SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Del Currículo Mínimo a las Directrices Curriculares: las prácticas en la formación del psicólogoEl juicio de los niños sobre la posibilidad de amar a un amigo, un enemigo y un desconocido índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.20 no.3 Belo Horizonte set. 2014

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2014V20N3P513 


ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2014V20N3P513

 

Do vídeo para o texto escrito: implicações para a análise da interação

 

From video to writing text: implications for the analysis of interaction

 

Del vídeo para el texto escrito: implicaciones para el análisis de la interacción

 

 

Nadja Maria Vieira da Silva*; Carine Valéria Mendes dos Santos**; Carine de Almeida Arruda Rhodes***

 

 


Resumo

Discutem-se, neste estudo, processos relacionados com a transformação de imagens e sons em texto escrito, procedimento frequente em pesquisas. Ressalta-se, nesta discussão, a coexistência de perspectivas contraditórias nessa transformação. Com base na análise de uma segmentação de imagens da interação de crianças em sala de aula da educação infantil, ilustra-se, numa perspectiva de não neutralidade, como pressupostos do pesquisador orientam a transformação das imagens e sons em texto escrito. Os pressupostos atuantes neste estudo foram guiados com base nas concepções do pesquisador acerca da atividade argumentativa oral de crianças. A seletividade e a diretividade foram definições propostas pelos pesquisadores para os processos que denotaram a implicação de sua forma de conceber a atividade argumentativa, na apresentação das informações resultantes da investigação.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Videografia. Análise da interação. Transcrição de imagem e som.


Abstract

In this study we discuss processes related to changing images and sounds into written language. That changing is a frequent procedure in research. We highlight the coexistence of contradictory perspectives in this transformation. From the analysis of an image segmentation of the children’s interaction in the classroom from early childhood education which is illustrated in a perspective of non-neutrality, how the researcher’s assumptions directs that changing of images and sounds into written text. The assumptions approached in this study were the researcher’s conceptions about the argumentative oral activity of children. The selectivity and directivity were proposed definitions for the researchers in that processes which denote the implication of the previous researcher’s assumptions about argumentative activity, in the presentation of the consequent information of the inquiry.

Keywords: Qualitative research. Videography. Analysis of the interaction. Transcript of image and sound.


Resumen

Se discuten en este estudio los procesos relacionados con la transformación de imágenes y sonidos en textos escritos, procedimiento frecuente en investigaciones. Se resalta en esta discusión la coexistencia de perspectivas contradictorias en este proceso de transformación. A partir del análisis de un conjunto de imágenes de niños interactuando en una clase del curso de educación infantil se refleja, desde un punto de vista no neutral, cómo las premisas del investigador inciden en la transformación de las imágenes y sonidos en texto escrito. Los supuestos que inciden en este estudio fueron deducidos a partir de la concepción del investigador acerca de la actividad argumentativa oral de los niños. La selectividad y la directividad fueron definiciones propuestas para los procesos que demuestran la implicación de la manera de concebir la actividad argumentativa por parte del investigador, para la presentación de conclusiones de la investigación.

Palabras clave:Investigación cualitativa. Videografía. Análisis de la interacción. Transcripción de imagen y sonido.


 

 

Introdução

Tem-se observado cada vez mais o enriquecimento das metodologias de coleta de dados como alternativa ao tradicionalismo encontrado no uso do formulário e da entrevista como mais conhecido instrumento de pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas. Observa-se que atualizações têm emergido diante dessas posturas mais tradicionais de metodologias. Recursos tecnológicos que se desenvolvem rapidamente, quando associados às metodologias criativas, têm proporcionado a captura de aspectos do fenômeno, como diversos tipos de episódios de interação1 (Amador, 2011; Pinheiro, Kakehashi & Angelo, 2005) que antes não eram considerados apenas pelo uso de formulários.

Na pesquisa de processos psicológicos, é possível encontrar diversas formas de análise e exploração qualitativa de episódios de interação. De acordo com Schnettler e Raab (2008), já na metade do século XIX, pesquisadores na área de Psicologia, Etnografia, Sociologia, etc., utilizavam outras ferramentas para análise além da narrativa escrita. Esses pesquisadores também se utilizavam de registros em forma de desenhos e rabiscos no momento da observação para tentar capturar o evento. Eles buscavam explorar novas possibilidades de análise visando a enriquecer a compreensão sobre os fenômenos na interação.

