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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.2 Belo Horizonte May/Aug. 2016

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P315 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P315

 

SÃO TODAS AS CAUSAS POTENCIALMENTE CAUSADORAS DE DOENÇA MENTAL? OS ARCHIVOS BRASILEIROS DE HYGIENE MENTAL E O ESBOÇO DO HOMEM MODERNO

 

CAN ANY CAUSE BE A POTENTIAL CAUSE OF MENTAL ILLNESS? BRAZILIAN ARCHIVES OF MENTAL HYGIENE AND THE OUTLINE OF THE MODERN MAN

 

¿SON TODAS LAS CAUSAS POTENCIALMENTE CAUSADORAS DE ENFERMEDAD MENTAL? LOS ARCHIVOS BRASILEÑOS DE HYGIENE MENTAL Y EL ESBOZO DEL HOMBRE MODERNO

 

 

Neuza Maria de Fátima Guareschi*; Lutiane de Lara**; Daniel Dall'Igna Ecker***; Ananda Pinto Cardoso****

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a noção de higiene mental preconizada no documento Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, com base na abordagem foucaultiana de "governamentalidade" e estratégias de biopoder. Para isso, analisamos um periódico de saúde pública veiculado no Brasil entre as décadas de 1920 e 1940 pela Liga Brasileira de Hygiene Mental, no qual a noção de higiene mental se converte em certa profilaxia do comportamento, em prol de um ideal de progresso coletivo para o Brasil daquela época. A discussão de tal material evidencia que os processos de governo da vida se sustentam em verdades sobre os sujeitos que legitimam as necessidades da urbanização emergente e, como efeito, constituem elementos para o ideal de homem moderno.

Palavras-chave: Higiene mental. Michel Foucault. Contemporaneidade.


Abstract

This paper aims at discussing the notion of mental hygiene advocated by the document Brazilian Archives of Mental Hygiene by considering the Foucauldian approach of govern mentality and bio-power strategies. We have analyzed a public health journal published by the Brazilian League of Mental Hygiene in Brazil from the 1920s to the 1940s in which the notion of mental hygiene was converted into a certain behavioral prophylaxis, in favor of a collective ideal of progress in Brazil at that time. The discussion about such material has evidenced that the process of government of life grounded in truths about the subjects who both legitimate the needs of the emerging urbanization and, as a result, constitute elements for the ideal of the modern man.

Keywords: Mental health. Michel Foucault. Contemporaneity.


Resumen

Este artículo pretende discutir la noción de la higiene mental preconizada en el documento Archivos Brasileiros de Hygiene Mental a partir del abordaje de Foucault sobre a gobernabilidad y estrategias de biopoder. Para eso, analizamos una revista de salud pública divulgada en Brasil entre las décadas de 1920 y 1940 por la Liga Brasileira de Hygiene Mental donde la noción de higiene mental se convierte en cierta profilaxis del comportamiento, a favor de un ideal de progreso colectivo para Brasil en ese momento. La discusión de tal material demuestra que los procesos de gobierno de la vida son apoyados por verdades sobre los procesos que legitiman las necesidades de la urbanización emergente y, como efecto, constituyen elementos para el ideal del hombre moderno.

Palabras clave: Higiene mental. Michel Foucault. Contemporaneidad.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo discutir a noção de higiene mental preconizada nos documentos do periódico Archivos Brasileiros de Hygiene Mental1,publicados de 1925 a 1947 pela Liga Brasileira de Hygiene Mental no Brasil. A partir do contato com esse material, buscamos conhecer o trabalho desenvolvido pela Liga, mais especificamente sua influência na produção de saberes acerca do cuidado em saúde na época. A Liga Brasileira de Hygiene Mental foi fundada em 1923, fazendo-se presente de meados da década de 1920 à de 1950, em uma instituição cuja sede era localizada na Avenida das Nações, no Rio de Janeiro, onde se situavam embaixadas, consulados e outros importantes órgãos estatais (Fontanelle, 1925). As condições de possibilidade para a criação da Liga no Brasil estão atreladas à emergência da urbanização como um problema social decorrente das grandes mudanças pelas quais passou o País a partir do final do século XIX, com a Abolição da Escravatura, a instauração da República e os primeiros movimentos para a industrialização.

Presente entre as duas grandes Guerras Mundiais, a Liga é o referente do entusiasmo da burguesia brasileira em consolidar-se como uma nação desenvolvida. Os ideais ufanistas e nacionalistas encontram-se com as concepções de mundo e de homem, com forte apelo ao indivíduo e à hereditariedade como princípios de uma nação saudável. Os problemas mentais da população, apesar de suas explicações individualizantes, eram identificados como obstáculos ao progresso coletivo da nação. Internamente, a Liga se dividia entre correntes distintas com relação à resposta aos dilemas nacionais, variando entre propostas de esterilização e outras de cunho moral (Wanderbroock Junior & Boarini, 2007).

A Liga importa do contexto europeu as noções de degeneração e higiene mental que, juntas, uniam hereditariedade e origem social como saberes capazes de explicar as mazelas sociais. Para a Liga, o problema da nação era os indivíduos considerados degenerados, menos evoluídos, anormais ou inferiores. Uma das estratégias utilizadas por ela foi submeter o País a uma "depuração social", ou seja, a separação de indivíduos superiores e inferiores, em termos de habilidades mentais e aptidões (Wanderbroock Junior & Boarini, 2007). Essas teorias, de forte base evolucionista, encontrariam terreno fértil no regime totalitário de Getúlio Vargas, a partir da década de 1930, pois este se vincularia às ideias antiliberais, à repressão e a políticas que limitavam o número máximo de indivíduos de cada grupo étnico para a entrada no País (Seixas; Mota & Zilbreman, 2009).

