitorar os alunos, ajudar na secretaria, na portaria, etc. Assim como em pesquisa realizada por Ribeiro e Neves (2009), observa-se que as trabalhadoras indicam que a própria nomenclatura de sua função sugere a abrangência das tarefas que realizam, conforme evidenciado na seguinte fala: "Já tá na sua ficha lá, auxiliar de serviços gerais, então, quer dizer que [...] qualquer coisa você tem que auxiliar, qualquer coisa que tiver na escola, né?" (auxiliar de serviços gerais).

Nas atividades atribuídas às auxiliares de serviços gerais, identifica-se uma diversidade de objetivos com prescrições pouco definidas ou não definidas, sendo delegada a elas a responsabilidade pela divisão das tarefas, por como e o que fazer. Esse déficit de prescrição conduz as trabalhadoras a dificuldades relacionadas à insegurança na divisão de tarefas, por não saberem o que, de fato, compete a sua função; e à responsabilização delas por atividades não realizadas a contento. A esse respeito, Telles e Alvarez (2004) sinalizam para a concepção de prescrição infinita, situação em que se têm objetivos amplos relacionados a uma subprescrição total dos meios para alcançá-los. As trabalhadoras sentemse cobradas por realizar algo sem que sejam concedidos os modos de fazer e as condições para isso.

Essa perspectiva comunga com a ideia da psicodinâmica do trabalho, de que um dos requisitos à mobilização da inteligência prática é a existência de uma prescrição flexível que possibilite autonomia aos trabalhadores. A prescrição é útil, visto que fornece bases para conhecer o real, e só é prejudicial quando rígida e limita a ação e o uso da inteligência prática.

A pouca prescrição pode estar associada à questão de gênero conforme o efetivo de trabalho de auxiliares de serviços gerais e merendeiras é predominantemente feminino, ou seja, essas atividades, ao serem atribuídas a qualidades inatas da mulher, não demandam detalhamento, pois se supõe que devam saber limpar e cozinhar. A esse respeito, Brito (1999) refere-se a uma "prescrição naturalizada do trabalho", uma tarefa pautada na ideologia das qualidades e características naturais femininas. (p. 110).

O trabalho das merendeiras inclui várias atividades realizadas ao mesmo tempo, fazendo com que tenham de se deslocar de uma operação para outra ininterruptamente. Observa-se que esse trabalho não se trata apenas do preparo de lanches rápidos, mas sim de refeições completas e mais elaboradas (arroz, feijão, frango, carne, peixe, etc.), acarretando um número maior de procedimentos para o seu preparo (clorar, descascar e cortar verduras e legumes; descongelar, cortar e limpar carnes e polpas de frutas; recebimento, armazenamento e controle da carga de alimentos para a merenda, etc.).

Além do preparo das refeições, as merendeiras são responsabilizadas pela higienização da cozinha e do refeitório bem como pelo recebimento dos gêneros alimentícios perecíveis (pelo menos uma vez por semana), que demanda a verificação, separação e estocagem destes. Essa tarefa parece intensificar a dinâmica de trabalho das merendeiras, pois uma das trabalhadoras deve interromper suas atividades para fazer o recebimento e controle dos alimentos que são fornecidos. Assim, há redução do efetivo de merendeiras durante aquele momento, o que repercute em sobrecarga para as trabalhadoras.

Auxiliares de serviços gerais e merendeiras também realizam outro trabalho essencial para o funcionamento da escola: além do ato físico de higienizar o ambiente e de preparar alimentos, essas trabalhadoras também educam. O trabalho das auxiliares de serviços gerais envolve, sobretudo, o ensinamento sobre valores dado ao patrimônio, à higiene e à saúde, e, no caso das merendeiras, à educação alimentar e nutricional. São profissionais que, embora não estejam nas salas de aula, participam do processo educativo e de socialização dos alunos, pois estabelecem contato direto e diário com estes, instruindo-os e observando-lhes a formação individual.

Apesar de desenvolverem atividades necessárias, essas trabalhadoras sentemse desvalorizadas profissionalmente tanto pela comunidade escolar quanto pela sociedade, que têm representações distorcidas a respeito dessas profissões: "As pessoas pensam assim: ah, ela trabalha no serviços gerais, tadinha! Ela é analfabeta! [...] Mas num é verdade, né? [...]" (auxiliar de serviços gerais); "O pessoal ainda tão naquele ritmo que merendeira é analfabeta [...]" (merendeira).