A chegada de novos recursos como câmeras fotográficas, gravadores e filmadoras permitiram aos pesquisadores melhores possibilidades de análise e compreensão da dinâmica interacional. No entanto esses pesquisadores precisaram aprender a lidar com essas novas ferramentas e refletir acerca da elaboração de procedimentos coerentes com o padrão científico para a coleta e análise dos dados. Isto é, embora a pesquisa possa se beneficiar com essas tecnologias, ainda existe a preocupação sobre como utilizar essas ferramentas ressalvando o método científico. Entretanto ainda não existe um consenso acerca das metodologias adequadas para o uso dessas ferramentas.

Alguns estudiosos, como Pedrosa e Carvalho (2005) e Molon (2008), acreditam que toda pesquisa, por mais estruturada e sistemática que seja, estará sempre implicada na criação de novos procedimentos de análise. Nessa perspectiva, em qualquer pesquisa é improvável seguir à risca um método de análise e procedimentos preestabelecidos, uma vez que um evento dinâmico necessita de uma análise situada em um contexto específico.

A proposta deste artigo consiste, portanto, em refletir sobre as implicações da videografia para a análise das interações humanas. Para isso será apresentado um relato sobre uma experiência em uma pesquisa que se utilizou do recurso da videografia e da transcrição para a análise de interações entre crianças.

 

O potencial da videografia para a pesquisa em Psicologia

A videografia é uma ferramenta muito importante para captura da dinâmica na análise da interação humana. De acordo com Meira (1994), a análise dos fluxos de interação por meio do recurso de uma filmadora permite a captura de nuances das ações das pessoas, além disso, possibilita o registro e o resgate das situações, de modo que se torna possível elaborar um relato minucioso dos acontecimentos. O vídeo dá ênfase ao funcionamento do indivíduo e possibilita o enfoque tanto nas condições sociais da situação quanto nas relações subjetivas. Nesse sentido, entende-se que a videografia se apresenta como uma grande aliada da pesquisa das interações humanas, uma vez que possibilita a observação sistemática de vários elementos coatuantes, captura-se, assim, a interdependência entre diferentes aspectos num funcionamento mútuo (Knoblauch & Schnettler, 2012).

Diversas pesquisas que se utilizaram da videografia na análise da interação entre crianças confirmam esse potencial. Pedrosa e Carvalho (2005) observam que o vídeo propicia uma análise de modo interativo com o pesquisador; Peters (2006) observa que a filmagem vai além do episódio escrito, uma vez que registra inúmeros aspectos para análise. Em sua opinião, a representação escrita de um episódio interacional consiste em uma exposição de dados empobrecidos, uma vez que não existe possibilidade de demonstrar aspectos como voz, movimentos, contexto e dinâmica interacional. Essa é também a opinião de Pinheiro, Kakehashi e Angelo (2005), que observam que, na representação do fenômeno vista pelo vídeo, revela-se a expressão de pensamentos na forma de interações que não se restringem aos elementos verbais da enunciação.

Nos vídeos, os elementos não verbais desempenham então um papel imprescindível na apreensão do que está sendo dito. A entonação da voz, a velocidade da fala, os gestos, as expressões faciais, entre outros elementos, compõem o ato de expressar um pensamento e se relacionam de várias maneiras com o enunciado verbal, enriquecendo o nível de detalhamento na análise do fenômeno. De acordo com Ladeira (2007, p. 186), "ouvir repetidas vezes os dados gravados constitui uma técnica da análise da conversa que permite ao analista aumentar seu conhecimento sobre os dados". Desse modo, ouvir e assistir repetidas vezes a um mesmo evento é uma ação facilitada pelo recurso da videografia. O pesquisador com essa ferramenta tem a chance de familiarizar-se com o fenômeno estudado.

Por outro lado, o pesquisador, ao analisar o mesmo evento várias vezes, acaba por construir impressões e interpretações a partir do ângulo que ele baseia sua perspectiva. Diversos autores se envolvem em discussões acerca da influência do pesquisador nesse momento de análise pelo vídeo. Compreende-se que isso não sinaliza um aspecto negativo no uso de vídeos na pesquisa. Sobre essa questão, Wallon (1986) reflete:

Não há observação sem escolha [...]. A escolha é determinada pelas relações que podem existir entre o objeto ou o fato e nossas expectativas, em outros termos, nosso desejo, nossa hipótese ou mesmo nossos simples hábitos mentais. As razões da escolha podem ser conscientes ou intencionais, mas podem também nos escapar, porque se confundem, antes de tudo, com nosso poder de formulação mental (Wallon, 1986, p. 74, grifo nosso).

