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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2016

http://dx.doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P729 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P729

 

Os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres a partir da perspectiva dos profissionais da delegacia especializada de atendimento à mulher de Betim-MG)

 

The findings produced through violence against women from the perspective of the professionals of the specialized police delegacy for assistance to women of Betim-MG

 

Los significados producidos por la violencia contra las mujeres desde la perspectiva de los profesionales de la policía especializada de atención a las mujeres en Betim-MG

 

 

Carolina Mesquita Oliveira*; Maria Ignez Costa Moreira**

 

 


Resumo

Este artigo apresenta os resultados da pesquisa de mestrado "Os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres pela equipe da delegacia especializada de atendimento às mulheres de Betim-MG" (2015), que buscou compreender os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres pela equipe da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Betim-MG e os atravessamentos desses sentidos na condução dos atendimentos prestados às mulheres. A pesquisa de cunho qualitativo foi realizada na DEAM, onde foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os dez profissionais que compõem a equipe desse serviço. As entrevistas gravadas e transcritas foram submetidas à análise de conteúdo. Foi possível perceber que a equipe da DEAM compreende que a interrupção da violência sofrida depende da atitude das mulheres. Em primeiro lugar, impedindo que a violência aconteça e, posteriormente, decidindo, sem hesitação, pelo prosseguimento do inquérito policial e do processo judicial, com o objetivo de punir os agressores. Os relatos das mulheres que sofrem violências recorrentes ou que se apresentam inseguras diante da abertura do inquérito e da continuidade do processo são interpretados como sinais de que elas próprias são responsáveis pela violência sofrida.

Palavras-chave: Violência contra as mulheres. Gênero. Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM).


Abstract

This article presents the results of a master's research "The reasons produced for violence against women by the team of the specialized police station for women in Betim-MG" (2015), which sought to understand the reasons for violence against women by Team of the Specialized Delegate of Assistance to Women (DEAM) of Betim-MG and the cross referencing of these reasons in the handling of the services provided to women. The qualitative research was conduced at the DEAM, where semi-structured interviews were conducted with the ten professionals who make up the team of this service. Recorded and transcribed interviews were submitted for content analysis. It was possible to perceive that the DEAM team understands that the interruption of the violence suffered depends on the attitude of the women. Firstly, preventing violence from happening and then deciding, without hesitation, to continue the police investigation and judicial process, with the aim of punishing the perpetrators. The reports of women suffering from recurrent or unsafe violence in the face of the opening of an inquiry and the continuity of the process were interpreted as signs that they themselves are responsible for the violence suffered.

Keywords: Violence against women. Genre. Specialized Police for Assistance to Women (DEAM).


Resumen

Este artículo presenta los resultados de investigación de maestría "Los significados producidos por la violencia contra las mujeres por el equipo de la Comisaría especializada en atención a las mujeres de Betim-MG", que buscaba comprender los significados producidos por la violencia contra las mujeres por el equipo de la Comisaria Especializada de Atención a la Mujer (DEAM)1 de Betim-MG y las intersecciones de esos significados en la conducción de la atención prestada a las mujeres. La investigación, de carácter cualitativo, se llevó a cabo en la DEAM, donde se realizaron entrevistas semiestructuradas con los diez profesionales que integran el personal de este servicio. Las entrevistas grabadas y transcritas se sometieron a análisis de contenido. Era posible percibir que el equipo de la DEAM entiende que detener la violencia sufrida depende de la actitud de las mujeres. En primer lugar, impidiendo que la violencia suceda y, posteriormente, optando sin vacilación por la continuidad de la investigación policial y del proceso judicial con el fin de castigar a los agresores. Las historias de las mujeres que sufren violencia continuada o que se presentan inseguras frente a la abertura de la investigación y de la continuidad del proceso se interpretan como señales de que ellas mismas son responsables de la violencia que sufren.

Palabras clave: La violencia contra las mujeres. Género. Comisaria Especializada de Atención a las Mujeres (DEAM).


 

 

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, os estudos sobre a violência contra as mulheres se desenvolveram concomitante às mudanças sociais e políticas vivenciadas no País a partir da década de 1980. Se primeiramente os estudos tinham o patriarcado como paradigma e categoria de análise da violência contra a mulher, a partir da década de 1990, passou-se a utilizar a categoria analítica gênero na busca de compreender o aspecto relacional da violência contra as mulheres. Essa mudança reverberou na maneira como as mulheres acometidas pela violência passaram a ser nomeadas nos serviços públicos destinados a garantir sua proteção e seu acesso aos direitos. Elas, que foram, por muito tempo, vistas numa situação cristalizada de vítimas da violência que as acometia, passaram a ser reconhecidas como vivendo uma situação de violência, o que denota o aspecto transitório de tal vivência bem como a possibilidade de superação dessa situação.

Entre os principais serviços especializados de enfretamento da violência contra as mulheres foi criada, no Brasil, no início da década de 1980, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), como resultado de uma forte atuação do movimento feminista, que exigia do Estado brasileiro ações nos campos policial, jurídico e de assistência psicossocial dirigidas especificamente às mulheres em situação de violência doméstica.

