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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.21 no.3 Belo Horizonte set. 2015

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2015v21n3p562 

 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2015v21n3p562

 

Fenomenologia da intersubjetividade e estudos em cognição social: reflexões acerca da atenção conjunta

 

Phenomenology of intersubjectivity and studies on social cognition: discussions about the joint attention

 

Fenomenología de la intersubjetividad y estudios en cognición social: reflexiones sobre la atención conjunta

 

 

Danilo Saretta Verissimo*

 

 


Resumo

Neste artigo, voltamo-nos para a questão da intersubjetividade a partir de um ponto de vista ontogenético. Discutimos as posições teóricas adotadas por estudos acerca da intersubjetividade no campo da cognição social, em particular os estudos centrados no conceito de atenção conjunta e em sua interpretação com base em constructos relativos à teoria da mente. Entendemos que, na ideia de atenção conjunta, subjaz uma intuição profunda a respeito da constituição de um mundo partilhado socialmente, e cuja natureza pode ser investigada para além da predominância da atitude reflexiva, que define a partilha do mundo num quadro conceitual que articula objetivismo e solipsismo. Nossas observações e análises apoiam-se em aportes da filosofia fenomenológica. Destacamos a dívida racionalista que se contrai por meio da teoria da mente e a possibilidade de se tratar dos aspectos ontogenéticos da intersubjetividade com base em abordagens descritivas que possibilitem a problematização do sentido da experiência de coexistir.

Palavras-chave: Intersubjetividade. Cognição social. Fenomenologia.


Abstract

In this article, we analyze the issue of intersubjectivity from an ontogenetic point of view. The theoretical positions adopted by studies on intersubjectivity in the field of social cognition are discussed, particularly studies focusing on the concept of joint attention and their interpretation based on constructs related to the theory of mind. We understand that in the idea of joint attention underlies a profound intuition about the constitution of a socially shared world, whose nature can be investigated beyond the predominance of the reflective attitude, which defines the division of the world into a conceptual framework that articulates objectivism and solipsism. Observations and analysis rely on contributions from phenomenological philosophy. The rationalist indebtedness, contracted through the theory of mind and the possibility to deal with ontogenetic aspects of intersubjectivity based on descriptive approaches that allow the questioning of the meaning of the coexist experience, is highlighted.

Keywords: Social cognition. Intersubjectivity. Phenomenology.


Resumen

En este artículo se examina la cuestión de la intersubjetividad desde un punto de vista ontogenético. Se discuten las posiciones teóricas adoptadas por los estudios acerca de la intersubjetividad en el campo de la cognición social, en particular de los estudios que se centran en el concepto de la atención conjunta y en su interpretación basada en constructos relativos a la teoría de la mente. Se parte de la idea de atención conjunta por entenderse que en ella subyace una profunda intuición sobre la constitución de un mundo socialmente compartido, y cuya naturaleza puede ser investigada más allá del predominio de la actitud reflexiva, que define la visión compartida del mundo en un cuadro conceptual que articula objetivismo y solipsismo. Nuestras observaciones y análisis se basan en las contribuciones de la filosofía fenomenológica. Se destaca la deuda racionalista que se contrae a través de la teoría de la mente y la posibilidad de hacer frente a los aspectos ontogenéticos de la intersubjetividad basados en enfoques descriptivos que permitan la problematización del sentido de la experiencia de coexistir.

Palabras clave: Cognición social. Intersubjetividad. Fenomenología.


 

 

Introdução

Neste artigo, voltamo-nos para a questão da intersubjetividade a partir de um ponto de vista ontogenético. Interessa-nos discutir as posições teóricas adotadas por estudos acerca da intersubjetividade no campo da cognição social, em particular aqueles centrados no conceito de atenção conjunta e em sua interpretação com base em constructos relativos à teoria da mente. No seio dessas pesquisas, promovem-se debates entre psicólogos, neurocientistas e filósofos que opõem aportes intelectualistas, naturalistas e descritivos acerca da compreensão da intersubjetividade. Partimos da ideia de atenção conjunta por entendermos que nela subjaz uma intuição profunda a respeito da constituição de um mundo partilhado socialmente, e cuja natureza pode ser investigada para além da predominância da atitude reflexiva, que define a partilha do mundo num quadro conceitual que articula objetivismo e solipsismo. Nossas observações e análises apoiam-se na filosofia fenomenológica, principalmente no pensamento de Merleau-Ponty e em aportes recentes devidos a Bimbenet (2011). Destacamos a dívida racionalista que se contrai por meio da teoria da mente e a possibilidade de se tratar dos aspectos ontogenéticos da intersubjetividade mediante abordagens descritivas que possibilitem a problematização do sentido da experiência de coexistir.

 

A atenção conjunta

No final do século passado, a partir dos trabalhos de psicólogos como Jerome Bruner e seus colaboradores, ganhou força um campo de estudos dedicados ao que vem sendo denominado de cognição social e que, expandidos seus objetivos e métodos, dá ensejo a um gênero de psicologia cultural (Bruner, 2008). O ponto de partida dessas pesquisas são as redes de interações iniciais que se estabelecem entre bebês e adultos e a identificação de habilidades infantis que sustentariam o desenvolvimento de potencialidades exclusivamente humanas (Aquino & Salomão, 2011; Bimbenet, 2011; Tomasello, 2003, 2010).

A noção de atenção conjunta (joint attention), ou atenção partilhada, emerge desses estudos como eixo de reflexões centradas no privilégio evolutivo representado pela comunicação humana e em seus caminhos filogenéticos e ontogenéticos. Segundo Tomasello (2010), autor que tomaremos como base de nossa exposição acerca da atenção conjunta, a comunicação humana repousa sobre uma infraestrutura psicológica de intencionalidade partilhada que pressupõe competências sociocognitivas para criar com outrem intenções e atenção conjuntas. Estaria em jogo uma configuração complexa de comportamento que diz respeito "à compreensão dos outros como seres intencionais" (Aquino & Salomão, 2011, p. 108).

