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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.20 no.3 Belo Horizonte Sept. 2014

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2014v20n3p582 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2014v20n3p582

 

Tornar-se adolescente com HIV/aids: possibilidades e limitações

 

Being an adolescent with HIV/AIDS: possibilities and limitations

 

Convertirse en adolescente con HIV/SIDA: posibilidades y limitaciones

 

 

Vanessa Limana Berni*; Adriane Roso**

 

 


Resumo

Este estudo pretende conhecer como a presença do HIV/aids interage no processo de adolescer com o vírus/doença, especialmente na construção de identidade. Estudos de caso com três adolescentes que conheciam seu diagnóstico para o HIV foram realizados usando o método de entrevistas semiestruturadas e do desenho da figura humana (DFH). Os resultados apontam para a vivência de um processo repleto de transformações físicas e psíquicas que podem ser comparadas à vivência comum da adolescência. No entanto, olhando mais cuidadosamente para a vida social desses adolescentes, percebe-se claramente que o silêncio resultante da experiência de viver com HIV/aids, desde que nasceram, produz algumas limitações e implicações no processo de construção da identidade. Como conclusão, foi assinalado que é necessário discutir com os adolescentes, suas famílias e pares, e com os cuidadores sobre as representações sociais da aids e seus impactos na construção das identidades de todos que convivem com a doença.

Palavras-chave: Psicologia social. Síndrome de imunodeficiência adquirida. Adolescência. Identidade.


Abstract

This study seeks to examine how the presence of HIV/AIDS interacts in the process of becoming an adolescent with HIV/AIDS, especially regarding the construction of identity. Case Studies with three adolescents who knew their HIV diagnosis were carried out using the semi-structured interviews method and the human figure drawing (DFH). The results point to the experience of a process full of many physical and psychological changes that can be compared with the common experience of adolescence. However looking more carefully at the social life of these adolescents, it is clearly perceived that the silence resulting from the experience of living with HIV/ AIDS, since they were born, produces some limitations and implications to the process of identity construction. In conclusion, it was pointed out that it is necessary to discuss with the adolescents, their families and peers, and with care providers about the social representations of aids and its impact on the identities constructed by all persons living with the disease.

Keywords: Social Psychology. Acquired immunodeficiency syndrome. Adolescence. Identity.


Resumen

El presente estudio busca conocer como la presencia del VIH/SIDA interacciona en el proceso de tornar se adolescente, especialmente con relación a identidad. Usando los métodos de entrevista semiestructurada y de dibujo de figura humana (DFH), fue realizado un estudio de caso en tres adolescentes conocedoras de su diagnóstico positivo del VIH. Los resultados apuntan la vivencia de un proceso lleno de transformaciones físicas y psíquicas, que pueden ser comparadas con la propia experiencia de la adolescencia. Sin embargo, analizando más cuidadosamente la vida social de estos adolescentes, percibimos claramente que el silencio resultante de la experiencia de vivir con VIH/SIDA desde su nacimiento, produjo algunas limitaciones e implicaciones en el proceso de construcción de su identidad. Como conclusión, se sugiere sobre la necesidad de discutir con los propios adolescentes, sus familias, parejas y responsables, sobre las representaciones sociales del sida y de sus impactos en la construcción de la identidad con aquellos que conviven con la enfermedad.

Palabras clave: Psicología social. Síndrome de inmunodeficiencia adquirida. Adolescencia. Identidad.


 

 

Introdução

A ampliação de ações de controle a infecções oportunistas e de outros elementos de promoção à saúde de portadores do HIV têm possibilitado às crianças nascidas de mães portadoras do vírus da imunodeficiência humana (HIV) chegar à adolescência. Entretanto certas necessidades sociais, psicológicas, sexuais e clínicas são ainda pouco conhecidas pela sociedade e profissionais da saúde.

Se, por um lado, pode-se pensar que são adolescentes como quaisquer outros, por outro, precisa-se reconhecer que esses adolescentes, vivendo com HIV/aids, têm de lidar com as possíveis dificuldades geradas pela adesão ao tratamento, com as crises de confiança devido ao atraso na revelação do diagnóstico, com a culpa dos pais e com a superproteção deles, assim como com situações de estigma (Guerra & Seidl, 2009; Spiegel & Futterman, 2009).

O que se percebe é que a questão da aids, tanto no cenário mundial quanto no Brasil, ainda está longe de ser tratada com domínio pela sociedade. Existem muitos mitos e preconceitos por parte da população que, ao não serem esclarecidos, podem acarretar muito desconforto às pessoas que vivem com o HIV, além de medo e vergonha de revelar seu diagnóstico, o que pode se refletir na promoção de saúde e na construção de suas identidades.

Identidade, tal como é compreendida aqui, refere-se ao produto-produção oriundo das relações dialéticas entre indivíduo-sociedade. Por isso, entende-se identidade como metamorfose (Ciampa, 1994), uma vez que se trata de um processo dinâmico e provisório, que está sempre em movimento, podendo ser posta e reposta na relação com o outro. Segundo Jacques (2011), a identidade se configura por um conjunto de características e representações que o indivíduo pensa e sente ter, seja individualmente ou em relação aos grupos a que pertence. Elementos como imagem, traços, estereótipos, sentimentos e conceito de si caracterizam a construção da identidade.

No processo de adolescer, inúmeros elementos se entrecruzam, como as transformações no corpo, o desejo sexual, o autoconceito, a escolha de um(a) parceiro(a) e de uma profissão, entre outras exigências sociais e culturais. Para os jovens que vivem com HIV/aids, a formação da identidade ultrapassa as descobertas e transformações da adolescência em geral, já que o adolescente tem de se deparar com seu diagnóstico e conviver com essa doença que, além de crônica, é permeada por preconceito, medo e incertezas quanto ao futuro (Spinardi, Machado, Sant'Anna & Passarelli, 2008). Nesse sentido, e partindose da ideia de que não é possível estudar a configuração da identidade do indivíduo sem considerar as diferentes configurações da ordem social e as redes de interações em que está imerso (Ciampa, 1994; Guimarães & Ferraz, 2002), questiona-se como se configura a identidade do adolescente que vive com HIV/ aids em meio a uma sociedade que relaciona a aids, na maioria das vezes, a práticas ilegais e irresponsáveis.

