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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2016

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P486 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P486

 

SOBRE OS NARCISISMOS E A CONSTITUIÇÃO DE UM CORPO NO AUTISMO

 

ABOUT NARCISSISMS AND THE CONSTITUTION OF A BODY IN AUTISM

 

SOBRE LOS NARCISISMOS Y LA CONSTITUCIÓN DEL CUERPO EN EL AUTISMO

 

 

Maira Barroso Leo*; Luis Flávio Silva Couto **

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a possibilidade da constituição ou da fabricação de um corpo nos casos de autismo. Partindo do pressuposto teórico-psicanalítico de que os autistas carecem, a priori, de envoltura corporal, lança mão, em primeiro lugar, dos conceitos de eu ideal e de ideal do eu concernentes à teoria do narcisismo e da construção do corpo na obra de Freud. Em segundo lugar, usa conceitos atuais próprios ao modo de funcionamento autístico, como a borda autística, o duplo, os objetos autísticos e as ilhotas de competência, forjados por autores psicanalíticos de orientação lacaniana, para sustentar a hipótese da existência de outras modalidades de constituição de um corpo próprio distintas daquelas propostas inicialmente por Freud e por Lacan.

Palavras-chave: Narcisismo. Eu ideal. Ideal de eu. Corpo. Autismo.


Abstract

This article intends to discuss the possibility of constitution or fabrication of a body in cases of autism. Starting from the theoretical assumption in psychoanalysis that the autistic children lack a body wrapping, firstly resorts to the concepts of ego ideal and ideal ego, concerning Freud’s theory of narcissism and constitution of a body. Then, it uses the concepts appropriate to the autistic functioning way of autistic border, double, autistic objects and competence islets, forged by psychoanalytical authors of Lacanian orientation, to support the hypothesis of the existence of other modalities for constitution of a own body, different from the ones initially proposed by Freud and Lacan.

Keywords: Narcissism. Ego ideal. Ideal ego. Body. Autism.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la posibilidad de la constitución o de la fabricación de un cuerpo en los casos de autismo. Partiendo de la suposición teórica psicoanalítica de que a los autistas les falta la envoltura corporal, recurre, en primer lugar, a los conceptos de yo ideal y de ideal del yo concernientes a la teoría del narcisismo y de la construcción del cuerpo en la obra de Freud. A continuación, utiliza los conceptos propios al modo de funcionamiento autístico, como el borde autístico, el doble, los objetos autísticos y las islas de competencia, forjados por autores lacanianos, para sostener la hipótesis de la existencia de otras modalidades de constitución de un cuerpo propio distintas de aquellas propuestas inicialmente por Freud y Lacan.

Palabras clave: Narcisismo. Yo ideal. Ideal del yo. Cuerpo. Autismo.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Ao discutirmos a questão da constituição de um corpo em psicanálise, tomamos inicialmente como referências fundamentais o texto "Sobre o narcisismo: uma introdução" (Freud, 1914/1977)1 e alguns apontamentos da psicanálise de orientação lacaniana concernentes ao autismo. Tanto para Freud quanto para Lacan, o problema da constituição de um corpo para os seres humanos está diretamente relacionado ao estado [Zustande] do narcisismo. Duas primeiras questões: o que vem a ser o narcisismo? Haveria uma única maneira de se constituir um corpo por meio dele?

Para compreendermos um pouco melhor as relações entre o narcisismo e a possibilidade de construção de um corpo próprio nos casos autismo, buscamos articular, na teoria freudiana, os conceitos de narcisismo original, anterior às relações da criança com a mãe, de autoerotismo, de narcisismo, de eu ideal [Idealich] e ideal do eu [Ichideal]. Na teoria lacaniana, tentamos compreender quais seriam as relações entre o narcisismo, o estádio do espelho, a escrita em Joyce e a construção de um corpo para o parlêtre.

No texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), Freud define o narcisismo como

A atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o corpo de um objeto sexual é comumente tratado — que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até obter satisfação completa através dessas atividades. Assim considerado, o narcisismo exibe as características que se encontram presentes nas perversões (p. 118).