A Liga contava, ainda, com diversos representantes no meio acadêmico distribuídos pelo Brasil, os quais tinham conexões com pesquisadores de outros países. Assim, médicos, psiquiatras e outros profissionais da área da saúde reuniamse, buscando produzir conhecimento sobre o contexto brasileiro. Essa produção estava consideravelmente engajada na construção de estratégias de gestão urbana e de ajustamento da população à organização econômica da época, atravessada pelos processos da industrialização (Seixas, Mota & Zilbreman, 2009). São diversos os estudos que evidenciam como a Medicina e sua especialidade da psiquiatria tiveram representatividade na constituição da sociedade industrial e liberal em nosso País (Costa, 1976; Luz, 1982; Portocarrero, 1990; Carvalho, 1997).

Realizamos um recorte do material escolhido para análise, priorizando as publicações feitas entre 1925 e 1930, de maneira a colocar em destaque as racionalidades que operavam nesse contexto histórico. Fundamentado pelos operadores teóricos foucaultianos de "governamentalidade" e "biopoder", este artigo procura abordar como a concepção de higiene mental veiculada nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental legitimou intervenções discursivas em relação à vida da população num momento crucial para a formação do Estado brasileiro moderno e industrial. Com isso, procuramos mostrar o processo pelo qual essas noções se convertem em propostas de normalização dos sujeitos por meio de discursos profiláticos sobre a crescente população, que buscava tomar tons de urbana no Brasil do início do século XX.

Guiados pela abordagem teórica foucaultiana, realizamos um exercício de história do pensamento para compreender como os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental podem ser analisados no jogo do governo da vida (Foucault, 2010a). Para Foucault, uma história do pensamento é passível de ser construída a partir da análise dos focos de experiência. Estes, de acordo com o filósofo, são as articulações de três elementos: as formas de um saber possível; as matrizes normativas de comportamento para os indivíduos; e os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis. Nessa articulação, estão presentes os elementos que o autor aponta como centrais para responder o questionamento de como nos tornamos o que somos: verdade, relações de poder e formas de relação consigo e com os outros (Foucault, 2010b; 2005). Isso não para saber como se funda o sujeito, mas no exercício de uma forma de assujeição, ou seja, como algo que tenta desestabilizar os sujeitos de sua sujeição.

A história do pensamento traz para discussão a noção de higiene mental como um ponto pelo qual se formou uma série de saberes heterogêneos que operaram processos de normalização da vida pública nos seus mais variados aspectos: educação, relação entre mães e filhos, limpeza do espaço urbano, entre tantos outros. Ao mesmo tempo, definiram a constituição de certo modo de ser um sujeito sadio, para, com isso, assegurar o progresso do País.

Para evidenciar esse processo, em um primeiro momento, constituímos uma discussão sobre a emergência da noção de higiene mental e a criação da Liga Brasileira de Hygiene Mental e dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental no contexto brasileiro daquela época. Com base na análise da construção desse contexto, afirmamos que a Liga e suas publicações são efeitos do processo de inserção das estratégias biopolíticas no Brasil. Nesse sentido, evidenciamos como as publicações da Liga passam pela busca de noções de higiene mental a fim de constituir elementos que orientariam os sujeitos, para atender às necessidades de um recente Brasil industrial e moderno. Em um segundo momento, tomamos os escritos dos Archivos para analisar os elos de racionalidade que ligam as noções de profilaxia mental e eugenia como importantes ferramentas para a higiene mental.

 

2. RUAS LIMPAS, PESSOAS SADIAS: A HIGIENE MENTAL E A GESTÃO DE UM MODO MODERNO DE VIDA

A partir do final do século XIX, o Brasil vive uma explosão urbana, acarretada pela entrada do capitalismo industrial no País. Nesse período, as mudanças decorrentes de tal processo exigem do Estado manobras que fazem com que a cidade tome lugar de cuidado especial na Administração Pública:

Estamos convencidos de poder a União intervir livremente nos Estados em questões de higiene, indissoluvelmente ligadas a todos os problemas de ordem econômica, política e social. Não compreendemos autonomias estaduais e municipais em matéria de saúde pública [...]. Nesse assunto não pode, nem deve haver simples interesse regional ou local, porque ele é nacional (Penna, 1923, p. 295).

O desenvolvimento econômico e o crescimento populacional, característicos da época, incitam um acentuado êxodo rural, o que implica a reconfiguração do espaço urbano. Essa reconfiguração é evidenciada como efeito da transição de uma estrutura agrária tradicional para um Estado moderno. A modernização pressupõe industrialização e, para isso, requer mão de obra apta ao trabalho. Para atingir esse objetivo, o Estado, em conjunto com as instituições da sociedade, desenvolve estratégias de investimento na população de diversas formas; uma delas é focada na saúde das pessoas.

O Brasil desse período encontra-se assolado por epidemias (malária, varíola, febre amarela, peste bubônica, cólera…), decorrentes, em grande maioria, dos aglomerados urbanos, que se formam sem planejamento. Para responder a esses problemas que afetam diretamente a economia baseada na agroexportação, constitui-se uma política de saneamento dos espaços de circulação das mercadorias e erradicação de doenças que poderão prejudicar a exportação. Diante disso, o sanitarismo campanhista é o modelo hegemônico até a década de 1960, caracterizado pelo combate de doenças por meio de estruturas verticalizadas.

A Medicina, nesse contexto de capitalismo emergente que fomenta a preocupação do Estado com a saúde da população, tem forte influência nos rumos que marcam as intervenções estatais. Dentre as consequências dessa influência, entre os anos de 1890 e 1900, no Rio de Janeiro e nas principais cidades brasileiras, os médicos higienistas recebem incentivos do governo federal para ocupar cargos importantes na Administração Pública. A principal intervenção dos higienistas consiste no saneamento das áreas indicadas pelos políticos mediante vigilância de praticamente todos os espaços (fábricas, estábulos, hospitais, bares e cemitérios). Nessa época, na mesma seara da Liga, são criados os institutos de pesquisas epidemiológicas para assegurar a eficiência do trabalho dos higienistas e fiscais sanitários (Lara, 2009).