A respeito da construção do conhecimento a partir da perspectiva do pesquisador, Denzin (2009) defende o ponto de vista acerca do qual jamais se pode alcançar a verdade total das coisas, apenas a verdade parcial, pois qualquer pesquisador está "cego" em relação ao próprio objeto de estudo, enxergando apenas dentro dos limites de sua perspectiva. Sobre o maior envolvimento do pesquisador com os dados, propiciado pelo recurso da videografia também foi declarado por Pinheiro, Kakehashi e Angelo (2005) que:

[...] a técnica proporciona, resulta em um grande volume de informações que podem ser pertinentes ou não ao estudo. Nesse caso, o pesquisador poderá realizar a edição das imagens obtidas, selecionando-as, seguindo critérios previamente estabelecidos com base na natureza do fenômeno e referencial teórico adotado (p. 719-720).

Há, no entanto, autores que contradizem essa perspectiva e acreditam que o uso de filmagens em pesquisas diminui consideravelmente a seleção empreendida pelo pesquisador. O fato de poder rever o vídeo várias vezes daria assim a devida neutralidade ao olhar do observador que, à primeira vista, pode ter deixado de captar vários detalhes ou ter captado detalhes de forma deturpada. Belei, Gimeniz-Paschoal, Nascimento e Matsumoto (2008) são defensores desse pensamento. De acordo com eles, a credibilidade de um estudo se sustenta no pressuposto de que uma neutralidade em relação aos dados deve e pode existir. Nesse pensamento, a videografia contribui para validar o fenômeno de forma menos questionável pela possibilidade do congelamento dos fenômenos pela imagem.

A busca pela credibilidade e uma pretensa neutralidade no congelamento da imagem fazem parte da conduta adotada por pesquisadores que se utilizam de metodologias quantitativas. Os resultados quantitativos teriam que ser passíveis de reprodução e estariam fundamentados no princípio da fidedignidade. Em pesquisas qualitativas, são usados outros critérios para validar estudos e rever pressupostos investigados, sem deixar de preconizar também o rigor científico. No entanto, de acordo com Denzin (2009), tanto pesquisadores que usam técnicas qualitativas quanto aqueles que usam técnicas quantitativas produzem efeitos no processo de pesquisa que se refletem na definição do que é evidência, na coleta ou construção dos dados, na classificação e análise do material, na interpretação dos achados e na conclusão defendida. Logo, assume-se que pesquisadores são sempre mobilizados por critérios teóricos e metodológicos ao construir conhecimentos sobre as evidências encontradas. Desse modo, ainda que a videografia represente um avanço para a evolução das técnicas metodológicas em pesquisa, a utilização desse recurso estará sempre condicionada pela perspectiva científica adotada pelo pesquisador.

 

A transformação da imagem em texto

Aliada ao uso da videografia na pesquisa está a transcrição. Esta é um procedimento opcional para os pesquisadores no momento da apresentação e análise dos dados suscitados a partir da videografia. Quando o pesquisador escolhe representar o material registrado em vídeo em dados textuais, como pela transcrição, ele precisa lidar com vários aspectos que estão presentes na transformação da imagem em texto.

Inicialmente o pesquisador precisará definir o que transcreverá, se será todo o vídeo ou trechos específicos. A decisão de recortar o episódio em determinados momentos depende do que se quer evidenciar e do que é relevante para a discussão na pesquisa. Alerta-se, no entanto, que, antes mesmo de se pensar sobre qual decisão tomar e sobre a forma como estruturar essa análise dos dados, é preciso certificar-se sobre como o dado está sendo concebido. De acordo com Pedrosa e Carvalho (2005, p.432), "O dado é construído; não existe independentemente do observador; é este que o elege ao status de dado, como fruto de sua reflexão, de sua sensibilidade e, em última análise, de sua interação com os fatos observados".

Uma antecipação acerca de qual concepção de dado está sendo ativa na pesquisa é relevante, pois a transcrição, como uma representação da interação captada pelos vídeos, poderá ser uma construção orientada sob o pressuposto de uma interpretação do fenômeno que apresenta uma dentre muitas possibilidades ao fenômeno. Isto é, se um dado não se constrói, a versão da transcrição como uma interpretação é uma improbabilidade. A favor dessa propriedade interpretativa do dado e da transcrição, Denzin (1995) sugeriu que o pesquisador deve abandonar a suposição de que uma transcrição pode ser uma cópia fiel do mundo, pois a transferência de fitas e vídeos para transcrições são "textos culturais que representam uma experiência" (p. 9). Ele observa que, ao se transcrever uma fita de áudio ou de vídeo, o pesquisador cria mundos a um passo das interações reais que estão em estudo. Esses mundos não são simplesmente reapresentações, mas são construções textuais originais relacionadas com um acontecimento irrepetível de um momento histórico que o produziu (Denzin, 1995).