A fim de dar conta dessa questão, e com base no conhecimento teórico buscado, pretende-se conhecer como a presença do HIV/aids interage no processo de adolescer com o vírus/doença, especialmente na construção de identidade daqueles que vivem com o vírus desde o nascimento. Especificamente, são investigadas questões que envolvem representações de si (aspectos físicos e psíquicos), sobre saúde/doença, além de elementos da convivência social e expectativas de vida.

O texto que se segue contempla, primeiramente, o delineamento da pesquisa, para, depois, apresentar os casos de Brenda, Carol e Aneliza. Por último, fazse a discussão dos casos de modo a articular as representações e visualizar as identidades dessas adolescentes.

 

Delineamento da pesquisa e métodos1

Com base em uma pesquisa de caráter qualitativo e mediante a proposta de estudo de caso, o qual envolve a análise profunda e exaustiva de um ou poucos objetos/sujeitos, de maneira que se permita o seu amplo e detalhado conhecimento (Gil, 2010), foram realizadas entrevistas semiestruturadas em profundidade e solicitado o desenho da figura humana (DFH) com posterior inquérito. As entrevistas seguiram um roteiro temático, composto pelos núcleos de investigação que compõem o objetivo da pesquisa, o qual foi planejado anteriormente para dar conta das questões desta (Gaskell, 2002).

Com relação ao DFH, criado por Machover (1967), ele consiste basicamente em pedir ao sujeito que desenhe uma pessoa como quiser, desde que inteira e não um desenho pedagógico; pede-se, depois, que desenhe uma pessoa de sexo diferente da primeira e então responda a um inquérito sobre a figura que representa o próprio sexo. Entende-se que, ao atender à solicitação de desenhar uma figura humana, a pessoa projeta no desenho a imagem corporal que tem, em grande parte inconsciente para ele. O DFH pode refletir também imagens idealizadas, emoções momentâneas, atitudes diante dos outros, da vida, da sociedade.

A pesquisa teve como campo o ambulatório de pediatria de um hospital público federal, considerado referência ao tratamento de pacientes com HIV/aids, onde funciona o Serviço de Doenças Infecciosas Pediátricas. Os participantes deste estudo foram adolescentes com diagnóstico positivo para HIV (transmissão vertical), idade variando de 10 a 14 anos e que conheciam seu estado sorológico.

No contato com os familiares/cuidadores dos adolescentes a serem entrevistados, foram explicados todos os objetivos e procedimentos da pesquisa. Logo, se o familiar que estava acompanhando o adolescente confirmava os dados de elegibilidade, este era convidado a participar da pesquisa, mediante explicação e leitura do termo de consentimento e assentimento, que, no final, era assinado pelos familiares e pelos adolescentes, respectivamente; garantindo, dessa forma, o cuidado ético necessário na pesquisa que envolve crianças e adolescentes, bem como que estes participem das decisões relacionadas a si próprios.2

Após o aceite e assinatura, o adolescente era convidado a participar da etapa do estudo de caso, que se constituía em fazer o DFH, discorrer sobre questões do inquérito referente ao desenho e responder a perguntas de acordo com o roteiro de entrevista. Tanto o inquérito quanto a entrevista foram gravados e transcritos para análise dos dados. A interpretação do conjunto de informações obtido se deu com base nas ideias de autores que enfocam a identidade e o fenômeno do HIV/aids como construções sociais.

 

Entrando no espaço hospitalar: acessando identidades e conhecendo as representações

No período de agosto a outubro de 2010, foi possível contatar os familiares/ cuidadores de 20 adolescentes entre 10 e 14 anos, que apresentam diagnóstico positivo para o HIV, dentre os quais apenas 8 participantes preenchiam os critérios de elegibilidade para participar da pesquisa. Neste texto, são apresentados os casos de três adolescentes do sexo feminino que aceitaram participar do estudo de caso, e aqui são identificadas sob os respectivos nomes fictícios: Brenda, Carol e Aneliza.

 

Brenda

Ao ser convidada a participar do estudo, Brenda, em voz baixa e tímida, diz aceitar, continuando séria pelo resto do tempo. Durante a entrevista, parecia que Brenda se comovia a cada pergunta, pois respondia sempre com falas curtas antecedidas de um momento de silêncio. Também era difícil Brenda olhar nos olhos da entrevistadora, estando geralmente com a cabeça inclinada para baixo e com voz miúda. Brenda tem 13 anos e partilha uma família "bem grande, e [...] bem unida pra algumas coisas. [...]. Pra sabê quando tá certo, quando tá errado, explicá por quê"3 . Ela foi adotada desde pequena, mas só agora estava saindo sua guarda legal.

Brenda se descreve como "um pouco estressada e um pouco chata também", como uma pessoa que passa "incomodando" e que não concorda "com tudo o que os outros falam", já que gosta de dar sua opinião e fazer as coisas de seu jeito. No DFH, ela se projeta como uma menina "inteligente", "bonita", "triste", não "muito quieta", "muito agitada" e que "não consegue mudar". O modo como ela se representa vai parcialmente a favor do modo como ela imagina que os outros a veem, expressando que os outros a têm "como uma pessoa difícil de conversar", embora acredite que algumas pessoas não a percebem como "muito estressada".

Brenda tem vivenciado o ingresso na adolescência de um modo "um pouco difícil, porque conversar com alguém é difícil". Assim, Brenda afirma conversar apenas com os amigos, que, segundo sua percepção, "são quem pode entendê a gente". Os amigos gostam do jeito dela, mas "os pais acham muito diferente dos outros". Nesse caso, o ato de conversação assume um caráter estruturador e "constitui(dor)" de seu ingresso na adolescência.

A escola parece desempenhar também um papel central no adolescer de Brenda. Ao falar sobre seu desenho, diz que a menina ali projetada "não gosta muito (de ir à escola), tem que ficar sentada, estudando [...] de algumas pessoas ela gosta muito, de outras não". Por outro lado, entrar na adolescência significa prazer, afinal, segundo Brenda, "é legal entrar na pré-adolescência", e ainda indica a possibilidade de se terem alguns ganhos, pois "a gente começa a conhecer coisas diferentes... Pode viajá sozinha, o pai deixa".

