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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n1p201-219 


ARTIGOS

 

 

PSICOSE E TOXICOMANIAS: UM ESTUDO PSICANALÍTICO

 

PSYCHOSIS AND DRUG ADDICTIONS: A PSYCHOANALYTICAL STUDY

 

PSICOSIS Y TOXICOMANÍAS: UN ESTUDIO PSICOANALÍTICO

 

 

Alenuska Nadja Rêgo de Queiroz Soares*; Cynthia Pereira de Medeiros**; Cynara Teixeira Ribeiro***

 

 


Resumo

Este artigo tem o objetivo de discutir os diferentes modos como o uso de drogas opera em sujeitos de estrutura psicótica. Tomam-se como unidades de análise os conceitos de psicose e de toxicomania na psicanálise freudolacaniana, juntamente com autores atuais que discutem o tema. Enquanto na neurose as toxicomanias operam o rompimento com o gozo fálico, na psicose, elas funcionam de maneira diversa, já que existe uma ruptura, dada de antemão, pois é de estrutura. Por meio de revisão de literatura, constatouse que o uso de drogas na psicose pode operar de três modos distintos: como solução estabilizadora, como suplência à foraclusão do Nome do Pai e como liberação de gozo. Tal discussão permite que se avence na compreensão sobre o número cada vez maior de psicóticos que recorrem ao uso de drogas e lançar luzes sobre a direção do tratamento a ser seguida com esses sujeitos.

Palavras-chave: Pesquisa psicanalítica. Drogas. Suplência. Gozo.


Abstract

This article aims to discuss the different ways in which the drug use operates in subjects in a psychotic structure. We take as the unit of analysis the concepts of psychosis and drug addiction in the Freudian-Lacanian psychoanalysis, along with current authors who discuss the theme. While in neurosis, drug addictions operate to break with the phallic Jouissance, in psychosis they work differently, in that there is a break, given beforehand, because it is structural. From the literature review, it was found that the use of drugs in psychosis could operate in three different modes: as a stabilizing solution; as a supplementation to the foreclosure of the 'Name of the Father'; and as a release of Jouissance. Such discussion allows advances in the understanding of an increase in the number of psychotics who resort to using drugs and sheds light on the direction of the treatment to be followed up with those subjects.

Keywords: Psychoanalytic research. Drugs. Supplementation. Jouissance.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir las diferentes formas en las que el consumo de drogas opera en sujetos de estructura psicótica. Tomamos como unidades de análisis los conceptos de psicosis y de toxicomanía en el psicoanálisis freudo-lacaniano, junto con autores actuales que discuten el tema. Mientras en la neurosis las toxicomanías operan la ruptura con el goce fálico, en la psicosis funcionan de forma diferente, ya que hay una ruptura, dada de antemano, pues es de estructura. A partir de la revisión de la literatura, se constató que el uso de drogas en la psicosis puede funcionar de tres modos diferentes: como una solución estabilizadora; como suplencia a la forclusión del Nombre del Padre; y como liberación de goce. Tal discusión permite avanzar en la comprensión sobre el número cada vez mayor de psicóticos que recurren al uso de drogas y arrojan luz sobre la dirección del tratamiento a seguir con esas personas.

Palabras clave: Investigación psicoanalítica. Drogas. Suplencia. Goce.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Atualmente temos observado que o fenômeno do consumo e do abuso de substâncias psicoativas tem ganhado visibilidade cada vez maior, demandando estratégias de atenção e de cuidado nas áreas da saúde, educação e segurança em nosso País. Seguindo essa tendência, as políticas públicas têm se dirigido ao combate e prevenção do uso de drogas, disponibilizando diversos equipamentos de atenção à saúde, voltados para o tratamento de usuários de drogas. Em seus estudos sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2006), em sua publicação Neurociência do consumo e dependência de substâncias psicoativas, aponta que "existe alta comorbidade entre qualquer transtorno mental e dependência de substância" (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2006, p. 161). No entanto, ainda para essa organização, permanecem obscuros quais seriam os fatores causais para esse elevado índice de comorbidade, “isto é, as doenças mentais levam à dependência de substância, a dependência de substância leva à doença mental ou tanto a doença mental quanto a dependência são manifestações sintomáticas das mesmas neuropatologias subjacentes?” (OMS, 2006, p. 161-162).

A partir da psicanálise lacaniana, "falar de comorbidade psiquiátrica pode resultar desviante, ao se pegarem como parâmetros distúrbios psiquiátricos clássicos" (Viganó, 2003, p, 15), conforme o sustentáculo da correlação entre toxicomania e psicose está referido à posição do sujeito na estrutura.

Com relação à psicose, Lacan deixou claro, desde o início de seu ensino, a existência de uma diferença fundamental decorrente da exclusão do sujeito psicótico da ordem simbólica, ou seja, da lei e dos laços sociais que se estruturam para o falante a partir de sua relação ao significante: "O que há de tangível no fenômeno de tudo o que se desenrola na psicose é que se trata da abordagem pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem" (Lacan, 1955-1956/2008, p. 360).