Os higienistas, por meio de suas práticas saneadoras, buscam intervir nos focos da doença e da desordem, identificados basicamente nas camadas mais pobres da população. Diante disso, a pobreza passa a ser entendida como um problema social que impede o progresso da sociedade, necessitando de intervenções de forma a normalizá-la e moralizá-la. Há toda uma série de investimentos nas características biológicas da população, no sentido de potencializá-las e de assegurar a sujeição dos corpos para, principalmente, aumentar sua utilidade de acordo com as necessidades do Estado. Uma das consequências disso é o investimento forte na criança e na medicalização da família (Moura, 2004) e da população em geral.

Esse processo evidencia que o capitalismo, conforme se funde ao modelo agroexportador do Brasil, conforma os indivíduos da maneira que lhes cabe. Cria meios funcionais de os sujeitos entenderem a si, suas capacidades e seus limites. Procura fazer isso pela generalização da forma econômica no meio social e urbano, racionalizando os diferentes âmbitos do cotidiano, a fim de tornar a sociedade produtiva como forma de organizar o homem e o homem em sua relação com as coisas. Organiza, portanto, a relação entre os sujeitos, entre os membros das famílias, a relação destes com a cidade, a educação, a saúde, etc. Para isso, o capitalismo alia-se às verdades científicas (daí a importância da fundação da Liga), que explicam os comportamentos, vícios e virtudes do humano para elucidar a incipiente população brasileira sobre como indivíduos modernos deveriam agir e portar-se (Foucault, 2008) no recente Brasil república.

O processo pelo qual passa o Brasil no período é indicativo da inserção do humano no centro das intervenções do Estado e de suas instituições como efeito das estratégias do biopoder ou da "governamentalização" da vida. O governo da vida, ou a "governamentalidade", diz respeito às maneiras de governo das pessoas baseado em um encontro entre as técnicas de dominação e o controle sobre os outros e sobre si mesmo (Foucault, 2010a). De acordo com Foucault (2005), o biopoder, ao agregar as práticas disciplinares aos mecanismos de regulamentação, intervém entre o disciplinar e o regulamentador, de modo a controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica. À tecnologia de poder disciplinar, predominante entre os séculos XVII e XVIII, articula-se uma segunda tecnologia, que não exclui a primeira, mas a modifica, de forma a reconfigurá-la. Essa nova tecnologia, o biopoder, não tem mais estritamente o corpo como direção; ela se volta para a vida do homem, abarcando uma multiplicidade de homens, que não é tomada como um conjunto de corpos, mas como uma imensa massa, um conjunto que pode ser tido como homem-espécie.

A Liga, como uma estratégia de normalização presente no contexto biopolítico brasileiro, não é efeito somente da disciplinarização da vida, mas também da articulação entre o poder que se aplica ao corpo dos indivíduos e aos fatores biológicos de toda a população. Isso quer dizer que a normalização não opera exclusivamente sobre o comportamento (prática fortemente sustentada pela higiene mental), intervindo também nas características biológicas (prática sustentada pela teoria da degenerescência). A regulamentação da vida, ao intervir nos aspectos biológicos massivos dos indivíduos, busca equilibrar, ou mesmo regular, os fatores identificados como perigosos ao modelo agroexportador, normalizando a sociedade brasileira. Nesse sentido, o biopoder agrega os vetores da disciplina e da biopolítica, articulando-os no contexto do Brasil moderno como dois conjuntos de técnicas orientadas para a produção do sujeito moderno. Nesse campo de análise, a vida biológica converte-se em objeto de governo, de modo a constituir-se por meio de uma série de estratégias que pretendem investir sobre ela (Foucault, 2005).

No contexto de construção de um Brasil moderno, por ação dos higienistas e da elite letrada, cria-se a Liga Brasileira de Hygiene Mental para produção de conhecimento no campo da prevenção e correção das mazelas urbanas e sociais. Mediante tratamento, instrução e polimento do homem no que diz respeito à sua saúde mental, busca discursar sobre a correção dos problemas urbanos de desordem, pobreza e delinquência. Os criadores da Liga consideram que todos os contextos são capazes de produzir doença mental e que a educação é a forma de prevenção e correção em todos esses contextos.

Com base nessa percepção, organizam-se grupos de seletas figuras da elite letrada numa iniciativa privada para pesquisar os temas relevantes ao avanço do país, como a educação, o trabalho e, sobretudo, aquilo que mais preocupava povos e governos: a saúde. Torna-se meta dessa elite pensar os problemas urbanos e maquinar explicações e intervenções no contexto social.

Para a disseminação de sua proposta de intervenção social, a Liga utilizava, como principal via, a publicação dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental. Seixas, Mota e Zilbreman (2009) dizem que a Liga é uma das instituições criadas no Brasil como uma das estratégias de intervenção no campo da organização urbana e da população. O que impulsionou o início da Liga foi o objetivo de desenvolver práticas higienistas, baseado na ideia central de que fazer higiene se dá pela prevenção de doenças e de que prevenir doenças requer agir nas suas causas. Para isso, a Liga aborda a doença mental e volta-se para sua etiologia, afirmando que suas causas não são produtoras apenas de um específico modo de ser e estar no mundo. Assim, para evitar a causa de doenças, dever-se-á investir em um combate que tenha caráter específico em cada campo de possível manifestação de desordem mental. Nessa lógica, os profissionais que escrevem os Archivos inserem-se em vastos campos de intervenção, sendo capazes de opinar a respeito de contextos que vão desde combate a matrimônios entre degenerados até a instrução dos conteúdos adequados a serem incentivados pela Academia Brasileira de Letras.