Nesse pensamento, cada nova releitura desses acontecimentos é diferente do original, uma vez que significados e contextos mudam. Cada nova releitura é, de alguma forma, menos do que o original, porque aspectos extraverbais e "teatrais" da conversa são perdidos, e as vozes originais, intenções e interpretações não podem ser recuperados. No entanto, cada nova releitura é também mais, porque o pesquisador constrói, organiza e interpreta o que viu e o acontecimento que escutou (Denzin, 1995). Ladeira (2007) menciona algumas características inerentes ao ato de transcrever:

a) a seleção que varia de acordo com os objetivos da pesquisa;
b) a parcialidade dessa representação, que nunca é a descrição total do fenômeno;
c) a possibilidade de atualização em versões diferentes dessas transcrições que podem sempre ser revistas;
d) e as implicações teóricas, políticas e éticas contidas no ato de transcrever

Para ilustrar essas possibilidades, serão exploradas neste artigo situações de uma pesquisa que se utilizou da transcrição de vídeos em sua metodologia, com o interesse de evidenciar e discutir o fenômeno da argumentação oral infantil. Com esse interesse, o modelo de transcrição utilizado foi configurado de forma a permitir a observação do fenômeno de acordo com a perspectiva teórica dos pesquisadores. No processo de criação do modelo de transcrição, o convencional e o novo, no que diz respeito aos símbolos utilizados na transcrição, foram discutidos e adaptados ao contexto de pesquisa, tanto em relação aos objetivos como às necessidades de representação demandadas na observação do fenômeno.

 

Metodologia

Neste artigo, discute-se uma sequência de imagens (figura 1), numa perspectiva microgenética (Garcia-Mila, Gilabert & Rojo, 2011; Góes, 2000; Meira, 1994; Vigotski, 2004), na qual se focalizam processos emergentes na transformação de informações audiovisuais para um texto escrito. Dessa forma, fomentou-se tanto uma discussão acerca das implicações dessa transformação para a pesquisa quanto uma avaliação do potencial da videografia para o estudo de processos na interação humana.

A sequências de imagens analisadas assim como as transcrições relacionadas fazem parte do material de uma pesquisa que teve como objetivo a análise do desenvolvimento da argumentação oral em crianças em sala de aula na educação infantil. Nessa pesquisa, a videografia, realizada sistematicamente uma vez por semana em cada turma, entre agosto de 2008 e agosto de 2010, associada à transcrição, foi a forma de construção de dados. O conteúdo-alvo da videografia foram as atividades desenvolvidas em sala de aula. Os participantes foram professores e alunos da educação infantil. Na primeira etapa (2008-2009), a amostra foi constituída por professores e alunos do maternal II (3 anos de idade) e primeiro período (4 anos de idade), e, na segunda etapa (2009-2010), por professores e alunos dos primeiro (4 anos de idade) e segundo períodos (5 a 6 anos de idade). Ressalta-se que a participação das crianças nesse estudo teve a avaliação e a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, e os responsáveis pelas crianças aprovaram, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido, a utilização das imagens registradas. Portanto, buscou-se nessa pesquisa capturar as variações no desenvolvimento da argumentação oral das crianças ao acompanhar a passagem de um mesmo grupo de alunos para um estágio seguinte na sua escolarização.

Com a posse dos vídeos, foram realizados encontros regulares com o grupo de pesquisa para assisti-los. Nesses encontros, selecionavam-se trechos videografados para serem transcritos. Essa seleção refletia pressupostos teóricos partilhados pelos pesquisadores. As transcrições favoreciam uma análise diferenciada, uma vez que, isolando determinado recorte do vídeo, era possível implicar os objetivos da pesquisa na análise desse recorte. O primeiro parâmetro para o recorte do vídeo foi a indicação de uma situação de oposição. A oposição, segundo pesquisadores, consiste em um fenômeno característico da argumentação humana, pois marca a defesa de diferentes pontos de vista (Leitão, 2007). Posteriormente, como procedimento para a análise dos eventos recortados, caracterizaram-se as atividades que incidiam nos recortes com os seguintes critérios: especificação das instruções para início da atividade; material utilizado e conteúdo proposto para realização da atividade; descrição da dinâmica de troca de turnos dos participantes da interação, destacando os componentes da argumentação segundo Leitão (2007) - o argumento (ponto de vista e elemento apoio), o contra-argumento (enunciado que desafia o argumento) e a resposta (reações ao contra-argumento); em seguida, descreveu-se a relação dinâmica entre elementos verbais e não verbais para os sentidos possíveis emergentes na argumentação.