Entretanto Freud vai logo perceber que a libido narcísica também se encontra presente "no curso regular do desenvolvimento humano" (Freud, 1914, p. 89).

A questão de um narcisismo primário e normal surge para Freud quando ele procura incluir a parafrenia (demência precoce ou esquizofrenia) na sua teoria da libido. Nos casos de autismo, poderíamos supor, do ponto de vista freudiano, que esses sujeitos não concluíram todo um processo que se inicia com o autoerotismo, passa pelo narcisismo, e culmina com a fase genital, tornandose para eles impossível a constituição de um corpo próprio. Em contrapartida, uma leitura lacaniana permite supor outra modalidade de constituição de um corpo (ainda que narcísica) que não aquela presente no "curso regular" do desenvolvimento humano, como veremos mais adiante.

Para uma discussão sobre a existência ou não de um narcisismo nos casos de autismo, é imprescindível definirmos como Freud o concebeu como conceito, embora não apresente uma posição muito definida sobre o assunto. Em uma nota de rodapé acrescentada ao texto "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" (1911/1977), Freud dá um exemplo nítido de um sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo externo, capaz de se satisfazer de maneira autística: "Um ovo de pássaro, com sua provisão de alimento encerrada na casca" (Freud, 1911, p. 279). Haveria nessa posição tão inicial do sujeito humano algo narcísico, um narcisismo primário e anobjetal? Laplanche e Pontalis (1992), nos verbetes "narcisismo primário", "narcisismo secundário", ajudam-nos a responder a essa questão, apontando a existência de variações no pensamento de Freud relativas ao narcisismo primário.

Em Freud, apontam Laplanche e Pontalis (1992), "O narcisismo primário designa de um modo geral o primeiro narcisismo, o da criança que toma a si mesma como objeto de amor antes de escolher objetos exteriores". Mas, em qual momento daquele "curso regular" se encontraria esse narcisismo dito "primário"? Laplanche e Pontalis (1992) apontam dois momentos na obra de Freud em que ele estabeleceria um estatuto para o narcisismo primário: o primeiro, entre 1910 e 1915, e o segundo, na segunda tópica. Os textos principais do primeiro momento são o caso de Schreber (1911), Totem e tabu (1913) e o Narcisismo: uma introdução (1914).

No texto sobre Schreber, Freud (1911), em relação ao papel desempenhado por um desejo homossexual no desenvolvimento da paranoia, fala de uma fase do desenvolvimento da libido entre o autoerotismo e o amor objetal, à qual nomeia de narcisismo. Em um determinado momento do desenvolvimento, para eleger um objeto de amor, um indivíduo [Individuum] unifica suas pulsões sexuais que até então se encontravam empenhadas em atividades autoeróticas e as dirige a um objeto.

Num primeiro momento, diz Freud, esse objeto é o próprio indivíduo; ele toma a si mesmo [Selbst], o seu próprio corpo como objeto amoroso antes de dirigir a sua libido a outra pessoa. Nesse amor por si mesmo, os órgãos genitais podem tomar uma dimensão proeminente, recebendo uma atenção principal. Isso é o que ocorre normalmente, diz ele.

No caminho da direção do objeto, a linha de desenvolvimento conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes. Por isso a natureza desse objeto é homossexual e, a partir daí, pode-se, então, desenvolver-se o heterossexualismo. A heterossexualidade é, portanto, estabelecida posteriormente à eleição homossexual de um objeto (Freud, 1911). Freud defende a ideia da existência de um estádio narcísico entre o autoerotismo e a escolha final por um objeto amoroso, seja ele homo ou heterossexual. Nesse texto, Freud não faz exatamente uma distinção relativa à constituição do corpo, mas ao período de tempo despendido na etapa narcísica.

Em "Totem e tabu" (1913), Freud também mantém a ideia de que o narcisismo é uma fase que se coloca entre o autoerotismo e a escolha de objeto. Ou, de maneira mais precisa, o narcisismo seria como que um segundo momento do autoerotismo. Nele, as pulsões sexuais até então separadas se reúnem num todo único e encontram um objeto de amor. Esse objeto, entretanto, não é um objeto externo, mas diz Freud que é o próprio eu constituído nesse momento.