Para Tomasello (2003), a atenção conjunta responde pelo que se pode considerar um "enigma" filogenético. Em termos evolucionários, os 6 milhões de anos que nos separam dos grandes macacos não representam tempo suficiente para "os processos normais de evolução biológica que envolvem variação genética e seleção natural" (Tomasello, 2003, p. 4), necessários à criação das habilidades cognitivas que caracterizam a técnica e a comunicação humanas. Apenas um mecanismo biológico poderia ocasionar tantas mudanças comportamentais e cognitivas em tão pouco tempo: a transmissão social e cultural, fenômeno observado também entre os animais. A hipótese aventada pelo autor é, pois, a de que "o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural únicos da espécie" (Tomasello, 2003, p. 5), capaz de garantir um processo de evolução cultural acumulativa. Complementa essa hipótese a ideia de que a infraestrutura dessa transmissão cultural única da espécie humana repousa sobre nossa capacidade sociocognitiva para nos identificar com nossos congêneres e compreendê-los como agentes igualmente intencionais. Nesses termos, a aprendizagem cultural humana torna-se possível em decorrência de uma única e fundamental forma de cognição social: "a capacidade de cada organismo compreender os coespecíficos como seres iguais a ele, com vidas mentais e intencionais iguais às dele" (Tomasello, 2003, p. 7, grifo do autor), o que permite que os indivíduos imaginem-se na "pele mental" de outrem, "de modo que não só aprendem do outro mas através do outro", complementa Tomasello (2003, p. 7, grifos do autor). Os comportamentos de atenção conjunta por parte do bebê indicariam justamente a instituição da compreensão das outras pessoas "como agentes intencionais iguais a si próprio" (Tomasello, 2003, p. 85).

Constata-se a emergência da atenção conjunta principalmente pelo estabelecimento, por parte da criança, de uma relação triádica envolvendo uma pessoa e um objeto qualquer, em oposição ao simples esquema diádico, segundo o qual a criança ora interage com alguém, ora com os objetos. Até os 6 meses de idade, a criança dirige-se ao domínio das coisas físicas e ao domínio das trocas sociais a partir de uma notável distinção entre os objetos e o outro. É possível, por exemplo, que, no intuito de pegar um objeto distante de si, mas próximo de sua mãe, a criança se esforce para alcançá-lo sem sequer olhar para ela. A partir dos 6 meses, a criança passa a ser capaz de coordenar esses dois tipos de atenção, integrando a percepção ou manipulação de objetos a contextos sociais. É o que se depreende de uma série de comportamentos por parte do bebê, como a troca alternada de olhares direcionados aos objetos e a seus parceiros, seguida ou não por vocalização; apontar para as coisas, alternando o olhar para o outro, o que configura o ato de mostrar; vocalização seguida de alternância do olhar; dar o objeto ao parceiro; seguir o olhar do outro; imitar os seus atos instrumentais (Aquino & Salomão, 2011; Bimbenet, 2011; Tomasello, 2003).

A coisa percebida passa, com efeito, a ser o objeto de uma visada comum, de modo que a relação ao mundo é incorporada em um contexto social (Bimbenet, 2011). Nessa direção, Tomasello (como citado em Bimbenet, 2011, p. 309) afirma: "A atenção conjunta é fundamentalmente um fenômeno social ou socialcognitivo: dois indivíduos sabem que dão atenção a qualquer coisa em comum". Essa interpretação, observa Bimbenet (2011), vai além da simples constatação de uma convergência de olhares e de ações. Para Tomasello (2010, p. 5), trata-se de identificar e compreender as bases da "habilidade de criar um solo conceitual comum", de partilhar experiência, "dimensão crítica de toda comunicação humana". Buscando caminhar para uma definição psicológica do fenômeno da atenção conjunta, trata-se não apenas de constatar que a criança se atenta para aquilo a que outra pessoa se dirige, mas de afirmar que o bebê percebe que outrem se volta para uma mesma coisa e, portanto, de observar o surgimento da "consciência de um ver em comum" (Bimbenet, 2011, p. 309).

Tomasello (2003) considera que a atenção partilhada conjuga duas dimensões de comportamento distintas: a capacidade bastante precoce do bebê de identificarse com outrem e a aquisição, mais tardia, do senso de ser, em um sentido prático, ou ecológico, um agente intencional, "capaz de visar metas através de diferentes meios" (Bimbenet, 2011, p. 310). Quanto ao primeiro aspecto, Tomasello baseiase em trabalhos relativos à imitação neonatal. Autores como Meltzoff e Moore (1995) sustentam que a capacidade para imitações corporais, principalmente faciais, faz parte das qualidades inatas dos seres humanos e apresentam suporte empírico para afirmar que não se trata de um gênero de comportamento reflexo, mas sim de uma "atividade intencional" (p. 51), direcionada à meta. Nesses estudos, parte-se da pergunta de como é possível a "imitação invisível", aquela que, por parte da criança, centra-se nos movimentos referentes a partes do corpo que não são visíveis em seu próprio corpo, como os movimentos faciais (Gallagher & Meltzoff, 2010). Relatam-se experimentos realizados com crianças com menos de 72 horas de vida que responderam com imitação às atividades do experimentador de abrir a boca, protrair a língua e realizar movimentos circulares com a cabeça. Os comportamentos de imitação foram apresentados inclusive nos momentos em que o experimentador apresentava uma fisionomia passiva, o que leva a pensar numa "imitação autêntica" e não apenas num "apego perceptivo" por parte das crianças. Caminham nessa mesma direção os experimentos com bebês de 6 semanas, que foram capazes de repetir o gesto de imitação 24 horas depois da apresentação do gesto-meta (Gallagher & Meltzoff, 2010).