Por meio dos escritos, são desenvolvidas diversas propostas de intervenção social que oferecem tanta utilidade como estratégia de governo da vida que, em 1925, a instituição começa a receber subsídios do governo federal para afirmar-se como patrimônio legitimado. A partir disso, oficializam-se os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental como importante estratégia de produção de conhecimento no âmbito social. O alienar-se é um dos tópicos centrais das discussões dos profissionais. Como poderemos acompanhar no artigo, desenvolvem-se diversas propostas sobre como as pessoas daquele tempo deveriam cuidar de si próprias para manterem-se no controle de si, visando ao afastamento dos perigos da doença mental (Esposel, 1925).

As publicações dos Archivos trabalham constantemente as noções de profilaxia mental e de eugenia como ferramentas que possibilitariam atingir a higiene mental. Esse modelo, fortemente inspirado em um padrão importado da Europa, coloca-se como uma ferramenta social de orientação das ações governamentais. Assim, resguardar e educar o cérebro seria ações postas em prática por intermédio de programas sociais que iriam intervir na via de adaptação dos sujeitos a regras, prescrições, defesas, impedimentos e proibições conforme suas próprias aptidões individuais. Por meio dessas ferramentas, em parceria com o poder legislativo,poder-se-ão desenvolver leis sociais que serão aplicadas a cada sujeito (Penafiel, 1925).

Nesse contexto normalizante, os dirigentes do Brasil da década de 1920 concebem que, se bem estimuladas e orientadas a um propósito comum, as pessoas, seus corpos e suas mentes trabalharão pelo progresso, pela reforma orientada, pela organização do espaço público, pela estabilidade e pela calmaria. Assim, a tomada autoritária de poder e sua incisiva ação sobre os corpos passam a ser manobras ideais diante da ameaça de caos que se colocava pelos discursos de determinados grupos sociais. As concepções eugênico-higiênicas preconizadas pela Liga, evidenciadas na publicação de seu periódico, articulavam e tencionavam esse jogo de governo da vida sob a justificativa da normalização.

A normalização intervinha buscando construir a figura do modelo de sujeito saudável que incitaria a população, das mais variadas formas, a almejar corpos, vidas, rotinas e objetivos semelhantes. Nessa produção, as premissas de higiene mental veiculam-se em estratégias de investimento na população sob uma perspectiva reguladora que equipara a ideia de desordem interna ou mental à de desordem pública ou urbana. Espalha-se no Estado, e nas diversas instituições que envolvem a educação, a segurança pública, a saúde e o trabalho, o ideário de que o progresso será garantido se tivermos cidadãos em condições de almejá- lo e construí-lo. A modernização do País e o concomitante investimento no humano como meio para alcançá-la engendram um intrincado esquema em que o humano, em seu fato biológico, ingressa na cena política por meio de uma estratégia geral de poder.

 

3. A LIGA BRASILEIRA DE HYGIENE MENTAL: UMA INSTITUIÇÃO DE ARQUITETURA PROFILÁTICA DE SUJEITOS

A emergência da industrialização em nosso País permite uma divisão do trabalho e a possibilidade da organização de setores preocupados com o estudo dos problemas urbanos. Dentre os diversos âmbitos colocados como problema, destacamos a salubridade. Tornar a cidade salubre consiste em limpar tudo de poluído que nela há, seja essa poluição humana ou não. Para limpar o não humano, investe-se em obras públicas de saneamento. Para limpar o humano, instauramse novos modos de vida: modos puros, saudáveis, ajustados, convenientes, modos higiênicos (Hockmann, 1993).

Essa elucidação, essa instauração de modos se faz mediante uma profilaxia do comportamento, ou seja, da hygiene mental. O sujeito humano, na perspectiva da higiene mental, será o centro da produção dos conhecimentos da psiquiatria e de medidas de intervenção, tanto dessa disciplina do conhecimento quanto das diferentes instituições modernas que serão legitimadas por seus discursos com afirmações de verdades sobre a higiene, a doença mental, o espaço das cidades e sua organização.

O trabalho da higiene mental apresenta duas faces: a profilaxia mental, ou seja, trabalho defensivo contra as causas da degeneração mental e incisão aplicada aos normais no intuito de prevenção; e a higiene mental ou moral, que busca estabelecer um suposto equilíbrio entre a mentalidade individual e o meio físico e social, no intuito de adaptar mazelas e desregramentos a uma vida organizada e produtiva. Passa-se a construir e fortificar uma lógica de normalização, controle de si e adequação social que, na época sustentará, por exemplo, a prática da prisão de inúmeras pessoas em asilos e manicômios devido a comportamentos entendidos como decorrentes de ímpetos insustentáveis.

Como estratégia de intervenção, proposta de resolução e resistência à situação que pudesse afetar o funcionamento social, a Liga Brasileira de Hygiene Mental acredita na execução de um sistema de formação moral de caráter profilático para os desajustes mentais. Segundo Esposel (1925), "Distúrbios esses que podem gerar paixões, crimes, idéas extremistas, reivindicadoras ou revolucionarias" (p. 105). Nessa lógica, o autor da Liga, já munido de conclusões, indaga:

Realmente todas as causas não são capazes de produzir disturbios mentaes? Certo que sim [...] Tenho em convicção que um tal programma de ensinamentos contrariaria muitas tendencias constitucionaes ou hereditarias, e evitaria muitas influencias sociaes conductoras a disturbios de ordem mental [...] Realmente, mesmo para a manifestação de certas psychoses e psycho-neuroses não concorrerão vicios de educação? Estou certo que sim (Esposel, 1925, p. 102-105).