Portanto a constituição do eu se dá nesse momento em que as pulsões sexuais agora unificadas elegem o eu como objeto de amor, amor esse denominado por Freud de narcísico: "O sujeito comporta-se como se estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas [suas pulsões egoicas] e seus desejos libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise" (Freud, 1913/1977, p. 112).

A questão passa agora a ser como se constitui esse eu que as pulsões sexuais ora unificadas encontram. Como a consciência de si mesmo como corpo não existe desde o nascimento, este deve ser constituído de alguma forma. Conforme as pulsões autoeróticas existem desde o início do desenvolvimento da criança, é necessário, diz Freud, "que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica– a fim de provocar o narcisismo" (Freud, 1914, p. 93).

Qual seria a natureza dessa nova ação psíquica capaz de constituir o eu, inaugurando-se assim o estádio de narcisismo primário? Não sem hesitar, Freud nos propõe que prestemos atenção às atitudes dos pais afetuosos para com os bebês. Mas acrescentamos que não se trata apenas dos pais. É inegável o alvoroço que a entrada de um bebê em um novo ambiente pode causar. A reação dos presentes ou dos pais é "uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram" (Freud, 1914, p. 107). Ao bebê serão atribuídos todos os dotes e privilégios que os pais tiveram que há muito tempo abrir mão, em razão da realidade.

O eu real [Wirkliche] da criança investe a libido nesse eu que os pais supõem que ele seja. Freud diz que "o narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal [Idealich], o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor" (Freud, 1914, p. 111). "Sua Majestade, o Bebê" (Freud, 1914, p. 108), imagem ideal

Esse ideal narcísico aponta para a existência de dois posicionamentos da libido. Por um lado, há uma condição primeira na qual a libido do eu nele fundamentalmente persiste, havendo posteriormente o direcionamento da libido a um objeto. Nessa condição primeira, "a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas" (Freud, 1914, p. 117). Porém, direcionada a um objeto, a criança investe nesse ideal que os pais vêm nela e com o qual ela se identifica enquanto eu ideal. Isso constitui o que Freud propõe como o narcisismo primário. Esse investimento libidinal constitui o eu ideal da criança.

Quando não pode mais sustentar a identificação narcísica (homossexual) com essa perfeição infantil devido às contingências cotidianas que apontam o desacerto entre ela e essa imagem ideal, a criança procura recuperar o que perdeu por meio da identificação com um ideal do eu [Ichideal], provavelmente os pais ou os educadores da criança. Não muito bem definido no artigo "Sobre o narcisismo", esse ideal elevado do eu aumenta as exigências relativas a tornar ou não conscientes certas moções pulsionais. É como se esse ideal do eu "observasse constantemente o eu atual [Aktuelle] da criança medindo-o por aquele ideal" (Freud, 1914, p. 112).

Com isso, uma grande quantidade de libido de natureza homossexual que constituía o eu ideal da criança (eu amava o que meus pais supunham que eu fosse) são introduzidas na formação do ideal do eu (mas agora tenho de me conformar que não sou mais aquela representação ideal, e tenho de me identificar com os modelos paternos).

Assim, dependendo de como a educação foi introjetada, algumas pessoas aceitarão com maior facilidade a existência em si de moções pulsionais dirigidas a certos objetos, enquanto outras as rejeitarão de forma tão severa que nem ao menos terão consciência das representações da coisa daquelas moções pulsionais.

Não sendo possível a associação de tais representações da coisa com as palavras a elas adequadas, o objeto ao qual a tendência [Strebung] sexual se dirigiria permanece inacessível para a pessoa: "As mesmas impressões, experiências, impulsos e desejos aos quais um homem se entrega, ou que pelo menos elabora conscientemente, serão rejeitados com a maior indignação por outro, ou mesmo abafados antes que entrem na consciência" (Freud, 1914, p. 110). No caso dos autistas, as impressões e experiência certamente não são as mesmas das outras crianças.