Para Gallagher e Meltzoff (2010), esses estudos têm uma dupla implicação. Primeiramente, as pesquisas sugerem que os bebês têm um esquema corporal e uma imagem corporal primitivos, que asseguram a coordenação das posturas e do movimento, bem como uma "consciência proprioceptiva" do corpo. Essa ideia contrapõe-se ao preceito clássico, presente em autores como Piaget, Wallon e Paul Guillaume, de que um esquema corporal na criança não seria possível antes do sexto mês de vida. Em segundo lugar, e com base nesse sistema intracorporal, torna-se possível discutir a comunicação intercorporal que marca as relações do bebê com outrem. Ecoando preceitos oriundos da filosofia fenomenológica, os autores afirmam: "O esquema corporal, funcionando sistematicamente com a consciência proprioceptiva, opera como um eu proprioceptivo que está sempre já 'pareado' com o outro. O que Husserl denomina 'transgressão intencional' é operante desde o início" (Gallagher & Meltzoff, 2010, p. 114, grifo dos autores). Mais adiante, afirmam que, "experiencialmente [...] nascemos em um mundo de outrem" (Gallagher & Meltzoff, 2010, p. 115, grifo dos autores). Essa espécie de "sentido inato da intersubjetividade" (Bimbenet, 2011, p. 310), o que vem sendo denominado "intersubjetividade primária", constituiria o arcabouço necessário ao posterior reconhecimento da alteridade1.

O segundo aspecto mencionado por Tomasello (2003) refere-se à conquista, por parte do bebê, em torno dos 9 meses de idade, de uma competência instrumental que lhe desperta a consciência de ser um agente intencional, quer dizer, de ser capaz de estabelecer metas distintas dos meios utilizados para alcançá-las. "Agentes intencionais são seres animados que têm objetivos e que fazem escolhas ativas entre os meios comportamentais disponíveis para atingir aqueles objetivos", afirma o autor (Tomasello, 2003, p. 94). Entramos em regime de atenção conjunta quando a criança passa a compreender o outro, por analogia ou simulação, como sendo igualmente um agente intencional. O autor afirma: "Em consequência, a hipótese específica é que, quando os bebês atingem uma nova compreensão de suas próprias ações intencionais, passam a usar sua atitude 'como eu' para entender o comportamento dos outros dessa mesma maneira" (Tomasello, 2003, p. 99).

É preciso acrescentar que o primeiro aspecto, relativo à identificação neonatal, é tomado como traço especificamente humano. Conforme essa capacidade se une ao raciocínio instrumental, tem-se como resultante a atenção conjunta, que, portanto, apenas pode se desenvolver na espécie humana, afirma Tomasello (2003). A atenção conjunta representaria, pois, um verdadeiro "evento hominizante" (Bimbenet, 2011, p. 319), posto que abriria a possibilidade para que as mudanças culturais se acumulassem. Esta seria uma "versão culturalista da evolução" (Bimbenet, 2011, p. 322).

 

Teoria da mente

Deixando em segundo plano as indagações relativas à passagem do comportamento animal ao comportamento humano, gostaríamos de discutir a interpretação da atenção conjunta a partir da "teoria da mente", quadro em que se inserem as definições da relação do bebê com outrem a partir de um plano analógico, e endossado pelo próprio Tomasello (2003).

Afirma-se que, por volta dos 9 meses de idade, a criança torna-se capaz de projetar no outro sua própria relação com o real, descobrindo-o como agente intencional. Isso representa uma mudança na percepção de outrem, de maneira que a criança e outrem passariam a figurar como seres voluntários mutuamente reconhecidos como tal. Este seria um passo fundamental na realização do que figura, na teoria da mente, como o ápice das capacidades relativas à interação social: "o acesso a estados mentais que não são os meus" (Bimbenet, 2011, p. 346).

Os trabalhos relativos às origens da teoria da mente atribuem já à criança recém-nascida capacidades representacionais referentes à compreensão do outro "como eu". Já mencionamos a hipótese, sustentada por Tomasello (2003) e pelos autores nos quais se baseia, de que a compreensão precoce de outrem "como eu" é resultado de uma adaptação biológica especificamente humana. Essa capacidade seria a chave para que, um pouco mais tarde, a criança compreenda o outro por simulação, processo a respeito do qual Tomasello (2003, p. 99) exprime-se da seguinte maneira: "simulo em maior ou menor medida o funcionamento psicológico das outras pessoas por analogia com o meu, que conheço de forma mais direta e imediata".

De acordo com Meltzoff (1999), na estrutura adulta de pensamento, concorda-se em atribuir às pessoas crenças, desejos e intenções que permanecem "abaixo" da superfície comportamental. Afirma-se que, embora não possam ser diretamente experimentados pelos sentidos do expectador, a "compreensão adulta ordinária", na forma de uma espécie de psicologia popular, atesta a existência dos estados mentais de outrem. Seria, pois, um tópico em ciência cognitiva do desenvolvimento investigar como as crianças desenvolvem uma teoria da mente (Meltzoff, 1995, 1999, 2007). Entre as ideias modernas sobre teoria da mente, que oscilam entre o inatismo e o conexionismo, Meltzoff (1999) destaca a teoria da teoria (theory theory). O autor afirma: "O nome 'teoria da teoria' deriva do fato de que é nossa teoria que crianças possuem teorias, daí a dupla utilização do termo" (Meltzoff, 1999, p. 253, grifo do autor). A partir de um "poderoso sistema representacional inato" (Meltzoff, 1999, p. 253) relativo à percepção de outrem, entraria em funcionamento um processo de mudança desenvolvimentista qualitativa. Da capacidade inata de codificar o entrelaço entre atos vistos e atos realizados, evidenciada pela imitação precoce, passando pela experiência diária de relacionar seus estados corporais a suas experiências mentais, a criança alcançaria a possibilidade de, ao perceber outrem agindo de modo similar a experiências dela própria no passado, atribuir a ele um estado interno compatível com o comportamento observado (Meltzoff, 2007). É o que revelariam experimentos tais como o que a crianças com 18 meses de idade são representados, por um adulto, diversos atos em que o propósito da ação não chegava a ser completo. Confrontada com os mesmos aparatos utilizados pelo adulto, as crianças mostravam-se aptas a completar a atividade, o que indicaria sua capacidade "para 'ler' a intenção do ator" (Meltzoff, 1995, p. 839).