Nessa perspectiva, a função fundamental da intoxicação é a ruptura com o falo, significante da falta introduzido na cadeia simbólica a partir da operação de castração, com consequências de rompimento dos laços sociais. Devido a essa função de ruptura, há modos de relação entre sujeito e drogas que exigem uma exclusividade, fazendo com que o usuário muitas vezes abandone sua família, seu emprego e seus bens (Lacan, 1976).

Levando em consideração que a toxicomania1 tem uma função de promover uma ruptura com os laços sociais e que a psicose tem de antemão um rompimento que é de estrutura, voltamo-nos para os inúmeros casos de psicóticos que usam drogas e lançamos as seguintes indagações: como pensar as possíveis funções da droga na psicose, já que, na estrutura psicótica, a ruptura com os laços sociais é anterior ao uso das drogas? O uso de substâncias tóxicas por sujeitos psicóticos teria uma função semelhante ao uso feito por sujeitos neuróticos? E quais seriam as funções do uso de drogas na psicose?

Partimos da premissa de que a toxicomania é um fenômeno "transestrutural", ou seja, que pode ocorrer em qualquer uma das três estruturas clínicas propostas pela psicanálise: neurose, psicose e perversão. Porém, nesse artigo, vamos nos deter na discussão acerca do uso de drogas na estrutura psicótica. Para tanto, abordaremos as particularidades da estrutura psicótica em Freud, Lacan e seus comentadores, bem como as formulações desses autores acerca do consumo de substâncias e seus desdobramentos na atualidade, para, então, situarmos as funções do uso de drogas na psicose.

2. PSICOSE EM FREUD E LACAN

A psicose passou a ser alvo das investigações de Freud desde 1894, mesmo não sendo o principal foco do interesse do fundador da psicanálise, que tinha a neurose como objeto de seus estudos (Freud, 1894/1996). Contudo, em suas obras, é possível perceber os seus avanços sobre o estudo da paranoia, que teve seu auge a partir do caso do Dr. Schreber em 1911. Na análise desse caso, Freud utiliza a ideia de que, na paranoia, existiria a frustração por uma não satisfação de um desejo homossexual inconsciente e que os delírios de perseguição funcionariam para proteger o sujeito desses desejos.

A partir da constatação de que, em todos os casos de paranoia estudados por ele e por seus colegas, havia uma defesa contra esse desejo homossexual, Freud afirma que, se o paranoico procura defender-se contra a sexualização de seus investimentos sociais, o ponto fraco de seu desenvolvimento "deve ser procurado em algum lugar entre os estádios do autoerotismo, narcisismo e homossexualismo, e que sua disposição à enfermidade (que talvez seja suscetível de definição mais precisa) deve estar localizada nesta região" (p. 70).

Freud (1905/1996) retoma a ideia construída em sua obra "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" de que a libido pode ter diversos pontos de fixação em suas fases de desenvolvimento, e afirma que algumas pessoas podem retornar a esse ponto de fixação em caso de alguma perturbação externa. No caso da paranoia, "A libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste" (Freud, 1911/1996, p. 79), retornando, então, ao estádio do narcisismo, seu ponto de fixação.

Freud, assim, afirma que o caráter próprio da paranoia deve ser procurado na forma assumida pelos sintomas, concluindo que a sua particularidade característica recaía no fato de que "o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagido precisamente com delírios de perseguição" (Freud, 1911, p. 67).

A partir da década de 1920, tem início uma nova fase da teoria freudiana conhecida como segunda tópica, em que ele proporá a divisão do aparelho psíquico em isso (Id), eu (ego) e supereu (superego), modificando a teoria da primeira tópica que dividia o aparelho psíquico em inconsciente, pré-consciente e consciente. Com suas teorizações acerca do papel do ego e sua posição intermediária entre o id e o superego, Freud (1924b/1996) avança também em sua teoria sobre a psicose, como podemos observar em seu artigo "Neurose e Psicose", em que afirma: "A neurose é o resultado entre um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo" (p. 167).

Ainda em 1924, em seu artigo intitulado "A perda de realidade na neurose e na psicose", Freud afirma que tanto na neurose quanto na psicose existe uma perda da realidade, diferenciando-se da seguinte forma: "A neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la" (Freud, 1924a/1996, p. 207). Dito de outra maneira, na neurose, a doença propriamente dita não se daria no primeiro momento, o momento do recalque ou da fuga, mas sim no segundo momento em que se dá o retorno do recalcado, ou seja, no surgimento dos sintomas. Na psicose, o adoecimento dar-se-ia no primeiro momento, em que rechaça a realidade, já que os sintomas seriam uma tentativa de cura, ou seja, uma ligação com a realidade anteriormente perdida.

Foi Jacques Lacan que, em seu retorno a Freud, transformou a psicose no fio condutor do seu ensino, fazendo formulações e reformulações sobre o tema ao longo do tempo, e inaugurando um tratamento possível para sujeitos psicóticos.

