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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.2 Belo Horizonte May/Aug. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p562-572 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p562-572

 

A verdade e a mulher

 

The truth and the woman

 

La verdad y la mujer

 

 

Oswaldo França Neto*

 

 


Resumo

O conceito-chave da teoria de Alain Badiou é o de "procedimento genérico", que ele identifica como sendo a forma com a qual uma verdade de um dado mundo se faz apresentar-se neste. Ele aproxima o conceito de verdade aos termos genérico e indiscernível, e escolhe como símbolo para o termo genérico a marca do feminino (?). Este artigo pretende desdobrar esse conceito, tendo como objetivo principal explorar essa identificação proposta por Badiou entre a mulher e a verdade de um mundo. Se, para Badiou, a verdade e o vazio têm em comum a subtração ao saber, nem por isso se identificam. Essa distinção entre verdade e vazio pode nos auxiliar a um melhor discernimento entre histeria e feminilidade, ao privilegiar, na mulher, não seu eventual caráter de negatividade, mas o que nela se apresenta como subversivo, por veicular uma afirmação que escapa às armadilhas predicativas de não importa qual sociedade.

Palavras-chave: Verdade. Mulher. Feminilidade. Genérico. Indiscernível.


Abstract

The key concept of the whole theory of Alain Badiou is that of the "generic procedure", which he identifies as the way in which a truth of a certain world presents itself on it. He approaches the concept of truth to the terms of generic and indiscernible besides choosing as symbol for the generic term the female symbol (?). This article intends to unfold such concept, primarily aiming to explore this identification proposed by Badiou between the woman and the truth of a world. If, for Badiou, trueness and emptiness have in common the subtraction to knowledge, it does not mean that they identify with one another. Such distinction between trueness and emptiness can help us better discern between hysteria and feminineness by focusing not on the women’s eventual negativity character, but what is presented as subversive in her, by demonstrating an assertion besides the predicative snares of any society.

Keywords: Truth. Woman. Femininity. Generic. Indiscernible.


Resumen

El concepto clave de toda la teoría de Alain Badiou es el "procedimiento genérico", identificado por él como la forma en que una verdad de un determinado mundo se hace presentar en este. Él aproxima el concepto de verdad a los términos genérico e indiscernible, y elije como símbolo para el término genérico la marca de lo femenino (?). Este artículo tiene la intención de desplegar este concepto, teniendo como objetivo principal explorar esta identificación propuesta por Badiou entre la mujer y la verdad de un mundo. Aunque, para Badiou, la verdad y el vacío tienen en común la sustracción al saber, no por ello se identifican. Tal distinción entre verdad y vacío nos puede auxiliar para un mejor discernimiento entre histeria y feminidad, al privilegiar en la mujer, no su eventual carácter de negatividad, sino lo que en ella se presenta como subversivo, al transmitir una afirmación que escapa a las trampas predicativas de no importa cual sociedad.

Palabras clave: Verdad. Mujer. Feminidad. Genérico. Indiscernible.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Em O ser e o evento, Badiou (1996) nos propõe a verdade como sendo uma parte indiscernível da situação, solo do que ele nomeou por procedimento genérico. O passo do sujeito seria o forçamento da apresentação desse inapresentável.

Badiou coloca os termos "genérico" e "indiscernível" quase que comutáveis, porém pontua uma distinção importante. Indiscernível se realça pelo seu caráter negativo, de subtração ao saber, ao passo que genérico

Designará positivamente que o que não se deixa discernir é, na realidade, a verdade geral de uma situação, verdade de seu ser próprio, considerada como fundamento de todo saber por vir. "Genérico" põe em evidência a função de verdade do indiscernível. A negação implicada em "indiscernível", contudo, conserva isto de essencial - que uma verdade é sempre o que faz furo num saber (Badiou, 1996, p. 259).

Essa parte indiscernível pode ser extrínseca àquele mundo, no sentido de, apesar de fazer parte dele, não se apresenta como elemento; ou pode vir a tratarse de uma indiscernibilidade intrínseca, em que essa parte passa a se apresentar como algo existente na situação na qual é indiscernível. Essa segunda é aquela que nos interessa particularmente, pois significa o forçamento da apresentação daquilo que carrearia a verdade de um determinado mundo.