No interior desse quadro conceitual, não é de se estranhar que Meltzoff (1999) compare o comportamento infantil com o de cientistas. "Em qualquer ponto do desenvolvimento, a teoria da criança leva ele ou ela a realizar interpretações da informação bruta e a fazer predições acerca de novos eventos", comenta o autor (Meltzoff, 1999, p. 253). Nesse processo de teste de hipóteses, o desenvolvimento cognitivo operar-se-ia no mesmo sentido das mudanças teóricas na ciência. No campo que nos interessa aqui, o da intersubjetividade, estaria em jogo, segundo o autor, a capacidade de inferir os estados mentais subjacentes às ações corporais de outrem, os atos invisíveis referentes ao aspecto visível do outro (Meltzoff, 2007). Daí a seguinte afirmação: "Crianças muito jovens são lançadas em sua carreira de pequenos psicólogos com o seu juízo inicial de que 'aqui está algo como eu'" (Meltzoff, 1999, p. 261).

 

Rompimento ou continuidade?

Meltzoff (1995, 1999) anuncia o colapso da teoria piagetiana, pois os achados recentes em Psicologia do Desenvolvimento revelam que as crianças, em estádios iniciais da vida, sabem mais do que previa Piaget. Afirma-se que, em comparação ao que aquela teoria deixa entrever, as crianças vivem num mundo psicológico muito mais organizado, marcado por diversas capacidades não verbais. Gostaríamos de objetar, contudo, que, se essa ideia de progresso em termos dos objetos e estruturas que as ciências do desenvolvimento pouco a pouco elaboram merece crédito, é preciso, por outro lado, considerar que, em termos epistemológicos, o que se observa é, antes, a inflação da faceta intelectualista da obra de Piaget. O que quer dizer que a condição atual dessa Psicologia do Desenvolvimento pode não representar rompimento teórico algum, mas antes o aprofundamento de traços ideológicos marcantes do que denominam "teoria clássica".

Merleau-Ponty (1945, 1951/1997, 2001) destaca o caráter racionalista da obra de Piaget, erigida sobre o estudo do desenvolvimento infantil com base em um ponto de vista negativo. Com efeito, Piaget estava interessado em investigar os processos evolutivos pelos quais a criança conquistaria a relação com uma realidade objetiva. De modo que seu trabalho, se não estabelece uma "heterogeneidade fundamental entre a criança e o adulto", atém-se à "construção progressiva de estruturas lógicas" (Piaget, 1964, p. 90), demarcando diferenças essenciais entre a estrutura do comportamento infantil, caracterizada como "prélógica", e a estrutura do pensamento adulto, marcada pelo pensamento objetivo. Tratava-se de estudar o que falta à criança para efetuar o cogito e encontrar "as verdades do racionalismo" (Merleau-Ponty, 1945, p. 408). Por volta dos 12 anos, a criança estaria em condições de reconhecer-se como consciência sensível, dona de um ponto de vista particular sobre o mundo, e como consciência intelectual, capaz de ultrapassar aquele ponto de vista em prol de uma objetividade alcançada por obra do juízo.

Não bastasse a investigação da infância pautada pelo "espírito adulto", em Piaget o próprio pensamento adulto é caracterizado por um espírito ainda mais elevado, representado pelos cânones do objetivismo científico, afirma Merleau- Ponty (2001). O que se reflete, por exemplo, em considerações em que se projeta uma certa atitude científica nas experiências mais espontâneas do bebê, como na afirmação de que os seus movimentos e gestos são intencionalmente variados "para estudar os resultados destas variações" (Piaget, 1964, p. 19).

No que diz respeito às investigações sobre a atenção conjunta e a intersubjetividade na infância, pode-se afirmar que tudo se passa como se os autores se aplicassem em antecipar o logicismo representado por Piaget. Com isso, ainda que se anule o caráter negativo da pesquisa, contrai-se uma dívida intelectualista capaz de contaminar todo o edifício conceitual dessa psicologia e cujo resultado mais direto é a recusa da nossa potência para sermos afetados por outrem. O que pode ser verificado inclusive nesse movimento de considerar, em meio à própria atividade infantil, a primazia do "ponto de vista epistêmico supostamente característico da ciência" (Ratcliffe, 2009, p. 340, grifo do autor), cuja pretensão é manter-se distante do mundo e de outrem, de maneira que estes apareçam ao sujeito como objetos sobre os quais se possa construir um julgamento de natureza explicativa e probabilista.

Com efeito, nos termos da teoria da mente, a relação com outrem, já na infância, apresenta-se como um problema relativo à interioridade alheia, observa Bimbenet (2001). É o que se apresenta nas vertentes da teoria da mente. As principais hipóteses de como se trava a relação com o outro na infância representam a criança, já muito cedo, como uma espécie de pequeno analista de comportamentos. Conforme nossas considerações precedentes, na teoria da teoria, sustenta-se que a criança decifraria o comportamento do outro, de maneira a reconhecer seus estados mentais, atribuindo-lhe desejos, intenções e pensamentos. No princípio que recebe a alcunha de teoria da simulação, falase de a criança replicar o comportamento de outrem em primeira pessoa, de colocar-se no lugar dele para descobrir quais sentimentos e condutas emergiriam na vivência de uma determinada situação. De um modo ou de outro, acaba-se por reproduzir "dois preconceitos que saturam, de maneira hipercartesiana, o cognitivismo dos anos 1990", afirma Bimbenet (2011, p. 348). O primeiro deles, de natureza mentalista, refere-se à mente como um "domínio interior", conjunto de representações acessíveis apenas ao seu portador e que se "esconderia" por detrás do seu corpo. É estabelecida, pois, uma distância intransponível entre mim e o outro, apenas ultrapassada indiretamente, por teorização ou simulação, a partir dos sinais corporais a que teríamos acesso. O segundo, de natureza intelectualista, decorre do mentalismo. "Se o outro é constitutivamente um problema, então é ao conhecimento que ele se oferece em primeiro lugar", afirma Bimbenet (2011, p. 349). Como outrem não se apresenta efetivamente, resta interrogá-lo e elaborar a seu respeito "um saber explicativo ou preditivo" (Bimbenet, 2011, p. 349).

 

Prejuízos clássicos

Uma breve incursão histórica no debate acerca da compreensão do outro por analogia pode reforçar nossa tese sobre o continuísmo racionalista, ou intelectualista, representado na Psicologia do Desenvolvimento contemporânea. Entrelaçada ao cognitivismo e, por conseguinte, aos seus vícios de nascença, essa Psicologia vê-se enredada em versões novas para antigas controvérsias.