Coloca-se a higiene mental como a parte principal, início e base lógica para a formulação de programas de âmbito social: educação, justiça, segurança, cultura, trabalho, saúde, entre outros. Em meio a esse processo de entendimento e regulamentação da vida, opera-se uma proposta de disciplinamento dos corpos para torná-los úteis, esquadrinhados, domesticados e treinados para a produção do Brasil do futuro. O trecho abaixo ilustra a relação que se estabelece entre homem, valor comercial humano, trabalho e profilaxia mental:

E até no que concerne à fadiga que certos trabalhos causam principalmente ao systema nervoso, fadiga que póde ser de três especiaes, muscular, por choques moraes (emoções), e intelectual, o papel daquela Liga deve cifrar-se [...] no estudo, sobretudo, do elemento psychico que envolvem taes problemas [...] o modo de trabalho de cada homem, o seu esforço dynamico, a duração das pausas na sua atividade, etc., trazem à despesa de energia e à quantidade útil fornecida elementos de variação dependendo das qualidades psychicas do individuo [...] a Liga de Hygiene Mental póde dar-se à tarefa de organizar um systema que possa, por meio de pericias de um Instituto apropriado, colocar methodicamente a experiência technica, medico-psychologica, a serviço do Commercio e da Industria moderna (Penafiel, 1925, p. 12-13).

Os campos de conhecimento passam a ter lugar de grande importância, pois o caráter de verdade atrelado à cientificidade legitimaria os modos de investir na vida. Os saberes produzidos pela Liga inauguram-se com a afirmação da necessidade de formarem-se trabalhadores produtivos, sadios e de corpos íntegros. Cria-se, assim, a perspectiva de que a vida, se não controlada por um saber específico, pode ser um perigo para o progresso do País. Tal argumento legitimaria uma série de intervenções que se seguirão, como a readequação do papel da família na educação das crianças, a centralidade da escola para o disciplinamento dos jovens e, principalmente, a importância dos higienistas e de qualquer letrado, preocupados com os problemas urbanos, como portadores da verdade sobre a vida das pessoas (Oliveira, 2011).

No discurso da Liga, também está presente a preocupação proveniente da industrialização, com a maximização das forças do organismo como forma de garantir o maior rendimento possível. O homem, como referido na citação anterior, vale o quanto seu corpo pode produzir, ou seja, tem valor comercial. A necessidade de quantificação demanda o conhecimento da anatomia dos corpos para extraírem-se suas forças, mas, ao mesmo tempo, evitar a fadiga. Tal construção argumentativa cria claramente condições para que se introduza a noção de prevenção no cenário nacional. Essas ideias, após serem transformadas em verdades amparadas por supostos especialistas, serão utilizadas pelas fábricas, escolas e quartéis, por meio da introdução das práticas de atividades físicas nos currículos e dos exaustivos exames e checagens (Foucault, 2004), visando a prevenir adoecimentos e a garantir a manutenção econômica da sociedade em prol de um avanço da pátria.

Especialmente a doença mental constitui-se como uma endemia que ameaça as forças produtivas; para tratar disso, é preciso rever as formas de trabalho, educação, segurança e saúde. Essa revisão faz parte explicitamente das estratégias de investimento para a construção do indivíduo moderno. Qualquer fonte de vida ou resquício de movimento humano torna-se alvo de cuidado e normalização. Evidencia-se a fusão das noções de verdade sobre a população por meio dos saberes da higiene mental, da profilaxia e da eugenia, com estratégias de governo visualizadas na enumeração de uma série de campos nos quais a Liga pretende incidir com seus ideais instrutivos e reguladores, a fim de investir no humano e, assim, forjar o sujeito apto ao trabalho.

Como parte dessas intervenções, podemos tomar o exemplo das mulheres grávidas, para quem a Liga deverá pensar ações para evitar que o futuro bebê, como um "projeto psíquico de homem", seja afetado por malformação, por exemplo, devido a comportamentos indesejáveis da mãe e do pai. Além delas, outro campo de interesse e intervenção é o dos sujeitos analfabetos, em quem se pretende interferir para um amplo aproveitamento de sua cultura mental. Para isso, deverse-á incluí-los nos níveis primário e, posteriormente, nos níveis secundários de educação (atual ensino fundamental e médio). Para os adolescentes, sugeremse cursos ou ensinamentos de ortopedia psíquica: qualquer coisa que oriente e firme a moral, que forme o caráter do adolescente (Esposel, 1925).

Outra missão da Liga será a de orientar cientificamente a escolha das profissões, de acordo com as inclinações, as tendências, as capacidades verificadas por exames adequados, ou, dada certa profissão, selecionar, por um exame técnico, os indivíduos nas melhores condições de exercê-la. Além disso, no âmbito do casamento e da formação da família, deverá pugnar com mais veemência, mediante a identificação de incapacidades matrimoniais dos degenerados, para que se evite a formação de famílias degeneradas. No campo do trabalho, os operários são colocados em evidência quando os autores discorrem sobre a necessidade de afastamento dos vícios e das posturas extremas para que os trabalhadores possam tomar consciência de seu potencial e, a partir disso, unirse e exigir melhores condições de trabalho e de vida.

É interessante pensar que todos os argumentos que justificam os escritos dos Archivos se sustentam em um discurso amparado por um ideal sociopolítico legitimado por verdades dos saberes da saúde: "Na organização social, deve haver perfeito synchronismo no esforço de todos os seus componentes [...] a deficiência de uns repercute sobre o conjunto [...] por isso a psychopathia é uma grande causa de déficit econômico nas nacionalidades" (Toulouse, GenilPerrin & Targowa, 1925, p. 168). Em termos claros, os autores expõem que, quando não é possível organizar as pessoas e seus modos de pensar por meio das estratégias propostas, dever-se-á instaurar a ordem mental e moral mediante o sutil afastamento dessas pessoas do centro urbano e produtivo da cidade. Dessa forma, "a hygiene mental trabalhará, assim, em ligação com a hygiene geral, mas, é claro, dedicando-se mais particularmente à salvaguarda da saúde psychica dos individuos" (p. 169). Observa-se que as estratégias de intervenção se atrelam às ações de asilamento e depósito do anormal fora do campo de visão da sociedade considerada sadia: "estudar os remédios sociais aplicáveis às causas de loucura" (p. 169) como forma de resolver os males da vida urbana.