Badiou grafa por ? a parte genérica de um mundo qualquer, considerando ser esse símbolo do feminino o indiscernível intrínseco, ou a verdade, daquele universo. A suplementação do feminino seria o forçamento da apresentação imanente do indiscernível, fazendo-o existir como singularidade. Apagar a existência do feminino é tornar extrínseca a verdade, mesmo que esta permaneça sob a forma de uma inclusão (incluída do lado de fora, como os manicômios ou as histéricas de Charcot).

2. VERDADE E SINGULARIDADE

Em seu ser, a verdade é multiplicidade pura, não fazendo Um. Ela é um tipo específico de multiplicidade, desenvolvida pelo matemático Paul Cohen, e que Badiou propôs nomear por multiplicidade genérica:

[…] uma multiplicidade genérica é uma parte "anônima" desse mundo, uma parte que não corresponde a nenhum predicado explícito. Uma parte genérica é idêntica à situação inteira no seguinte sentido: os elementos dessa parte - os componentes de uma verdade - só tem como propriedade assinalável seu ser, ou seja, seu pertencimento à situação. É o que legitima o termo "genérico": uma verdade atesta no mundo a propriedade de ser desse mundo. Uma verdade tem por ser o gênero de ser de seu ser (Badiou, 2006, p. 45, tradução do autor).1

No que se refere a um mundo qualquer, sua verdade pode ser entendida como o conjunto que não se deixa apreender como unidade separada, tratando-se de uma multiplicidade em que os elementos não se deixam subsumir por qualquer predicação, não se cerceando em relação às restrições sábias daquela situação. O problema é que, não se localizando, ela se persevera como inexistente no mundo do qual supostamente é a verdade. Podemos discorrer teoricamente sobre ela, ou mesmo dar definições formais, matemáticas, do que seria seu ser, sem que isso implique em existências concretas. Se a verdade é inapresentável, sua localização no mundo do qual é a verdade está no registro do impossível. Para lidarmos com uma verdade, temos de nos haver com o impossível, ou com aquilo que Lacan, buscando Freud, aponta como implicando o registro do gozo.

No livro Logiques des mondes Badiou (2006) se propõe a formalizar o que distinguiria os mundos em que uma verdade se fez presente. Nós habitamos, potencialmente, uma infinidade de mundos. Há aqueles onde a verdade não se apresenta, e há outros, raros, onde a verdade, paradoxalmente, faz-se existir. Se a verdade pode ser entendida como o que faz furo no saber em vista de sua irredutível recusa em se deixar predicar, para que possamos diferenciar esses dois tipos de mundos, devemos nos haver com a hipótese de uma singularidade, ou seja, da apresentação paradoxal, no campo do saber, de um impossível a se apresentar. Em um mundo onde uma singularidade aparece, o que é outra forma de dizer que uma verdade se faz apresentar, esta se faz existir e se desdobra a partir do forçamento da apresentação paradoxal de algo que somente poderia existir como impasse no que se constitui como origem da consistência daquele mundo. Uma apresentação não apenas enigmática, mas que, a partir do momento em que ela, como verdade, é forçada a existir e a se produzir como consequência, o impacto de sua fugaz apresentação é tal que se torna impossível negligenciá-la, impedindo-a de voltar a se deixar dissolver em seu ser genérico. Passa a haver, a partir de então, uma irredutível insistência de seu aparecer, obrigando-a a ocupar seu lugar entre os objetos do mundo.

3. A VERDADE NÃO É O VAZIO

genérico é aquele múltiplo que tem sempre entre seus elementos algo que estará em interseção com qualquer particularidade existente naquele mundo. Isso significa que ele não apenas não se deixa cercear por nenhuma das dominações existentes, como também que inexistem dominações em que a interseção com ele seja um conjunto vazio. Toda e qualquer classe existente não conseguirá concebê-lo como algo estranho a si. Ele pode, assim, ser entendido como incomensuravelmente grande, pois deverá conter ao menos uma interseção possível com não importa qual propriedade detectável daquele universo, além de ser sempre imanente em relação ao mundo ao qual está incluso.