Köhler (1929/1980) refere-se às interpretações filosófica e psicológica da "compreensão social". O autor parte da seguinte questão: "Por que atribuímos aos outros experiências mais ou menos semelhantes às que temos nós próprios?" (Köhler, 1929, p. 126). A resposta filosófica a essa pergunta já era bem conhecida. Köhler a formula da seguinte forma: "Uma vez que não posso perceber diretamente o que outra pessoa experimenta, a única prova de que disponho, no que diz respeito aos seus processos mentais, vem de seu corpo" (Köhler, 1929, p. 127). Acontecimentos de superfície fornecem-me, pois, informações indiretas sobre a experiência inobservável da intimidade mental alheia. A possibilidade de conectar um ao outro, manifestação corporal e estado da pessoa, advém de um exercício de inferência por analogia, baseado na verificação, em primeira pessoa, da correlação entre a experiência subjetiva e os movimentos e alterações corporais. Segundo Köhler (1929), a explicação dos psicólogos do seu tempo é diferente, embora tenha um mesmo ponto de partida: a verificação de que nossas experiências são acompanhadas por fenômenos corporais. De acordo com os psicólogos, "a repetição constante produz acentuadas associações entre nossas experiências e os fenômenos corporais correspondentes" (Köhler, 1929, p. 128). De modo que as modificações corporais que vemos nos outros fazem-nos reviver as experiências que tivemos frequentemente. Não se trata, aqui, de um ato analógico da ordem de um juízo, mas de uma espécie de analogia comandada por acontecimentos de associação "real", quer dizer, por associação de estímulos.

Por que tanto a interpretação filosófica quanto a explicação psicológica acerca da compreensão do outro referem-se a esta como a um processo indireto, pergunta Köhler? Naturalmente, filósofos e psicólogos presumem haver uma diferença substancial entre os processos mentais e os comportamentos, passíveis de serem observados, de maneira que a única relação possível entre os fatos dessas ordens distintas pode ser estabelecida na forma de uma "concomitância externa". Para o psicólogo da Gestalt, esses pontos de vista devem ser atribuídos à forte influência do cartesianismo na Filosofia e nas Ciências Psicológicas.

Merleau-Ponty (1951) retoma essa discussão, voltando-se para a questão das relações da criança com outrem. Segundo o filósofo, o problema teórico acerca da natureza da relação com outrem na infância provém justamente do apego aos pressupostos da "psicologia clássica", e aos "prejuízos [filosóficos] que ela inicialmente adotou sem nenhuma espécie de crítica" (Merleau-Ponty, 1951, p. 171). Entre esses prejuízos, encontra-se a ideia de psiquismo, sobre a qual havia um acordo tácito em torno de defini-la como "aquilo que é dado a apenas um" (Merleau-Ponty, 1951, p. 171). "Parecia, com efeito, que se pôde admitir sem outro exame, sem outra discussão, que aquilo que é constitutivo do psíquico em mim como em outrem é aquilo que é incomunicável", comenta o filósofo (Merleau-Ponty, 1951, p. 171). Restaria, pois, fazer a prova indireta do psiquismo de outrem por intermédio de suas "aparências corporais". De acordo com o autor, outro elemento importante na argumentação clássica é a noção de cenestesia. Tomaríamos consciência de nosso corpo com base em uma massa de sensações advindas de suas várias partes, de modo que haveria um processo igualmente impenetrável de constituição da consciência de meu próprio corpo.

Nesse quadro, a experiência de outrem, mesmo na infância, é explicada com base em um "sistema a quatro termos" (Merleau-Ponty, 1951, p. 173): há o psiquismo do sujeito perceptivo, em conjunto com a imagem interoceptiva de seu corpo, ou seja, a experiência que faz dele, segundo termo do sistema; há o corpo da outra pessoa, o terceiro termo, que se pode chamar de "corpo visual"; e, por fim, o psiquismo de outrem, o termo que se trata justamente de reconstituir, ou de adivinhar. Nossa tarefa seria projetar para além do corpo de outrem a experiência que fazemos do nosso próprio corpo, transferir-lhe nossa experiência íntima.

As dificuldades colocadas por esse sistema são significativas, afirma Merleau- Ponty (1951). Esse "processo complicado" parece incompatível com a precocidade da percepção de outrem, como se evidencia, por exemplo, na capacidade imitativa verificada nos recém-nascidos e na sensibilidade do bebê ao sorriso. Ele pressupõe, ainda, que a criança tenha meios de realizar uma comparação sistemática entre o seu corpo e o corpo do outro, enquanto a experiência visual de seu próprio corpo permanecerá, durante algum tempo, aquém de suas vivências táteis e cinestésicas.

Contra o solipsismo psicológico, Merleau-Ponty (1951) atém-se à ideia fenomenológica de intencionalidade, que caracteriza a consciência como direcionamento a um objeto, seja ele um objeto de percepção, de imaginação, de julgamento, etc. Da mesma maneira que nossa consciência "é primeiramente voltada para o mundo, voltada para as coisas" (Merleau-Ponty, 1951, p. 176), a consciência de outrem igualmente "é antes de tudo, uma certa maneira de se comportar em relação ao mundo" (Merleau-Ponty, 1951, p. 176). "É, pois, em sua conduta, na maneira com que outrem trata o mundo que poderei encontrálo", afirma Merleau-Ponty (1951, p. 176).

Com efeito, nossas próprias ações, assim como as de outrem, têm um sentido que, antes de ser compreendido por reflexão ou inferência, manifestase como forma de se endereçar ao mundo e, nessa medida, no que diz respeito especificamente à nossa percepção das ações de outrem, deve-se considerar que elas se afiguram como "temas de atividade possíveis" (Merleau-Ponty, 1951, p. 176) para o nosso próprio corpo. Cumpre assinalar que tocamos aqui num dos aspectos mais penetrantes da ideia de atenção conjunta, ângulo ocultado pelo viés intelectualista de suas interpretações mais difundidas. Trata-se do realce que se dá a um terceiro termo entre outrem e a criança: o mundo, ao qual ambos dirigem não somente sua atenção, mas sobretudo suas ações. Esse é o elemento que já era destacado por Guillaume (1926/1968), em seu trabalho sobre a imitação na criança. Segundo suas observações, crianças entre 3 e 15 meses interessam-se primeiramente pelo resultado das ações que presenciam e não pelo pareamento aos movimentos do modelo observado, ponto de acabamento do ato de imitar. "Ideia profunda e fecunda: não temos primeiramente consciência do nosso corpo, mas das coisas: há uma quase-ignorância das modalidades de ação, mas o corpo se move para as coisas", afirma Merleau-Ponty (2001, p. 32, grifo nosso), ao comentar o trabalho do psicólogo.