A sequência de imagens apresentada na figura 1 foi retirada desse conjunto do material analisado nessa pesquisa. Na segmentação, cada imagem correspondeu a um segundo do vídeo, constituindo uma sequência de interação. Esse procedimento foi realizado para proporcionar uma captura mais circunscrita aos aspectos relevantes na transformação de informações relativas ao vídeo (dados audiovisuais) para o modelo de transcrição (texto escrito) utilizado na pesquisa.

 

Resultados e discussões

A análise da segmentação das imagens na figura 1 possibilitou ilustrar a seletividade e a diretividade como processos inerentes à transformação do dado audiovisual em dado textual escrito. Para melhor descrever essa imbricação, foram antecipados alguns esclarecimentos, de forma a propiciar uma melhor organização da apresentação dos aspectos apreciados nas imagens, assim como a sua relação com o texto escrito. Esses esclarecimentos dizem respeito à:

a) apresentação do contexto geral do recorte: descrição do contexto da atividade que estava sendo realizada em sala de aula, na sequência de interação selecionada;
b) descrição da imagem: indicação minuciosa dos elementos presentes na estrutura física do ambiente;
c) definição da dinâmica de interação: na qual se apontaram os processos que caracterizaram a argumentação nas sequências de imagens.

 

Contexto geral do recorte

As três imagens da sequência apresentada na figura 1 fazem parte de um recorte de vídeo com duração de três segundos, retirado de um vídeo de 21 minutos e 41 segundos. A sequência mostra uma sucessão de ações que foram selecionadas pela pesquisa anteriormente mencionada. Durante a execução de uma atividade, a professora acompanha cinco crianças, e o momento selecionado apresenta a distribuição e disputa pelos lápis de cor entre duas crianças.

 

Descrição geral da imagem

Nas paredes da sala (ambiente onde se realiza a atividade), existem folhas coladas lado a lado. Nessas folhas, estão desenhadas as letras do alfabeto, sendo as consoantes pintadas na cor vermelha e as vogais, na cor amarela. Abaixo estão desenhadas figuras que começam com a respectiva letra, seguidas de seus nomes. Logo acima das figuras, estão as janelas da sala, por onde se pode ver a claridade do sol que entra, iluminando o ambiente. Atrás da professora e encostado na parede, existe um birô com papéis amontoados. No centro da imagem, está a mesa onde as crianças estão realizando a atividade; a mesa é branca, com as bordas e pernas na cor preta; as cadeiras onde as crianças e a professora estão sentadas também seguem a mesma disposição de cores. Ao redor da mesa, existem sete cadeiras, uma é ocupada pela professora, cinco são ocupadas pelas crianças e uma não está sendo usada.

 

 

Uma das crianças não aparece por inteiro na imagem, mas se pode deduzir sua presença no grupo, pois suas pernas e braços aparecem na imagem. A professora está com o cabelo preso, de calça jeans e blusa roxa. Das quatro crianças que aparecem por inteiro na imagem, três delas são do sexo masculino e uma é do sexo feminino; o menino e a menina à esquerda da imagem usam o fardamento da escola, enquanto os dois meninos à direita da imagem não estão usando fardamento. Cada criança está com uma folha de atividade à sua frente e, à frente da professora, existe um pote com lápis de cor.

Dinâmica de interação: as crianças realizam sua atividade de pintura com lápis de cor. A professora distribui os lápis de cor entre as crianças. Uma situação de disputa por um lápis de cor se estabelece entre duas crianças. Uma delas solicita o lápis repetidamente, e a outra se recusa a dá-lo. Ao mesmo tempo em que isso acontece, as outras crianças presentes na mesa continuam a fazer sua atividade silenciosamente. No ambiente, ouve-se o barulho de outras crianças presentes na sala além das que aparecem na imagem.

A seletividade no processo de transformação da imagem em texto é então ilustrada pelas simplificações na elaboração dos significados2 da imagem e do áudio.

Como foi descrito acima, nas sequências de imagens, podemos capturar vários detalhes e ações, mas, na transcrição, a dinâmica dos dados é reduzida a uma condição bidimensional e delimitada. O quadro 1 ilustra o texto escrito relativo à dinâmica apresentada na sequência de imagens da figura 1.