A verdade, dessa forma, não se confunde com o vazio (ausência de elementos), mesmo que concordemos que o vazio, em termos estruturais, possa ser entendido como aquilo que seria universalmente genérico para não importa qual situação. Entender a verdade de um mundo qualquer como se identificando com o vazio seria cair na histeria (que tem como ambição fazer existir o vazio como sendo a fundação de não importa qual afirmação). Já entendê-la como genérico é concebê-la como sendo a determinação (afirmação) que estaria na constituição de não importa qual elemento daquela situação, ou, em outras palavras, como o Outro daquele mundo. Seria, nesse segundo aspecto, entender a feminilidade como o que possibilitaria uma infinidade de encontros e construções que, num futuro suposto, totalizaria aquele universo.

A identificação do genérico com o vazio é típica das situações nas quais à verdade ainda não foi franqueada a existência. Após a intervenção que o nomeia, e o forçamento de sua apresentação, quando então podemos falar na existência de sujeitos, o genérico passa a ser concebido como sendo aquela determinação comum, e universal, a toda e qualquer particularidade que pertença àquele mundo. Ele faz interseção com não importa qual predicação existente, servindo de solo para que, de forma imanente à situação, decisões possam ser tomadas onde antes o saber estabelecido se via bloqueado. Essas escolhas não se dão propriamente pela exclusão de uma das possibilidades, mas pela prevalência daquela que, naquela localização, (re)coloca em cena o que tinha sido desclassificado pela hierarquização precedente, salvando, dessa forma, a verdade universal daquele mundo. Trata-se, nesse movimento, de uma pura afirmação, mesmo se, em consequência, negações venham factualmente a se colocar.

4. A MULHER COMO "NÃO UM"

Poderíamos pensar que a posição masculina clássica seria aquela que sustentaria a lei predicativa de um mundo qualquer, a partir do momento em que entendêssemos a predicação como um desvio da função fálica, quando desta excluímos o indiscernível/feminino. A predicação é o engodo essencial que anula o sujeito, ao reduzir o ponto impossível em que se escreveria uma universalidade singular a uma mera potência classificatória. Nas fórmulas da sexuação propostas por Lacan (1972-1973/1985)2 em O seminário, livro 20, encontramos o ? no lado feminino, e uma seta (função) em direção ao falo, localizado no lado masculino. Encontramos aí uma função que, partindo do não Todo feminino, excesso indiscernível que transborda em relação a qualquer possibilidade de unificação, operacionaliza-se, agora no lado masculino, pelo ?, que suporta o sujeito como significante, e que “bem se encarna também no S1” (Lacan, 1985, p. 107).

O falo, nesse sentido, é a forma propriamente dita com que a feminilidade se faz operacionalizar, como inscrição subvertedora do que se apresenta como lei transcendente, escapando à lógica predicativa e carreando o universal. Ou seja, se a mulher é a verdade, a apresentação que veicularia a afirmação infinita que ela carreia, somente é possível pela assunção de algo que conceda a essa verdade algum tipo de discernibilidade, mesmo que apenas operacional.

Para deixar mais claro o que está em questão, Badiou propõe que nós entendamos a mulher, ou a feminilidade, não propriamente como não Toda, mas como não Um, no sentido de se apresentar em relação à posição monoteísta de nossa civilização ocidental, que entende o homem no registro do Um, como sendo o que não se submete a esse princípio. A feminilidade como sendo o que fracassa a "forte afirmação do Um, do poder único, que caracteriza a posição masculina tradicional" (Badiou, 2013, tradução do autor).3 Ela é a prova cabal da inexistência de Deus ou, dizendo de forma mais apropriada, que não é necessário que Ele exista, que podemos tranquilamente passar sem sua suposição. Ela se apresenta como um processo, um sem lugar, um entre dois irredutível, "pela impossibilidade onde ela se encontra de sustentar verdadeiramente um único lugar" (Badiou, 2013, p. 12). Processo este que se pronuncia em ato nesse fracasso do Um.

5. MULHER: NEGAÇÃO OU SUBVERSÃO?

Segundo Badiou, a negação nada mais é do que a manutenção da lógica vigente, preservando-a na forma do seu reverso. Ao negar, permaneceríamos no campo do saber e de suas veridicidades. Se quisermos, no entanto, propor algo realmente novo e não apenas o seu oposto negativo, devemos sustentar uma afirmação singular, que teria existência própria, independente da primeira. Enquanto o oposto de uma veridicidade (que se apresenta como saber) é o falso, o oposto de uma verdade (que faz furo no saber) é a ausência da necessidade de afirmar. Não encontramos, no campo das verdades, a existência em si, ou o ser, do negativo:

A negação é referida aqui ao fato de nenhuma condição mais forte (mais precisa) do indiscernível forçar a afirmação a ser verídica. Ela é, portanto, sem substância, a inforçabilidade da afirmação. É um pouco evasiva, estando pendente não da necessidade da negação, mas da "não necessidade" da afirmação. O conceito da negação, no forçamento, tem alguma coisa de modal: é possível negar desde que não se seja obrigado a afirmar. Essa modalidade do negativo é característica da negação subjetiva, ou pós-eventural (Badiou, 1996, p. 325).