 

2. AUSÊNCIA DE CORPO OU POSSIBILIDADE DE CONSTITUIÇÃO DE UM CORPO AUTISTA?

No artigo "Sobre o narcisismo: uma introdução", acima discutido, Freud não trata diretamente da questão da constituição de um corpo. Anos mais tarde, em "O ego e o id" (1923), ele fará várias modificações em pontos de vista colocados no texto do narcisismo. Entre elas, vai propor que o eu é eminentemente um eucorpo [Körper-Ich] que se diferenciou do isso por meio da influência do sistema Pcpt., e que é um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas (Freud, 1923/1977, p. 39). Assim como Freud, Lacan dirá, embora por meio de outras considerações, que o eu [moi] é, antes de tudo, um eu corporal. Conforme se organiza um corpo como unidade é que o eu [moi] pode existir.

Outra modificação diz respeito ao reservatório da libido. Se, no texto no narcisismo, a libido encontra-se originalmente no eu atual da criança, sendo a partir daí investida nas revivescências paternas, em "O ego e o id", Freud vai localizar o seu reservatório no id: "Agora que fizemos a distinção entre o ego e o id, temos de identificar este último como o grande reservatório da libido indicado em meu artigo sobre o narcisismo" (Freud, 1923, p. 44). Diz ainda que "bem no início, toda a libido está acumulada no id, enquanto o ego ainda se acha em processo de formação ou ainda é débil [Schwächlich]" (Freud, 1923, p. 62).

Quanto à constituição do eu-corpo, no artigo "Sobre o narcisismo", ele diz apenas que há um desenvolvimento do eu que consiste no distanciamento do narcisismo primário. Assim, como hipótese, podemos supor que a constituição de um corpo se dá no investimento que a criança faz no ideal apreendido da revivescência do narcisismo paterno, ou seja, no eu ideal (narcisismo primário), e desenvolver-se-ia posteriormente, como diz Freud, no deslizamento da libido em direção a um ideal do eu imposto de fora. Pode-se, pois, considerar que a constituição de um corpo se dá no momento narcísico da instituição do eu ideal.

Aqui, algumas distinções. No caso do delírio, nas doenças paranoides, Freud parece situá-lo no âmbito do ideal do eu e de um agente especial. Esse agente realiza a tarefa de assegurar a satisfação narcísica proveniente do ideal do eu, comparando constantemente o eu atual com esse ideal. Uma grande quantidade de libido de natureza homossexual foi convocada para a formação do ideal narcísico do eu. O editor, explicando essa colocação de Freud, dirá que o conceito de supereu será desenvolvido a partir de uma combinação dessa instância com o ideal do eu (Freud, 1914, p. 92). No texto, ele aponta os traços daquela instância a qual entendemos por consciência moral. A sua constituição tem como pano de fundo a crítica dos pais e, posteriormente, a crítica da sociedade. Essa concepção permite a Freud compreender a gênese dos delírios de ser notado e dos delírios de ser observado, presentes nos casos de paranoia. Neles, o enfermo supõe um poder que observa as suas intenções e as critica. Embora um poder desse tipo exista em todos nós na vida normal, no enfermo, essas proibições e impedimentos externos são reproduzidos de maneira regressiva, como que retomando a gênese da consciência moral. O paranoico, como que reagindo diante dessa instância que o censura, procura desfazer-se de todas essas influências, principalmente a de seus pais, delas retirando a libido homossexual. Sua consciência moral, diz Freud, "Confronta-se com ele de maneira regressiva, como sendo uma influência hostil vinda de fora" (Freud, 1914, p. 113).