De início, percebe-se que o relato de Brenda não difere de outros adolescentes sem o diagnóstico positivo para o HIV. Todavia, em uma aproximação mais cuidadosa, observamos que a presença do HIV em sua vida assinala alguns diferenciais. Brenda soube que é portadora do HIV "desde pequena", e quem contou "tudo, [...] explicou, foi a mãe" (adotiva), e ela parece conformar-se com a soropositividade, argumentando que "gostaria de não ter, só que eu não tive escolha. [...]. É, eu nasci assim". Quando perguntada o que significa ser HIV positivo, Brenda, com a cabeça baixa e escondida atrás do termo de assentimento, responde que aids é "uma doença muito chata, incomoda a gente. [...] Tem que tomá remédio, [...] significa que não tem cura, precisa se cuidá".

Na verdade, não houve um momento na vida de Brenda que ela "descobriu-se" portadora, pois, ao responder sobre como se sentiu ao saber que tinha o HIV, responde: "Sinceramente eu não sei, eu já tomava remédio". Assim, ser portadora é um acontecimento "normal, não vai fazê muita diferença" na vida dela, pois tudo continua igual desde que ela nasceu, com a ressalva de que tem que "se cuidá um pouco mais".

Observa-se que esse cuidado que Brenda diz ser necessário restringe-se a fazer uso da medicação, e ainda por um desejo que não é seu: "Não cuido muito bem. Se fosse por mim, eu não tomava nem os remédios, mas a mãe tá sempre ali. [...]. Eu tenho que tomá, já é costume para mim". A figura materna representa para Brenda aquela que cuida, que controla ou vigia sua saúde, mas não sem a resistência da adolescente.

Corpo e sexualidade4, ao que parece para Brenda, são duas instâncias ainda pouco exploradas ou conhecidas, embora já tenha menstruado e considere que a menarca "no começo, é meio nojento, mas depois a gente se acostuma". Em seu corpo, toca apenas quando passa creme. Ela não tem namorado e diz não pensar em sexualidade e que nem gostaria de conversar com alguém "sobre isso, por enquanto". Afirma: "Só penso que chegue na hora, daí vou ver o que vai acontecê".

As amigas conversam com Brenda "sobre alguns guris também. As colegas contam com quem elas ficam, com quem não ficam", e ela se sente "normal" diante disso, "até porque já pediram pra ficá comigo, só que eu não quis". Diante do DFH, Brenda expõe alguns de seus pensamentos em relação ao casamento, dizendo que acha que ela não se casará, porque é um compromisso muito sério, que ela não poderá fazer o que gosta: "[...] sair muito, e vai ter que falar aonde vai, aonde não vai".

Brenda mostra, convictamente, suas opiniões quanto à reprodução, defendendo que somente se deve ter filho após os 20 anos de idade, e declara: "Penso que tinha que ser proibido ter filho antes de ter uma certa idade, porque tem muita criança por aí tendo filho, e não sabe como cuidá". Ela também não dá certeza de que quer ser mãe um dia, mas quando é perguntada sobre o que é ser uma boa mãe e um bom pai, responde que é "dar atenção pros filhos, quando quiser conversá com eles, explicá, não xingá, ter a compreensão deles, sabe?". Isso evidencia que, mesmo não se vendo como mãe, Brenda tem uma imagem positiva de maternidade.

Quando questionada se já ouviu falar de camisinha/preservativo, responde prontamente que sim e que "sempre que for fazer algo, tem que se prevenir, pra não passar pra ninguém, nem pegá [...], assim,... ahmn..., ter relação sexual. [...]. [Não pegar] alguma doença". Nota-se que Brenda não faz nenhuma associação do preservativo como método anticonceptivo; sua associação relaciona-se diretamente à prevenção de doenças, embora não especifique que tipo de mal.

Quanto aos relacionamentos sociais, Brenda parece conseguir inserir-se bem no grupo de pares, levando a vida como qualquer outra adolescente. Entretanto Brenda precisa esconder um pedaço de si, como ela projeta no desenho da menina que fez, dizendo: "É uma pessoa legal, mas não pode mostrá muito dela". Essa fala, do ponto de vista da Psicologia, demonstra o medo de se expor e, logo, soma-se à dificuldade de buscar apoio, como se verifica ao questionála sobre quem costuma procurar quando está triste, e tem-se como resposta "ninguém... não gosto de falar de mim pros outros". Também afirma não contar para ninguém que é portadora e que, na sua escola, ou em outros lugares, sua soropositividade não é comunicada.

Sobre o que espera do atendimento recebido, diz: "Só espero que eu fique melhor, né, e não piore, que os medicamentos tejam fazendo efeito, tudo o que têm pra fazer". Discurso que leva a inferir que, novamente, o cuidado de sua saúde fica restrito ao uso da medicação e que este é central em sua história de cuidado de si.

Enfim, Brenda é uma menina que, em relação à maioria de seus pares, tem um diferencial, que é a soropositividade para o HIV a qual interfere na constituição de sua identidade. Afora isso, ela aparenta ser uma menina como qualquer outra de sua idade. O fato de ser soropositiva não a impede de ter planos para o futuro, tanto que quer ser professora de matemática ou veterinária. Brenda acha que o mais importante a dizer ou fazer quando uma pessoa conta que tem o HIV é que "mesmo ela tendo, não vai parar a vida dela por causa disso. Ela tem que levantar a cabeça e seguir adiante [...], só tomá remédio que vai melhorá". Afinal, Brenda quer, acima de tudo, "ser feliz!".

 

Carol

Carol, uma menina de 14 anos, que aparenta ser mais velha devido à estrutura de seu corpo, foi adotada desde o nascimento. Ela ressalta positivamente o fato: "A família me trata bem, até eu sou adotiva, né, mas todo mundo me trata normal". Ao projetar-se no desenho, Carol apresenta-se como uma menina "feliz", que "ri demais, [...] é muito teimosa, e [...] estudiosa também", pois gosta "muito da escola".

Na busca por conhecer sobre a identidade adolescente, de como se percebe nesse momento de sua vida, quanto a características físicas e psíquicas, Carol, ligeiramente, antecipa-se, afirmando que se acha normal: "Que assim, aids, o HIV pra mim é só uma deficiência imunológica, que tipo, é uma vulnerabilidade a mais que a pessoa tem de defesas".