O feminino, nesse sentido, não se apresenta propriamente como negação, muito menos se identificaria com a pura negatividade, posição típica da histérica, que se coloca como recusa a qualquer inscrição proveniente do Outro. O escriturário Bartleby de Herman Melville seria outro bom exemplo dessa radical negatividade. Com sua famosa frase "Preferiria não", Bartleby se desvia de toda e qualquer determinação que lhe é imposta. Apesar de colocar em evidência o aspecto negativo da indiscernibilidade, ressaltando seu caráter de furo no saber, ele, porém, paralisa-se nesse puro negativismo. Aos olhos de Badiou, ao fixar-se nessa posição, chegando inclusive à morte por inanição, o escrivão põe em cena uma covardia essencial, recusando-se em dar o passo seguinte, o da afirmação da verdade inapreensível que ele potencialmente poderia veicular. Diferentemente desse clássico personagem da literatura, o genérico não seria propriamente uma recusa pura e simples em transitar pelas classificações, mesmo se a desconstituição destas venha em algum momento a se colocar como efeito de seu movimento. O feminino não rejeita as inscrições que o Outro lhe imputa, apenas evita que estas o cerceiem. Ele participa de todas as classes que se lhe apresentam, resistindo, porém, em se deixar limitar por elas. Se o obsessivo (principal desvio a que um homem pode se submeter) é aquele que se deixa apresentar como uma afirmação constrangida por uma transcendência que o submete, e a histérica está pronta a reafirmar a inconsistência de não importa qual afirmação, a feminilidade se caracteriza por ter a potencialidade de se desdobrar em uma afirmação sem limites, não cerceada por qualquer tipo de saber preexistente. O lugar que melhor assinala a posição da mulher em uma dada sociedade, e podemos situar aí o lugar da verdade, não é aquele que o social ou a tradição lhe imputa, mas, ao contrário, é aquele que se apresenta como deslocalizado em relação a estes que lhe foram outorgados. A mulher está no deslocamento, no entre dois, na passagem.

6. A POSIÇÃO HISTÉRICA

Ao propor a mulher como uma parte indiscernível da situação, o ato de fazê-la existir, forçando sua apresentação, coloca em questão a capacidade discriminatória da língua. Ao grifar o genérico com o símbolo feminino, Badiou coloca em realce o potencial subversivo da feminilidade, que, desautorizando o estabelecido, força a abertura de novas possibilidades.

Na histeria, poderíamos supor tratar-se da situação inicial, antes do forçamento de sua apresentação. Ela se colocaria como puro vazio, produzindo-se como efeito no registro do impasse, como ameaça destrutiva das referências estabelecidas. O processo de uma análise, nesse caso, teria como objetivo operacionalizar isso que se apresenta como impasse, dando a ele instrumentos para que o feminino se inscreva como procedimento, como construção. Da destruição passaríamos a entender a feminilidade agora como processo, em que seu ato apresentar-seia como subversão. Não há, na histeria, a abertura infinita de possibilidades de uma inscrição a ser explorada, mas a pura desautorização da possibilidade de não importa qual inscrição. Faltaria a ela o passo seguinte, em que a inclusão indiscernível é forçada a existir, mesmo que preservando sua indiscernibilidade. Teríamos, nesse segundo passo, a possibilidade da operacionalização do indiscernível. Se, na primeira situação, o indiscernível se apresenta como falta, ou puro vazio, na segunda ele se materializa como um excesso em relação à potência discriminatória de uma dada língua, forçando sua subversão. Da pura desautorização que rege o agir imobilizante da histérica, temos, na feminilidade, o subversivo movimento de construção de uma verdade a ser produzida.

O feminino, ou a afirmação infinita e indiscernível de uma verdade, não implica necessariamente destruição. A destruição é algo referido ao saber, não à verdade propriamente dita (Badiou, 2012).

