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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.21 no.1 Belo Horizonte Jan. 2015

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2015V21N1P158 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2015V21N1P158

 

 

A obscenidade do olhar: da janela indiscreta de Alfred Hitchcock à câmera diegética

 

The obscenity of a look: from indiscreet window of Alfred Hitchcock to a diegetic camera

 

La obscenidad de la mirada: de la ventana indiscreta de Alfred Hitchcock a la cámara diegética

 

 

Renata Damiano Riguini*; Ilka Franco Ferrari**

 

 


Resumo

Neste artigo, exploraremos o cinema como campo de interlocução para discussões sobre o olhar, na psicanálise. Em Janela Indiscreta, Hitchcock faz uso de um tipo de artifício no qual a câmera se confunde com o olho do personagem e do espectador. Assim, o apetite do olho é provocado, por Hitchcock, ao saber fazê-lo funcionar servindo à pulsão. A validade de retomar esse modelo é constatar que o recurso do mestre do suspense é explorado até a obscenidade em nossos dias; na obscenidade de querer poder ver tudo, condizente com uma época em que a intimidade já não se esconde, em que tudo se mostra. Na pista de Hitchcock, com a tecnologia, o cinema de horror investe na câmera diegética e promove milhões em bilheteria, desde A Bruxa de Blair. Acreditamos que o cinema nos ensina sobre uma nova forma de uso do olho, sintoma atual, que o torna mais que indiscreto, obsceno.

Palavras-chave: Olhar. Objeto a. Obsceno. Cinema. Íntimo.


Abstract

In this article we will explore the film as a dialogue field for discussions about the look on psychoanalysis. In "Rear Window", Hitchcock makes use of a type of artifice in which the camera is intertwined with the character and the viewer’s eye. Thus, the appetite of the eye is caused, by Hitchcock, when he knows how it works, serving to drive. The validity of resume this model is to see that the appeal of the "master of the suspense" is explored until the obscenity in our days; the obscenity of wanting to see everything, befitting an era where intimacy no longer hides, in it all shows. Following where Hitchcock left off, with technology, the horror cinema invests in diegetic camera and promotes millions in box office since "The Blair Witch Project". We believe that the movie teaches us about another form of use the eye, current symptom, which makes it more than indiscreet, but obscene.

Keywords: Gaze. Object a. Obscene. Cinema. Intimate.


Resumen

Este artículo explorará el cine como campo de cuadro de diálogo para las discusiones sobre la mirada en el psicoanálisis. En la película "La Ventana Indiscreta", Hitchcock hace uso de un tipo de artificio donde la cámara se confunde con el ojo del personaje y del espectador. Por lo tanto, el apetito de los ojos es provocado, por Hitchcock, al saber hacerlo servir a la pulsión. La validez de recuperar este modelo es ver que el llamamiento del maestro del suspense se explora hasta la obscenidad en nuestros días; la obscenidad de querer verlo todo, como corresponde a una época cuando intimidad ya no esconde, en él todos los espetáculos. Siguiendo a Hitchcock, con la tecnología, la película de terror invierte en la cámara diegética, y promueve millones en taquilla desde “La Bruja de Blair”. Creemos que el cine nos enseña acerca de una nueva forma de usar los ojos, síntoma actual, que lo hace más indiscreto, pero obsceno.

Palabras clave: Mirada. Objeto a. Obsceno. Íntimo.


 

 

Neste artigo, dentro das infinitas possibilidades de trocas e impasses produtivos, a fim de articular psicanálise e cinema, privilegiaremos o ponto evanescente e, paradoxalmente indiscreto ou até obsceno, do olhar, seguindo-o com a câmera. Nossa intenção não é discutir o ponto onde olho e câmera se equivalem no cinema: olho-câmera do diretor, olho-câmera da subjetividade do ator. O objetivo aqui é explorar os usos do olho a partir do cinema, entendendo que, dessa forma, extrairemos consequências para a teoria e a clínica psicanalítica. Vale lembrar, nesse sentido, que Dunker e Rodrigues (2013, p. 24) sugerem que existe uma relação de homologia entre estas duas práticas, psicanálise e cinema. Elas nascem na mesma época e, mesmo não tendo as mesmas funções, sua homologia se apoia na afinidade de suas operações, na prática. Ou seja, além das muitas "afinidades sociológicas, narrativas, políticas e semióticas entre cinema e psicanálise, a fundamental, que reúne todas as anteriores, é de método" (Dunker & Rodrigues, 2013, p. 24).

Podemos afirmar que, desde muito tempo, psicanálise e cinema se encontram. Mas não foi Freud que se interessou por essa arte, apesar de inventar a psicanálise exatamente na mesma época em que os irmãos Lumière estavam apresentando, pela primeira veze, o cinematógrafo.1 Como ressalta Rivera (2006), no entanto, Freud concedeu um lugar privilegiado em sua obra para analogias entre o aparelho psíquico e o aparelho ótico. Ele contribuiu ainda quando falou sobre arte. Em Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, Freud (1907/1996) já reconhecia a arte como campo de saber que operaria na falha na qual a ciência, e também a psicanálise, encontra obstáculos em seu avanço.

Tal posição a respeito da arte se manteve em toda sua obra e, apesar de reconhecer as limitações do ideal de um saber que pudesse dizer toda a verdade de seu objeto (ideal que marcou sua época), paradoxalmente, Freud entendia a arte como satisfação dos desejos inconscientes. E, enquanto tal, passível de interpretação.2 Para Freud, no entanto, assim como o sonho, a obra de arte teria o caráter de uma solução de compromisso entre os sistemas inconsciente e préconsciente- consciente.