Ao relatar já ter menstruado "desde os 11", entende que está virando moça, que deixou de ser criança, mas isso "tá sendo normal, só que, a única coisa que me incomoda é cólica mesmo". O deixar de ser criança e tornar-se moça, que caracteriza a entrada na adolescência, é notada como uma fase de mudança, quando "tu muda o teu pensamento, tu muda no geral, porque tipo, tu deixa de ser criança, daí tu passa pela adolescência, daí tu vira uma pessoa adulta, com mais responsabilidades, com mais deveres, com mais coisas pra ti fazê".

Essas mudanças, mesmo sendo notadas como diferentes da vivência da infância, são sentidas e relatadas como normais. "Eu tô lidando com isso normalmente [...]. Tem gente que diz que tem dificuldade na adolescência, sabe, mas, pra mim, não, acho normal." Ainda, de seus amigos e pais expressa receber proteção e confiança: "Eu vivo bem, eu tenho um monte de amigo, eu tenho uma família que me adora, pra mim é normal, eu vivo bem a minha adolescência". No que se refere ao cuidado da saúde, novamente se refere a seus pais: "A mãe e o pai sempre tiveram cuidado comigo", acreditando que aos pais cabe "dá uma boa educação, uma boa base, explicá, tipo, pegá, sentá com a criança, explicá pra não saí com estranho [...], que tu não use droga, que tu converse os teus problemas com o teu pai e a tua mãe".

Reconhece também que a decisão de ter um filho é acompanhada de muita responsabilidade, mas Carol diz não ter "muita noção ainda" se vai querer se tornar mãe um dia, e já se adianta, dizendo: "Não por eu ter essa doença, sabe, mas porque eu não aguento bebê chorando (ri)". Contudo, se tomamos o desenho como uma projeção também de seus desejos, parece que Carol tem planos de casar com "vinte e três, vinte e quatro [anos]" e ter "uma família bem legal".

A soropositividade para o HIV não é partilhada por Carol além do domínio familiar: "Bom, assim, as pessoas ao meu redor, quem sabe é o pessoal da minha família, os meus amigos, assim, não sabem, sabe? Mas eles me tratam normal, assim como tratam todo mundo". As lembranças que Carol tem sobre como e quando soube do diagnóstico são poucas e antigas: "Sabê direito, até eu não sei, até eu coloquei mais ou menos há dez anos, porque eu não lembro direito [...]. Eu vi a médica na tevê, daí eu perguntei pra mãe por quê? Daí ela pegô e me explicô". Carol acredita que quanto antes for contado à criança sobre seu estado sorológico, mais fácil e tranquila vai ser a aceitação da doença e do tratamento, "Porque, tipo, depois tu cresce, daí vão te contá a história toda, daí eu acho que é capaz da pessoa ficá até com revolta, sabe? Pra mim não, pra mim foi mais tranquilo, porque eu sabia desde pequena".

A escola, segunda instituição, após a família, em que a criança se insere e por onde permanece por um bom tempo, torna-se um espaço de conhecimentos, trocas e amizades. Carol parece viver intensamente esse momento de troca com seus pares, como expressa em sua fala: "Faz nove anos, praticamente, que a gente convive todos os dias juntos, então a gente tem uma convivência ótima; assim, é como se fosse uma família mesmo [...]. Então é ótimo, porque, tipo, a gente conversa, a gente se entende".

Mesmo que a inserção de Carol ao grupo de amigos aparente tranquilidade e que ela demonstre estar esclarecida sobre o que é a aids ("uma deficiência imunológica, [...] uma vulnerabilidade a mais", uma "doença", "esse problema de sangue"), as interações sociais passam a ser mediadas pelo silêncio de seu diagnóstico. Logo, ao ser questionada por que não revela, ela responde:

Eu não conto porque eu tenho muitos amigos que eu adoro, sabe? Então, eu acho que se eles ficarem sabendo, eles vão meio que se reservá, sabe? Não que me excluí totalmente, mas eu não queria que eles se afastassem de mim, por causa disso. [...]. Tem gente que tem preconceito, então eu prefiro não saí contando (Carol, 14 anos).

Sobre as mudanças físicas percebidas no seu corpo, Carol se restringe a falar: "Eu cresci [ri] [...] Tô mais gordinha [ri], eu mudei bastante da minha infância pra cá". Já quanto ao tocar no corpo, refere que acontece "às vezes, não é sempre. [...] É mais pra mim me conhecer, pra ver o que que eu tô mudando, pra me conhecer mesmo". Apesar de não conseguir nomear o que está mudando, introduz uma preocupação no que se refere ao cuidado com o corpo: "Tenho que emagrecer [...]. É a única coisa assim que eu... Eu, no momento, me preocupo mais".

Ao que tudo indica, Carol adaptou-se bem às demandas exigidas em decorrência do HIV em sua vida, tanto que traz uma mudança muito positiva em relação ao autocuidado, pois se, antes, "eles me cuidavam bastante, pai e mãe, daí depois que eu fiquei sabendo, eu comecei a me cuidá mais, porque, tipo, antes era só eles, daí eu comecei a me cuidá mais". No entanto, o cuidado referenciado por Carol ainda é bastante marcado pela ideia de prevenção de doenças, "assim, de não pegá chuva, de tomá cuidado de não ficá gripada, de se cuidá mais no inverno [...], porque a imunidade é mais baixa, tal, as defesas do organismo".

Carol não iniciou seus relacionamentos sexuais nem tem namorado, porém imagina que, quando o tiver, "vai ser normal como todo mundo", salientando o cuidado que precisa ter para evitar doenças sexualmente transmissíveis, através do uso da camisinha, como refere: "Tem que se cuidar, a história da camisinha, né. É o básico. [...] É o básico, mas é muito importante". No que se refere a outras questões que envolvem as experiências sexuais, a adolescente diz estar tudo tranquilo e que tem buscado e recebido informações de diversas fontes, seja "com a mãe", "os professores" que "também falam bastante isso no colégio" e, como referência ao cuidado de sua saúde, "a chefe da enfermagem, que ela faz reuniões aqui, daí até eu participo [...]. Eu prefiro vir pra cá, pra mim sabê mais um pouco, entendê, aprendê mais. Eu acho que é importante".