O ensino de Lacan pode ser dividido com base em dois principais marcos conceituais, ou duas clínicas lacanianas: a primeira, concernente à década de 1950, na qual estão presentes os conceitos lacanianos mais difundidos em relação à psicose, tais como a foraclusão do Nome do Pai, a significação fálica e a metáfora paterna; e a segunda, situada na década de 1970, voltada para o gozo e o conceito de sinthoma. Apesar dessa divisão, é importante ressaltar que uma clínica não substitui a outra, mas a interroga e enriquece.

No que tange à primeira clínica, a teorização lacaniana sobre a psicose centrase no conceito de função paterna, alçando a figura do pai ao núcleo central da teoria lacaniana. Contudo, não se trata da figura de um pai real, mas sim "daquilo que a religião nos ensinou a invocar como Nome do Pai" (Lacan, 1959/1998, p. 562).

Dito de outra forma, a função paterna se dá a partir da intervenção do Nome do Pai nas trocas imaginárias entre a mãe e a criança, ou seja, de uma intervenção no desejo da mãe que pode vir de qualquer lugar, mesmo que não seja a figura de um homem ou de um pai, mas que retire essa criança do lugar de objeto central do desejo da mãe. Portanto o Nome do Pai instaura a lei da proibição do incesto, barrando o Outro sem lei, outrora representado pela mãe. O Nome do Pai é, portanto, operado por um pai simbólico na relação mãecriança, marcando a diferença entre os sexos e ingressando o sujeito no mundo simbólico, da linguagem. Assim, o pai tem a função "de representar o portador, o detentor do falo [...]. Não é de um triângulo pai-mãe-criança de que se trata, é de um triângulo (pai)-falo-mãe-criança" (Lacan, 1955-1956, p. 358).

No caso da estrutura psicótica, ocorre que o Nome do Pai se encontra foracluído,2 ou seja, não chegou a tempo e não pode mais operar. A não operação desse significante tem seus efeitos no real, tomando, em certas circunstâncias, a forma de delírios e alucinações. Tem-se, portanto, a foraclusão do Nome do Pai como fenômeno específico da psicose.

Enquanto o neurótico passa pela experiência da castração e da incorporação da lei fálica representada pelo Nome do Pai, o psicótico fica fora dessa lei. Dessa maneira, para o neurótico, por ter passado pela castração simbólica, o Outro é barrado e inconsciente e, por isso, torna-se, para ele, uma falta. Já na psicose, por carecer do significante da lei, o Outro não é barrado, pelo contrário, é consistente e absoluto e, assim, o sujeito psicótico torna-se objeto de gozo deste Outro.

Para Lacan (1959), o desencadeamento da psicose é situado quando o significante Nome do Pai

Foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja invocado em posição simbólica ao sujeito. É a falta do Nome do Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante (p. 584).

A metáfora delirante é, portanto, um elemento fora da ordem paterna que pode suprir a ausência do Nome do Pai e produzir a estabilização da psicose.

A partir da década de 1960, ocorre uma virada conceitual na teoria lacaniana, na qual o Nome do Pai, que garantia a entrada do sujeito na linguagem e sua subordinação à Lei (Lacan, 1955-1956), cede o seu lugar de agente universal e dá lugar à invenção particular de cada sujeito, pois, mesmo inserindo o sujeito na cultura e na linguagem, ele não garante mais a possibilidade de tudo significar, já que existe no Outro uma falta. O sujeito, então, tem de construir a sua própria resposta.

Debruçado sobre essas questões, Lacan chega à década de 1970 recorrendo à matemática e à lógica para dar início à teoria dos nós borromeanos. O nó borromeano é formado por elos distintos (no mínimo três) que se enlaçam sem que haja interpenetração entre eles, ou seja, nenhum nó passa através do furo de outro nó. Na verdade, trata-se mais especificamente de uma cadeia, pois o nó é composto por apenas um elemento, enquanto que a cadeia é formada por elos distintos e, caso algum nó se rompa, toda a cadeia se desfaz. Ele associa as três rodas do nó aos três registros com os quais trabalha: real, simbólico e imaginário, sendo o próprio nó o real em si mesmo.

No seminário 22, Lacan remete-se à noção de que é preciso um quarto elemento que realize uma "ação suplementar, em suma, de um toro a mais, aquele cuja consistência seria referir-se à função dita do Pai" (Lacan, 1974-1975, lição de 11/02/1975) que enlace os três registros. Ele desenvolve, então, o conceito de sinthoma, que pode ser entendido como o quarto elemento do nó borromeano, que amarra os três registros da topologia dos nós. Sobre o quarto elemento, Lacan (1974-1975) afirma: "Sem o quarto, nada é […] colocado em evidência do que verdadeiramente é o nó borromeano" (lição de 13/05/75).