Cabe ressaltar que há inúmeras pesquisas sobre a temática da violência contra as mulheres, tais como as desenvolvidas por Azevedo (1985), Heilborn (2004), Langley e Levy (1980), Saffioti (2001, 2004), Smigay (2000), entre outras, mas que, em sua maioria, centram-se na percepção das próprias mulheres sobre a vivência da violência, nos aspectos relacionais da violência ou ainda sobre as ações dos serviços de saúde para o enfrentamento desse tipo de violência. As pesquisas que abordam o funcionamento da DEAM enfatizam aspectos como os processos de judicialização da violência, do funcionamento e resolutividade das delegacias. Encontramos tais temáticas nos trabalhos Pasinato e Santos (2008) e Brandão (2006).

No entanto os sentidos atribuídos à violência contra as mulheres na perspectiva dos profissionais e policiais das DEAM têm sido pouco pesquisados. Nesse sentido, o volume ainda pequeno de produções sobre esse tema encontrado na revisão bibliográfica realizada para a elaboração na elaboração deste trabalho justificou a relevância da pesquisa. A consideração da perspectiva dos profissionais da DEAM é importante, uma vez que esse equipamento público é a principal porta de entrada das mulheres na rede de serviços de enfrentamento à violência contra as mulheres e, nesse sentido, o atendimento lá prestado pode potencializar ou não as mulheres para a superação da situação de violência em que vivem.

A análise dos documentos que norteiam as ações das políticas públicas de enfrentamento desse tipo específico de violência, ou seja, a violência contra a mulher, revelou que eles foram elaborados a partir da perspectiva clássica do conceito de gênero desenvolvido pelas autoras feministas, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, entre elas Scott (1990), Pinto (2003) e Saffioti (2001, 2004). Também a bibliografia que permitiu o resgate histórico da criação das DEAM no Brasil faz referência às mesmas autoras. Assim, optou-se por revisitá-las para a sustentação das análises dos sentidos construídos pela equipe da DEAM.

Desde a criação da primeira DEAM, passaram-se três décadas nas quais houve avanços, mas ainda são muitos os desafios para que a atual rede de proteção e enfrentamento da violência contra a mulher, da qual as delegacias especializadas fazem parte, tenha eficácia plena em seus objetivos (Observatório da Lei Maria da Penha, 2010). Um dos grandes desafios está relacionado à formação dos profissionais que atuam nessas delegacias, cujas equipes são interdisciplinares, contando com profissionais das áreas do Direito, da Psicologia e do Serviço Social, além dos policiais formados pelas Academias de Polícia (Acadepol). Para que se possa aprimorar a formação profissional das equipes das DEAM, é preciso conhecer a perspectiva daqueles que nelas trabalham cotidianamente. Nesse sentido, na segunda seção do artigo, apresentamos parte da pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de mestrado sobre os sentidos construídos por esses profissionais para a violência contra a mulher, na qual buscamos analisar a afetação de tais sentidos sobre o encaminhamento das queixas prestadas pelas mulheres que recorrem à delegacia, buscando apoio e proteção para a superação da violência sofrida.

 

2. CONTEXTO HISTÓRICO DE CRIAÇÃO DAS DEAM

No contexto histórico do enfrentamento à violência contra as mulheres, a DEAM, implantada na década de 1980, é o equipamento público com maior tempo de ação no Brasil. A luta do movimento feminista pelo reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos e contra a impunidade que rondava a prática da violência cometida contra elas por seus parceiros resultou na promulgação de leis e elaboração de políticas públicas pelo Estado brasileiro. Até a década de 1980, as mulheres em situação de violência doméstica não encontravam amparo policial, jurídico, de assistência psicossocial e de saúde específico. Nessa época, era habitual que os homens que as agrediam ou até mesmo as matavam, quando julgados, fossem defendidos com base nas teses do grave sofrimento emocional que a própria vítima lhes havia causado ao provocar neles o sentimento de rejeição por serem preteridos por suas companheiras, ou com a justificativa apresentada por seus advogados de que os homens haviam agido em nome da legítima defesa de sua honra. Assim, e não raras vezes, quando levados aos tribunais, os agressores permaneciam impunes. Além disso, a mulher vítima da violência passava a ser considerada responsável ou culpada pela violência sofrida (Bandeira, 2008; Blay, 2003; Pinto, 2003). Segundo Cortez, Souza e Queiróz (2010), a criação das DEAM é um marco na luta feminista, tendo contribuído para retirar a violência contra as mulheres da invisibilidade e trazê- la para a esfera pública. A criação das DEAM significou uma resposta do Estado brasileiro ao tipificar a violência contra a mulher como um crime e uma grave violação dos direitos humanos. Ainda que, conforme afirmam Pasinato e Santos (2008), tenha havido divergências entre as feministas quanto à sua participação na elaboração de políticas públicas e uma desconfiança quanto à concepção de um equipamento policial para o atendimento específico da mulher, não houve reação contrária à criação das delegacias especializadas.