É possível perceber, a partir desses modos de intervenção da Liga, os elos de racionalidade que vão se constituindo entre as ideias de doença mental e de desordem social. As vertentes explicativas da psiquiatria contribuem com seu conhecimento determinista para esclarecer o desenvolvimento humano, construído e sacramentado baseado em suas ideias contra a tendência humana de criar vícios e deixar-se guiar pelo prazer. Trata-se de um saber atrelado a questões sociais, visando a estabelecer relações de causa e efeito que se constituirão integradas ao objetivo de atingir o progresso da Nação. As argumentações sobre a desordem social atrelada ao comportamento humano são fundamentadas com ideias eugênicas. A eugenia institui uma ideia ameaçadora da hereditariedade como algo que passará os desajustes de geração a geração e, assim, comprometerá progressivamente todo um povo. Tal argumentação é empregada como justificação para que a população atente às más tendências humanas, como forma, portanto, de ameaça àqueles que não seguem as orientações da Liga.

Como sugestão de manejo, a Liga coloca os governos autoritários e totalitários como figuras capazes de centralizar os saberes sobre a desordem social e, a partir deles, criar manobras de regulação social que podem auxiliar na regulação psíquica dos sujeitos. O governante e as estratégias de gestão pública são centralizados como possíveis vias dirigentes de evitação da degenerescência:

A preocupação eugenizante tem ganho considerável terreno em toda parte, e por isso acreditamos sejam bem acolhidas, em nosso meio, as iniciativas em prol do aperfeiçoamento da raça [...] obra de saneamento racial [...] lei permitindo a esterilização eugênica (Lopes, 1933, p. 278-280).

Essa proposta, no início do período do Estado Novo, a partir de 1930, no âmbito das políticas de investimento na vida, saneia e promove uma limpeza social, visando a garantir a prosperidade e os interesses de progresso nacional:

Ora, a resposta que o Sr. Dr. Getulio Vargas se dignou dar à Commissão demonstrou, à evidencia, como o eminente Chefe do Estado apprehende a importancia e o significado exacto das questões medico-sociaes integradas no programma da Hygiene Mental. De facto, S. Exa. antes de mais nada, frisou ser um facto fora de duvida que a orientação da medicina, nos tempos modernos, assume, cada vez mais, caracter preventivo (Liga Brasileira de Hygiene Mental [LGHM], 1933, p. 275).

Os saberes da psiquiatria vão se alicerçando no Brasil dessa época para constituírem-se num híbrido que congrega a noção de eugenia e gestão estatal, com base na ideia de regulação da interioridade. A Liga almeja adotar um programa prático para realizar nas massas uma formação moral mais apurada. Diz Esposel (1925), psiquiatra da época, sobre o valor da psicoterapia no auxílio aos infelizes:

Seria uma justa cogitação da Liga para fazer hygiene mental, assentar o meio pratico de diffundir a maneira de dominar as commoções, de subjugar as paixões, de vencer os impetos, de educar a vontade, como tão popular e vulgarisada já está a expressão (p. 105).

A pretensão aqui é desenvolver um programa especializado de amparo e defesa propriamente psicológica, no qual a Liga acompanhará o indivíduo desde seu nascimento, passando pela idade adulta, velhice e morte. Nesse acompanhamento, evidenciar-se-ão os mais variados setores institucionais de circulação que esse sujeito pudesse compor, desde a escola, o trabalho, o lazer e a vida doméstica até as escolhas morais e a saúde, entre outras. Isso caracterizará importantes indicativos do avanço da estatização do biológico aos diferentes âmbitos da vida da população.

Penafiel (1925) diz que o trabalhador de fábrica deixa de ser entendido como um motor físico para a produção, para ser compreendido como um aparelho psicofisiológico. Vemos aqui a apropriação da ciência médica sobre a vida da população, criando uma centralização de saberes que organiza o espaço urbano, amparado por uma junção corpo-interioridade-produção. O autor desenvolve uma conexão entre as pesquisas dos laboratórios de Psicologia e os estudos dos fenômenos econômicos. A apropriação dessas pesquisas pela Liga visa a buscar subsídios para que se desenvolva, por meio de perícias apropriadas, um programa que possa "estabelecer, com logica palpável, uma estreita conexão entre as investigações do laboratório de psychologia e o estudo dos fenômenos economicos" (Penafiel, 1925, p. 13). O objetivo principal desse sistema será procurar bons colaboradores e operários úteis para servirem ao homem de negócios por meio do conhecimento de suas qualidades mentais e condições psicológicas. Essas pessoas poderão ser adentradas em melhores meios educativos como forma de intervenção nos funcionários para aumentar seu rendimento e produção industrial.

A biopolítica gera uma aproximação do campo da medicina aos interesses do Estado, uma vez que essa relação constitui objetos de saber e determinados alvos de controle importantes para o progresso nacional. No Brasil do século XX, esses investimentos na vida biológica amarram, em relação aos objetos de saber, as doenças que acometem a população; não na forma avassaladora de epidemias, como a sífilis, por exemplo, mas as doenças que se mantêm permanentes dentro daquela coletividade e, assim, comprometem a força de trabalho do humano e seu valor comercial, como é o caso da doença mental.

Dessa maneira, quando a doença mental é evidenciada no material dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental como uma problemática social, ela passa a fazer parte de toda uma construção normalizadora de intervenção nos corpos que atua pela produção de saberes sobre esses próprios corpos. Os escritos da Liga descrevem a doença mental atrelando-a a noções de constituições psicopáticas, organizações cerebrais deficientes e hereditariedades como elementos responsáveis pela degeneração dos sujeitos. Sugere-se, então, que, para evitar essa suposta doença mental, dever-se-á atentar a fatores de esgotamento e de irritabilidade nervosa, por exemplo, dificuldades financeiras, domésticas e de trabalho que poderão suscetibilizar o sujeito a psicopatias de caráter irremediável. Além disso, algumas profissões, como motoristas e barbeiros, poderão estar associadas a áreas de risco para o desenvolvimento de sujeitos epiléticos (Roxo, 1925).