Para ele, então, no nó composto apenas por três elementos haveria uma disjunção entre os três registros que tendem a se soltar, sendo preciso um quarto elemento que tenha uma ação suplementar para impedir que isso ocorra. Assim, tanto nos neuróticos quanto nos psicóticos, existe a disjunção dos três registros. Nessa nova perspectiva, o Nome do Pai pode ser o quarto elo, assim como outras invenções criadas pelo sujeito podem ser capazes de atar esses elementos.

Na clínica do sinthoma, o Nome do Pai, como quarto elemento da topologia borromeana, operaria como uma suplência, fazendo a amarração entre os registros e introduzindo a diferenciação desses mesmos elementos.

É preciso esclarecer, aqui, que existem diferentes meios de estabilização da psicose. Como nos afirma Guerra (2007), nem toda estabilização cria uma forma de amarração dos três registros, que podem se desfazer diante de qualquer embate. Desse modo, segundo essa autora, existe uma diferença entre as soluções estabilizadoras, que se constituiriam como meios de estabilização menos eficazes da psicose; as suplências, caracterizadas pela invenção de um quarto termo que estabiliza os registros do nó; e o sinthoma, que seria a "suplência em um ponto específico, […] a invenção de uma ferramenta singular que operasse como nó borromeano, evitando o desencadeamento psicótico" (p. 179).

Ainda de acordo com Guerra (2007), a estabilização é o gênero do qual a suplência é uma das espécies, e o sinthoma é uma subespécie particular das suplências. Dessa maneira, a autora afirma que nem toda solução inventada pelo sujeito psicótico conduzirá a uma estabilização, nem toda estabilização será uma suplência e nem toda suplência funcionará como sinthoma. Tal distinção entre soluções, suplências e sinthoma torna-se importante para nossa discussão acerca do uso de drogas e suas possíveis funções para a estrutura psicótica.

Com base nessa tese lacaniana, a psicose passa a ser pensada como uma disjunção do enodamento da cadeia borromeana. Nessa perspectiva, cada sujeito, ao seu modo, buscará uma solução particular para tentar suprir esse desenodamento, que pode ir desde as soluções estabilizadoras até as suplências e o sinthoma. Assim, é possível encontrar na atualidade desde os desencadeamentos da psicose com seus fenômenos clássicos até sujeitos estabilizados com uma suplência singular e que se mantém, ao seu modo, no laço social.

Nessa perspectiva, poderíamos dizer que a prática do uso de drogas pode ser uma das possíveis soluções encontradas pelos sujeitos para se inserirem em um grupo social? E ainda, que o recurso à droga na psicose poderia funcionar como uma solução estabilizadora, ou como um modo de suplência ou até mesmo como um sinthoma para esses sujeitos, operando como quarto elo da cadeia? Além destas, existem outras posições que discutem o recurso à droga na psicose.

Abordaremos, a seguir, os diferentes modos com que o recurso à droga opera na psicose, podendo funcionar como uma das possíveis soluções encontradas pelos sujeitos para se inserirem em um laço social, seja como uma solução estabilizadora, como um modo de suplência ou como liberação de gozo.

3. PSICANÁLISE E TOXICOMANIAS

Em seus percursos, nem Freud nem Lacan se dedicaram ao estudo das toxicomanias, mas deram algumas contribuições importantes sobre o assunto, que tiveram continuidade nos trabalhos de alguns autores que os seguiram, tanto na teoria quanto na prática clínica.

Em 1930, Freud escreve o texto "O mal-estar na civilização", defendendo a ideia de que a inserção do homem na civilização lhe impõe uma série de exigências que precisam ser cumpridas para que ele possa viver na cultura. Tais exigências lhe demandam renúncias e restrições que acabam por gerar um grande dispêndio de prazer, pois somente com a renúncia de suas pulsões o ser humano poderia viver de acordo com as exigências morais de uma civilização. Aponta, então, o uso de drogas como uma das medidas paliativas por ele utilizadas para lidar com o mal-estar resultante de tal renúncia.

Com essas observações, Freud coloca o uso de drogas como uma das formas de tratamento possível ao mal-estar que acompanha todos os seres humanos. A sua compreensão sobre essa técnica de apaziguamento está pautada num ponto de vista que retira a substância em si do centro da questão e coloca o sujeito no lugar central. Ou seja, Freud já estabelecia a necessidade de situar o papel que a droga ocupa na economia psíquica de cada sujeito, de modo particular, e os riscos que poderiam surgir a partir daí.

Já Lacan (1969-1970/1992), tendo em vista as características da sociedade capitalista, classifica as drogas como gadgets, ou seja, produtos pertencentes à lógica do consumo, regulados pelos ideais sociais e fabricados para divertir os sujeitos, na tentativa de amenizar, ou até mesmo acabar, ainda que temporariamente, qualquer mal-estar. Ainda que o discurso capitalista procure ilusoriamente tamponar a falta do sujeito, ele não consegue se furtar do fato de que para todo sujeito que passou pela experiência do Édipo, há uma lei que determina uma perda primordial de gozo, ficando o sujeito submetido ao falo. A partir de então, o sujeito vai se livrar da imposição massiva do gozo do Outro3 e passará a ter acesso ao gozo fálico, o gozo sexual, articulável a partir da entrada do significante no corpo. Diferente do gozo do Outro, gozo pleno e mortífero que se situa antes da entrada da criança na ordem simbólica, o gozo fálico é referido ao Outro como resultado da operação da castração, a partir da qual o sujeito inscreverá sua posição subjetiva na partilha dos sexos e gozará simbolicamente.