O reconhecimento da violência contra a mulher como uma grave violação de direitos humanos da mulher e a criação de um equipamento público específico que visa a assegurar seus direitos civis, sociais e humanos é coerente com a proposta de um novo Estado Democrático de Direito, surgido após a superação da ditadura militar. Para esse novo Estado, foi promulgada a Constituição de 1988, reconhecida como uma "Constituição Cidadã", que assegura os direitos civis, sociais e humanos de todos os cidadãos e cidadãs brasileiros.

As DEAM integram o sistema de justiça brasileiro, e seu trabalho visa também à garantia dos direitos das mulheres "vítimas de espancamento, estupro, tentativa de homicídio, ameaças e outras violências abarcadas pelo direito criminal, cometidas contra as mulheres pelo fato de serem mulheres" (Debert, 2006, p. 17). Com a implementação de políticas públicas e o aprimoramento das leis voltadas a combater a violência contra a mulher, o Estado brasileiro respondia não somente às demandas internas dos movimentos sociais e feministas, mas também aos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. O Brasil é membro da Organização das Nações Unidas (ONU) e, como tal, é signatário das convenções internacionais d edefesa dos direitos humanos, entre elas as que comprometem os países-membros no combate a qualquer tipo de violência contra as mulheres.

A especificidade do trabalho das DEAM estava na proposta de um atendimento diferenciado em relação aos demais distritos policiais e na não discriminação das mulheres vítimas de violência que buscavam atendimento. Para tanto, inicialmente, pensou-se que as delegacias especializadas tivessem seu corpo de policiais formado por mulheres, porque se acreditava que isso facilitaria a denúncia da violência sofrida pelo fato de o relato dos fatos vividos ser feito para outras mulheres. Outro componente dessa especificidade referia-se à constituição de um espaço físico de atendimento, que deveria ser acolhedor e apropriado para que as mulheres pudessem ter privacidade e segurança. Os profissionais deveriam ser habilitados para uma escuta qualificada, a fim de que as mulheres não fossem revitimizadas nem expostas ainda mais a situações de vulnerabilidade.

Além disso, os serviços policiais deveriam estar integrados aos de assistência jurídica e psicológica, para que, juntos, potencializassem as mulheres e elas pudessem sair da situação de violência. Nesse sentido, a expectativa era de que a criação desses serviços possibilitasse ir além da criminalização dos agressores, uma vez que havia também a preocupação de que as mulheres se sentissem amparadas para superar a vivência da violência e buscassem novas maneiras de organizar a própria vida, tanto do ponto de vista afetivo quanto profissional.

Em 2006, houve a promulgação da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha.2Pela primeira vez, uma lei brasileira passaria a tratar da especificidade da violência contra as mulheres e a reconheceria como uma violência de gênero e determinaria as condutas policial, jurídica e psicossocial necessárias ao amparo das mulheres em situação de violência. Essa lei previu que seriam criados mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres.

A Lei Maria da Penha está em consonância com os acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e trata a violência contra as mulheres como uma violência de gênero, por ser ela fruto específico de valores culturais machistas que oprimem inúmeras mulheres e têm ampla condescendência social (Angelim, 2009; Santos, 2008).

Desse modo, a especificidade da violência baseada no gênero passou a ser reconhecida legalmente e também a ser concebida como uma violação de direitos humanos das mulheres. O entendimento da violência contra as mulheres na perspectiva de gênero significa reconhecer a existência de uma diferença hierárquica de poder entre os sexos, produzida e compartilhada pela cultura e pela organização social. Essa perspectiva contribui para colocar a violência contra a mulher em sua dimensão pública e coletiva, e não apenas como um problema privado e doméstico, pois tem suas raízes nas relações hierárquicas e assimétricas de poder que estabelece um polo dominado (posição historicamente ocupada pelas mulheres consideradas frágeis e sensíveis) e outro dominante (posição historicamente ocupada pelos homens considerados como fortes e poderosos). Tal lógica binária resulta na naturalização da violência.

Essa lei alterou também a pena a ser atribuída aos agressores nos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres: deixou de existir a pena pecuniária, como a doação de cestas básicas ou a prestação de serviços comunitários, e, nos casos de condenação do réu, a pena passou a ser de três meses a três anos de detenção, podendo ser aumentada em um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. Também foram determinadas a criação e implantação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

A Lei Maria da Penha apresenta a tipificação da violência contra a mulher, ressaltando as suas diversas manifestações: física, sexual, patrimonial, o crime de ameaça, mas apresenta um avanço, pois, pela primeira vez, um texto legal define e reconhece a violência psicológica como uma prática que causa sofrimento emocional e que degrada a condição humana da mulher.

Além das medidas punitivas, a Lei 11.340/06 também prevê medidas preventivas e protetivas para as mulheres, tais como a determinação da não aproximação do agressor da mulher, o acolhimento da mulher e de suas crianças em instituições protegidas, nos casos de grave risco de vida.

Apesar do avanço e da grande repercussão da promulgação da Lei 11.340/06, sua implementação e efetiva aplicabilidade são consideradas um desafio para todos aqueles implicados no combate e erradicação da violência contra a mulher. Entre os desafios estão a formação dos profissionais e a interlocução entre os serviços psicossocial, de acesso à Justiça, de saúde ligados à Rede de Enfrentamento e Combate à Violência contra a Mulher, na qual estão inseridas as DEAM.