7. O PASSO DO SUJEITO

O procedimento genérico de Badiou, no qual encontraríamos o feminino, não destrói, dessa forma, a consistência de uma situação, apenas permite que, a partir do indiscernível que ele é, situações não decidíveis previamente possam ser decididas, possibilitando a suplementação de novas veridicidades não pensáveis anteriormente, e criando, dessa forma, uma explosão de possibilidades, a princípio infinita, em um campo anteriormente marcado pela finitude. O sujeito, como aquele que se situa "entre uma parte indiscernível de uma situação e o forçamento de um enunciado cuja veridicidade é indecidível nessa situação" (Badiou, 1996, p. 326), possibilita, tendo como solo o indiscernível e como ação a sustentação enigmática de uma decisão, o desdobramento local de uma verdade.

A decisão de um indecidível, passo por excelência do sujeito, franqueia desdobramentos onde outrora era impasse, viabilizando com que explorações antes impensáveis possam ser testadas, no território, sem que seu acabamento se coloque como condição.

Quanto mais fundamental for um acontecimento em relação à escala de valores que rege toda a situação, mais fundamental para aquela situação será o procedimento genérico que dele se desencadeie. Uma decisão que toque realmente no fundamental de uma situação, e que seja imanente a esta (não desconstitua sua prévia consistência, ou seja, não destrua os axiomas principais que davam veridicidade à situação como um todo), reorganiza proximidades e movimentos, invertendo a escala de valores que servia de referência para sua finitização. O forçamento local de sua existência produzirá como efeito uma transformação global da situação.

8. O SÍMBOLO ?

Para Badiou, trata-se, neste símbolo ?, da construção ontológica "do conceito do ser múltiplo de toda verdade" (Badiou, 1996, p. 280), e não do estabelecimento de "uma-verdade". A mulher não é discernível ou separável como elemento. Na verdade, por não se apresentar em si, a ela o termo elemento não é apropriado, somente lhe cabendo tratar-se de uma parte da situação que não se subsume ao imperativo do Um, persistindo como o que restou da indiscernibilidade originária, ou como aquilo que persiste como puro ser.

Este símbolo,?, é a antecipação de uma nomeação, uma letra suplementar que designa algo absolutamente genérico na situação, não sendo portador de nenhuma particularidade que o identifique. Ele é a existência por vir do que, contingencialmente, pode vir a se apresentar como verdade de toda a situação. "O preenchimento eventual de sua ausência", o qual não é uma necessidade para a situação, podendo ou não vir a acontecer, somente pode se dar por meio de um procedimento, "o qual deve operar no interior do nomeável da situação fundamental" (Badiou, 1996, p. 280). Se, para Lacan, em uma de suas máximas, a mulher não existe, a feminilidade não é algo dado, mas se trata de uma construção a ser operacionalizada localmente, no território, por um eventual sujeito que venha a forçar a apresentação paradoxal da indiscernível verdade daquele mundo.

9. A MULHER, DEUS E O ESTADO

Na adjunção do indiscernível (?), que traz para o território um excesso antes entendido como tendo uma referência transcendente, reduz-se ou ausentifica-se essa transcendência, mostrando que a quantidade, em si, além de ser imanente à situação, é totalmente arbitrária, e sua contenção não passa de uma ilusão apaziguadora. Fazer existir a mulher, segundo Badiou (2013), redunda na desqualificação de Deus. Não é por menos que, nas civilizações tradicionais, a mulher é desvalorizada, conduzida ao silêncio, em alguns casos, escondidas por burcas e véus, na tentativa de fazer inexistir aquilo que faria estremecer a base da tradição. Podemos entender, assim, como o casamento do obsessivo com a histérica possa ser tão profícuo em combates e disputas, posto que a existência de um implica na inexistência do outro, já que o obsessivo, como bem pontuou Freud, é a corporificação da lógica de Deus, ou da transcendência.

Mas o efeito subvertedor da mulher não se restringe às entidades divinas. A ausentificação das transcendências implica na desqualificação do próprio Estado, por imanentizar um infinito antes posto como referenciado em extratos superiores à nossa existência mundana. O infinito da situação, antes ficticiamente contido por meio de hierarquizações, é reduzido a um infinito imanente, que passa a existir localmente, no território, mesmo que seja por meio de uma apresentação paradoxal, uma localização deslocalizada.