Contudo, enquanto o gozo fálico delimita-se na ordem da linguagem e do social, o toxicômano parece estar fora dessas relações, vivenciando uma forma de gozo sem limites, entregue na sua relação com o objeto, um gozo do adicto ou a-dicto, sem dicção, sem palavras. De que ordem então seria o seu gozo?

Em 1976, Lacan profere no "Journées des cartels de l'École Freudienne de Paris" que a função da droga é romper o casamento do homem com o falo. Em suas palavras: "Tudo o que permite escapar desse casamento é evidentemente muito bem-vindo, donde o sucesso da droga, por exemplo; não há nenhuma outra definição da droga que esta: é o que permite romper o casamento com o pequeno-pipi" (Lacan, 1976, p. 268). Nessa mesma ocasião, Lacan afirma que o casamento com o falo gera angústia por remeter o sujeito à castração. Nesse sentido, ao romper o matrimônio com o gozo fálico, o sujeito foge dos efeitos da castração, permitindo um gozo desvinculado do falo e da linguagem, semelhante ao gozo da psicose.

De acordo com Santiago (2001), a função de ruptura oferecida pela droga aproximar-se-ia de uma tentativa de recuperação do gozo do Outro, ou seja, supõe-se que "o toxicômano, em seu ato, se ofereça ao gozo do Outro a fim de completá-lo e, assim, evitar o que da falta parece insuportável" (p. 171).

A toxicomania revelaria, então, a existência de um gozo desvinculado do Outro e da linguagem, que não contempla a relação sexual. Ou seja, com o consumo, que escapa da função paterna, o sujeito é levado a soltar-se do Outro. Nesse sentido, o sujeito toxicômano busca, pela droga, uma satisfação autoerótica, que desconsidera o Outro sexo.

A significação fálica é o que possibilita ao sujeito uma procura incessante de objetos que possam satisfazer a sua pulsão, numa multiplicidade constante, já que nenhum desses objetos responderá à sua falta. Contrariamente a isso, a droga, na toxicomania, ao se fixar como objeto único do toxicômano, corrobora a afirmação lacaniana de rompimento com o gozo fálico.

Contudo, se a toxicomania tem uma função de promover uma ruptura com o gozo fálico, no caso da psicose, que já tem de antemão um rompimento de estrutura, o uso de drogas poderia ter uma função contrária, ou seja, casos nos quais o consumo ocorre como um modo de fazer laços sociais (por exemplo, com um grupo de usuários de drogas), havendo, assim, uma tentativa de restituir a ruptura já existente (Zaffore, 2008).

Temos, portanto, que o uso de substâncias psicoativas opera de modo particular na estrutura psicótica. Tais particularidades sugerem um uso que pode ir desde a intensificação dos fenômenos psicóticos até o apaziguamento destes, articulando-se de diferentes modos em cada caso.

4. INTERFACES ENTRE PSICOSE E TOXICOMANIA: FUNÇÕES DO USO DE DROGAS PARA A PSICOSE

A literatura aponta três vertentes sobre o consumo de drogas na psicose: a primeira, defendida por Maleval (2001), Naparstek e Galante (2008), Zaffore (2008) e Martins (2009), considera essa prática como solução estabilizadora da psicose; a segunda, representada por autores como Beneti (1998) e Le Poulichet (2005), a aborda como um modo de fazer suplência à foraclusão do Nome do Pai; e a terceira, concebida por Martins (2009) e Maleval (2001), sugere o consumo da droga como liberador e intensificador de gozo na psicose.

4.1 O uso de drogas como solução estabilizadora

Zaffore (2008) afirma que muitos psicóticos consomem substâncias como forma de restituir a ruptura existente nessa estrutura, que é dada de antemão, por um enlace com o Outro. Naparstek e Galante (2008) complementam essa tese afirmando que, diante da invasão de gozo vivenciada pelo sujeito psicótico, e não havendo recursos simbólicos para se encontrar com tais fenômenos, o sujeito acaba por recorrer a um tratamento do real pelo real por meio da ingestão do tóxico, ou pelo imaginário, pela via de uma identificação através do "eu sou viciado".

Laurent (1997) tece algumas considerações sobre a identificação que alguns psicóticos fazem com a droga, mencionando casos nos quais se observa o seu uso vinculado a uma determinada substância e com certo limite. Para o autor, o gozo nestes casos está perfeitamente controlado, porque eles querem algo preciso na droga. Tais casos diferenciam-se daqueles nos quais o toxicômano faz uso de uma ou de várias drogas, o que indica que o gozo está descontrolado, pois não se quer nada preciso.