Santos (2008) considera que a criminalização da violência contra as mulheres fez-se necessária para o reconhecimento da violência como sendo não somente da esfera privada, mas também pública e como violação dos direitos humanos e do exercício de cidadania das mulheres. No entanto, a violência contra a mulher não pode ser reduzida ao aspecto criminal, pois se trata de um fenômeno social, cultural, histórico e subjetivo de alta complexidade.

Para a autora, o processo de formação acadêmica e profissional dos agentes jurídicos, e podemos acrescentar também das equipes policiais, é deficitário no que se refere à compreensão dessa complexidade. A desconsideração de que a violência contra a mulher está estruturada numa relação hierarquizada de poder entre os gêneros acarreta a naturalização e a individualização desse grave problema.

O aprimoramento da formação profissional dos que trabalham com as mulheres em situação de violência é considerado por Bandeira (2008) um desafio institucional, uma vez que a implantação da Lei Maria da Penha dependerá da capacitação adequada desses profissionais para tratar a violência contra as mulheres como uma violação de direitos humanos, que atinge especificamente a mulher.

Nesse sentido, para a efetiva aplicação da Lei Maria da Penha, a formação profissional continuada dos agentes policiais, dos operadores da Justiça e dos psicólogos e assistentes sociais que atuam no atendimento das mulheres em situação de violência doméstica é necessária para que se promova o aprimoramento e qualidade dos serviços prestados, pois a DEAM é uma das principais portas de entrada na rede de enfrentamento da violência e de proteção das mulheres.

Consideramos que, para a formulação de programas de capacitação e formação dos profissionais da DEAM, é necessário compreender os sentidos que esses profissionais constroem para violência cometida contra as mulheres e os atravessamentos de tais sentidos na condução dos atendimentos realizados pela equipe da DEAM Betim, no Estado de Minas Gerais.

 

3. METODOLOGIA

A pesquisa3 foi realizada com enfoque social qualitativo, que, segundo Gil (1999), possibilita novos conhecimentos por meio da interação entre os sujeitos e as instituições sociais. A estratégia metodológica foi a entrevista semiestruturada, que possibilitou aos entrevistados e à entrevistadora um diálogo em torno da temática da violência contra a mulher inserido no contexto das práticas cotidianas da delegacia. Os funcionários4 que atuam na DEAM Betim foram convidados a participar da pesquisa e solicitados para a entrevista. Todos eles concordaram, e o fato de a equipe ser reduzida, composta por dez membros, possibilitou a realização da entrevista com todos os profissionais da DEAM. As declarações dos entrevistados foram analisadas pelo método da análise de conteúdo (Bardin, 2011).

O quadro de funcionários da DEAM Betim é composto por uma delegada, duas escrivãs, duas investigadoras e uma psicóloga, todas do sexo feminino, e um auxiliar administrativo e de investigação, além de três investigadores, esses do sexo masculino. A idade dos profissionais da DEAM varia de 26 a 42 anos. O tempo de atuação deles nesse equipamento é variável. A funcionária mais antiga tem 16 anos de trabalho e atua desde a implantação dessa DEAM. A mais nova chegou ao serviço no momento da realização da pesquisa de campo, em setembro de 2013.Os demais profissionais contam, em média, quatro anos de serviço na Delegacia. Quanto ao nível de escolaridade, em sua maioria, têm curso superior completo ou em realização em áreas diversas, tais como Direito, Psicologia, Ciências Biológicas e História.

O processo de análise de conteúdo das entrevistas possibilitou a organização de categorias de sentido que serão apresentadas e discutidas no próximo tópico deste artigo.

 

4. ATENDIMENTO ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA NA DEAM E O PEDIDO DE MEDIDAS PROTETIVAS

Os profissionais entrevistados narraram que, ao chegar à DEAM, a mulher passa primeiramente por uma triagem. O objetivo é identificar, por meio do relato da mulher, se, de fato, trata-se de uma situação de violência doméstica. A identificação feita pelos policiais é baseada na tipificação da violência descrita na Lei 11.340/2006. Identificada a situação de violência, as mulheres recebem orientações a respeito do papel da DEAM, das implicações da denúncia para o agressor e da maneira como devem proceder para efetuar a denúncia.

Quando chegam à DEAM, as mulheres geralmente são acolhidas e orientadas pela psicóloga da equipe, mas, como a carga horária de trabalho dessa profissional é menor do que o período de funcionamento da DEAM, na sua ausência, são os próprios policiais que realizam a primeira escuta das mulheres e lhes oferecem as orientações iniciais.

Ao optar pela realização da denúncia, é registrado um boletim de ocorrência (B.O.) e, quando necessário, tomado o termo de representação das mulheres, que significa a autorização da "vítima" para que se dê início às investigações policiais sobre os fatos narrados. Cabe aqui ressaltar que, desde 13 de agosto de 2008, quando o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu a violência doméstica na forma de lesão corporal como um delito de ação pública incondicionada, não é mais necessário que a própria vítima seja a autora da denúncia, ou seja, para os casos de lesão corporal, não mais é necessária a tomada do termo de representação das mulheres agredidas (Pasinato, 2007).