Quanto à questão da homossexualidade na paranoia, não há dúvida de que Freud estabelece uma relação entre ambas. Em "Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença", ele afirma que "os pacientes que sofrem de paranoia lutam contra uma intensificação de suas tendências homossexuais" (Freud, 1915/1977, p. 299). Podemos compreender literalmente esse trecho ou podemos tomar a preocupação de Freud no sentido de que também a paranoia teria como um de seus fundamentos o problema relativo às primeiras fases narcísicas, homossexuais, da identificação do sujeito a seu eu ideal e o desenvolvimento de seu eu no ideal do eu. Nos delírios paranoicos, portanto, as dificuldades parecem situar-se ao redor do ideal do eu, ao redor da frustração da satisfação no âmbito do ideal do eu. Já na esquizofrenia (parafrenia), a gênese das perturbações parece mais arcaica.

Nesse caso, o da esquizofrenia, talvez não se possa supor a constituição de um corpo organizada pelo investimento da libido do eu atual da criança num eu ideal narcísico. Talvez haja uma dificuldade na órbita da constituição do eu ideal ou mesmo que tal constituição não se dê. É possível que se não trate exatamente de pensarmos num novo narcisismo primário, mas numa maneira diferenciada de formação do eu ideal ou mesmo na sua não constituição. No texto do narcisismo, Freud fala em distúrbios do narcisismo original (Freud, 1914, p. 109).

E no autismo? Como pensar a problemática do advento do corpo no autismo? Poderia o autista vir a constituir um corpo? Tal construção dar-se-ia por meio de que mecanismos? O que significa para o autista ter de fabricar um corpo? Elegemos o autismo em detrimento das neuroses e das psicoses por acreditar que, entre essas estruturas, o autismo é a que mais evidencia os transtornos relacionados ao corpo, ou à falta dele, e por considerar recente e relevante o debate psicanalítico em relação ao corpo dos autistas.

Diante da constatação de que a formação de um eu ideal e a de um ideal de eu no autismo não se efetuam como da maneira proposta por Freud, a psicanálise avançou e esforçou-se por sustentar outras modalidades de constituição de um corpo próprio, especialmente ancorada pelas contribuições de Lacan e de outros autores de orientação lacaniana, como veremos adiante.

 

3. A CONSTRUÇÃO DO CORPO NO AUTISMO

Se a possibilidade de um autista vir a constituir um corpo é interrogada, é porque concordamos com Laurent (2013) que o autista é um sujeito que, a princípio, carece de envoltura corporal, pois os processos de constituição de uma unidade corporal própria (narcisismo) propostos por Freud e explanados anteriormente, e aqueles propostos por Lacan, não chegaram a operar. "Por carecer de uma envoltura corporal, [o autista] instaurou no lugar do espelho que não funciona uma neoborda corporal na qual está completamente encerrado" (Laurent, 2012, p. 79). Neoborda ou neobarreira são os nomes escolhidos por Laurent (2013) para indicar que o que os autistas constituem como borda são limites quase corporais, infranqueáveis a princípio, em que nenhum contato parece ser possível. É necessário que algo ocorra (um tratamento psicanalítico, por exemplo), para que essa neoborda se afrouxe e intercâmbios com um Outro menos ameaçador possam se articular, instaurar-se.

Jacques Lacan (1949/1998), em "O estádio do espelho como formador da função do eu em psicanálise", destaca a idade entre os 6 e os 18 meses como um momento decisivo para a subjetivação do corpo humano e do reconhecimento que a criança fará do próprio corpo e do corpo do outro. Trata-se do momento em que ela reconhece a imagem de seu corpo como unificado e recebe do adulto a confirmação daquilo que ela é. A experiência de adquirir um corpo tem, portanto, os seus requisitos. É na medida em que a criança se desenvolve que aspectos como o vínculo com aqueles que se encarregam de suprir as suas necessidades e a sua relação com os objetos e com o próprio corpo se evidenciam.

É fato que a prática clínica com os autistas permite evidenciar todas as perturbações que não ter um corpo à priori possa implicar. Leo Kanner (1943/2005) foi o primeiro a ressaltar que as crianças autistas não se "ajustavam" ao colo daqueles que as carregavam. A postura e o tônus corporal delas assemelhavam-se a "sacos de farinha" (Kanner, 1943/2005, p. 22). Paula Pimenta (2015) apresenta o fragmento clínico de Anderson, um garoto autista de 10 anos de idade, cujo estado corporal é comparado pelo pai a "um saco de batatas mole e pesado", tamanho é o afrouxamento muscular que ele apresenta. "Anderson esparrama-se pelo chão e aí permanece" (Pimenta, 2015, p. 1).