Essa desvalorização parece ser decorrente do fato de realizarem atividades relacionadas ao ambiente doméstico e, portanto, marcadas pela invisibilidade, uma vez que são trabalhos de reprodução que se consomem enquanto são feitos. Além disso, são considerados naturais ao gênero feminino e de fácil realização. Percebe-se que são trabalhos que só são notados quando não são feitos.

Como referido anteriormente, a contribuição à organização do trabalho demanda uma retribuição que, segundo Dejours (2008d), seria um reconhecimento marcado pelo julgamento do trabalho conferido ao sujeito pela hierarquia, pares e clientes. Quando o reconhecimento não acontece, pode implicar em intensificação de sofrimento e desmobilização.

Identifica-se, portanto, que as atividades de merendeiras e auxiliares de serviços gerais, aparentemente fáceis, revelam uma complexidade mascarada por ideologia de gênero. A complexidade (não reconhecida) e subprescrição das atividades dessas mulheres demandam experiência e mobilização da inteligência prática para gerir as dificuldades e das adversidades. As trabalhadoras desenvolvem modos de realizar o seu trabalho bem como torná-lo visível. Nesse sentido, foram observadas estratégias variadas de enfrentamento, destacando-se aquelas em que as auxiliares de serviços gerais e merendeiras utilizam de sua criatividade e engenhosidade para subverter o sofrimento em prazer, como poderá ser observado na discussão a seguir.

 

O uso da inteligência prática na realidade de trabalho

Observa-se que as auxiliares de serviços gerais e merendeiras não estão passivas ao sofrimento. Independente do grau de escolaridade, essas trabalhadoras apresentam uma inteligência criativa, fundamentalmente subjetiva e corporal, que, de acordo com Dejours (2008a), torna-as capazes de se reapropriar das situações do trabalho e reinventá-las.

Em acordo com outras pesquisas realizadas com merendeiras e auxiliares de serviços gerais (Nunes, 2000; Ribeiro & Neves, 2009; Silva, 2003), observouse que as atividades dessas trabalhadoras demandam "o desenvolvimento de habilidades e características como atenção, agilidade, sensibilidade, organização e coordenação" (Ribeiro, 2004, p. 113) para que realizem o seu trabalho. Nada disso está prescrito. É na experiência que potencializam suas capacidades de uso da inteligência prática e, consequentemente, a capacidade de interpretar, reinterpretar e gerir as adversidades inerentes ao cotidiano de trabalho conforme suas necessidades e desejos.

Por exemplo, as atividades realizadas por merendeiras envolvem um conjunto de saberes necessários para o seu desempenho, como noções de quantidade e de raciocínio matemático tanto para a preparação de quantidade adequada quanto para a distribuição equitativa da merenda para os alunos:

Nos dias de chuva, geralmente, já sabemos que temos que diminuir a quantidade de merenda, pois muitos alunos faltam nesses dias [...]. Nós sempre observamos isso. [...] São três pavilhões, mas o primeiro geralmente são os menorzinhos, então são os que merendam menos. Aí é dividido em quantidades, geralmente, em quantidades iguais [...] (merendeira).

Logo, sua atividade demanda muita experiência, atenção e sensibilidade para saber os fatores que podem influenciar no seu trabalho. Sabem que determinados fatores (por exemplo: dias de chuva e período de Copa do Mundo) influenciam para que o quantitativo de alunos diminua, então regulam para que não haja desperdício de comida.

Estão, ainda, sempre atentas ao tipo de refeição que será preparada no dia, pois, como a quantidade de trabalho diária é grande e, dependendo dos alimentos a serem utilizados, há a necessidade de adiantar o preparo, deixam encaminhado o feijão para o próximo dia, deixam as verduras e legumes cortados e os congelam para utilizarem quando necessário. Antecipam o trabalho para que possam dar conta do prescrito, ou seja, servir a merenda no tempo fixado, a fim de não influenciarem na dinâmica da escola. Observa-se, nessas situações, o uso da inteligência prática com o objetivo de manter as normas de segurança, qualidade e quantidade.