Nessa fala, Carol sinaliza a falta de um espaço propício, no hospital, para esses jovens que, assim como ela, sabem do diagnóstico e carregam consigo muitas dúvidas e angústias. O "pra lá", que ela cita na fala acima, refere-se à sala "Alegria" (nome fictício), espaço lúdico oferecido às crianças e aos adolescentes para aguardar atendimento, com características que atendem mais propriamente a crianças.

Enfim, a experiência de Carol de convivência com HIV parece efetivamente tranquila e aceita de forma natural, visto demonstrar um bom entendimento acerca da aids, do tratamento e dos modos de cuidado, o que permite ela dizer: "Pra mim, tá sendo ótimo, as minhas expectativas, assim, tá, tá tudo bem, porque ah..., o remédio eu tomei por um bom tempo e adiantô. Então, pra mim, tá tudo normal".

 

Aneliza

Aneliza, aos 13 anos, tem uma história de muitas perdas: primeiro foi sua mãe, depois seu pai e, mais recentemente, sua irmã, no mesmo hospital em que é atendida. Agora somente tem seu irmão e os avós, porém em nenhum, segundo seu relato, encontra confiança para conversar, ser apoiada e receber carinho. Diante disso, ela descreve o irmão como a única pessoa que ainda poderia protegê-la e que está com ela nesse momento. No entanto, ela não sente que ele seja "apegado" a ela, o que a deixa com medo que ele vá para longe e a deixe abandonada. Apesar das perdas, Aneliza é uma menina simpática, interativa e prestativa a realizar a entrevista, ainda que se percebessem algumas limitações no seu entendimento acerca das questões feitas na entrevista e na aplicação do DFH.

Ao ser questionada sobre como se vê, demonstra-se bastante preocupada com a aparência, dizendo passar toda hora se olhando no espelho. Ela explica por quê:

Quando tem alguma coisa errada, eu me olho no espelho, e se tem alguma coisa torta eu arrumo de novo. [...] Quando o meu cabelo tá todo errado, aí eu tenho que ajeitá ele, ou quando eu passo um batom e tá borrado, daí eu vô lá e ajeito tudo de novo, ou quando eu passo uma maquiagem e fica um lado sim e outro não (Aneliza, 13 anos).

Nota-se que o relato de Aneliza é pautado pela busca de ajeitar o que não está bem, às vezes, até fora do lugar. Com isso, parece querer expressar o desejo e a necessidade de conhecer-se em seu novo corpo, ainda "desestruturado", "feio" e "torto"; acontecimentos comuns à adolescência.

Quando questionada sobre como acredita ser vista pelos outros, Aneliza se esquiva de pensar sobre isso, dizendo: "Eu nunca nem perguntei, nem imaginei comé que eles me vejem, porque eu prefiro nem imaginá, e nem perguntá". Essa reação parece ser motivada pelo medo de que o outro venha a apontar aspectos negativos de sua aparência, conforme ilustra em sua fala: "Sei lá, eles vão achá, pode achá 'ai, tu é feia', não sei o quê. Daí, isso ia me magoá muito, daí eu prefiro nem perguntá, nem sabê".

As fantasias de rejeição parecem ser confirmadas na expressão do DFH, quando Aneliza diz que "as pessoas olham pra ela (o desenho) e acham que ela é uma pessoa muito legal, mas, no fundo, no fundo, ela não é uma pessoa, exatamente, [...] que a mãe qué que ela seja". Ao que parece, Aneliza não se sente plenamente aceita pela figura materna (representada pela avó).

Quanto às mudanças em seu corpo, Aneliza destaca: "Quando eu era menor, eu não tinha muito peito, não tenho muita bunda, eu sou baixinha", e parece aguardar ansiosa para ver se a expectativa de sua tia vai se efetivar, uma vez que esta tem dito que Aneliza vai ser igual a sua mãe: "Peituda, e bunduda, e nanica, ainda".

Aneliza não tem clareza sobre o que configura a adolescência, no entanto ela descreve que, se tiver uma idade "de 13 pra 14, já vai entrando devagarinho" na adolescência. Esse processo traz mudanças que são percebidas pela menina, como explica:

[...] que eu começo a tê mais amigos, [...] não é que eu goste de entrá nessa fase, é que já me muda um pouco, né [...]. Daí eu posso, por exemplo, usá maquiagem, [...] ou posso botá brinco mais pra cima da orelha, posso, sei lá, posso pintá a unha de qualquer cor, depende, né, do momento que eu tiver, eu posso ir nas festa um pouquinho mais tarde (Aneliza, 13 anos).

Aneliza já não é mais uma criança, pois as transformações da puberdade são visíveis em seu corpo. Ela diz já ter menstruado, mas, para ela, menstruar é "muito nojento, porque, às vez, até mancha as ropa, a gente tem que tá se cuidando, não pode botá calção, não pode botá saia, essas coisa".

Em relação ao HIV/aids, mesmo tendo sido confirmado por sua avó e também por profissionais da enfermagem que a menina sabia do diagnóstico para o HIV, Aneliza demonstra, em suas falas, que muitas dúvidas ainda persistem, como se pode observar ao questioná-la o que passa por sua cabeça ao ouvir a palavra aids. Ela afirma:

Que aids mata, que aids é uma doença que passa pra alguma pessoa [...]. Porque os meus colegas me falavam que eu tinha aids, e eu não tinha, com certeza, eu nem sei o que que é isso, mas todos caso [...], eu não disse que eu tinha aids, eu disse que aids era um doença muito perigosa, que eu podia, se tivesse, não podia chegá perto. [...]. No sentido, eu achava que eu tinha, né, eu tinha aids, e eu perguntei pra vó: 'vó, eu não tenho aids, né?' E a vó disse que eu não tinha, que eu tinha só um poblema, mas não tinha aids (Aneliza, 13 anos).

Essas falas causam surpresa à pesquisadora, pois todos os cuidados foram tomados para evitar esse desconforto, inclusive foi lido junto com a menina o termo de consentimento no qual dizia ser a pesquisa com adolescentes que vivem com a doença. A adolescente entrevistada diz não ter aids, não saber o que é HIV, não ter sido esclarecida por seus avós qual é o seu problema e o motivo de tomar remédio. Ao mesmo tempo, ao se referir ao ato de tomar a medicação, ela expressa raiva quando sua avó a lembra de tomar o remédio na frente dos outros: "Eu tenho nojo, porque eu tenho medo que os meus amigos comecem a falá 'ah, ela toma remédio, eu não vô chegá perto dela'".