 

 

Observa-se que, na transcrição do recorte do vídeo, não se prescinde da ênfase do que se quer analisar. Por ela, revela-se uma seleção de elementos profundamente imbricados com o objetivo da pesquisa: a análise da atividade argumentativa entre as crianças. Nesse sentido, apesar dos muitos outros detalhes e fenômenos presentes e identificados nas imagens, o recorte do dado circunscreveu o olhar do pesquisador em torno do evento pelo qual a pesquisa teve interesse. Considerando-se que, nos pressupostos da pesquisa mencionada, de onde se origina essa discussão, concebeu-se a oposição como um elemento precursor da argumentação oral infantil, a posição e a dinâmica das crianças na transcrição das sequências verbais e não verbais evidenciaram a oposição entre elas. Isto é, na composição audiovisual, o que se configurou (na seletividade dos pesquisadores) foram crianças frente a frente, advérbios de negação com pedidos por um lápis de cor e movimentos de retirada de um lápis de cor de um recipiente pelas crianças. No entanto, inferir que, no diálogo entre as duas crianças mencionadas na transcrição, emergiu uma situação de oposição no processo argumentativo foi algo que esteve para além da imagem e do som propriamente dito. Os pesquisadores produziram sentidos, atribuíram significações para os processos na interação entre as crianças e, a partir daí, elaboraram e defenderam explicações para a atividade argumentativa das crianças naquele contexto.

Portanto o olhar dos pesquisadores que pressupunham a dimensão dialógica e epistêmica da argumentação na sala de aula e a relevância das práticas discursivas nesse processo organizou os elementos configurados no recorte, na sequência de imagens, de acordo com a perspectiva teórica da pesquisa. Esses processos poderiam não ser atentados no caso em que o objetivo da pesquisa fosse outro ou se o objetivo da pesquisa fosse o mesmo, mas a perspectiva teórica fosse outra. Com isso podemos assegurar que a transcrição é uma tentativa de se reconstruir um fragmento de realidade orientada por aspectos disponibilizados por quem deseja falar algo com base nesse fragmento. Na transcrição incidem pressupostos teóricos defendidos pelo pesquisador na concepção do seu objeto de estudo.

Como consequência da seleção, emerge a atribuição de um caráter diretivo à transcrição. Isto é, o pesquisador comprometido com os objetivos da pesquisa, além de criar um modelo de transcrição que seja conveniente aos seus interesses, proporciona essa conveniência por meio da circunscrição do fenômeno no detalhamento da transcrição, que deve corresponder à sua necessidade de revelar aspectos específicos. Desse modo, a diretividade é um processo que contradiz a concepção de neutralidade e de imparcialidade em uma pesquisa, uma vez que se refere à forma como o pesquisador seleciona os dados. A diretividade consiste no encaminhamento dos significados que o pesquisador promove, ou seja, no desenho dos procedimentos que ele preparou para coletar os dados e na linguagem que ele escolheu para apresentá-los. Na sequência de interação, transcrita no quadro 1, ainda que os mesmos diálogos fossem selecionados em uma pesquisa com objetivo diferente, no caso de um estudo sintático ou semântico das frases construídas pelas crianças, por exemplo, o direcionamento do estudo teria sido outro. No entanto, coerentemente com a pesquisa a que nos remetemos neste artigo, na qual se propôs fazer uma análise da argumentação oral infantil, no modelo de transcrição dela decorrente, estão presentes os elementos que, de acordo com os pesquisadores, fazem parte da atividade argumentativa. Assim, para explicar a atividade argumentativa no processo ensino-aprendizagem, orientou-se a simbolização na expectativa de se destacar a relação entre os elementos verbais e não verbais dos participantes na interação, configurados na dinâmica das trocas dos turnos de fala. Desse modo, a dimensão comunicativa da argumentação foi revelada no enfoque da alternação de turnos, e, com o apoio da adequação de determinados símbolos, assegurou-se o caráter dinâmico dessa configuração. Esses foram procedimentos estratégicos para compor os constituintes da argumentação oral infantil. Com base nessa estratégia, aspectos teóricos foram explorados e reflexões acerca da complexidade na evolução do processo argumentativo foram possíveis de serem acrescentadas ao material.

Então outro aspecto relevante na transformação de imagem e som em texto escrito é uma apropriação de símbolos para fenômenos extralinguísticos e ação não verbal. Defende-se aqui que, nessa simbolização, precisam ser preservadas características, propriedades e significados apresentados e suscitados pelas imagens e sons. A seguir, descrevem-se alguns dos símbolos definidos de acordo com a configuração da interação das crianças na atividade em sala de aula. A interação aqui em questão inclui tanto a dimensão fonológica quanto aquela relacionada ao movimento do corpo, compreendido como extralinguístico, mas correlato à situação de fala propriamente dita.