Outra estratégia usada pelas merendeiras é a subversão do cardápio, que é uma das prescrições do trabalho dessa categoria. O cardápio determina as refeições que serão servidas aos alunos diariamente, bem como a quantidade de alimentos que devem ser utilizados. A elaboração desse cardápio, no entanto, não conta com a colaboração das merendeiras. De acordo com a resolução FNDE/CD/ nº 32, de 10 de agosto de 2006, inciso IV, art. 10, "O cardápio da alimentação escolar, sob a responsabilidade dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios, será elaborado por nutricionista habilitado [...]". A rigidez do cardápio, por sua vez, não prevê as variabilidades desse ofício:

Eu digo, assim, que elas são desatualizadas (refere-se à supervisora da merenda) é... Da realidade que nós vivemos na prática. Chega aqui, me dá um cardápio; ela quer que nós sigamos aquilo, os três horários, que muitas vezes não tem condições, que nem amanhã. [...]. Vamos dizer, eu programo uma sopa, como a gente tava programando para amanhã, aí, de repente, chega uma banana maduríssima. Aí a minha programação vai pra escanteio, porque a minha prioridade tem que ser aquela banana. Tu tá entendendo? Então, não tem como a supervisora vir me estipular um cardápio pra uma, duas semanas e eu cumprir ali na risca, não tem! É impossível [...] (merendeira).

Ao analisar as condições dos alimentos perecíveis e as dificuldades de armazenamento, as merendeiras optam por subverter o cardápio, evitando que faltem alimentos. Elas regulam de acordo com as necessidades; por exemplo, substituem a refeição prescrita e utilizam os alimentos que poderão estragar.

Identifica-se, ainda, a utilização da inteligência prática pelas merendeiras para preparar comidas saborosas e nutritivas para os alunos. Diante da preocupação de que a comida não "saia de qualquer jeito" e para assegurar o consumo pelos alunos, essas trabalhadoras trazem de casa ou compram os temperos, quando faltam, para garantir o sabor dos alimentos: "Quando falta tipo... temperos pra colocar na alimentação, nós compramos os temperos pra botar, para sair uma comida mais gostosa" (merendeira).

É dessa maneira que as merendeiras tentam realizar o seu trabalho da melhor forma possível, tentando atingir o seu principal objetivo, que é preparar refeições apetitosas. Isso se remete à preocupação em garantir que os alunos fiquem bem alimentados, pois sabem que, para grande parte destes, a alimentação escolar é a principal fonte de alimentos saudáveis e nutritivos. Essa preocupação é evidenciada também em outras pesquisas com merendeiras (Nunes, 2000; Ribeiro & Neves, 2009; Silva, 2003; Silva et al., 2009).

Outra situação em que colocam em prática sua criatividade se refere às refeições que levam alimentos regionais, como macaxeira e jerimum. O contato direto e diário com os alunos, principalmente as crianças, permitiu que identificassem o hábito alimentar destes. Assim, perceberam que as crianças rejeitavam os alimentos citados. Então, engenhosamente, passaram a processar esses alimentos no liquidificador, para que não fossem percebidos na refeição:

Identifica-se, ainda, a utilização da inteligência prática pelas merendeiras para preparar comidas saborosas e nutritivas para os alunos. Diante da preocupação de que a comida não "saia de qualquer jeito" e para assegurar o consumo pelos alunos, essas trabalhadoras trazem de casa ou compram os temperos, quando faltam, para garantir o sabor dos alimentos: "Quando falta tipo... temperos pra colocar na alimentação, nós compramos os temperos pra botar, para sair uma comida mais gostosa" (merendeira).

É dessa maneira que as merendeiras tentam realizar o seu trabalho da melhor forma possível, tentando atingir o seu principal objetivo, que é preparar refeições apetitosas. Isso se remete à preocupação em garantir que os alunos fiquem bem alimentados, pois sabem que, para grande parte destes, a alimentação escolar é a principal fonte de alimentos saudáveis e nutritivos. Essa preocupação é evidenciada também em outras pesquisas com merendeiras (Nunes, 2000; Ribeiro & Neves, 2009; Silva, 2003; Silva et al., 2009).