Apesar disso, uma das investigadoras entrevistadas relata que, no cotidiano da DEAM, todas as mulheres são indagadas sobre o interesse em representar criminalmente contra o agressor, bem como se desejam solicitar a determinação de medidas protetivas de urgência. A entrevistada ainda ressalta que aquelas mulheres cujas marcas da violência estão visíveis em seus corpos são menos questionadas em relação ao interesse em prosseguir com a denúncia, uma vez que as marcas visíveis da violência nos corpos parece ser um indicador sobre a gravidade da situação vivenciada.

Aqui cabe a problematização de dois pontos reveladores das fragilidades de formação da equipe. O primeiro diz respeito à avaliação da gravidade da violência sofrida pelas mulheres e o segundo se refere à exigência de que a vítima ofereça a garantia de que vai se comprometer com o processo policial. Os policiais relataram avaliar a gravidade da violência com base na quantidade e profundidade das marcas físicas visíveis a olho nu que o agressor deixou nos corpos das mulheres. Com esse critério, os policiais legitimam as denúncias e o prosseguimento dos processos criminais, o que faz supor que a ameaça, a violência psicológica, a violência sexual ou mesmo a violência física praticada com requinte e técnica para se evitar as marcas ficam ocultas ao primeiro contato e continuam a serem tratadas como violências de "menor potencial ofensivo" às mulheres (Angelim & Diniz, 2009).

O segundo ponto, associado ao não cumprimento da lei que determina a incondicionalidade da representação quando há lesões corporais, reforça que a ação policial se pauta ainda pela crença de que a interrupção da violência de gênero depende do interesse e da determinação das mulheres, ou seja, elas podem escolher ou não terminar com a violência. E, se decidem por não punir aquele que as agride, são responsáveis pela perpetuação da violência, o que reforça a concepção de que a ruptura da relação violenta implica o querer e a vontade da mulher.

Uma entrevistada caracteriza o atendimento da DEAM como "metódico", uma vez que é pautado por um conjunto de ações organizadas que têm por objetivo conseguir provas da ocorrência de um crime. Essas ações serão formalizadas em um inquérito policial, para serem encaminhadas ao Ministério Público e, assim, chegarem ao conhecimento da Justiça. Portanto há um protocolo geral a ser seguido, e o que se espera é que a mulher vítima de violência o compreenda e siga corretamente seus passos. Parte-se do pressuposto de que, ao procurar a delegacia, a mulher já teria tomado sua decisão. As suas dúvidas e conflitos parecem não ser objeto de reflexão naquele equipamento.

Após o registro da ocorrência, as mulheres são chamadas para a oitiva em cartório. Esse é o momento em que ela relata à escrivã de polícia, de forma mais detalhada, as situações de violência que vivencia. Nesse momento, busca-se elucidar, por meio de perguntas, o contexto de onde emergiu a violência doméstica que está sendo denunciada. Questiona-se sobre a relação entre a mulher e quem a agrediu, se o casal tem filhos juntos, se ela já vivenciou outras situações de violência e se já as denunciou e quais os tipos de violência já sofreu. Os relatos sobre a violência serão elucidativos para sustentar o pedido de medidas protetivas, que, conforme a Lei Maria da Penha, são caracterizadas como medidas de urgência, cujo objetivo é a proteção da integridade física da mulher e a garantia do direito de viver uma vida sem violência. Assim como a denúncia da violência deve ser feita pelas mulheres que vivenciam essa situação, o pedido de medida protetiva junto à DEAM também deve ser feito por elas.

Outra profissional entrevistada informa que, na DEAM, a equipe policial não pode negar o pedido de medida protetiva a nenhuma mulher, independentemente da percepção individual dos policiais a respeito dos riscos que ela corre. E cabe ao juiz, com base nos depoimentos e provas coletadas pela polícia, deferir ou indeferir as medidas protetivas para a mulher que as demanda.

A atribuição da pertinência da aplicação das medidas protetivas está também relacionada à imagem das mulheres, ou seja, ao fato de estarem com seus corpos visivelmente marcados pela violência. São essas marcas que confirmam a hipótese deque as denunciantes estejam realmente vivendo em situação de risco, necessitando, por isso, das medidas protetivas. A decisão do juiz é tomada com base no inquérito policial formalizado, ou seja, na interpretação do relato feito pelas mulheres e na percepção dos policiais do estado físico e emocional delas.

De acordo com o previsto na Lei Maria da Penha, o juiz pode aplicar medidas protetivas de urgência, isoladas ou cumulativas, conforme os direitos das mulheres previstos na lei estejam sendo ameaçados ou violados. Entre essas medidas, inclui-se a prisão do autor de agressão. Contudo a narrativa de uma entrevistada sugere que a prisão preventiva é uma medida extrema e que outras menos restritivas podem favorecer a proteção das mulheres, desde que elas também não procurem contato com quem as agrediu. Assim, ainda que a Justiça aja em favor da proteção das mulheres e contra a violência, continua sendo das mulheres a responsabilidade por reconhecer o risco que estão correndo e, conscientes disso, manterem-se afastadas daqueles que as agrediram.