10. A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Ao mudarmos da concepção de vazio para a de genérico, passamos a entender aquilo que se apresenta como universal não como sendo a ausência completa de elementos (vazio), mas uma determinação, ou um múltiplo, cujos elementos são inapresentáveis por serem indiscerníveis para um habitante daquela situação. Na primeira concepção, o Outro se coloca no lugar do vazio, enquanto que, na segunda, o Outro é aquele múltiplo que, por ser comum a tudo que se apresenta (genérico), não pode se discernir como tal. Trabalharmos com a concepção de vazio ou de genérico leva-nos a lugares distintos. Enquanto que, na primeira concepção, o vazio é fundador, na segunda, temos como fundação uma afirmação, mesmo que esta seja indiscernível, posto que genérica.

Extrapolando o que foi proposto acima com o tema em questão neste texto, ou seja, com o feminino, se entendêssemos o lugar da mulher como se restringindo à concepção do vazio, posição por excelência da histeria, somente caberia a essa a desconstituição de não importa qual afirmação, pois, para ela, toda e qualquer afirmação nada mais seria do que a tentativa de escamotear o vazio que nos serviria de sustentação. Já na segunda acepção, em que o símbolo ? corresponderia à marca do genérico, mesmo que a mulher se operacionalize como furo em todas as afirmações particulares que se apresentem, ela não o fará pela descrença na possibilidade de afirmar, mas por entender que a única afirmação que realmente pode se colocar como universal não é passível de ser discernida pelas ferramentas particulares da situação da qual pertence, tratandose de um saber universal a ser construído, passo a passo, localmente, em um militante processo que se dá à revelia das particularidades estabelecidas.

Por participar de todo e qualquer elemento que se apresente, e entendendose que a apresentação é uma enumeração potencialmente infinita, portanto inquantificável para um habitante da situação, o genérico, apesar de se dar localmente, está sempre em excesso, e sua quantidade é incomensurável. Ele não é passível de ser contido pelo Estado, estrutura que se propõe ficticiamente como transcendente, capaz de mensurar e conter tudo o que se apresenta. A quantidade não passa de um fetiche de nossa pretensa objetividade, sendo na verdade totalmente evasiva e não contida nos ilusórios recipientes em que a condicionamos. Nada melhor do que a mulher para nos falar desse quantitativo não mensurável, que extravasa, invade e ultrapassa as cuidadosas defesas de nossa consciência.

O feminino é, dessa forma, aquilo que coloca em xeque a onipotência de não importa qual transcendência, denunciando a ficção que está na base de sua constituição.

REFERÊNCIAS

Badiou, A. (1996). O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil.         [ Links ]

Badiou, A. (2012, 8 novembro). From logic to anthropology, or affirmative dialectics,/. [YouTube]. [Conferência realizada na European Graduate School, Leik-Stadt, Suíça]. Recuperado a partir de de https://www.youtube.com/ watch?v=wczfhXVYbxg

Badiou, A. (2013, 3 maio). Séminaire d’Alain Badiou (2012-2013): L’immanence des vérités. Recuperado a partir de http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/12-13. htm        [ Links ]

Lacan, J. (1972-1973). O seminário: Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (Publicado originalmente em 1972-1973).         [ Links ]

 

 

Texto recebido em 29 de julho de 2014 e aprovado para publicação em 27 de agosto de 2014.

 

 

*Doutor em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2001), mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (1996), graduado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (1983). Professor associado e orientador de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da UFMG, área de Psicanálise e Psicopatologia.E-mail: oswaldofranca@yahoo.com.
1 "[…] une multiplicité générique est une partie "anonyme" de ce monde, une partie qui ne correspond à aucun prédicat explicite. Une partie générique est identique à la situation tout entière au sens suivant: les éléments de cette partie _ les composantes d’une vérité _ n’ont comme propriété assignable que leur être, soit leur appartenance à la situation. C’est ce qui légitime le mot "générique": une vérité ateste dans un monde la propriété d’être de ce monde. Une vérité a pour être le genre d’être de son être" (Badiou, 2006, p. 45).
2 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
3"[…] la forte affirmation de l’Un, du pouvoir unique, qui caractérise la position masculine traditionnelle" (Badiou, 2013).

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