É importante evidenciar a forma como esses elos de racionalidade vão articulando o discurso daquilo que é tido como verdadeiro e os mecanismos de sujeição que se fazem presentes na construção de modos modernos de vida, como na associação entre subemprego, esgotamento mental e alienação. Os alvos de controle, segundo elemento trazido por Foucault (2005) para abordar a biopolítica, surgem justamente por meio da higiene pública como um campo capaz de centralizar as práticas médicas.

Entende-se que os saberes produzidos sobre o sujeito individual, descrevendo uma determinada interioridade psicológica, estão presentes na escrita dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental de forma a normalizar o saber científico pela constituição de mecanismos e estratégias de biopoder. Esses visam a intervir nos fatores biológicos e psicológicos da população, buscando configurar uma média de sujeitos capazes de ingressar nas estruturas produtivas capitalistas.

Pode-se pensar que essa massa é produtiva a partir de um processo que a torna produtiva, ou seja, não é parte de um progresso da Nação, mas de uma condução das condutas operada no nível da moral, do psíquico e do biológico, sujeitando os indivíduos aos ideais do emergente Brasil moderno perante verdades disseminadas pelo campo da saúde. Trata-se de um esquema que vincula, como já sugerido, governo, verdade e sujeito. A noção de produtividade, medida pela condição desse corpo de gerar riqueza nas estruturas industriais, naturaliza-se com base na construção do oposto do sujeito produtivo (os fracos). Os fracos, como evidenciado nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, são indivíduos de cérebro anormal que poderão sucumbir por um motivo qualquer. Os saberes da higiene mental e da eugenia permitirão localizar no indivíduo, especificamente no corpo e na genética, as causas para sua fraqueza. Verifica-se, portanto, uma responsabilização dos indivíduos por diversos problemas sociais, como a pobreza, o adoecimento, a drogadição e a criminalização, no momento em que se integra a noção de indivíduo à de desordem externa.

Os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, dessa forma, evidenciam a construção da relação entre a higiene mental e a eugenia. Com a noção de eugenia, à busca por higiene mental, acrescentam-se os caminhos da hereditariedade e da genética ideal. A loucura, então, passará a ser explicada e associada a fatores de predisposição hereditária, ou seja, era preciso investigar na história genética das famílias a origem da degenerescência mental e evitar que esse erro continuasse a ser perpetuado nas gerações seguintes. Com esse casamento da higiene com a eugenia, a Liga avança em suas propostas de intervenção para o campo da prevenção de gerações de sujeitos indesejados, com o intuito de evitar a degenerescência da Nação. Labbé (1924), escritor da Liga, dá pistas dessa vinculação e mostra que as intervenções higienistas devem ser aplicadas aos homens médios e às crianças, não apenas aos "seres excepcionais" (p. 184), ou seja, prevê uma disseminação dos saberes, focando na maioria populacional da época: "Na etiologia da loucura domina a noção de predisposição hereditária. E é de crêr que a eugenetica muito tempo ainda gastará para suprimir por completo a degenerescência" (Toulouse, GenilPerrin & Targowa, 1925, p. 169).

A eugenia cria uma escala de intervenções de higiene que atua em sentido crescente de busca pela garantia de uma nação saudável. Para a Liga, a higiene intelectual da criança inclui precauções no meio familiar, paralelamente à higiene sensorial. A higiene intelectual escolar concebe a descrição de práticas que hoje são extremamente atuais, como tempo adequado das aulas, passeios que facilitam a aprendizagem, etc. No entanto, reforça-se que a higiene moral de uma criança começa a ser garantida quando a mulher procura um parceiro de, no mínimo, aparência adequada, mas, se possível, boa índole e inteligente (Labbé, 1924).

Para procrear um filho predisposto à moralidade, dever-se-á (preceito n. 1) escolher a pessoa com quem se deseja procriar entre as que ofereçam garantias moraes bem averiguadas. Para isso é de primordial importancia apurar tanto quanto possível qual o valor moral dos ascendentes. [...] deve haver uma puericultura moral, desde a phase pre-natal, procurando-se poupar à mulher gravida quaesquer preoccupações, emfim, pois nada d'isso será indiferente à orientação moral do futuro individuo (p. 186).

Na visão da Liga,

É crueldade inominável o lançamento dos recemnatos degenerados às profundezas do Eurotas, mas não é menos cruel e triste assistir impassível, à multiplicação de desgraçados que soffrem o calvario de uma cegueira, de uma surdo-mudez, arrastado pela vida afora (Kehl, 1925, p. 71).

A Liga utiliza-se da alusão aos sacrifícios de recém-nascidos indesejados na Antiguidade Clássica para atualizar a preocupação dos Antigos em ações que evitem que degenerados sejam gestados. Seguindo o raciocínio de Kehl, propõe-se a esterilização de "leprosos, loucos, idiotas, epilepticos, cancerosos, nephriticos, tuberculosos, prostitutas, vagabundos" (p. 73), conforme inspiração de trabalhos britânicos que interpretavam o método de castração como uma terapêutica social e como ferramenta de combate à proliferação de "heranças pathologicas" (p. 72).

O saber da eugenia cria uma larga escala de intervenções de higiene que atuam em sentido crescente na busca pela garantia de uma nação integralmente saudável. Para a Liga, a higienização da criança, de seu intelecto, dos espaços escolares, da família e das relações humanas vincula-se a uma moralidade ajustada que poderá estar associada a noções como de aparência adequada, boa índole, inteligência, caráter, felicidade e personalidade (Reis, 2000). A totalidade desses elementos é essencial para compreendermos a base sobre a qual se sustentará a gestão de uma determinada proposta moderna de vida.