 

5. TEM CERTEZA DE QUE QUER DENUNCIAR?

Segundo a psicóloga entrevistada, quando uma mulher chega à DEAM buscando ajuda para solucionar a situação de violência que vivencia, o seu papel é orientá-la sobre as ações policiais baseadas na denúncia. Ela percebe que algumas mulheres têm a expectativa de que os policiais prenderão o agressor imediatamente após a queixa e desconhecem os trâmites do processo policial e judicial. Essa explicação revela uma mensagem em seu subtexto: a denúncia não pode ser um ato intempestivo da mulher que sofre violência, um modo de dar um susto no agressor com a polícia batendo à sua porta, pois a denúncia gera um processo que demanda tempo, que tem consequências judiciais e que, portanto, exige da mulher uma decisão refletida e firme.

Na perspectiva policial, as mulheres precisam denunciar o crime cometido contra elas, uma vez que um crime não denunciado não oferece possibilidades para ser combatido, e uma das formas de combater a violência contra a mulher é a punição do agressor. No entanto o agressor não é um desconhecido, mas um homem com o qual a mulher vive ou viveu um relacionamento afetivo-sexual. Não raras vezes, é o pai de seus filhos, mas as implicações subjetivas são de difícil manejo para os profissionais inseridos no equipamento policial (Saffioti, 2004).

Não se trata evidentemente de culpabilizar a equipe da DEAM por tal dificuldade, mas de sublinhar que ela revela as lacunas da formação profissional, a precariedade das condições de trabalho, pois, como vimos, a delegacia conta com uma psicóloga com carga horária de trabalho reduzida e, além disso, a rede de proteção e enfrentamento da violência contra a mulher também apresenta conexões fracas e, por vezes, interrompidas entre os equipamentos de saúde, assistência social, policiais e jurídicos.

Evidentemente, as mulheres têm o direito de serem esclarecidas sobre os trâmites legais, mas é preciso pensar de que modo tais informações são disponibilizadas e avaliar se elas contribuem para encorajar ou desencorajar as mulheres no prosseguimento do processo. É preciso se perguntar o tempo, o amparo e o acolhimento que essas mulheres em situação de fragilidade emocional recebem para que possam tomar uma decisão.

As narrativas sugerem que as explicações sobre o processo reforçam a lógica da responsabilização das mulheres em romper com a situação de violência vivenciada, pois se enfatiza que cabe a elas denunciarem e manterem sua palavra e o seu desejo, diante da polícia, de que seja aplicada uma punição ao agressor. Em última instância, elas também são tratadas como as responsáveis pela punição do agressor.

No entanto, para que as mulheres rompam com a violência, é preciso que também rompam com o imaginário social, no qual elas próprias estão imersas, de que cabe às mulheres promover a harmonia de seus lares e defender a união de suas famílias. Para denunciar a violência sofrida, as mulheres, muitas vezes, precisam romper o sentimento de vergonha e o medo da exposição e de julgamentos públicos que lhes atribuem uma falta ou um excesso que tenha provocado a ação violenta de seus companheiros ou ex-companheiros.

A psicóloga entrevistada considera que, se é mãe, a mulher deve romper e denunciar a relação de violência com o seu companheiro, não mais em defesa própria, mas por dever de defender os filhos. Ela lembra que, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, se uma mulher deixa os filhos à mercê de uma situação de violência conjugal e doméstica, é tão responsável por essa violência, ainda que a sofra, quanto o agressor. Assim, a mulher que também é mãe deve procurar meios para romper com a relação violenta, não por ela, mas pelos seus filhos. Já a mulher que não é mãe poderia até suportar a violência sofrida, mas a mulher que é mãe não pode fazê-lo de modo algum. Essa percepção da entrevistada reforça o papel da mulher como cuidadora do outro, bem como responsável por romper a situação de violência doméstica a partir da ruptura da relação com o homem que a agride.

 

6. O B.O. COMO INSTRUMENTO DE BARGANHA DAS MULHERES

Os entrevistados consideram que muitas mulheres buscam a DEAM de Betim mais interessadas em conseguir uma cópia do boletim de ocorrência (B.O.) do que em dar prosseguimento ao processo. Os entrevistados acreditam que o B.O. é utilizado pelas mulheres, em grande parte dos casos, como um instrumento de pressão contra aquele que a agrediu. Segundo as narrativas, de posse desse documento, muitas mulheres passam a ameaçar o parceiro de prisão. Além disso, o B.O. também é utilizado como instrumento de vingança nos casos de traição conjugal. As mulheres que pretendem a separação conjugal, segundo os entrevistados, acreditam que poderão obter vantagem em futura divisão de bens se puderem também exibir para o parceiro a cópia do B.O., documento oficial e público no qual a violência doméstica sofrida é comprovada. Nesses casos a denúncia parece ser considerada pela equipe da DEAM como ilegítima, no sentido de não ser motivada pelo desejo de romper a relação violenta e punir o agressor na forma da lei, mas pelo desejo de vingança ou intimidação do agressor.