 

Teoria da intersubjetividade

A ideia de uma interioridade "transparente a ela mesma", fechada ao outro e que, em vista disso, deveria ser decifrada, não se sustenta diante de uma "descrição rigorosa da intersubjetividade", assevera Bimbenet (2011, p. 350). Em contraposição ao quadro teórico englobado pela teoria da mente, o autor denomina "teoria da intersubjetividade" o campo formado por produções da Psicologia do Desenvolvimento cujo ponto de partida descritivo vem encontrando destaque. Nesses trabalhos, tem-se como maior resultado a compreensão da comunicação pré-verbal da criança em termos desintelectualizados, salientandose a importância do aspecto afetivo da relação da criança com outrem e sem que se atribua qualquer precedência ao eu em relação a outrem. Esses fundamentos alteram todo o conjunto da compreensão da relação com o outro na infância e na vida humana de modo geral. Com a finalidade de ilustrar esta teoria da intersubjetividade, destacamos os trabalhos de Rochat (2010) e Trevarthen (2011).

Rochat (2010) parte da afirmação de que a "consciência autônoma é um mito que foi reforçado por várias teorias sobre o desenvolvimento psíquico" (p. 235). Segundo o autor, as premissas dessas teorias elevam a um primeiro plano uma consciência diferenciada e impregnada de objetividade e de racionalidade, que salvaguarda o sentimento de identidade e de independência social sobre o qual a modernidade erigiu a ideia de sujeito. Contrário a esta lógica subjetivista, Rochat fala em "coconsciência" para referir-se ao ponto de vista social que a experiência conjunta do mundo revela, e escreve: "desde o início da vida psíquica a criança desenvolve de maneira primordial o que é frequentemente associado à antítese da razão: a paixão ou uma desrazão completamente afetiva, guiada por uma necessidade relacional incontornável" (Rochat, 2010, p. 236). Daí o desenvolvimento de uma "subjetividade partilhada com outrem" que se adapta à experiência de um mundo "em grande parte irracional, frequentemente imaginário e até fantasmático" (Rochat, 2010, p. 236).

O estudo do processo de gênese da coconsciência, tal como exposto por Rochat (2010), pauta-se, sobretudo, na descrição e valorização do eu corporal do recém-nascido. O autor afirma: "Antes de todo conhecimento, existe o corpo. O corpo como lugar físico da sensualidade, aquele do encontro com o ambiente qualquer que seja a sua natureza, luminosa, sonora, tátil, olfativa, ou multissensorial" (Rochat, 2010, p. 240). Contrariando o que há muito se afirma acerca da indiferenciação inicial entre bebê e ambiente, e amparado em estudos experimentais, para Rochat (2010) o recém-nascido "manifesta um conhecimento implícito de seu corpo enquanto entidade diferenciada dentre outras entidades do ambiente" (p. 240), algo como um "sentido ecológico de si" (p. 241). Bastante cedo e no contexto de uma atenção crescente dirigida ao exterior, o bebê passa não apenas a se comportar como ser corporal diferenciado, mas a apresentar uma "relação de reciprocidade emocional com outrem" (Rochat, 2010, p. 243). O sinal mais evidente desse "salto qualitativo" é a aparição do sorriso social, em torno do segundo mês de vida. Além de representar uma clara manifestação de uma experiência comum, partilhada com o outro, o sorriso expressa bemestar, satisfação, conforto. Reúnem-se, desse modo, dois fatores primordiais da experiência de constituição do sujeito: o bebê, em seu comportamento, afirmase como "presença no mundo com outrem" (Rochat, 2010, p. 244, grifo do autor) numa situação de reciprocidade afetiva.

Rochat (2010) recorre à metáfora especular para tratar da copresença entre o bebê e os adultos. No quadro de reciprocidade afetiva, a criança é como que "aspirada no que se pode chamar de espelho social", afirma o autor (Rochat, 2010, p. 247). O pesquisador destaca o fato de o adulto "comentar" as ações e as alterações de estados emocionais do recém-nascido. Se este chora, a mãe modula seus gestos e diminui o volume da sua voz, que se torna calma, interrogadora ou triste. Por outro lado, diante de manifestações de alegria e satisfação por parte da criança, a voz materna se torna aguda e feliz. Para Rochat, esses fenômenos de "ressonância emocional" têm grande importância no processo de descentramento necessário ao nascimento da coconsciência. A partilha de "momentos de harmonia emocional" (Rochat, 2010, p. 249) proporciona ao bebê oportunidade de perceber seu "próprio mundo afetivo nos comportamentos de outrem" (Rochat, 2010, p. 249). Note-se que aqui há uma inversão da lógica do "como eu", enfatizada por Meltzoff e Tomasello. Não se trata de identificar, ou inferir, a existência do outro, mas de identificar-se com e na imagem de outrem.

Vale lembrar, nesse contexto, as considerações de Lacan (1949/1999), que caracteriza, justamente, um descentramento de ordem afetiva por parte do bebê. Esse processo seria marcado pela identificação da criança com a sua imagem especular, quer dizer, o outro, e pela constituição alienante da imago primitiva do eu. O termo alienação tem aqui grande importância, pois se refere ao primado da partilha na constituição da subjetividade. Ao termo alienação faz boa analogia a ideia de ser "aspirado" pelo espelho social.