Para Martins (2009), o recurso às drogas se articula com algumas modalidades de estabilização da psicose que não se encaixam na categoria de suplências. Entre elas: a compensação imaginária, a passagem ao ato, a moderação de gozo e o delírio. Esses modos de estabilização se associam ao recurso à droga de acordo com as particularidades dos casos.

A compensação imaginária se articula à solução identificatória como modo de fazer enganche com o Outro. Para a autora, a droga, como objeto presente nas relações sociais da contemporaneidade, pode ser considerada como um objeto que serve de trampolim para uma identificação compensatória. Nas suas palavras, a compensação imaginária "comparece articulada à identificação imaginária que se estabelece em torno do objeto droga e do significante que a nomeia, na relação entre o sujeito e aqueles com quem compartilha o uso" (Martins, 2009, p. 137).

A esse respeito, podemos pensar nos casos em que o uso de drogas comparece como forma de inserção em um grupo de pessoas que consomem drogas, fazendo do consumo uma forma de enlace com o Outro. Segundo Zaffore (2008), podemos considerar que, nestes casos, o uso da droga não tem intenção de sair do campo do Outro, como acontece na neurose, mas, ao contrário, tem a intenção de restituir o lugar do Outro.

Segundo Maleval (2001), para conseguir a droga, o sujeito precisa buscá-la onde ele sabe que irá consegui-la, o que incita certos toxicômanos a se inscreverem em um laço social. No entanto, ainda para esse autor, "Mesmo quando as identificações imaginárias possam servir de suporte para uma estabilização, elas não deixam de ser lábeis, instáveis e sujeitas ao azar" (s/p). Isto é, a compensação imaginária, como um modo de estabilização, não se configura como uma solução sólida para a psicose e, por isso, pode falhar.

A esse respeito, Naparstek e Galante (2008) afirmam que a droga funciona como um precário enganche ao Outro, que pode precipitar o sujeito a uma passagem ao ato, como uma forma de atentado ao próprio corpo, ou ao corpo do outro, cuja função é reduzir a angústia, pois o psicótico carece de recursos simbólicos para lidar com esta, precisando recorrer ao real do próprio corpo para tentar amenizá-la. Segundo Calazans e Bastos (2010), por se tratar de um ato no qual o discurso como laço social está ausente, a passagem ao ato costuma ser ruidosa, isto é, gerar consequências perigosas a si ou ao outro, como nos casos de crimes imotivados.

Para Martins (2009), a passagem ao ato pode, também, configurar-se como uma forma de estabilização da psicose. A fim de ilustrar essa hipótese, a autora cita casos nos quais, mesmo após a interrupção do uso da droga, alguns usuários mantêm o hábito de se perfurar com a seringa vazia ou de retirar o sangue com a seringa, num constante ato de perfurar o corpo. Nesses casos, a substância encontra-se em segundo plano, pois o que realmente faz efeito é a perfuração do corpo. Segundo a autora, "É pela via das perfurações, dos golpes ao corpo, que se evidencia a tentativa de extrair um objeto que venha condensar o gozo que se manifesta de forma deslocalizada, invadindo o corpo do sujeito" (p. 165).

Outro modo de operação da droga como método de estabilização para a psicose diz respeito à moderação de gozo (Martins, 2009). Nesse modo, a droga funcionaria ajudando a aliviar ou silenciar as alucinações verbais e também apaziguar as experiências de fragmentação corporal vivenciadas pelo psicótico. Naparstek e Galante (2008) descrevem o caso de um adolescente que fazia uso de álcool, maconha, xarope e colírios que injetava no nariz, aos quais recorria em momentos de delírios, alucinações e mal-estar ligado ao corpo, dizendo: "Estou mal [...] meu corpo está se desfazendo, apodrecendo-se, estou frouxo, usei o colírio para dar energia ao meu corpo, para terminar com essa frouxidão, com esse corpo acabado, velho, frouxo, esse corpo que não me obedece, sem forças" (p. 48).

No que diz respeito à associação da droga ao delírio como modo de estabilização, relembramos a teoria freudiana acerca do delírio como tentativa de cura para o psicótico e tomamos a tese de Martins (2009) de que o uso de drogas pode estar a serviço de um delírio, fazendo com que a tentativa de cura se enganche pelo consumo. A autora resgata a ideia de delírio parcial, que corresponde a uma construção delirante que não toma completamente a vida do sujeito, restringindo-se a aspectos delimitados.

Ao associar o uso de drogas ao delírio, Martins (2009) defende que o seu consumo pode estar a serviço de uma tentativa de cura, podendo se enquadrar em um imperativo delirante que determina que o sujeito consuma certas substâncias. Le Poulichet (2005) cita como exemplo casos nos quais o consumo de droga surge para obedecer a uma ordem divina, como imperativo de um gozo do Outro.