Uma das principais demandas dirigidas aos analistas pelos pais dos autistas ou por aqueles que se encarregam dos cuidados desses sujeitos dizem respeito às dificuldades relacionadas ao corpo.

As dificuldades para comer, vestir-se, ir ao banheiro, com a higiene, por exemplo, estão em primeiro plano. Mesmo que reduzidas a disfunções, em realidade implicam o ser do sujeito, o mais humano da existência, já que concernem à relação do sujeito com si mesmo [com o corpo] e com o outro no laço social (Carbonell & Ruiz, 2013, p. 123).

Não ter um corpo próprio, portanto, implica na perturbação dos trajetos pulsionais dos autistas. Além da rigidez ou do afrouxamento corporal que os autistas apresentam, são evidentes também as perturbações decorrentes da desregulação da dinâmica pulsional oral, anal, escópica e invocante desses sujeitos. Alimentar-se, ir ao banheiro, olhar nos olhos e falar são ações verdadeiramente difíceis e até mesmo pavorosas para os autistas.

A alimentação tende a ser restrita: alguns comem a mesma comida diariamente, outros se recusam a comer alimentos de determinadas cores ou texturas. Geralmente tardam a adquirir o controle dos esfíncteres. Defecam em locais inapropriados, brincam com as fezes, espalham-nas ou as retêm, pois se livrar delas como objeto apartado do corpo é tarefa impossível. Também não é incomum que elas tapem os ouvidos diante das demandas invocantes daqueles ao seu redor ou que pareçam ignorar ou não escutar pedidos ou chamamentos. Um grande número de crianças autistas, por exemplo, desenvolve um corpo duro, rígido, ou corpos hipotônicos, esparramados, aparentemente resistentes à dor.

Para os autistas, os objetos pulsionais estão colados ao corpo, não de maneira identificatória, uma vez que a identificação é um fenômeno que se apoia nos significantes, ocorrendo com eles o que Tustin (1992) chamou de transitivismo. Por isso, não é raro que os objetos autísticos eleitos sejam ao mesmo tempo duros e dinâmicos, a fim de tratar tanto a imagem do corpo quanto a animação pulsional.

A clínica do autismo mostra que cada pulsão pode estar desregulada nesses casos: tal criança teme perder uma parte de seu corpo o defecar quando o objeto da pulsão anal está presente demais; outra sofre de graves transtornos alimentares, pois a perda não foi assumida no campo da oralidade; muitos evitam qualquer contato com o objeto da pulsão escópica, fugindo do olhar do outro ou não olhando para o mundo enquanto que a maior parte delas se mostra incapaz de fazer com que a voz sirva à troca, permanecendo mudas, ecolálicas ou verbosas (Maleval, 2009, p. 232).

Por outro lado, os testemunhos de muitos autistas de alto funcionamento já adultos, como Temple Grandin e Joey, o menino máquina de Bruno Bettelheim (1967), indicam construções corporais autísticas possíveis, bem como o alcance de certa regulação pulsional. Pode-se, inclusive, constatar que os autistas trabalham constantemente para sustentar tal fabricação corporal durante toda a vida.

O que se ensaia neste artigo é um esforço de teorização em direção aos elementos próprios ao funcionamento autístico que possibilitam ao sujeito constituir um corpo e como esses elementos chegam a participar da regulação ou da montagem da dinâmica pulsional para esses sujeitos. Se o que o autista instaura no lugar do corpo do qual carece é a borda autística, entendemos que é somente a partir daí que a fabricação de um corpo autista poderá se produzir e que tal fabricação certamente não será regida por aquela dos moldes freudianos, comentadas no início deste artigo, e nem por aquela do eixo especular a-a' proposta por Jacques Lacan (Lacan, 1955/1998, p. 58).