Os usos relatados para o B.O., ainda que desviados de sua finalidade, revelam uma tentativa das mulheres de se fortalecerem com a invocação da autoridade policial, não somente para reverterem a situação de violência, mas também se descolar da posição de vítima passiva, para enfrentar o agressor e no limite subjugá-lo.

De acordo com Brandão (2006), especialmente para as classes populares, a polícia é uma instituição legítima que coloca ordem onde há desordem e a quem se recorre para a resolução de conflitos pessoais, tais como aqueles relacionados à conjugalidade e aos impasses na relação entre os vizinhos, os familiares e no trabalho, além de ser um órgão onde buscam informações sobre seus direitos. Nesse sentido, podemos pensar que muitas mulheres recorrem à DEAM por ser esse um local específico para acolhê-las e dar-lhes voz. E também porque, estando elas numa relação hierarquicamente desigual de poder com o homem, precisam de "alguém", nesse caso a polícia, instituição mais poderosa que o homem agressor, para legitimar seus interesses e as defenderem.

Embora a violência conjugal não seja prerrogativa dos casais das camadas populares, eles são estatisticamente majoritários nos atendimentos das delegacias, em razão tanto das desigualdades econômicas brutais da sociedade brasileira quanto por ser nos equipamentos públicos que essa camada da população procura atendimento não somente policial, mas também jurídico, psicológico, de assistência social e de saúde.

Entre os entrevistados, há também aqueles que consideram que as mulheres buscam na delegacia uma ajuda para que a violência cesse, mas sem a separação conjugal. Essa motivação contribui para que as mulheres não optem pela abertura de um processo que poderá no futuro acarretar a prisão de seu companheiro. Podemos compreender que algumas mulheres nutrem grandes esperanças de que o parceiro possa mudar o seu comportamento pela interferência de uma ação externa, e o equipamento policial é representado como investido de grande poder e autoridade, capaz de produzir a mudança desejada.

Uma entrevistada afirma que o fato de a DEAM ser especializada no combate à violência contra as mulheres não quer dizer que os homens sejam prejulgados e considerados a priori como culpados. Segundo ela, já apareceram na delegacia diversas mulheres que "provocaram" os homens até que eles perdessem a paciência e partissem para a agressão. Nesse caso, a mulher, para a entrevistada, torna-se responsável e culpada pela violência perpetrada contra ela, seu discurso sendo desvalorizado na denúncia. Nesse sentido, permanece a crença de que o homem é que é a vítima, pois somente agiu de forma violenta induzido pela mulher. Como podemos ver, a ideia de que os homens cometem violência por estarem sob efeito de "forte emoção" ou em "legítima defesa de sua honra", embora retirada dos textos legais, permanece no imaginário social e entranhada nas práticas cotidianas.

 

7. A "SENHORA" AQUI DE NOVO?

O foco na punição do agressor como estratégia para combate à violência contra as mulheres, sem considerar a complexidade e os sentidos subjetivos da vivência da violência nas relações conjugais, dificulta a compreensão e o manejo dos conflitos vividos pelas mulheres diante de seu desejo de superar a relação violenta e da decisão de iniciar uma investigação policial e um processo judicial.

Os entrevistados relataram que, quando atendem uma mulher, eles não têm acesso aos registros de ocorrências feitos anteriormente contra o mesmo agressor. Por isso, no contato inicial, perguntam à mulher se ela já fez outras denúncias sem, contudo, dar prosseguimento ao processo. A resposta positiva a essa questão gera nos policiais um sentimento de descrença de que, daquela vez, ela irá de fato prosseguir.

As narrativas convergem para a ideia de que a credibilidade dada ao discurso da mulher é proporcional às atitudes tomadas por ela após denunciar a violência sofrida na DEAM, especialmente quanto à sua decisão de seguir as orientações dadas pelos profissionais da delegacia. Nesse sentido, o cumprimento das expectativas dos policiais, por meio da continuidade da denúncia e do rompimento da relação com seu agressor, é o que torna aos olhos da equipe o relato da mulher legítimo e passível de receber a atenção dos agentes da delegacia.

Alguns entrevistados utilizaram a expressão "perda de crédito" para descrever o que sentem em relação ao movimento de muitas mulheres que denunciam, retornam à DEAM para tentar retirar a denúncia, depois retornam, querendo registrar a queixa novamente. O sentimento de "descrença" dos policias pela decisão dessas mulheres de agir para romper com a situação de violência que vivenciam, embora não fosse nomeado claramente, apareceu nos risos esboçados e nas piadas quando narravam tais casos, mostrando que essas mulheres não poderiam ser levadas a sério.