4.2 O uso de drogas como suplência

Em seu texto "Toxicomania e suplência", Beneti (1998) parte da constatação cotidiana de que "muitos dos chamados toxicômanos são, na verdade, sujeitos psicóticos que, na ausência da droga […] apresentam produções delirantes" (p.219). Baseado em tal constatação, esse autor levanta a hipótese de que o consumo regular de drogas poderia funcionar como uma "suplência química" para alguns psicóticos, impedindo o desencadeamento do delírio.

Nesses casos, o uso de droga estaria funcionando como uma espécie de "autoprevenção" do delírio, "ao nível de uma suplência estabilizadora, mesmo que mortífera para o indivíduo" (Beneti, 1998, p. 219). Para esse autor, a toxicomania como suplência ocorreria nos casos não desencadeados, enquanto que, nos casos já desencadeados, funcionaria como moderadora de gozo.

Maleval (2001) reconhece os efeitos próprios de cada droga, acrescentando que os medicamentos neurolépticos, muito utilizados nos tratamentos de psicose, têm uma função de apaziguamento dos fenômenos típicos dessa estrutura, e que algumas drogas produzem esses mesmos efeitos, o que pode adiar o aparecimento do surto. Nessa perspectiva, Castanet e De Georges (2009) mencionam casos frequentes de sujeitos que, após anos ou décadas de consumo de drogas, tiveram o primeiro surto, com a presença de fenômenos psicóticos, quando submetidos a tratamentos contra o uso de drogas.

Le Poulichet (2005) faz distinção entre duas modalidades de toxicomanias: a primeira, denominada pela autora de toxicomania de suplemento, compreende uma suspensão dos conflitos psíquicos e seria associada à neurose; e a segunda seria a toxicomania de suplência, a qual teria por função tentar conservar o corpo do sujeito contra a invasão do gozo do Outro. A toxicomania de suplência estaria associada ao campo das psicoses, e se caracterizaria por uma tentativa de constituir uma borda que venha a proteger o sujeito contra a invasão do gozo do Outro.

É importante elucidar que, mesmo funcionando como um modo de apaziguamento de gozo, o uso de drogas nem sempre chega a operar como suplência, pois, para alguns sujeitos, não produz uma amarração tão estável. Como já dissemos, as soluções estabilizadoras são menos eficazes que as suplências. Assim, em alguns casos, o recurso às drogas estariam inseridos mais na vertente das soluções estabilizadoras, pois apaziguam o sujeito, mas não são capazes de estabilizá-los de modo mais eficaz por uma amarração dos três registros.

4.3 O uso de drogas como liberação de gozo

Para outros sujeitos, o consumo de substâncias, ao contrário das soluções estabilizadoras e das suplências, é capaz de promover uma liberação de gozo, proporcionando o surgimento de vivências alucinatórias, nas quais eles ouvem vozes, veem vultos ou apresentam sentimentos de perseguição e de angústia. É importante ressaltar a delicadeza desses casos, uma vez que, como nos afirma Lisita (2010), a própria droga gera no sujeito de qualquer estrutura, tanto durante o uso quanto no período de abstinência, alterações sensoriais, físicas e mentais que se assemelham a um surto psicótico, sem que, nem sempre, se trate de uma psicose. Portanto, em um primeiro momento, os efeitos gerados pela droga podem ser problemáticos para a definição de um diagnóstico estrutural, sendo necessária uma investigação mais detalhada sobre a função que a droga desempenha em cada caso. De todo modo, nos casos de psicose, também há a presença desses fenômenos, mas estes não se reduzem aos efeitos tóxicos das substâncias, mas são fruto da própria estrutura, que podem ser exacerbados pelo uso da droga.

Há, ainda, casos nos quais o aparecimento do primeiro surto psicótico se dá após o início do uso de substâncias (Maleval, 2009). Podemos observar, aí, a droga funcionando como liberadora de um gozo em excesso.

A respeito da função da droga na conjuntura do desencadeamento da psicose, Lacan (1951/1998) adverte para o perigo da utilização da narcose como método de obtenção de informações sigilosas nos interrogatórios dos criminosos, uma vez que, "por menos que participe de uma estrutura psicótica, o sujeito pode encontrar nela o 'momento fecundo' de um delírio" (Lacan, 1951, p. 146).

É preciso destacar, entretanto, que, apesar do papel do tóxico como "momento fecundo" do desencadeamento da psicose, a este não pode ser atribuída uma função determinante, mas sim coadjuvante. O efeito provocado pela droga na cena do desencadeamento é o de colocar o sujeito diante de algo que ele é incapaz de sustentar, devido à ausência do significante paterno que se encontra foracluído.

Podemos apontar, ainda, casos nos quais a liberação de gozo é operada não pela substância, mas pela abstinência. Nessa circunstância, a liberação de gozo pode levar a um consumo exacerbado de substâncias e até mesmo a uma overdose. Tal apontamento nos permite questionar alguns modelos de tratamento que exigem a abstinência do sujeito, já que, em alguns casos, esta pode ter o efeito inverso, levando a uma exacerbação de gozo e ao consumo desenfreado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela psicanálise, constatamos que, no fenômeno do uso de drogas, as substâncias químicas podem operar de diferentes modos, de acordo com cada sujeito e com cada estrutura, não havendo uma resposta única. Dessa maneira, cada sujeito, ao seu modo, pode encontrar no uso de drogas uma função determinada, relacionada à sua constituição psíquica.