 

 

 

 

Atenta-se que a simbolização se aplica para todo o conteúdo representado na tabela da transcrição, incluindo-se assim os elementos verbais e não verbais. Defende-se aqui que a escolha de cada símbolo é determinada por dois fatores principais: 1) a observação da relação entre o símbolo e o fenômeno que ele representa; 2) a atualização relacionada com a possibilidade de captura de aspectos socioculturais específicos da comunidade de fala analisada pela pesquisa. Com o apoio do quadro 2, pontua-se que a relação entre o símbolo e o fenômeno pode ser ilustrada, considerando a representação simbólica para o alongamento "- /:". Nessa simbolização, preserva-se o sentido em que alongar diz respeito a uma extensão linear. Assim, quanto mais longa a pronúncia de uma palavra, mais extensa a simbolização, por exemplo "/::::". Essa relação fica ainda mais clara no caso da simbolização para a fala quando a criança grita. As letras maiúsculas contrastam com as minúsculas e, dessa forma, induz a compreensão do aumento do tom de voz. Quanto à atualização com aspectos específicos da comunidade de fala, chama-se a atenção para a necessidade de uma habilidade do pesquisador, que deve sempre atentar para uma manifestação inédita da fala e da interação. Destaca-se esse aspecto por observar-se uma tendência à atenção para aspectos já mencionados dentro das teorias em que o pesquisador se apoia. No entanto, principalmente no que se refere à interação verbal e não verbal, a variabilidade é a regra. Nessas condições, o pesquisador não raro encontra-se diante da necessidade de desenvolver um símbolo para um fenômeno ainda não descrito. No caso da comunidade de fala que foi aqui analisada, essa situação foi vivida quando as crianças cantarolavam durante a interação. O símbolo escolhido para essas situações foi "\" como se descreveu no quadro 2. Esses dois fatores implicam para a transcrição, portanto um caráter necessário de não universalidade, ainda que possa existir algum consenso com relação à escolha de determinados símbolos.

 

Conclusão

Este estudo explorou informações acerca da transformação de dados visuais e auditivos em texto escrito. Essa transformação de dados é um procedimento comum nas pesquisas, embora, como foi mencionado neste estudo, não haja um consenso sobre como conceber os processos nela implicados para construção do conhecimento acerca do fenômeno que se estuda. Assim, perspectivas contraditórias sobre essa transformação coexistem: para alguns pesquisadores, a transcrição é uma reprodução neutra do dado e, para outros, ela é um momento de construção teórica do pesquisador, comprometido com pressupostos acerca do seu objeto de estudo.

Com base numa segmentação de imagens, ilustraram-se aqui condutas do pesquisador numa perspectiva de não neutralidade na transformação das imagens e sons em texto escrito. Essa perspectiva, ao contrário das metodologias definidas sob o princípio da fidedignidade/reprodutibilidade, preconiza a validade decorrente de outra forma de exercer o rigor metodológico, preservando a compreensão dos dados e possibilitando a revisão de pressupostos, refutando-os ou ampliandoos. Nas ilustrações das condutas entendidas a partir da não neutralidade, foram discutidas nuances de como pressupostos do pesquisador refletiram-se na sua apresentação dos fenômenos na forma escrita. As suas significações acerca da atividade argumentativa de crianças na sala de aula orientaram as escolhas para simbolizar no texto escrito a relevância da oposição na interação.

Para promover a dialética, análise e síntese do conhecimento sobre os procedimentos realizados neste estudo, foram apontados processos que demonstraram o envolvimento dos pressupostos do pesquisador na transformação das imagens e sons em texto escrito. Estes foram a seletividade e a diretividade. Também foram abordadas propriedades da simbolização escrita de fenômenos empíricos. A esse respeito, foi destacado que o símbolo, de alguma forma, lembra o funcionamento do fenômeno que se busca representar. Além disso, destacouse também que o pesquisador, se consciente do papel criativo da simbolização, pode ser favorecido no detalhamento dos processos que busca revelar. Todavia esse favorecimento depende de sua habilidade para também descortinar limites e tendências de teorias e pressupostos já debatidos acerca do fenômeno, exercendo assim um olhar inédito para o material empírico que ele dispõe.