Essas passagens nos levam a pensar que Aneliza saiba sobre as limitações de sua doença, porém não a nomeia como aids. A doença é silenciada tanto por ela como pela sua família. Ainda, podemos pensar que a dúvida sobre o que realmente tem parece ser uma estratégia de defesa utilizada por Aneliza para negar seu diagnóstico, que vem carregado de representações negativas. Ideia que se faz representar quando diz: "Eu falo que eu sei pra não prejudicá o que elas tão falando, mas eu não sei bem, exatamente, o que que eu tenho". E logo acrescenta: "Às vez, eu nem pergunto, porque eu tenho medo que é alguma coisa, que eu tenha alguma coisa que prejudique muito a minha saúde". Essa mensagem parece ser apreendida no próprio discurso de seus avós que, por meio de ameaças de morte, tentam convencer a menina de tomar a medicação, como é ilustrado na fala de Aneliza:

Se eu faltá pra tomá um dia, ela [avó] já fala assim "tu sabe se tu não tomá, tu vai pará no hospital", aí o meu vô fala "tu sabe se tu não tomá, tu vai pará num caixão", não sei o quê. Aí eu fico pensando, deve sê verdade e daí eu tomo aquele remédio (Aneliza, 13 anos).

Pela fala de Aneliza, percebe-se, para além de um cuidado mediado pelo outro, sem o desejo da menina, um cuidado de sua saúde restrito apenas ao uso da medicação, e sob ameaça. Uma ameaça que vem de familiares, pessoas que poderiam lhe apoiar, informar-lhe, mas, ao contrário, provocam na menina um sentimento de desamparo e inquietações, reforçando ainda mais as representações negativas de sua doença, mesmo que não nomeada. Longe de culpabilizarmos a família, entendemos que a tática da avó deriva da representação da aids como morte (Jodelet, 1998; Sontag, 2007) e resulta numa forma de cuidado à neta.

Sobre como está cuidando de sua saúde, Aneliza reconhece que está "cuidando até por ali, também. Até tomá (o remédio), eu tomo, mas tem que cuidá as hora, eu nem me lembro". Aneliza destaca o desejo de não precisar mais fazer uso da medicação, o que tem lhe representado um grande obstáculo, pois, diante do silêncio sobre o seu uso, precisa se privar de fazer algumas atividades, a fim de não correr o risco de ser descoberta, "porque eu tomo de noite, eu tomo de manhã, daí é ruim. Eu não vejo a hora de pará de tomá pra podê saí com eles (amigos), pra podê ficá tranquila". Ainda, em relação ao que espera do tratamento recebido, destaca o desejo de "sê uma pessoa, que eu não precise mais tomá [remédio], que eu não precise mais me preocupá, eu posso fazê as coisas sem pensá, sei lá". Que pessoa será que Aneliza quer ser? Essa fala parece deixar lacunas de alguém que está perdida, não sabe quem é, talvez, de uma adolescente que não se reconhece em sua identidade?

Quanto à rede de apoio recebida, esta aparece fragilizada, uma vez que "a pessoa que eu confiava era meu pai, e ele já..., Deus levô ele e a outra pessoa que ficô na terra foi meu irmão, e ele não é muito, assim, apegado em mim". Ao referir-se a seu avô, relata uma pessoa agressiva e que faz uso de álcool, enquanto a figura da avó parece frágil diante dos desafios da família e, especificamente, dela mesma, que parece não se sentir amada e protegida por aquela, como expressa: "Ela também nem gosta muito de mim, porque ela é mais apegada na minha prima, todo mundo é apegado na minha prima". Essas situações nos dão indícios de que, na família de Aneliza, haja ocorrência de possível negligência, por parte dos avós; e, ainda, violência psicológica, como já anunciado nas falas acerca das ameaças.

Em Aneliza, nota-se um despertar para as experiências sexuais. Ela conta já ter ficado com um menino, mas, no momento, diz estar gostando de outro e que, por causa de ele ser tímido e ela também, a aproximação está difícil: "Se olhá, até a gente se olha, mas conversá um com o outro, a gente não conversa".

No diálogo sobre o DFH, os pensamentos de Aneliza em relação às suas experiências sexuais parecem estar atravessados pelas percepções do Outro (mãe-avó). Aneliza diz que a menina desenhada não pode se relacionar com o namorado, "porque a mãe diz que é nova. Por causa que a mãe tem medo que aconteça alguma coisa que prejudique a sua saúde [...], sei lá, vai ficá com doença". Aneliza traça uma relação direta entre sexo e concepção, expressando, durante o DFH, sua preocupação: "Se ela ficasse grávida, sei lá, acontecesse alguma coisa que prejudicasse muito a saúde e até a família também, a mãe não ia se conformá com que ela, com certeza, com o que ela faria".

Apesar de ter fantasias sobre sexo, associa o ato sexual à negatividade: "Eu disse pra mim mesma que eu não ia tê nunca a minha primeira vez [...] eu tenho nojo"; ou então, à [(im)possibilidade de] maternidade: "Eu não vô tê filho [...] nunca na vida, eu posso até fazê alguma coisa, mas usá alguma coisa, uma proteção pra não tê filho, né".

Ao ser questionada sobre que proteção pensa em usar, ela, rindo, cita "a camisinha". Conta ter ouvido falar sobre isso na escola, onde, às vezes, torna-se motivo de deboche entre os colegas. Do ponto de vista de Aneliza, a camisinha também é importante "pra não pegá nenhuma doença". Quando se refere às doenças, pensa em "alguma infecção que eu não saiba que ele [parceiro] tem".

Como a maternidade, o casamento não ocupa espaço em seus desejos. Aneliza, ao falar sobre a menina desenhada, relaciona a instituição do casamento como uma espécie de tolhimento às relações de gênero justas, pois, se ela se casar, "não pode saí pra dançá, não pode se diverti, só ficá em casa, em casa, em casa, em casa". Questionada se costuma conversar com alguém sobre sexualidade, ela responde com a cabeça cabisbaixa: "Eu nunca conversei, porque, quando eu penso em falá nas coisa, às vez até me xingam 'por que tu qué sabe disso?', [...] 'a tua idade não chegô ainda, um dia tu vai sabê'. Daí até nem pergunto o que que é isso".