Tratar-se-á de um trabalho absolutamente único, singular, que cada autista deverá esforçar-se por empreender a partir dos elementos que compõem a sua borda autística, a saber, o duplo, os objetos autísticos e as ilhotas de competência. Para Maleval (2010), o duplo, os objetos autísticos e as ilhotas de competência ou interesses específicos dos autistas podem vir a ser os elementos através dos quais o autista poderá lançar mão para construir um corpo próprio.

Essa possibilidade de fabricação corporal distinta daquela proposta por Freud é o que compreendemos como "narcisismo" ou melhor, "narcisismos" próprios ao um a um autístico. A hipótese levantada por este artigo é a de que haveria não somente uma forma de narcisismo, mas narcisismos (no plural), conforme cada estrutura ou cada sujeito autista encontrará o seu arranjo corporal particular.

 

4. OS CONCEITOS DE DUPLO, OBJETO AUTÍSTICO E ILHOTA DE COMPETÊNCIA

Frances Tustin (1977) foi a primeira a isolar os objetos autísticos e a extrair deles as suas funções. Apesar da excentricidade da escolha desses objetos autísticos e do uso singular que os autistas fazem deles, concordamos com Maleval (2009) que eles cumprem uma função reguladora extremamente relevante para os autistas, e muitos deles chegaram a indicar que os objetos autísticos têm um caráter protetor e calmante contra a angústia e, quando retirados, causam grande devastação.

A principal função do objeto autístico a ser destacada consiste em aparelhar o gozo pulsional que se encontra em excesso nos autistas (Maleval, 2009, p. 232). Os objetos autísticos fazem parte da construção subjetiva dos autistas. As principais obras dedicadas ao funcionamento autístico enfatizam a boa relação desses sujeitos com os objetos, contrastando com a conturbada relação com as pessoas presentes no seu entorno. Maleval (2009) divide ainda os objetos autísticos em simples e complexos. Os objetos autísticos simples podem se apresentar como duplo para os autistas, localizando o gozo, por apresentarem, ao mesmo tempo, características de dureza e de dinamismo. O objeto autístico complexo suporta a imagem do duplo, possibilitando certa animação e regulação pulsional, e promovendo algum grau de vinculação do autista com o mundo (Pimenta, 2015). "No autismo, é nesse lugar de uma imagem forjada do objeto a no espelho no plano do Outro que se instaurará o duplo constituído pelo objeto autístico complexo e pelo semelhante, procurando cernir imaginariamente a borda que organiza as pulsões" (p. 3).

Já uma das funções do duplo, para Maleval (2011), consiste em dar aos autistas "a consistência a um falso eu ideal" (Maleval, 2011, p. 101). Falso, porque há um limite para a função do duplo. Ele não permite ao sujeito enodar a linguagem ao gozo, de modo que o sujeito continua desconectado, apartado do que sente. O duplo autístico "dá estofo ao eu do sujeito" (Maleval, 2009, p. 252).

Alguns autistas desenvolvem algumas capacidades ou habilidades que, por muitas vezes, chegam a ser extraordinárias. "A borda é uma fronteira protetora que pode se tornar o lugar de ostentação de uma ilhota de competência" (Maleval, 2010, p. 134). Assim, encontramos autistas que se dedicam a interesses específicos, tais como as ciências, as tecnologias, a arte, a música, a física e a matemática. No caso de Joey, seu interesse por circuitos elétricos permitiu a sua inserção profissional na vida adulta. Temple Grandin, autista de alto desempenho, tornou-se cientista e, atualmente, faz parte do corpo docente do curso de Ciências Animais da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. As ilhotas de competência ou interesses específicos, inicialmente utilizados como proteção para o sujeito autista, podem vir a se tornar uma verdadeira competência social.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao retomar o percurso de Freud sobre o narcisismo, buscamos apresentar o construto acerca da formação do eu em psicanálise que, há tempos, fora pensado com base nas estruturas psíquicas neurose, psicose e perversão. Por muito tempo, não foi possível pensar além da proposta freudiana da constituição de um corpo próprio. A partir das contribuições de Lacan, os autores que seguem a sua orientação e que se debruçaram por décadas sobre a temática e a clínica do autismo puderam avançar em direção aos mais variados arranjos subjetivos e fabricações corporais possíveis.