Neste artigo, propomo-nos a discutir os diferentes modos como o uso de droga opera em sujeitos de estrutura psicótica. Vimos que o recurso às drogas na psicose tem funções particulares, podendo funcionar como um modo de estabilização da psicose, seja pela compensação imaginária, passagem ao ato, moderação de gozo ou a serviço de um delírio; como modo de fazer suplência nos casos não desencadeados, suspendendo ou adiando o momento do desencadeamento; e como meio de liberação de um gozo sem limites.

As mudanças de hábitos e valores em nossa sociedade levam, cada vez mais, sujeitos de todas as estruturas clínicas ao consumo de drogas, incluindo os sujeitos psicóticos, revelando a complexidade desses casos e exigindo a necessidade de se fazer diagnósticos diferenciais e pensar a direção dos tratamentos. Na psicose, existe uma lógica particular, um desatamento que é de estrutura, devido à ausência do significante Nome do Pai, que teria a função de colocar uma barra sobre o Outro.

Como não conta com a inscrição do Nome do Pai, o sujeito psicótico fica à mercê de um Outro pleno e consistente que não é simbolizado, sendo, portanto, invadido por um gozo sem limites. Assim, na estrutura psicótica é preciso que haja algo que venha a cumprir o papel de amarração dos três registros. É por essa razão que, na psicose, o uso de droga tem uma função bem localizada.

Tais questões nos levam a refletir sobre como os serviços de saúde mental podem pensar as modalidades de tratamento oferecidas para os usuários de drogas, uma vez que nos permite estabelecer que a meta da abstinência não é eficaz para todos, podendo levar, especialmente nos casos de psicose, a um uso desregulado e sem controle, aumentando o sofrimento. Nessa perspectiva, a partir dos avanços teóricos e clínicos da teoria psicanalítica, propomos que a direção do tratamento com psicóticos que usam drogas precisa considerar, além da singularidade de cada caso, a particularidade dessa estrutura e da função do tóxico na vida do sujeito, promovendo uma escuta que aposte na possibilidade da construção de saídas e de invenções inéditas que funcionem como sutura ao desatamento estrutural.

Certamente, não é possível precisar, de antemão, se as drogas funcionarão, em cada caso, como solução estabilizadora, suplência ou liberação de gozo. Porém é possível, a partir da identificação do modo como o uso de drogas opera na estrutura, estabelecer estratégias e intervenções clínicas que possam produzir um anteparo ao gozo intrusivo e ameaçador experimentado pelo psicótico, tanto nos casos em que este é intensificado pelo uso de drogas como naqueles em que é por ele regulado. É nesse sentido que se faz necessário localizar a função do tóxico na vida psíquica de cada sujeito, a fim de evitar atuações que, pautadas em perspectivas moralistas, dissolvam a função por vezes apaziguadora desempenhada pelas drogas antes que algo possa se articular no lugar, o que pode provocar, em alguns casos, efeitos ainda mais devastadores.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 15 de janeiro de 2014 e aprovado para publicação em 17 de setembro de 2015.

 

 

*Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) (filiado à ANPEPP), psicóloga. Endereço: Campus Universitário, CCHLA, Departamento de Psicologia - Lagoa Nova, Natal-RN, Brasil. CEP: 59092-000. E-mail: alenuska_ns@yahoo.com.br.
** Professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN (filiado à ANPEPP), psicanalista. Campus Universitário, CCHLA, Departamento de Psicologia - Lagoa Nova, Natal-RN, Brasil. CEP: 59092-000. E-mail: cynthiamedeiros@yahoo.com.
*** Professora adjunta do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN (filiado à ANPEPP). Endereço: Campus Universitário, Centro de Educação, Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação - Lagoa Nova, Natal-RN, Brasil. CEP: 59092-000. E-mail: cynara_ribeiro@yahoo.com.
1Quando falamos de toxicomania, nós nos remetemos ao delineamento feito por Conte (2000), que "exclui o uso eventual, recreativo ou habitual das drogas. Considera-se a toxicomania a relação intensa e exclusiva, na qual o uso de drogas já se tenha estabelecido também como uma função na vida psíquica do sujeito" (pp. 9-10). Isso significa que, dentro das diferentes modalidades de uso que se faz da droga, vamos nos deter àquela na qual o sujeito não consegue mais prescindir da mesma, tornando-se um dependente ou toxicômano.
2O termo "foraclusão" foi tomado de empréstimo por Lacan do vocabulário jurídico francês e significa um processo jurídico ao qual não se pode mais apelar, pois o seu prazo legal expirou (Roudinesco & Plon, 1998).
3O gozo do Outro é também o gozo do psicótico, já que este não tem acesso ao gozo fálico devido à foraclusão do Nome do pai.

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