Diante dessa negação na participação de conversas sobre sexualidade com os adultos, Aneliza permanece com suas dúvidas não esclarecidas, o que provavelmente não a motiva a buscar a ajuda de outros profissionais, visto haver essa reclusão dentro da própria família.

A escola, apesar de ser um espaço vital de socialização para Aneliza, conforme indica seu DFH, é um território no qual a sexualidade predomina como tabu. Aneliza diz que, na escola, "nem falam muito" sobre sexualidade, mesmo que antes tenha contado que os professores falaram sobre camisinha, o que também pode indicar uma dissociação entre viver a sexualidade e cuidar da saúde.

Assim, Aneliza vai processando sua identidade. Entre asco, dúvidas, silêncio, solidão e controle, Aneliza constrói o "desejo [...] que ela seja muito feliz [...], que ela não precise ficá preocupada toda hora, com qualquer coisa que aparecesse".

 

Discussão dos casos: articulando representações e visualizando identidades

Os depoimentos e as contribuições das adolescentes participantes possibilitam uma aproximação do contexto de como é/foi para essas meninas nascer, crescer e, então, adolescer com HIV. São seus relatos valiosos que vão respondendo à questão de como as transformações no corpo e na sexualidade, as redes de apoio, o cuidado de si e da saúde podem influenciar na construção de suas identidades.

Ao som de suas vozes, vai-se percebendo, consoante a outros estudos (Della Negra & Nogueira-Martins, 2012; Lima & Pedro, 2008; Oliveira,), que adolescer com HIV/aids parece não ser/ter algo surpreendente, mas ser uma vivência muito semelhante a dos adolescentes em geral, mediada por transformações físicas e psíquicas, ora desejadas, ora resistidas e que muito se deve à possibilidade de maior sobrevida das pessoas vivendo com o vírus. Suas narrativas desmistificam, ainda, a adolescência como uma fase, já que evidenciam que suas vivências são "normais" como de qualquer outra pessoa, portadora ou não. As meninas, cada uma com sua singularidade, vivem conflitos, têm dúvidas, sofrem e amam como qualquer outra pessoa; ou seja, experimentam processos de identidade e não uma etapa de vida que, com o passar da idade, irá se extinguir.

As experiências sexuais, relacionadas ao namoro, concepção, construção de família e prevenção de DST, aparecem nos discursos das adolescentes envoltas, ao mesmo tempo, em desejos, tabus e dúvidas, convergindo, assim, com outros estudos (Ayres et al., 2004; Paiva et al., 2011) sobre a experiência sexual de adolescentes com HIV. Pode-se pensar ser esse fato decorrente das representações que circulam pela sociedade acerca da sexualidade, ainda vista como um tabu, e pouco, ou quase nada, dialogada, principalmente dentro do círculo familiar. A pesquisa de Paiva et al. (2011) também indica o despreparo dos adultos ao tratar de experiências sexuais envolvendo os adolescentes, o que traz preocupações à saúde sexual e reprodutiva dos mesmos.

Se, por um lado, o uso da camisinha é identificado como método para evitar filho, doenças, infecção, o que levaria a pensar que o fato de viverem com o HIV poderia estar exigindo das adolescentes uma atenção direcionada para essa informação; por outro, percebe-se uma indiscriminação, e até certa dúvida, quanto à utilidade do método, inclusive enquanto anticoncepcional. Já a possibilidade de vir a ter um filho, isso ainda não está nos planos das meninas, sendo que a relação sexual, assim como no caso da menstruação, é sentida predominantemente com repugnância e evitação. Também as expressões que envolvem o corpo são timidamente sinalizadas. Outra questão de destaque se relaciona à representação que elas têm do casamento: um estado negativo e tolhedor da liberdade, levando-as a afirmar não desejarem se casar.

No núcleo das redes de apoio, encontram-se várias instituições se entrelaçando, entre as quais se destacam a família, a escola e um profissional da saúde. As meninas entrevistadas endereçam à figura dos pais e avós a responsabilidade de cuidar e dar carinho, mesmo que, em determinadas situações, certas atitudes transformam-se em situações de vulnerabilidade e sofrimento. Na instituição escolar, aparecem professores, amigos e colegas de aula, sendo bastante frisada a importância de apoio e convivência entre os pares. Por outro lado, os serviços de saúde são pouco lembrados como fontes de apoio, ficando restritos a lugares em que se vai para as consultas, fazer exames e controlar a medicação. Adolescer com HIV/aids, na perspectiva de Paula, Cabral e Souza (2008), exige o apoio de todas essas instituições cuidadoras, pois é chegado o momento de o adolescente movimentar-se para a conquista de sua autonomia, de ser responsável pelo seu próprio cuidado, e nisso podem emergir dúvidas e angústias que serão mais bem resolvidas com a ajuda de familiares e profissionais.

As representações acerca do HIV/aids são marcadas por contradições nos discursos. Se, algumas vezes, a aids é percebida como um problema fisiológico, de certo modo até implicado pelo discurso médico, outras é tomada como algo ameaçador, ou ainda na tentativa de negar o discurso corrente de uma doença fatal e extremamente "contagiosa".

A necessidade de esconder sua identidade sorológica, que, no caso das meninas entrevistadas, traduz-se na não revelação do seu diagnóstico para além do círculo familiar, pode ser estendida a outras pessoas que, assim como elas, tentam, diante do silêncio, evitar o preconceito e as consequências deste. Em estudo realizado por Paula, Cabral e Souza (2009), especificamente sobre o adolescer com aids, também se evidenciou que, apesar de o adolescente mostrar-se como todos os seus pares "na maneira de agir, de comportar-se, na aparência, no humor, ele não fala que tem o vírus" (p. 637).

O medo do estigma impõe a esses sujeitos limitações em suas vidas, uma vez que muitas pessoas nessa condição acabam se privando ou tendo receio de fazer projetos de vida e viver a sexualidade, além do medo da exposição e a dificuldade de falar ou procurar ajuda quando não estão bem. Esse dado vai ao encontro do que Almeida e Labronici (2007) constatam, em que, para se proteger da rejeição, do preconceito e da discriminação, as pessoas que vivem com HIV "preferem não se expor, muitas vezes impedindo-os de confiar em alguém ou procurar cuidados para a sua saúde, aumentando a sua vulnerabilidade para adoecer de aids" (p. 272).