Paralelamente a esse desenvolvimento social, entre os 2 e os 6 meses de vida, ocorre uma rápida evolução do interesse por parte da criança em relação às coisas que a cercam. É nesse contexto que se observa o início da triangulação entre o bebê, outrem e o mundo físico, "processo de emergência da função simbólica" (Rochat, 2010, p. 252), objeto das pesquisas sobre a atenção conjunta, caracterizadas por Rochat (2010, p. 252) como "teorias funcionalistas e sociais neo-Vygotskyanas". O autor reforça, novamente, os aspectos afetivos envolvidos no desenvolvimento da sociabilidade, dessa vez detendo-se na atenção partilhada. Em torno dos 9 meses de idade, o incremento da locomoção autônoma aumenta a capacidade de exploração da criança. Aliado às audaciosas explorações do meio, nota-se o temor, por parte da criança, da separação. A integração de outrem ao movimento em direção às coisas seria uma solução a esse dilema afetivo, afirma Rochat (2010). A emergência da referência social seria, pois, o resultado da integração do olhar do outro sobre o mundo.

Para Trevarthen (2011), sua experiência relativa à aptidão para movimentos e percepções que crianças e pais manifestam em suas brincadeiras leva-o a considerar a "evidência do fenômeno mais fundamental e compreensivo da intersubjetividade que gera e mantém 'atenção mútua' empática" (Trevarthen, 2011, p. 73), ou o que prefere chamar de "processo criativo de 'experiência partilhada' em todas suas variações" (Trevarthen, 2011, p. 73). Segundo o autor, na estrutura formada pelos sentimentos concernentes à nossa atividade corporal, por nossa percepção do mundo em que nos movemos e pelo engajamento com as diversas e potenciais intenções colaborativas, com os interesses e os sentimentos de outrem sobre nós e os objetos a nossa volta, o "mundo se torna uma experiência social" (Trevarthen, 2011, p. 73).

Notam-se, aqui, alguns elementos que divergem da simples preocupação com a identificação de um aparelho estritamente cognitivo na criança, embora não se possa dizer que Trevarthen dispense argumentos mentalistas. O processo de partilha da experiência tem sua origem no "fenômeno profundo da nossa experiência encarnada e atuante de mover-se no mundo" (Trevarthen, 2011, p. 76), de modo que a pesquisa sobre a infância pode se aplicar a detectar e estudar "processos delicados de natural e desprendida coordenação intersubjetiva" (Trevarthen, 2011, p. 76), relativos à experiência de "estar vivo com um corpo humano" (Trevarthen, 2011, p. 76), chave da motivação humana para a aquisição de significados culturais. Destacam-se, pois, nessa argumentação, elementos corporais e motores da atividade infantil.

Trevarthen (2011) enfatiza a capacidade de coordenação das iniciativas posturais e de movimentos faciais e de membros superiores em recémnascidos. Essas iniciativas motoras integradas atendem a efeitos de "feedback" proprioceptivos e exteroceptivos, o que tem particular importância para que se compreenda a estrutura da relação do bebê com as características dinâmicas dos movimentos intencionais dos adultos. Assim como Rochat (2010), Trevarthen (2011) observa que os movimentos da criança "comunicam sentimentos para regulação compartilhada das ações" (p. 82). Os movimentos faciais e das mãos, bem como as vocalizações por parte do bebê, são manifestações espontâneas cujo ritmo comunica interesses e emoções a outros seres humanos, e funcionam como expressões convidativas, capazes de engajar um parceiro atento e expressivo na interação diádica. Essa interação se dá, frequentemente, na forma de imitação das atitudes da criança por parte do adulto. Da mesma maneira com que a criança é capaz de imitar precocemente o adulto, ela procura ser imitada, agindo ativamente para o estabelecimento de um diálogo empático (Trevarthen, 2011). Essa relação, além de reforçar a dimensão de identificação entre a criança e o adulto, tal como exposta por Rochat, compreendemo-la no sentido em que o faz Bimbenet (2011), que, ao tratar das teorias da intersubjetividade, afirma: "Nas 'protoconversações' do recém-nascido com o adulto, não há o conhecimento de um 'eu' e depois a dedução de um 'ele', mas um 'eu' e um 'tu' emocionalmente ressonantes, mimeticamente acordados, e, pois, contemporâneos um do outro" (p. 350).

No que diz respeito às transformações observadas na criança por volta dos 9 meses de idade na direção de um comportamento sociável e cooperativo, de uma "intersubjetividade secundária", marcada pela aprendizagem cultural e pela atenção conjunta, Trevarthen (2011) se expressa da seguinte forma: "É uma mudança na qualidade do companheirismo entre dois amigos próximos, um deles tendo adquirido uma nova imaginação acerca das intenções do outro e tendo se tornado um desejoso aprendiz de sentidos e experiências" (p. 97, grifo nosso).

 

Constituição conjunta

Como, enfim, compreender, em consonância com a teoria da intersubjetividade, essa mudança qualitativa na relação da criança com o adulto? A título de prelúdio a comunicações vindouras, limitar-nos-emos a apresentar alguns caminhos indicados por Bimbenet (2011).

Primeiramente, vale ressaltar a influência do que o autor chama de "paradigma cognitivo" sobre a filosofia da mente, a psicologia e mesmo a etologia. Entre os pontos de desdouro deste paradigma, o autor menciona a "definição fortemente intelectualizante dos comportamentos vivos" (Bimbenet, 2011, p. 35) e a desqualificação de toda exposição interpretativa ou descritiva como metafísica, assegurando-se valor apenas a discursos explicativos. Outra linguagem, mais fiel às especificidades dos comportamentos vivos, seria necessária, afirma Bimbenet, sem o que o sentido da socialidade ficaria encoberto pela "estéril controvérsia" acerca da possibilidade de um conhecimento intelectual dos estados mentais de outrem. É no contexto desse embate fundamental, epistemológico mesmo, que vem se operando a recuperação de conceitos da fenomenologia, como os de empatia, de interação carnal e de intercorporeidade.