Diferentemente do sonho, no entanto, as obras de arte podem ser compartilhadas socialmente e, dessa forma, podem se estender, suscitar e satisfazer alguns desejos inconscientes, que foram instigados primeiramente no artista e depois nos homens comuns. Segundo Ianini e Vilela (2012), a posição freudiana facilitou, especialmente entre seus seguidores, a psicologia dos autores, dando margem para, assim, considerar a obra de um artista como a expressão de um desejo recalcado.

Foi Lacan quem insistiu e redimensionou a perspectiva freudiana a respeito da arte, situando-a como intérprete da psicanálise, como saber que precede o psicanalista. Ele nos ensinou, em sua Homenagem a Marguerite Duras (Lacan, 1965/2003), que o artista abre o caminho para os psicanalistas quando essa abertura deixa passagem a um saber que não se sabe, ou que não se sabe que sabe. Mais ainda, Lacan nos ensina sobre algo que todo leitor já experimentou: o valor de um romance está na possibilidade intrínseca de fazer vibrar algo no sujeito, que possa lançá-lo em um mais além do sentido, que possa ressoar à distância. O que ressoa, no entanto, não será da ordem do inconsciente ou do interpretável. Para Brousse (2006), a partir de Lacan, não falaremos mais da arte como formação do inconsciente, mas como uma produção inconsciente, o que implica colocá-la no registro da função de objeto a. Resta ao sujeito retumbante saber fazer com os ecos, com os pedaços e restos que o circundarão.

Para Mangiarotti (2012), o cinema tem duas razões bem específicas para nos interessar como psicanalistas estudiosos do olhar e das imagens. Ao considerarmos o cinema como novela, relato, ele se constitui não só de palavras, mas também de imagens, e tudo que o compõe termina formando uma espécie atual de mito. Para uma comparação simples, lembramos que, assim como para o filósofo, que tem o mito como uma forma narrativa de elaboração alternativa ao logos, à razão lógica, ou ao raciocínio abstrato, para os psicanalistas o cinema funciona como um tipo simples de conduzir uma demonstração de uma situação particularmente difícil.

Sob esse aspecto, que aproxima psicanálise e filosofia na análise do cinema, o psicanalista se apoia no filme não para interpretá-lo, mas para esclarecer algum ponto de sua doutrina. Para Lacan, como adiantamos a respeito da arte, não há um interesse em interpretar o texto ou seu autor, seja ele literário ou cinematográfico. Pelo contrário, ele nos mostra que a psicanálise se orienta, se transmite e avança a partir de encontros contingentes, conforme o psicanalista se deixa surpreender, seja com seus analisantes, seja com as obras que lê, vê, escuta ou assiste.

A segunda razão, segundo Mangiarotti (2012), que leva os psicanalistas a se interessarem, e tanto, pelo cinema, reporta-nos ao objeto das duas invenções, ou seja, o mesmo objeto que anima o cinema causa a psicanálise: o objeto a. Isso porque ambos tratam de afetos que permanecem carregadas desse tal objeto, nas imagens e nos relatos/roteiros que permeiam as duas práticas, ambos trazendo em seu conteúdo latente a potência do desejo, o silêncio da morte, o paradoxal amor, a sexualidade e o trauma, a violência humana, a pulsão e as invenções.

 

O objeto olhar e o cinema

O objeto a foi o objeto lógico inventado por Lacan para dar conta das pulsões parciais às quais está subordinado o sujeito. Lacan não foi o primeiro a falar em objeto na teoria psicanalítica, contudo, antes dele, a perspectiva dos pósfreudianos colocava esse elemento dentro de um suposto desenvolvimento libidinal do indivíduo. Esse modelo privilegiava os objetos, oral e anal, que tinham como finalidade última, normal e genética, a convergência em um objeto genital.

Lacan, baseado em um ponto de vista estrutural (que anula a questão da gênese, operando uma separação da teoria do desenvolvimento da libido), precisa a questão do objeto não como um elemento de estrutura linguística, nem significante nem significado. E, por isso mesmo, nomeia-o pequeno a, dentro de uma estrutura de linguagem (Miller, 2013). São partes separáveis do corpo que, no processo lógico de castração, caem como resto, pedaço e, agora, também funcionam como objeto perdido para a neurose.

Aos três objetos da pulsão, já citados por Freud, Lacan, a partir de sua clínica da psicose, acrescenta, no seminário 11, Os quatro conceitos da psicanálise (1998), outros dois: a voz e o olhar.

Enquanto eles são oral, anal, escópico, vocal, os objetos situam-se em torno de um vazio e é nesta condição que diversamente o encarnam. Ou seja, cada um desses objetos é sem dúvida especificado por certa matéria, mas é especificado por essa matéria na medida em que a esvazia. E é por isso que o objeto a na verdade é, para Lacan, uma função lógica, uma consistência lógica que consegue se encarnar naquilo que cai do corpo sob a forma de diversos dejetos (Miller, 2013, p. 8).

Um filme, portanto, tem a possibilidade de perturbar ao nos conduzir, justamente, ao inquietante e estrangeiro objeto, chamado por Lacan de a (um dos nomes da angústia, mas também a causa do desejo, estranho objeto de fascínio e horror). As conexões, dessa forma, não param: são a pele e a película; a tela e a tela da fantasia; a linguagem cinematográfica e as narrativas analíticas; as projeções; os roteiros, as identificações, percepção e alucinação; sonho e vigília; a cortina e a pálpebra; o ficcional e sua articulação com o campo escópico, entre outras tantas possibilidades de argumentos que podem ser elaborados no caso a caso de cada filme, ou de cada diretor, ou de cada roteirista.