Diante disso, acreditamos que o autismo é hoje a modalidade de funcionamento psíquico que mais permite sustentar essa hipótese, dado o grau de perturbação dos seus trajetos pulsionais e daquelas advindas da sua carência de envoltura corporal imposta a esses sujeitos a priori. A prática clínica com os autistas tem demonstrado que a oferta de tratamento psicanalítico favorece uma organização pulsional e propicia a construção de um corpo.

Muitos conceitos novos em psicanálise de orientação lacaniana foram forjados no intuito de dizer a respeito da possibilidade de constituição de um corpo nos casos de autismo. A título de recapitulação, o conceito de borda autística e os elementos que a compõem como o duplo autístico, os objetos autísticos e as ilhotas de competência ou interesses específicos entram em jogo nesse processo. Os autistas se servem desses elementos próprios e específicos ao seu funcionamento para engendrar e pôr em marcha a fabricação de um corpo próprio.

Ao final deste artigo, concluímos que os avanços teórico-conceituais da psicanálise de orientação lacaniana possibilitam pensar outras formas de constituição de um corpo. A isso atribuímos o nome "narcisismos", uma vez que sustentamos a hipótese de que não há um único narcisismo como caminho para a formação do eu, mas formas diferenciadas, cujos protótipos são a revivescência do narcisismo perdido dos pais, o espelho, e as formas singulares que tocam os autistas um a um. Tal aposta caminha na direção da singularidade das montagens pulsionais e corporais de cada ser humano e da maneira como cada um pode se virar ao prescindir de uma unidade corporal própria, como é o caso dos autistas.

 

REFERÊNCIAS

Bettelheim, B. (1967). La forteresse vide. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Carbonell, N. & Ruiz, I. (2013). No todo sobre el autismo. Barcelona: Gredos.         [ Links ]

Freud, S. (1911/1977). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In J. Salomão (Trad.), Obras completas (Vol. 12, pp. 13-108). Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em 1911).         [ Links ]

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Texto recebido em 9 de março de 2015 e aprovado para publicação em 13 de maio de 2016.

 

 

* Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); graduada em Psicologia pela mesma universidade; concluiu um período da graduação na Facultad de Psicología da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina; docente convidada do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da PUC Minas (Betim) no primeiro semestre de 2015, onde lecionou o módulo "Autismo: história, clínica e política"; atualmente é referência da Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente de uma das Gerências Distritais de Atenção à Saúde de Belo Horizonte. Atua em consultório particular com crianças, adolescentes e adultos. Endereço: Rua Francisco da Veiga, 221, ap. 304 - Monsenhor Messias, Belo Horizonte-MG. CEP: 30720-490.E-mail: mbarrosoleo@hotmail.com.
**Pós-doutor em Psicanálise pela Université Paris 8 (1998) e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor adjunto da PUC Minas. Membro do Conselho Consultivo da Revista Psicologia Ciência e Profissão. Tem experiência na área de Psicologia e da Psicanálise, trabalha atualmente na Graduação em Psicologia da PUC Minas, com Teoria Psicanalítica II e em supervisão de estágio clínico na área da psicanálise. No programa de Pós-graduação (mestrado e doutorado), leciona disciplinas com ênfase em Psicanálise e em Metodologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Psicanálise, Freud, Lacan e Filosofia. É autor de diversos artigos acerca desses temas em revistas bem qualificadas no Qualis. É membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), da Sociedade Brasileira de História da Psicologia (SBHP) e do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff (CHPHA). É membro do GT da ANPEPP, Pesquisa psicanalítica com material clínico: aspectos éticos e epistêmicos, que é coordenado por Guilherme Massara (UFMG). Endereço: Rua Teixeira de Freitas, 178, ap. 702 - Santo Antônio, Belo Horizonte-MG. CEP: 30350-180.E-mail: luisflaviocouto@terra.com.br.
1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor. Esta somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.

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