A respeito da atenção conjunta, Bimbenet (2011), baseando-se na teoria da intersubjetividade, assevera que "na ordem das relações com outrem a comunicação precede a separação" (p. 360). Dessa tese relativa à primeira infância decorre uma conclusão que concerne ao evento representado pela atenção conjunta. Nele, não se trata de conjugar consciências que antes se encontravam separadas, de maneira que o léxico comandado pelas ideias de conjunção ou reunião não se mostram os mais adequados para dar conta do fato que se apresenta. Com efeito, para Bimbenet (2011, p. 360) "a atenção conjunta separa mais do que conjuga". Respeitando-se os limites das possibilidades que se apresentam na trajetória ontogenética da criança, nos episódios de interação conjunta o que se observa são dois indivíduos ocupando-se de um fazer comum. Nessa distância, que passa a se estabelecer entre o eu e o outro, "a teoria da mente retoma seus direitos" (Bimbenet, 2011, p. 360). Contudo, o foco quase exclusivo sobre o aspecto cognitivo do fenômeno, como no caso da teoria da teoria, limita o entendimento acerca da nova estrutura de comportamento revelada pela criança. "Com a atenção conjunta - comenta Bimbenet - nossa relação ao outro intelectualiza-se, pode-se dizer, mas o essencial encontra-se menos nessa intelectualização do que na cisão e na reorganização induzida por ela" (2011, p. 364). Sob o pano de fundo da comunhão afetiva, a criança entrevê a alteridade de outrem. O outro também pode estar no centro do mundo. De modo que, para Bimbenet, a atribuição de estados mentais ao outro não se compara à novidade de se sentir como um ponto de vista sobre o mundo entre outros. A importância desse evento pode ficar mais clara ao se discutir sua dimensão intencional: a distância entre si e o outro abrange uma nova percepção das coisas. A criança passa a contar com os outros em sua visada do mundo, de maneira que este se "multiplica", "recua numa transcendência medida exatamente pela transcendência de outrem" (Bimbenet, 2011, p. 373). Em outras palavras, o mundo adquire profundidade, dado que se mostra repleto de "aspectos inesgotáveis, explorável indefinidamente" (Bimbenet, 2011, p. 373) por meio dos infindáveis pontos de vista que tanto eu quanto outrem podemos assumir. Nesses termos, pode-se dizer que a intencionalidade, o necessário direcionamento subjetivo em relação a um objeto qualquer, carrega em si a presença de outrem, "ou sua presença como ausente", diz Bimbenet (2011, p. 373), que continua: "a despresentação da coisa visada, o que a impede de aparecer a mim como uma projeção minha, deve-se ao fato de que eu não sou outrem, que ele não é eu" (p. 373). Doravante, minha visada do mundo deve compor com o "olhar vindo de alhures" (Bimbenet, 2011, p. 373).

O mundo escapa, ou se retrai, para além do horizonte das faces dos objetos que nos são apresentadas a cada posição que ocupamos no espaço. A multiplicidade de olhares passíveis de contemplá-lo de diversas perspectivas participa da percepção que temos da sua visibilidade inesgotável. Conforme as análises de Merleau- Ponty (1951) sobre a criança em face de sua imagem especular, tem-se aqui um fenômeno cuja interpretação por síntese intelectual deveria repousar sobre uma síntese mais fundamental relativa à própria experiência de coexistir com outrem e de se endereçar a um mundo que não abarcamos por completo, e ao qual, justamente por isso, não deixamos de nos mover.

Em suma, a percepção e o comportamento humano abrem-se à profundidade e à multiplicidade perspectiva das coisas (Merleau-Ponty, 1942/2006, 1945). Esse movimento é indissociável do reconhecimento de outrem como ponto de vista sobre o mundo, o que exige que o próprio sujeito perceptivo se identifique como lócus de percepção particular do mundo, articulada com a crença na realidade do mundo, ou seja, com um mundo intersubjetivo. O mundo não se multiplica porque identificamos o outro como ser intencional igual a nós, ou vice-versa. Descobrir a profundidade do mundo é descobrir a possibilidade da alteridade, ao mesmo tempo em que se identificar com e no outro implica abrirse à multiplicidade perspectiva. Nesse entremeio, o alter ego, a vida subjetiva de outrem, apresenta-se como a realidade do outro, assim como na face de um objeto entrevemos a sua totalidade objetiva.

Nossa experiência realista do mundo, quer dizer, nossa crença na totalidade do real a partir do ponto de vista único que temos dele, o que Merleau-Ponty (1945) chama de problema do "em-si-para-nós" (p. 372), inclui o outro. De maneira análoga, a experiência que fazemos de outrem inclui o movimento para o mundo, a forma como outrem se endereça a ele, e que oferece a mim o alargamento da minha perspectiva sobre as coisas. Essa "síntese de horizontes", da qual fala Merleau-Ponty (1945, p. 84), aparece como o fundamento dos exercícios de "atenção metafísica e desinteressada" (Merleau-Ponty, 1945, p. 372), que figuram a coisa percebida como um em-si distante, comparável à "intimidade de uma consciência estrangeira" (Merleau-Ponty, 1945, p. 372). Tratar esses frutos tardios da atividade humana, a ideia de um mundo presumidamente real e de uma consciência de si, como o ponto de partida na investigação da ontogênese implica adotar uma posição objetivista, que, justamente por "começar do final", recai inclusive nas formas intelectualistas de se conceber a intersubjetividade abordadas neste artigo.

 

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Texto submetido em 23 de junho de 2013 e aprovado para publicação em 19 de novembro de 2014.

 

 

* Professor assistente doutor do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista (Unesp). Endereço: Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. Avenida Dom Antônio, 2100, Assis-SP, Brasil. CEP: 19806-900. Telefone: (18) 3302- 5889. E-mail: danilo.verissimo@gmail.com.
1 Muitas pesquisas vêm sendo dedicadas a identificar o que seriam os fundamentos neurais da intersubjetividade primária. Nesse contexto, cumpre destacar a descoberta dos neurônios espelho, no início da década de 1990. Trata-se de neurônios cuja propriedade é codificar tanto a execução de um ato qualquer quanto a observação desse mesmo ato realizado por um congênere (Bimbenet, 2011). Muitos dos debates em torno do "sistema especular" neural passam por tentativas de naturalizar a conexão interpessoal descrita pelos fenomenólogos. Tendo em vista que demarcamos como foco deste artigo a análise de teorias de cunho intelectualista, não encontramos espaço para discutir as abordagens naturalizantes da intersubjetividade. Para tanto, recomendamos a leitura de Ratcliffe (2009).


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