Outra situação em que colocam em prática sua criatividade se refere às refeições que levam alimentos regionais, como macaxeira e jerimum. O contato direto e diário com os alunos, principalmente as crianças, permitiu que identificassem o hábito alimentar destes. Assim, perceberam que as crianças rejeitavam os alimentos citados. Então, engenhosamente, passaram a processar esses alimentos no liquidificador, para que não fossem percebidos na refeição:

Por que criança geralmente vê... Come não pelo sabor, né, mas pela aparência, né. Se eles verem que tá bonito, aí eles vão e comem. [...] Eles não gostam muito de coisas regionais, tipo jerimum, macaxeira, essas coisas assim. Eles não gostam muito, então, a gente termina batendo no liquidificador pra colocar dentro da panela e eles comem sem perceber (merendeira).

Assim, mantêm, ao transgredir a prescrição e ao utilizar a criatividade, o valor nutritivo bem como uma apresentação visual agradável dos alimentos, assegurando que a merenda seja efetivamente consumida.

Em relação às auxiliares de serviços gerais, quando diante da precariedade e inadequação dos materiais e equipamentos de trabalho, mobilizam-se para adaptá-los de acordo com as suas necessidades. Elas relatam sentir constantes dores musculares, principalmente nas costas, pois as vassouras e pás de lixo têm cabos curtos que dificultam a atividade de varrer e juntar o lixo, implicando movimentos de inclinação constantes. Desse modo, previnem-se ao modificar o cabo desses equipamentos: "a vassoura que tem cabo pequeno, isso dá problema nas costas, né? [...] Eu pego um pedaço de cano e coloco na ponta" (auxiliar de serviços gerais).

É recorrente nas escolas a prática de encaixar tubos de PVC nesses equipamentos pelas trabalhadoras, para regular a altura destes conforme suas necessidades. Engenhosamente, elas percebem que podem criar manobras, adaptar, regular as adversidades, podendo assim realizar o trabalho e também evitar o adoecimento.

Devido à falta de utensílios adequados (conchas e talheres grandes) para servir a merenda, as merendeiras utilizam pratos e canecas para fazer a divisão da refeição a ser servida em cada prato, o que permite também, controlarem a quantidade de merenda para cada aluno, evitando que um fique com mais e outro com menos, além de tornar o processo mais rápido, evitando filas.

Em algumas escolas, em consequência da falta de materiais adequados e de tempo, no processo de secagem dos utensílios (pratos, colheres, canecas e tigelas) utilizados na cozinha, as merendeiras passaram a secá-los, "batendo-os" no balcão da cozinha, sendo a maneira mais higiênica, rápida e viável que encontraram para fazer a secagem: "A gente bate, [...] bato geralmente noutro prato. [...] Boto o prato no balcão e bato ele assim de quatro, cinco, pra escorrer bastante água, porque ele escorre. [...] a gente vai mais rápido. Não tem condições de botar pra enxugar" (merendeira).

Nas atividades realizadas pelas auxiliares de serviços gerais e merendeiras, identificou-se ainda a gestão coletiva do trabalho, que permite a passagem da inteligência prática do nível individual para o coletivo, convertendose em sabedoria prática pelo estabelecimento da confiança, cooperação e reconhecimento. Nas categorias, há a construção de uma colaboração conjunta e coordenada das suas atividades, seja intra ou intercategoria. Entre as auxiliares de serviços gerais, observa-se que o coletivo de trabalho, embora exista, em algumas situações, apresenta-se de maneira frágil. Em relação às merendeiras, há uma cooperação mais fortalecida. A cooperação intercategoria também existe principalmente por parte das auxiliares para com as merendeiras; observa-se que, na hora da merenda, o coletivo entra em ação:

Aí a merenda começa oito e meia [...]. Aí vou ajudar, [...] vou tá ajuntando porque elas (as merendeiras) num dão conta, é muita gente, mana! Eu e a outra menina, dando comida pra quem quer [...]. Às vezes, já saio é com prato: olha, a comida é isso [...]. Quem quer quer, quem num quer sai da fila [...] (auxiliar de serviços gerais).

Dessa maneira, identifica-se a cooperação tanto dentro das categorias específicas quanto de uma categoria para com a outra; nesse sentido, pode-se dizer que existe uma gestão coletiva do trabalho entre as trabalhadoras, na qual constroem coletivamente maneiras para o desenvolvimento das atividades.