Outro motivo de frustração dos policiais com a recusa da mulher em registrar a queixa ou em dar prosseguimento ao processo está relacionado ao próprio sentido do trabalho dos policiais. Os relatos ressaltam os esforços da equipe para investigar e conseguir provas que demonstrem à Justiça a veracidade do crime denunciado e a consequente punição do agressor. Disseram que há um grande investimento, não somente financeiro, mas profissional, para a realização desse trabalho. E ainda assim, com todo esse esforço, as mulheres querem retirar a denúncia ou solicitar à polícia que solte seu companheiro da prisão, pois, apesar de tê-la agredido, ele não deve receber punição tão severa. Com isso, os entrevistados relataram sentir por essas mulheres um misto de raiva e de pena, e também indignação e frustração com suas idas e vindas.

Esses relatos mostram o quanto a formação continuada desses profissionais que atuam nas delegacias é importante, para que possam não apenas realizar uma escuta mais qualificada dessas mulheres fragilizadas pela situação de violência, mas também elaborar e discutir os impactos que os atravessam subjetivamente, provocados por seu trabalho diário com relatos de violência de diversas ordens.

 

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caráter repetitivo da violência contra as mulheres gera nos entrevistados sentimentos de revolta e de impotência. Eles percebem que nem sempre as suas orientações, quer pela resistência das mulheres, quer pela fragilidade da rede de enfrentamento da violência contra a mulher, são suficientes para que as mulheres rompam com a relação violenta.

Não é simples para esses profissionais, que, na maioria das vezes, não recebem uma formação interdisciplinar e não contam com um espaço no qual possam discutir e elaborar as suas experiências cotidianas de trabalho, a compreensão do caráter contraditório do comportamento das mulheres que sofrem violência por parte de seus companheiros e pais de seus filhos.

Embora muito se tenha avançado no Brasil, tanto na criação de equipamentos públicos para o amparo das mulheres em situação de violência quanto nas leis específicas para a superação da impunidade dos agressores, ainda permanece no imaginário social a ideia de que a violência é intrínseca às relações entre homens e mulheres. Ainda paira a ideia de que a mulher que sofre violência de certa forma a mereceu, por ter, de alguma maneira, provocado o homem ou por não ter coragem suficiente para enfrentar o por vezes longos inquérito e processo judicial.

Na narrativa dos entrevistados, os homens e as mulheres apareceram fixos no vetor dominação/opressão, respectivamente. As mulheres foram referidas como vítimas da violência, e a elas foi atribuída a responsabilidade de colocar fim a essa situação, ainda que tenha sido reconhecida a força da cultura machista como aquela que legitima os homens a agredirem as mulheres. A fixação das mulheres nesse lugar lhes dá poucas opções de agirem contra a violência. Resta-lhes, então, procurar alguém, no caso a polícia, capaz de destituir os homens desse lugar de poder, ainda que para isso o equipamento policial passe a ocupá-lo. Nesse caso, as mulheres, submetidas aos poderes da polícia, ficam sob a sua tutela.

Algumas mensagens são passadas no subtexto das entrevistas e podemos destacar duas. A primeira é que um dos modos de as mulheres evitarem a violência é não provocar os homens, pois se julga que algumas práticas de violência poderiam ser evitadas se as mulheres não fizessem os homens perderem a paciência. A outra mensagem é que muitas mulheres que buscam a delegacia não desejam necessariamente iniciar um processo judicial, mas que a delegacia as ajude a eliminar a violência de suas relações conjugais, produzindo uma mudança de comportamento nos homens. Há mulheres que buscam na delegacia uma parceria que possibilite inverter a relação de dominação, pois o B.O. passa a ser um instrumento de ameaça e coerção dos homens, para que estes cessem a prática da violência.

As atitudes dos policiais diante dessas mulheres reproduzem os preconceitos e as posturas sexistas que permeiam as relações sociais entre os sexos. Isso reforça a ideia de que as mulheres vítimas de violência são vulneráveis, o que as expõe às situações também de violência institucional. Nesse sentido, encontramos um paradoxo: o equipamento destinado a interromper ações violentas, na prática, reproduz a violência contra a mulher quando, na intenção de protegê-la, retira dela a possibilidade de agir como um sujeito autônomo ou quando a culpabiliza pela situação vivida.

 

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Texto recebido em 6 de agosto de 2016 e aprovado para publicação em 18 de outubro de 2016.

 

 

* Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); técnica social em Psicologia do Consórcio de Promoção a Cidadania Mulheres das Gerais, com atuação na Casa Sempre Viva, em Belo Horizonte-MG; psicóloga. E-mail: carol_mesquita13@hotmail.com.
** Pós-doutora pela UFRJ; doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestra em Psicologia pela UFMG; professora da Faculdade de Psicologia/Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas; membro do GT "A Psicologia Sócio-Histórica e o Contexto Brasileiro de Desigualdade Social" da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). E-mail: maigcomo@uol.com.br.
1 Nota del tradutor. Las siglas DEAM corresponden al nombre em portugués: Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.
2 Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica brasileira que lutou para que seu ex-companheiro e agressor viesse a ser condenado pela tentativa de homicídio contra ela, agressão que a deixou paraplégica. Seu processo foi objeto da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e resultou na penalização do Estado brasileiro e na exigência de políticas públicas para o enfrentamento da violência contra a mulher.
3 Pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de mestrado sobre os sentidos construídos pelos profissionais da DEAM da cidade de Betim-MG para a violência contra a mulher.
4 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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