O cinema se constitui, portanto, como a mais imaterial das artes e esconde o mais imaterial dos objetos: o olhar. Lacan (1964/1998), em seu já citado Seminário 11, sublinha a esquize que há entre olho e olhar e, ainda, a pré-existência do olhar, assinalando, com Merleau-Ponty, que somos olhados no espetáculo do mundo. Isso porque o sujeito vê desde um único ponto, mas é olhado desde todas as partes. O ponto original da visão não estará, portanto, no corpo, mas no que se chama a carne do mundo, uma rede da qual, primeiramente, o sujeito faz parte e, a posteriori, surgirá como olho. O olhar, segundo Lacan, está do lado de fora, e o que determina o sujeito no campo do visível é justamente esse olhar, ou seja, o fato de ser olhado, ser quadro (Lacan, 1964/1998, p. 104).

Esse olhar que preexiste ao sujeito confirma sua existência. No entanto, há, também, algo de inquietante nele, algo que paranoiciza, algo ameaçador e violento se não for constantemente desarmado, mas que o institui como sujeito, speculum mundi. Já que o olhar ameaça violentar o sujeito, para Lacan, este precisa inventar seus meios de domar o olhar, por exemplo, criando a "imagem anteparo" (fantasia, quadro, cena, sonho). É possível comparar essa tela, a tela da imagem anteparo, com a lembrança encobridora, tipicamente infantil, descrita por Freud em 1899 (Freud, 1899/1996). Nesta, uma memória fantástica, ficcional, baseada restos mnêmicos, constrói uma cena a fim de proteger o sujeito de algum conteúdo que deve permanecer recalcado. Nesse sentido, a lembrança encobridora será ela, também, uma mediadora entre o sujeito e o trauma, ou entre o sujeito e o desejo.

Para aplacar tanto o apetite do olho que busca o objeto perdido e impossível de seu desejo quanto o olhar obsceno do Outro que se dirige a ele de todos os lados, a arte faz quadro. A imagem anteparo é um véu de representação que recobre o objeto olhar. É a cortina que vela e revela. Ela camufla o sujeito ao apresentar outra coisa para o olhar imediato e, ao mesmo tempo, indica onde está o desejo. A imagem anteparo é um dar a ver que pacifica.

No que é que esse dar a ver pacifica alguma coisa? – senão nisto, que há um apetite do olho, que se trata de alimentar, constitui o valor de encanto da pintura. Esse valor é, para nós, a ser procurado num plano bem menos elevado do que se supõe, naquilo que é a verdadeira função do órgão do olho, o olho cheio de voracidade, que é o do mau-olhado (Lacan, , 1964/1998, p. 112).

O olhar é, assim, imperceptível, inacessível, a não ser quando a realidade vacila e ele se torna perturbador ou quando ele se materializa nas alucinações psicóticas. Apesar de ser invisível, podemos dizer que o olhar é uma condensação de gozo extraída do campo perceptivo. Ao encontramos uma realidade estável, não caótica, na qual podemos nos situar como ponto de vista, como sujeitos dominantes da situação, estaremos em um contexto no qual o gozo privilegia a realidade, escondendo o olhar. O cinema, explica Mangiarotti (2012), constituído pela substância luminosa, esconde o objeto olhar por trás da tela, digamos, encobridora, mas, ao mesmo tempo, o revela, como tentaremos explorar neste texto, a partir de Hitchcock.

Foi nesse sentido que Lacan disse que o cinema pode ser o revelador mais sensível que pode, literalmente, iluminar a psicanálise.

 

Hitchcock e a Janela... Indiscreta

Nesta pista, começaremos com Alfred Hitchcock que, em 1954, inaugurou um estilo quando filmou Janela Indiscreta, nome do filme em português. O título original, em inglês, é Rear Window (Janela dos Fundos). O filme foi baseado em um pequeno livro de nome bem interessante: Murder from a fixed viewpoint (tradução literal: "Assassinato de um ponto de vista fixo"), de Cornell Woolrich.

Narrado pela voz de Jeff, o protagonista do filme, o desafio técnico do diretor de cinema, ao transpor o texto para a tela, foi tirar a ubiquidade da câmera, ou seja, a possibilidade de posicioná-la em vários lugares. Fixou-a então como o olho de um só personagem, Jeff, e com isso não teceu seu roteiro como o costume, com a câmara acompanhando vários pontos de vista, vários personagens. Com tal técnica, Hitchcock aproximou ainda mais a identificação do personagem com o espectador, vale frisar, pelo apetite do olho já despertado pelas cenas, pela própria tela.

Claro, acho que era um pouco parecido com bisbilhotice, poderia até ser confundido com a concentração febril de um voyeur. Isso não era culpa minha, não era essa a questão. A questão era que, justamente naquela ocasião, meus movimentos estavam severamente limitados. Eu podia ir da janela para cama, da cama para janela, mais nada. [...] Bem, o que eu ia fazer? Ficar ali sentado com os olhos bem fechados? (Woolrich, 2008, p. 9)

Em Janela Indiscreta, há um único momento em que Hitchcock muda essa perspectiva: uma mulher, na sua varanda, quando descobre que seu cachorro querido foi morto pelo suposto assassino da vizinhança, começa a gritar e atrai todos os olhares. Nesse momento, todos saem à janela para olhar o que acontece. Menos o suspeito, de quem só sabemos que está atrás de sua janela escura pela brasa de seu cigarro, e nos sentimos olhados por ele. Aqui, a direção muda de ponto de vista; deixa o apartamento de Jeff e se instala no pátio, com uma vista de diversos ângulos, a chamada câmera objetiva.