 

4. A HYGIENE MENTAL E A EMERGÊNCIA DO SUJEITO MODERNO

Procurou-se, nesta análise, traçar algumas linhas dos papéis desempenhados pela Liga Brasileira de Hygiene Mental por meio dos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental na produção de discursos que legitimaram e orientaram entendimentos sobre os modos modernos de vida pautados na ciência eugênicohigiênica no Brasil. Na época, percebe-se a emergência de uma profilaxia do comportamento, o que implicaria novas noções do cuidado de si, limites e perigos concernentes ao corpo, como uma tecnologia disciplinar que se desdobra e se articula a um segundo modo de governo. Esse massifica a coletividade, sob o signo da população, criando verdades que possibilitariam ao sujeito entenderse e produzir-se por uma tecnologia de poder que atua sobre os organismos. Esse quadro remete à noção de biopoder, capaz de configurar estratégias de investimento na população para produzir indivíduos necessários a determinado modo de governo (Foucault, 2005).

O discurso higienista trazido pela Liga passa a ser entendido como um tensionamento que ajudou a produzir a ruptura do sistema arcaico brasileiro, passando-se para a operação de um sistema moderno em que os indivíduos concebem outras verdades na busca pelo governo de si e dos outros. Buscouse delinear o quão natural passa a ser, com base em uma nova configuração do Estado, o emparelhamento, o entrelaçamento entre verdades que colocam o sujeito na condição de constituinte biológico de um sistema que espelha, em seu próprio funcionamento, as engrenagens políticas e sociais de uma coletividade. O humano torna-se sujeitado a uma condição na qual concerne a ele o cuidado, esclarecido por especialistas, da forma ideal de conduzir sua vida para o bem geral da população.

Os ensinamentos de uma higiene mental, que outrora visavam à mente e ao seu equilíbrio, convertem-se em estratégias de "governamentalidade" que almejam o bom comportamento e a produtividade social. São estratégias que visam muito antes às evidências da regularidade, da rotina, numa forma de profilaxia do comportamento, profilaxia da desordem, profilaxia do não progresso, do que a um mero cuidado concernente ao corpo e aos seus perigos. A gestão estatal apropria-se de um discurso higienista pautado nas noções de eugenia e higiene mental para aliar a ideia de desordem psíquica, mental, à conjuntura da desordem urbana moderna. A saúde constitui-se, assim, como um campo que entrelaça propósitos estatais, como segurança, educação, controle social e o mais regulador de todos estes: a moral.

 

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Texto recebido em 24 de abril de 2013 e aprovado para publicação em 5 de dezembro de 2014.

 

 

*Doutora em Educação pela University of Wisconsin-Madison; mestra em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); graduada em Psicologia pela PUCRS; professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordena o grupo de pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e o Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação; desenvolve projetos na linha de pesquisa Políticas Públicas e Processos de Subjetivação e Formação e Produção em Saúde; tesoureira da ANPEPP (2006 a 2008) e presidente (2008 a 2010); presidente do Conselho Regional de Psicologia RS (CRP-RS) (2004 a 2007); presidente da Abrapso (Associação Brasileira de Psicologia Social) (2001 a 2003, 2011 a 2013); coordenadora do comitê de avaliação área 13 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) (2007 a 2009, 2011 a 2013); editora da Revista Psico (2006 a 2009); editora associada da Revista Psicologia e Sociedade (2007 a 2011); editora da Revista Polis e Psique; membro da Comissão Editorial da Revista Psicologia Ciência e Profissão. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Avenida Ramiro Barcelos, 2600, sala 300c - Bairro Santana, Porto Alegre-RS, Brasil. CEP: 90035-003. Telefone: (51) 3308-5954. E-mail: nmguares@gmail.com.
**Doutoranda na UFRGS, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); mestra em Psicologia Social e da Personalidade pela PUCRS; graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul; pesquisadora do Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e o Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação, coordenado pela dr.ª Neuza Guareschi; conselheira do CRP-RS, onde preside a Comissão de Comunicação, a Comissão para Concessão de Título de Especialista e a Comissão de Bens e Patrimônio; integra o Fórum em Defesa do SUS-RS; tem experiência na área da Saúde e Psicologia Social, com ênfase em Saúde Coletiva e Processos de Subjetivação, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde coletiva, neoliberalismo, governamentalidade. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Avenida Ramiro Barcelos, 2600, sala 300c - Bairro Santana, Porto Alegre-RS, Brasil. CEP: 90035-003. Telefone: (51) 3308-5954. E-mail: lutianelara@yahoo.com.br.
***Mestrando (bolsista CNPq) no Grupo de Pesquisa - Estudos Culturais e Modos de Subjetivação - dentro do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação - E-politcs - do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS (PPGPSI - UFRGS); graduado em Psicologia pela PUCRS; filiado à Abrapso desde 2012; tem experiência na área da Psicologia, Psicologia Social e Políticas Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas públicas, produção de subjetividade e governo das populações. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Avenida Ramiro Barcelos, 2600, sala 300c - Bairro Santana, Porto Alegre-RS, Brasil. CEP: 90035-003. Telefone: (51) 3308-5954. E-mail: daniel.ecker@hotmail.com.
****Graduanda em Ciências Sociais pela UFRGS; bolsista de iniciação científica (FAPERGS) desde 2010, no Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação dentro do Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação - do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de PósGraduação em Psicologia Social e Institucional. Avenida Ramiro Barcelos, 2600, sala 300c - Bairro Santana, Porto Alegre-RS, Brasil. CEP: 90035-003. Telefone: (51) 3308-5954. E-mail:anandapino@gmail.com.
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