É nesse processo de superação das adversidades do trabalho que o coletivo se manifesta, pois a contribuição do sujeito à organização real do trabalho, o engajamento de sua inteligência prática, poderá ser retribuída, apoiando-se na dinâmica da contribuição/retribuição. Logo, mesmo diante de condições e organização do trabalho inadequadas, o investimento da inteligência prática e, ou, cooperação é favorecido quando é reconhecido. Caso contrário, a tendência é a desmobilização desses investimentos, sendo as consequências graves para a saúde mental e física dos trabalhadores (Dejours, 2008d).

Assim, o sofrimento manifestado por essas trabalhadoras em algumas situações, como apresentado neste artigo, vem sendo ressignificado por uma via criativa manifestada por estratégias coletivas e individuais de enfrentamento que essas trabalhadoras desenvolveram com base no saber prático de suas atividades. No entanto, é importante notar que essas trabalhadoras também vêm indicando e vivenciando sinais e sintomas de adoecimento decorrentes das suas atividades laborais. Nesse sentido, pode-se intensificar um sofrimento patogênico caso as trabalhadoras não consigam mais sustentar suas estratégias diante de precarizadas condições e organização de trabalho às quais estão submetidas.

Dessa forma, é imprescindível a abertura de um espaço de fala e escuta para essas trabalhadoras, possibilitando a troca de conhecimento e discussões de soluções para lidar com as vivências de sofrimento/adoecimento no trabalho, tornando, assim, seus investimentos, suas contribuições e suas experiências visíveis. Isso porque é essencial que a organização do trabalho ofereça oportunidades para a expressão pela fala e pela ação dos trabalhadores, dando assim condições para a mobilização de sua inteligência prática e da cooperação (Dejours, 2008a, 2008c; Mendes, 2007).

Destaca-se que essas são medidas que poderiam contribuir para o melhor desenvolvimento de suas atividades, despertando o sentimento de reconhecimento, de realização de si e da construção da identidade, da vivência de um prazer que "está no encontro do trabalho, ao se descobrir que é precisamente quando a utilização da inteligência prática não é contrariada ou combatida, mais ainda, quando se reconhece a contribuição fundamental que ela representa a organização do trabalho" (Dejours, 2008a, p. 326).

 

Considerações finais

As atividades realizadas por auxiliares de serviços gerais e merendeiras sinalizam para condições e organização do trabalho precárias, caracterizadas pela pouca prescrição das tarefas, pressão de tempo, falta e inadequação dos equipamentos, materiais e insumos. Essas condições e organização contribuem para vivências de sofrimento. No entanto, mesmo diante de situações adversas e da invisibilidade desse trabalho reprodutivo e concebido como feminino, não se rendem ao sofrimento; ao contrário, mobilizam-se e investem inteligência prática com o intuito de manter a qualidade do trabalho e o equilíbrio psíquico e somático.

As trabalhadoras lançam mão da sua inteligência prática, adaptam os equipamentos e materiais, subvertem o cardápio prescrito pela Secretaria de Educação e antecipam a realização das atividades. Enfim, investem o seu potencial criativo com base no conhecimento adquirido ao longo das suas trajetórias de vida e trabalho, subvertendo as normas impostas e dando sentido e visibilidade ao trabalho que realizam.

No entanto, a desvalorização a que essas trabalhadoras são submetidas vem enfraquecendo a mobilização da sua inteligência prática. Daí a importância do reconhecimento, da valorização e de espaços de discussão que possibilitem a troca de experiências e a busca de soluções para o enfrentamento das adversidades nas situações de trabalho.

 

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Texto recebido em outubro de 2012 e aprovado para publicação em fevereiro de 2014.

 

 

*Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Universidade Federal do Amazonas, Conselho de Ensino e Pesquisa. Avenida General Rodrigo Otávio Jordão Ramos, 3000 - Coroado I, Manaus-AM, Brasil. CEP: 69077-000. E-mail:jakelinni@gmail.com.
**Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas. E-mail: nedirsantana@ibest.com.br.
***Mestra titulada pela Universidade Federal da Paraíba, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas. Endereço: Universidade Federal do Amazonas, Faculdade de Psicologia. Avenida General Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000 - Campus Universitário - Coroado I, Manaus-AM, Brasil. CEP: 69077-000. Telefone: (92) 3305-4550. E-mail: anaclealv@bol.com.br.
1 As referências às categorias de auxiliares de serviços gerais e merendeiras foram feitas no gênero feminino pelo fato de serem cargos ocupados predominantemente por mulheres nas escolas.


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