Em entrevista a François Truffaut (2004), Hitchcock diz de seu interesse nas técnicas que desenvolvia, dessa formalização e montagem do cinema. Quanto à história propriamente dita, ele diz que são indispensáveis, mas para garantir o interesse comercial de seus filmes, ao manter a atenção dos espectadores.

Atualmente, assistimos a uma nova geração de filmes feitos em primeira pessoa, repetindo a tradição Hitchcocktiana do ponto fixo, mas em que o uso do olho se dá de forma particularmente diferente. Seus principais representantes são os filmes de horror e suspense, falsos documentários que se valem dos aparelhos tecnológicos, como as câmeras pessoais e fitas cassete perdidas e encontradas para dar crédito à versão, sobrenatural ou não, dos fatos.

Nesse caso, falamos de um subgênero do cinema de horror e suspense e, para ilustrar, citamos um filme em especial, V/H/S 2 (2013), cuja primeira cena evoca Janela Indiscreta, e não nos parece que de maneira inocente. Os diretores já começam o filme usando a câmera, bem como a arquitetura, a janela onde se posiciona um personagem e seu ponto de vista, e o pátio, tudo parecido com Janela Indiscreta, mas de forma diferente. Essa janela já não será mais a tela, o enquadramento subjetivo de quem olha, da distância do pátio (como em Janela Indiscreta, em que Jeff olha de seu apartamento os outros apartamentos, da distância de um pátio), as janelas espelhadas onde vê a si mesmo. Ela é um espaço do outro a ser invadido, olhado e publicado sem reservas.

Nesse filme, na cena em questão, a dupla de detetives Ayesha (Kelsy Abbott) e Larry (Lawrence Michael Levine), que investiga o desaparecimento de um jovem, chega para fotografar e filmar, com uma câmera caseira que um deles tem em mãos, um casal que faz sexo em um motel. Já estão no pátio e chegam filmando por dentro, brecha por onde invadem o espaço alheio. O espectador mal vê o casal de detetives. Ele vê a janela e entra direto nela, sem frestas, fechaduras ou mal-entendidos: já estamos dentro do apartamento, entramos pela janela e vemos tudo pela realidade registrada fielmente na câmera/olho do espectador, que está na mão de um dos detetives, que esmiuçará tudo. Já é interessante observar que raramente haverá uma identificação do espectador com um dos protagonistas, como no caso de Janela Indiscreta, em que é possível logo se identificar com Jeff. Em V/H/S 2, somente o olho se identifica com a câmera, e os atores/personagens são diluídos, sem subjetividade ou mediação, sem traço que leve o espectador a se identificar.

No filme, mais tarde, seguindo pistas, o casal encontra uma série de fitas cassete com registros de histórias paranormais, que têm relação com o desaparecimento do jovem, enquanto se desenrola mais uma história de horror, dessa vez em ato, envolvendo os dois detetives. Essa cena também está sendo filmada de forma caseira. Enquanto um dos protagonistas, Ayesha assiste às fitas e é filmada pela webcam, o outro parceiro, Larry investiga a casa com sua câmera nas mãos.

V/H/S 2 é filmado em primeira pessoa. Esse é um recurso fílmico conhecido como câmera diegética, que ficou bem popular como subgênero do horror e suspense, a exemplo dos chamados falsos documentários de horror found footage, desde o filme A bruxa de Blair, embora houvesse começado antes, em meados da década de 1970, segundo Carreiro (2013). Os found footages são ficções codificadas como documentários. Na maioria das vezes, seu conteúdo é de horror e suspense paranormal.

Vale lembrar, com Carreiro (2013, p. 227), que o interesse crescente por tais filmes, "constituídos por imagens (e sons) de textura amadora, íntimas ou caseiras", nas últimas duas décadas, faz parte de um fenômeno mais amplo e culturalmente significativo que aponta simplesmente para a consolidação de um subgênero fílmico.

A ressignificação de filmes de família, o uso de vídeos disponíveis na Internet dentro de trabalhos audiovisuais, a popularidade de imagens amadoras, os fenômenos midiáticos nascidos de vídeos caseiros postados no You Tube, a forte crescente aceitação de erros técnicos – até mesmo a preferência por imagens que contenham esses erros, como índice de um realismo nem sempre verdadeiro – e a espetacularização de imagens e sons da intimidade constituem temas que integram um debate mais amplo sobre novos regimes de visualidade que privilegiam imagens não profissionais (Carreiro, 2013, p. 227).

A câmera diegética funciona como se a sua presença na cena atestasse a veracidade dos acontecimentos. Para tanto, ela necessita de alguns recursos para compor seu estilo e, entre eles, encontramos alguns que diferem da tradição narrativa do cinema ficcional. Entre eles, aqui nos interessa a questão do ponto de vista. Na tradição narrativa do cinema ficcional, o enredo é visto e narrado por vários pontos de vista, tanto objetivos quanto subjetivos. A câmera costuma ter a possibilidade da ubiquidade, ou seja, ela permite ao diretor movimentar, mudar de ponto de vista narrativo, conforme o enredo ou a necessidade do filme.

A ubiquidade consiste em uma convenção cinematográfica, uma ferramenta narrativa que não possui lastro na realidade, mas cujo uso contínuo tornou-a aceitável pelo espectador, de modo que naturalizamos o princípio de que, em uma ficção comum, imagens e sons nos serão apresentadas do ângulo mais favorável possível à compreensão do enredo (Carreiro, 2013, p. 240).