Percebe-se que a não revelação sobre o seu estado sorológico, tanto à rede de amigos quanto aos profissionais da saúde, e até mesmo dentro das unidades familiares, é fortemente atravessada pelas representações ainda muito negativas e "erradas" da aids. Diante disso, as adolescentes encontram como opção viável esconder partes de si, o que acaba influenciando na construção de sua identidade e na promoção do autocuidado.

Quando se fala em autocuidado, refere-se ao modo como o sujeito cuida de sua saúde integralmente, seja em níveis de promoção de saúde, prevenção de doenças e de possíveis reinfecções, ou mesmo na reabilitação de sua saúde quando acometido por doenças oportunistas. Diante das informações levantadas nesse estudo, percebe-se um autocuidado, na maioria das vezes, voltado apenas para o uso de medicação, e ainda em razão do desejo de um outro (pais, avós, médico). Enquanto isso, a prevenção aparece fortemente ligada ao fato de se ter HIV, uma vez que as prevenções são relacionadas a doenças específicas, como gripes, resfriados, infecções, que podem vir a implicar no estado de saúde delas.

 

Considerações finais

Com base na exposição do que significa viver com HIV/aids e como isso interfere na construção da identidade do adolescente, constata-se que muitos desafios ainda convivem com os portadores, familiares e profissionais da saúde. Nesse estudo, perceberam-se demandas que ainda carecem de atenção, tais como em relação a dúvidas e preocupações relacionadas à aceitação do corpo e da sexualidade para além da reprodução, à promoção do autocuidado para além do uso da medicação e à inserção em grupos para além da soropositividade. Enfim, uma série de elementos que exige dos profissionais da saúde um olhar que contemple questões fisiológicas da aids e também elementos psicossociais.

Certamente falar sobre si em um contexto no qual ainda permeiam muitos preconceitos e tabus não é nada fácil. No entanto se faz mister a criação de espaços em que se possam compartilhar sofrimentos e sentimentos, muitas vezes, presos por toda vida pelo medo do julgamento e preconceito do outro, ou ainda por causa de uma rede de apoio empobrecida. A representação negativa da aids está em todo lugar, e é esta que precisa sofrer mudanças para que os portadores do HIV possam se sentir aceitos, valorizados e dignos de sua identidade.

O trabalho com familiares também se faz muito importante no esclarecimento de dúvidas e, principalmente, na orientação quanto à decisão de revelar o diagnóstico ao filho(a)/neto(a), pois, diante desse conhecimento, é possível tornar a criança/adolescente agente ativo de seu tratamento, promovendo o autocuidado e contribuindo para a construção de sua identidade que já se processará mediante a vivência com o HIV em sua vida.

Ainda, questões relacionadas à sexualidade (modos de perceber a menstruação, o namoro, o casamento, a concepção, bem como a tímida intimidade com o corpo), que marcaram as falas das meninas, merecem ser estudadas sob a perspectiva de gênero, pois acreditamos que a maneira de experienciá-las está diretamente relacionada com as construções de gênero. Desse modo, sugere-se que novos estudos sejam feitos levando em conta particularidades de gênero, sempre em relação com outros aspectos, como idade, cultura, etc.

Assim, encerra-se essa tentativa de articular casos, pessoas, singularidades que, mesmo diferentes, aproximam-se por uma causa em comum: viver com HIV. Em meio a suas representações acerca do HIV/aids, muitas incertezas ainda; no entanto, projetos de vida para o futuro são apontados, o que pode ratificar que o processo de metamorfose não só de suas identidades, mas sim de suas vidas, continua aceso em cada uma dessas meninas, que, no fim das contas, apenas querem ser felizes.

 

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Texto recebido em julho de 2012 e aprovado para publicação em janeiro de 2014.

 

 

*Mestra em Psicologia (UFSM-RS), pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Saúde, Minorias Sociais e Comunicação", psicóloga da Prefeitura Municipal de Jaguari-RS. Endereço para correspondência: Avenida Roraima, nº 1000, prédio 74 B, sala 3210 A - Cidade Universitária, Camobi, Santa Maria-RS, Brasil. CEP: 97105-900. E-mail:vanessa.berni@yahoo.com.br
**Doutora em Psicologia (PUC-RS), docente do PPGP-UFSM, líder do Grupo de Pesquisa "Saúde, Minorias Sociais e Comunicação", bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq - Nível 2, psicóloga. Endereço: Avenida Roraima, nº 1000, prédio 74 B, sala 3210 A - Cidade Universitária, Camobi, Santa Maria-RS, Brasil. CEP: 97105-900. E-mail:adrianeroso@gmail.com
1 Dados e análise preliminares dessa pesquisa foram apresentadas em 2010, no XIV Simpósio de Ensino, Pesquisa e Extensão - Responsabilidade Socioambiental, na Unifra, em Santa Maria-RS, 2010, sob o título "Identidade e cuidado de si: um estudo com pré-adolescentes que convivem com HIV/aids".
2O estudo aqui apresentado responde à parte qualitativa de um amplo projeto de pesquisa intitulado "Corpos positivos: um estudo sobre identidade e representações de adolescentes em tempos de aids", aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSM, sob o CAAE "0139.0.243.000-10", o qual contou com apoio do MEC/REUNI/2011, do PIBIT/CNPQ (2012), do Fundo de Incentivo à Inovação Tecnológica (FIT/2012/2013), referente ao Programa Integrado de Auxílio à Inovação Tecnológica e ainda ao Programa PROIC-HUSM/2012/2013.
3 As frases e/ou expressões entre aspas são os discursos transcritos de modo literal das adolescentes entrevistadas, isto é, não sofreram alterações ou correções gramaticais. A cada recorte de fala, não inserimos o nome da entrevistada entre parênteses de modo a facilitar a leitura, apenas inserimos quando a citação contém mais de 40 palavras.
4 Sexualidade se refere a todas as experiências das adolescentes nas dimensões amorosa, da intimidade e da experimentação (Paiva et al., 2011). Não se restringe, portanto, a sexo, apesar de o significado que as participantes dão à sexualidade tenderem a ser confundido com este último.


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