 

Referências

Amador, F. S. (2011). Produção de imagens, subjetivação e trabalho penitenciário: uma contribuição às clínicas do trabalho. Psicologia: Ciência & Profissão, 31(2), 358-373.         [ Links ]

Belei, R. A., Gimeniz-Paschoal, S. R., Nascimento, E. N. & Matsumoto, P. H. V. R. (2008). O uso de entrevista, observação e videogravação em pesquisa qualitativa. Cadernos de Educação, 30, 187-199.         [ Links ]

Denzin, N. K. (1995). The experiential text and the limits of visual understanding. Educational Theory, 45, 7-18.         [ Links ]

Denzin, N. K. (2009). The elephant in the living room: or extending the conversation about the politics of evidence. Qualitative Research, 9(2), 139- 160.         [ Links ]

Garcia-Mila, M., Gilabert, S. & Rojo, N. (2011). El Cambio estratégico en la adquisición del conocimiento: la metodología microgenética. Infancia y Aprendizaje, 34(2), 169-180.         [ Links ]

Góes, M. C. R. (2000). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos Cedes, 50, 9-25. Recuperado a partir de http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v20n50/ a02v2050.pdf        [ Links ]

Knoblauch, H. & Schnettler, B. (2012). Videography: analysing video data as a "focused" ethnographic and hermeneutical exercise. Qualitative Research, 12(3), 334-356.         [ Links ]

Ladeira, W. T. (2007). Teoria e métodos de pesquisa qualitativa em sociolinguística interacional. Revista de C. Humanas, 7(1), 43-56.         [ Links ]

Leitão, S. (2007). Argumentação e desenvolvimento do pensamento reflexivo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 20(3), 454-462.         [ Links ]

Martins, S. J. (1997). Vygotsky e o papel das interações sociais na sala de aula: reconhecer e desvendar o mundo. Série Ideias, 28, 111-122.         [ Links ]

Meira, L. (1994). Análise microgenética e videografia: ferramentas de pesquisa em psicologia cognitiva. Temas em Psicologia-SBP, 3, 59-71.         [ Links ]

Molon, S. I. (2008). Questões metodológicas de pesquisa na abordagem sóciohistórica. Informática na Educação: Teoria & Prática, 11(1), 56-68.         [ Links ]

Pedrosa, M. I. & Carvalho, A. M. A. (2005). Análise qualitativa de episódios de interação: uma reflexão sobre procedimentos e formas de uso. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(3), 431-442.         [ Links ]

Peters, L. L. (2006). Atividades em pequenos grupos na educação física: jogos de significações. Psicologia em Estudo,11(3), 503-512.         [ Links ]

Pinheiro, E. M., Kakehashi, T. Y. & Angelo, M. (2005). O uso de filmagem em pesquisas qualitativas. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 13(5), 717- 722.         [ Links ]

Schnettler, B. & Raab, J. (2008). Interpretative Visual analysis developments: state of the art and peding problems. Forum: Qualitative Social Research, 9(3).         [ Links ]

Vigotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. [Trabalho original publicado em 1926].         [ Links ]

Wallon, H. (1986). Como estudar a criança? (E. S. Lima, Trad.). In M. J. G. Werebe & J. Nadel-Bruffert (Orgs.), Henri Wallon (pp. 72-82). São Paulo: Ática. [Trabalho original publicado em 1941].         [ Links ]

 

 

Texto recebido em setembro de 2012 e aprovado para publicação em fevereiro de 2014.

 

 

*Professora adjunta no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Endereço: Universidade Federal de Alagoas – Instituto de Psicologia – IP/UFAL, Campus A. C. Simões. Avenida Lourival Melo Mota, s/nº - Tabuleiro dos Martins, Maceió- AL. CEP: 57072-970. E-mail:vieira.ufal@gmail.com.
** Mestranda no Programa de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo. Endereço: Rua Japurá, 55, ap. 1404 - Bairro República, São Paulo – SP. CEP: 01319-030. E-mail:carinevmendes@gmail.com.
*** Mestranda no Programa de Psicologia da Universidade Federal do Paraná. Endereço: Rua José Casagrande, 960, Bloco A4, ap. 21 - Bairro Vista Alegre, Curitiba-PR. CEP: 80820-590. E-mail:carinerhodes@gmail.com.
1A perspectiva que guia este artigo acerca da análise da interação se baseia nos estudos do pensador e cientista russo, Lev Vigotski (1896-1934), que definiu a interação como processo de mediação entre o organismo e a cultura por meio de signos. De acordo com Vigotski, a interação é condição inerente ao desenvolvimento humano (Martins, 1997; Vigostki, 2004).
2A expressão "elaboração de significados" refere-se aqui ao processo de representação simbólica do que foi capturado pelo olhar do pesquisador. Esse olhar é orientado pelo enfoque teórico e pelos objetivos almejados pela pesquisa.

Creative Commons License