Os falsos documentários, por sua vez, são filmados por um ponto de vista fixo, ou quase fixo, o que limita o espaço a ser filmado. Demônio (2010), por exemplo, foi filmado a partir das imagens de uma câmera de segurança de um elevador que estraga e, uma vez lá, os terrores começam. Além disso, normalmente será sempre uma pessoa que vai operar o equipamento, ou mesmo se for uma câmera de vigilância - como no filme Demônio (2010) ou Atividade Paranormal (2007). Será sempre um único ponto de vista, um ângulo de visão, assim como encontramos em Janela Indiscreta, com sua a limitação do espaço e do ponto de visão.

Esses filmes propõem gerar horror, a partir de imagens amadoras e com imperfeições técnicas simuladas, suficientes para produzir um efeito afetivo mais potente. Parte do fascínio dos found footages, garante Carreiro (2013), está nessa estilística que simula o aspecto histórico dos sons e imagens a serem incluídos no roteiro, sob um fundo de documentário. O espectador sabe que as imagens passadas não são de fato verdadeiras, mas se o fossem, muito provavelmente seriam daquela forma como estão apresentadas.

Com base nesse diferente modo de filmagem, podemos dizer que estamos também em uma época diferente, na qual nossos olhos funcionam de maneira diferente, na qual o uso do olho já não é o mesmo. Estamos em uma época em que, para além do já esperado espetáculo do mundo, somos olhados de todos os lados, perseguidos por um olhar totalitário que o psicanalista Gerard Wajcman (2011) chamou de "Olho Absoluto", uma sorte de olho obsceno que priva o sujeito de seu espaço íntimo.

 

O íntimo, a arquitetura e os sintomas sociais: fronteiras entre psicanálise e cinema

Há mais uma interseção importante, a que ocorre entre psicanálise e cinema, que não podemos deixar de abordar, pois se impõe: o íntimo. O domínio do íntimo é um espaço também explorado, e por que não adiantarmos, transformado pela psicanálise e pelo cinema. Afinal, tela quadro e janela são condições que nos possibilitam circunscrever um espaço íntimo, um núcleo subjetivo. Sabemos que o olho também é atraído pelo íntimo e que, na contemporaneidade, cada vez mais o íntimo está à mostra. Se havia algo de obsceno escondido na intimidade, agora a obscenidade está no fato de que nada mais permanece velado. Tudo quer se mostrar e se revelar.

O íntimo é uma construção, não é um lugar dado a priori. Seguiremos aqui a descrição do psicanalista Wajcman (2012), que o entende como um lugar de essência arquitetônica e escópica, já que nele o sujeito pode estar e sentirse abrigado do olhar do Outro. Esse seria, portanto, um espaço de exclusão interna, uma ilha a que chamamos de morada, ou seja, uma possibilidade de se esconder. Em outro ensaio, Wajcman (2006) propõe pensarmos, como exercício, uma origem (mítica) para a arquitetura, assim como no século XVIII se usava especular sobre a origem das coisas humanas. Uma doutrina da origem da arquitetura, para o autor, partiria da ideia de que, certo dia, um homem pensou em se refugiar ou se abrigar em uma gruta e, nessa ocasião, sentindo-se acolhido em uma casa, nasceu a humanidade.

O que Wajcman nos ensina é que a arquitetura, como arte fundadora, uma vez que cria o escondido e protege o homem do olhar do Outro, instaura a humanidade enquanto tal, ao possibilitar a sombra para o sujeito constituir-se em um espaço privado. A ideia da arquitetura como arte fundamental, Wajcman a retira do Seminário 7, A ética da psicanálise (1959-1960/1988, p. 169 ), no qual Lacan define a arte como algo organizado em torno do vazio que, como o vaso do oleiro, circunscreve um dentro e um fora.

Nesses termos, ele coloca o homem como artífice do vazio constituinte da própria subjetividade, dos objetos que funcionarão como representantes do objeto perdido, ou seja, como artesão de seus suportes psíquicos.

No entanto, Wajcman, como adiantado, leva a teorização de Lacan mais longe. Para ele, a primeira forma arquitetônica nasceu porque, para o homem, antes dele, nossa terra já estava habitada por um olhar. Esta é a suposição fundamental da qual nenhum homem consegue se desfazer: há algo que nos olha. Somos seres olhados, e esse olhar é irredutível. Estaremos sempre um pouco enquadrados na janela do Outro, o que implica dizer que qualquer espaço vazio será um espaço habitado por um olhar e, nesse sentido, o homem é o único animal a supor que há algo mais além do visível. E, mais uma vez, esse algo tem olhos.

Devemos dar a devida importância à arquitetura nesse contexto, pois, uma vez que supomos a função essencial desse olhar irredutível, a arquitetura ganha também uma função fundamental para o sujeito. E ela não se resume a construir para proteger a vida e socializar um espaço, mas para criar opacidade e sombra: "Este ponto da arquitetura não humaniza um espaço, instaura uma humanidade enquanto tal, dando ao homem a possibilidade da sombra, e com esta a do segredo" (Wajcman, 2006, p. 97). Ao entender que a sombra é uma possibilidade de subtrair-se do olhar do Outro que satura o espaço, o escondido é uma condição material da liberdade do homem, completa esse psicanalista.

Em nossa época, é possível perceber que o íntimo corre perigo. Dessa forma, nos adverte Wajcman (2002), também corre perigo o sujeito da psicanálise. Isso porque o íntimo e o sujeito dividido, que não pode ser transparente a si mesmo, nasceram juntos. Existe, segundo Wajcman (2006), uma história do íntimo que toma forma com o Renascimento, com a instauração do quadro moderno definido como uma janela aberta (definição célebre por Léon Battista Alberti, em 1435). O que conhecemos na arquitetura como janela, e, portanto, quadro, é um buraco, furo feito propositalmente em uma parede, sendo capaz de criar um dentro e um fora, desde onde posso ver o mundo, porque posso retirar-me detrás dela, escondido, na sombra.

Pensar o quadro como janela cumpre com a ideia moderna de que o homem tem direito ao olhar sobre o mundo e saber sobre ele, tal como Deus. Por outro lado, circunscreve o território do íntimo e o ponto geometral chamado ponto de vista, termo que usamos, hoje, no senso comum, de maneira bem desavisada! O ponto de vista foi definido desde a Renascença, mas foi deixado de lado pelos historiadores da arte. Lacan (1964/1998) o retomou em suas construções sobre o olho e o olhar, entendendo-o como condição desta nova visão da qual goza o sujeito: ver sem ser visto. Pois essa é a definição de ponto de vista, desta vez, nesse texto, para a psicanálise, "o campo do visível está fundamentalmente incompleto, uma só coisa não se vê no que vejo: o ponto desde onde vejo" (Wajcman, 2006, p. 100).

Ora, na contemporaneidade, antes mesmo de nascer, um bebê já passou por diversas câmeras de ultrassonografia, e outros que se inventarem e, dentro do seu quarto, na ausência ansiosa dos pais, ele agora sorri para as lentes, interage com o olho-câmera que vigia seu berço e seus barulhos. Pelas ruas e propriedades, nunca o sujeito foi tão olhado e vigiado. A webcam disponibilizou também um olho que lhe olha enquanto o expõe e, assim, os olhos e câmeras se multiplicam, multiplicando as imagens cada vez mais evanescentes. As imagens vêm destronando as palavras, e o dito popular, "uma imagem vale mais que mil palavras", tornou-se uma ideologia.

O que subjaz a essa lógica, para Lebovits (2007), tem como ideal a transparência, e como moral a autenticidade. Ao mesmo tempo em que a crença na imagem como verdade aumenta, assistimos a um exibicionismo desmedido que culmina nas celebridades instantâneas da televisão e da internet. A imagem não mente, e o sujeito dividido, até então obscuro a si mesmo, acredita ser o eu da personalidade indivisível, o "ego forte" que é ele mesmo, como é possível escutar nos programas tipo reality shows, nos quais as pessoas se apresentam e, com muito orgulho, dizem: "Eu sou eu mesma!". Aqui, a transparência revela uma totalidade ilusória e forclusiva da falta originária e estrutural, tornando impossível qualquer assunção do furo no saber.

A exibição sem pudor, no entanto, tal como afirma essa autora, somente é possível com a condição de que o sujeito não se reconheça como tal naquilo que mostra. Esse não reconhecimento atesta um indivíduo acachapado por um discurso que diz dele como um produto e que, assim, pode deixar-se ser visto sem se sentir exposto (uma vez que não há nada desconhecido em um sistema de causa e efeito sem erros). E, vale dizer, reduzir o homem ao visível é reduzilo ao seu organismo pensável, como objeto da ciência, ou à sua imagem, objeto evanescente, objeto nada.

Para Wajcman (2006) a opacidade, a sombra e o segredo são os territórios do sujeito, e isso implica a noção de fronteira. Surge, em nossos dias, esse fantasma de um sujeito transparente, aquele que não somente é visto de todos os lados, mas também é sabido, radiografado, revelado e, autêntico, diz tudo que pensa (mais um ideal dos nossos tempos seguido bem de perto pela internet e, especialmente, as redes sociais).3

A ameaça ao sujeito que permeia a contemporaneidade é a de que os limites da fronteira sejam rompidos e o sujeito permaneça acossado pelo olhar totalitário do Outro. Nos casos de paranoia, por exemplo, temos os exemplos mais trágicos de um olhar inoportuno e invasivo que nenhuma lei consegue barrar. Aliás, uma das faces da contemporaneidade é a reação de se proteger da violência por meio de mais dispositivos tecnológicos, outros prolongamentos do olho vigilante, herdeiros do olho mágico, talvez nossa primeira extensão do olho usada como dispositivo de vigilância técnica.

A revista Select dedicou um número ao assunto. Nele, a colunista Fernanda Bruno (2013) esclarece que as câmeras que fazem funcionar o que já chamam de vídeo vigilância inteligente têm um olho paranoico que, no social, encarnam um modo de defesa paranoide, o qual, no plano individual, serviria como uma proteção à integridade do Ideal do eu. Mas o mesmo que serve a uma proteção paranoide, no plano social e urbano, aposta em um ideal de segurança que segue, justamente, na contramão dos processos que inventam e criam os modos de ocupar e experimentar a vida na cidade e em comunidade. Esse sistema faz obstáculo ao que funciona como vivo, ao que se transforma no uso cotidiano das pessoas.

A psicanálise se interessa pelo que chama de novos sintomas sociais, ou seja, os novos sintomas que são articulados dentro discurso dominante e que, por isso, perdem seu caráter de singularidade, mas nos ensinam muito sobre nossa época. A psicanálise também se interessa sobre os efeitos dos novos sintomas, afinal ela não desconhece que eles interrogam a experiência clínica com o singular de cada caso, com o um por um. Seu interesse estende-se, ainda, às soluções criadas a partir dos novos modos de viver a pulsão, nesse caso, a pulsão escópica. Continuaremos, portanto, pela via aberta pela arte.

 

O olhar pelas câmeras: da indiscrição à obscenidade

Em Janela Indiscreta (1954), Jeff é um fotógrafo que está com a perna direita toda engessada e, portanto, paralisado em uma cadeira de rodas.4 Da janela de seu apartamento, Jeff espia seus vizinhos através de sua câmera, que lhe serve de binóculo, e passa suas horas imaginando pequenas histórias.

Eu não sabia seus nomes. Nunca ouvira suas vozes. Estritamente falando, não os conhecia nem de vista, pois seus rostos eram pequenos demais para adquirirem feições identificáveis àquela distância. No entanto, eu podia construir um cronograma de suas idas e vindas, de seus hábitos e atividades cotidianas. Eram os moradores das janelas à minha volta (Hitchcock, 1954, p. 9).

Nesse ponto, o espectador pode ver o personagem de James Steward como um voyeur e, como nos diz Truffaut (2004, p. 216), "Somos todos voyeurs, ainda que apenas quando assistimos a um filme intimista. Aliás, Jeff na janela está no lugar de um espectador assistindo a um filme", mas muitos críticos ainda veem nesse filme uma história de amor. Isso porque temos a personagem de Lisa, namorada do personagem principal, interpretada por Grace Kelly, que, em contraponto à paralisia e ao tédio de Jeff, vai e vem de seu apartamento; movimenta-se, fala e agita.

Enquanto isso, como um espelho, do outro lado do pátio, no apartamento suspeito, há uma mulher confinada à cama e é seu marido que faz várias idas e vindas, deixando Jeff cada vez mais curioso e agitado. Ele supõe que a mulher seja um fardo para esse homem, e que ele vai matá-la. Pede ajuda a um amigo detetive e à sua noiva Lisa para a investigação, que acompanhará de seu ponto de vista fixo.

Cabe esclarecer que, para a psicanálise, voyeurismo é uma noção mais delimitada, parece-nos, que a usada na conversa entre Hitchcock e Truffaut. Para Lacan, o voyeurismo implica o olho como órgão, mas o alcance de sua lógica está em outro lugar: no olhar (Castanet, 2014).5 Portanto, para o voyeur, não se trata de ver, mas do olhar como ponto evanescente, enquanto objeto a, porque o que o sujeito tenta ver é justamente a ausência, a falta, o que não está aí: "O que o voyeur busca e acha não é mais que uma sombra, uma sombra detrás da cortina" (Lacan, 1964/1998, p. 173). Ou seja, completa Lacan, o que se procura é justamente a ausência do falo, o que se olha é o que não se pode ver, o que se vela é a ausência.

Sobre esse véu, esclarece-nos Castanet (2014), desenha-se a imagem. Essa é a função da cortina e da tela, e é ali que o homem encarna seu sentimento de nada, que vai mais além de seu objeto de amor. O domínio dessa relação ilusória, que ao véu convém estabelecer com o objeto, passa a ter um papel essencial na relação do sujeito com este último. Nesse ponto, o sujeito arrisca-se a permanecer fascinado e identificado ao nada que buscava ver. Seu próprio fantasma não para de olhar para ele, e o fixa, o paralisa em seu desejo, ao recobrir com uma imagem, a presença da causa.

Para ainda relacionar clínica e cinema, Hitchcock e psicanálise, podemos lembrar, com Lacan (1969/2008), que não é só ao nível do singular que encontraremos essa montagem que estabelece o olhar como sustentação da imagem, como causa de toda imagem, que faz quadro para repousar o apetite do olho, ou seja, dessa estrutura que permite acomodar o campo do visível.

E depois de tudo, porque não há modo de admitir que o que faz com que haja vista, contemplação, ou todas estas relações que retêm o ser falante, que tudo isto não tome verdadeiramente seu fechamento, sua raiz, mais que no nível mesmo do que, por ser mancha no campo, pode servir para tamponar, para preencher o que falta neste campo (Lacan, 1969/2008, p. 30).

Em Janela Indiscreta, mostrando que sabe a função do olho, bem como operar com o olhar, Hitchcock brinca com a esquize e suas possibilidades. E isso, enquanto seu personagem Jeff busca, pela fenda aberta em cada espaço, pela divisão, o olhar para sempre perdido que, no entanto, garante a imagem e cria as histórias que lhe servirão de anteparo para o objeto com o qual se identificou.

A câmera diegética também tem seus meios de buscar o íntimo/estranho, nos filmes de horror, em seus vídeos caseiros, esperando as brechas, os cantos e a surpresa em que algo do real poderá surgir para susto, fascínio, nojo, terror ou horror. Em um momento fugaz, o anteparo é atacado e a Coisa se mostra, sob a forma de objeto (vozes sem corpo, olhares que perseguem não se sabe de onde, espectros, sopros, corpos sem alma e andantes sem corpos), para, no mesmo golpe, esconder-se, mantendo o sujeito no suspense, no enredo. Ela usa o recurso da filmagem em primeira pessoa, parecido com Hitchcock, mas precisa se aproximar mais do objeto, sem mediação, se isso fosse possível.

A obscenidade desse recurso sugere um olhar que ataca a imagem-tela capaz de pacificar o sujeito. Ela reconhece, no discurso contemporâneo, a imagem como verdade, não como representação. Esse olhar obsceno e violento apresenta-se então como se não houvesse véu, invadindo a cena, atacando a ordem simbólica. A cena final de Atividade Paranormal 1 (2007) nos brinda com um efeito assim: durante o filme, não vemos nenhuma entidade, fantasma ou monstro, somente os efeitos de algo paranormal acontecendo. Depois que tudo acaba, quando o espectador menos espera, surge um ser demoníaco engolindo a câmera em primeira pessoa.

A identificação do espectador, nesse gênero fílmico, já não é com um ponto de vista subjetivo, mas é do olho do espectador com as lentes da câmera que permitem, sem cortes, invadir um espaço e acompanhar toda uma cena. Seus personagens não têm uma subjetividade, são apenas recursos, suportes da câmera. Enquanto isso, o engano dessa montagem, desse artifício, mantém os espectadores de olhos bem abertos, esperando o momento em que, certamente, verão a verdade sobre o objeto que não está lá.

Com base nessas considerações, entendemos que olho absoluto, obsceno e violento da contemporaneidade é aquele que acredita poder ver tudo sem a mediação da representação, que leva o sujeito a um ideal da transparência, ideal de nossos tempos, que conduz a um exibicionismo orgulhoso de si. O olho obsceno acredita que pode atingir a verdade postulada pelo mestre, em que ver tudo é poder saber tudo, como Édipo um dia acreditou, e que lhe custou os olhos. É um olho inadvertido da impossibilidade estrutural de um saber sem falhas, de uma visão sem manchas, de um sujeito sem castração.

Podemos mesmo afirmar que a transparência tem olhos obscenos, capaz de rasgar os véus com sua luminosidade, mas nunca desvela o real, pois a essência mesma do sujeito é fazer obstáculo ao todo, fazer sombra ao que aparece de mais íntimo, uma vez que ele é opaco e estranho a si mesmo. Assim, para se ver olhando, somente arrancando mesmo os olhos, como Édipo.

Atracados ao imaginário, aos ideais unificadores que fazem de cada um todas as pessoas, condenados à obscuridade e expostos, os sujeitos contemporâneos acreditam nas imagens reconciliadoras, pacificadoras, sem reconhecê-las como imagens, mas sim como verdades sobre o mundo e sobre si mesmo. Nesse mesmo passo, elas, as imagens, também se tornam cada vez mais obscenas, a ponto de fazerem obstáculo ao íntimo e ao sujeito. Resta concluir para nem tanto se enganar: só haverá visibilidade interditada aquela que funda nossa subjetividade e que, inalteravelmente, distorce o campo do visível, no ato de se constituir a partir de uma mancha.

 

Referências

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Texto recebido em novembro 2013 e aprovado para publicação em setembro de 2014.

 

 

*Pós-doutoranda no Departamento de Psicologia da PUC Minas, com pesquisa em arte e psicanálise; doutora em Psicologia pela PUC Minas, psicanalista. E-mail:rriguini@gmail.com.
**Pós-doutora pela Universidade de Barcelona, doutora pela Universidade de Barcelona, professora adjunta da Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, psicanalista. Endereço: Avenida Itaú, 525 - Dom Cabral, Belo Horizonte-MG. CEP: 30535-012. Telefone: (31) 3319-4568, E-mail:francoferrari@terra.com.br.
1O cinematógrafo era uma máquina de filmar, e um projetor de cinema que, registrado em nome dos irmãos Lumière, em 13 de fevereiro de 1895, mesmo ano em que Freud (e Breuer) publicavam os Estudos sobre a histeria (1895). Os irmãos Louis e Auguste Lumière são, assim, considerados os pais do cinema, apesar de essa paternidade ser controversa.
2Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen (Freud, 1907/1996) é um texto que o próprio Freud considerou pouco satisfatório para suas pretensões de constatar que os processos inconscientes e a atividade criadora são similares, e que foi abordado, por Lacan, em um debate na Universidade e Yale, em 1975, como infeliz tentativa de ver na arte uma espécie de testemunho do inconsciente. Segundo Roudinesco (1998), Freud chegou a procurar o escritor Wilhelm Jensen, buscando detalhes que lhe ajudassem a entender a personalidade do autor, mas ainda sem sucesso. No entanto, no que toca ao nosso trabalho, o texto continua sendo paradigmático do esforço freudiano de apresentar sua teoria sobre a arte em sua relação com o inconsciente do autor.
3Cabe dizer que nossos contemporâneos internautas falam muito, emitem várias opiniões sobre quase qualquer assunto, falam sobre sua intimidade com leviana facilidade. Todos exigem transparência e verdade uns com os outros. Nos relacionamentos entre casais que usam redes sociais, ou não, podemos ver o inferno da transparência ansiosa e impossível acossar os ciumentos que não deixam de investigar as contas de seus companheiros. Assim, o ideal da transparência e verdade se torna espionagem e invasão de privacidade, deixando as relações praticamente inviáveis. Você gostaria de saber mesmo tudo o que se passa no íntimo do seu parceiro? Será que ele sabe tudo que se passa com ele?
4Lembremos que, em V/H/S 2, os protagonistas são detetives. Em seu artigo, Carreiro (2013) chama atenção para o fato de que, nos filmes tipo found footage, é habitual os protagonistas, ou um dos protagonistas, serem ligados a profissões que envolvam câmeras, a fim de facilitar seu enredo, de difícil construção, já que tem só um ponto de vista. Hitchcock, por sua vez, em sua entrevista a Truffaut, ressalta a importância de se servir dos instrumentos ligados ao personagem para contar sua história: "Aqui temos um fotógrafo, então ele olha para o outro lado do pátio com seus instrumentos de fotografia, e, quando tem que se defender, é também com os instrumentos de fotografia, os flashes" (Truffaut, 2004, p. 219).
5A tese central de Lacan, ao referir ao campo escópico, é que o olhar (diferente das definições dos dicionários e de seu uso no senso comum) não se trata de uma visão atenta ou concentrada em algo. Ele propõe a esquize entre olho (órgão estruturado da visão) e o olhar, que não se separa da carência constitutiva da castração.


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