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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p687-706 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n2p687-706

 

A violência sob o olhar do adolescente autor de ato infracional: reflexões fenomenológicoexistenciais

 

The violence under the eyes of the adolescent author of an infraction: phenomenological-existential reflections

 

La violencia bajo la mirada de adolescente autor de infracción: reflexiones fenomenológico-existenciales

 

 

Kaynelly Souza Melo*; Elza Dutra**

 

 


Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo compreender como adolescentes autores de atos infracionais experienciam a violência, sob a ótica da analítica existencial heideggeriana, utilizando como instrumento metodológico a narrativa. A interpretação foi feita com base nos sentidos que emergiram na experiência narrada e no diálogo entre algumas noções heideggerianas. Os relatos mostraram que, desde a infância desses adolescentes, a violência está presente, tendo sido observada na própria família. Para eles, o comportamento violento representa uma forma de impor respeito e admiração, podendo ser interpretados como uma expressão das relações entre o ser adolescente e o mundo que caracteriza o seu contexto de vida. Ao final, espera-se que este estudo possa contribuir para uma maior compreensão da experiência de violência sob o olhar do adolescente e, sobretudo, para promover abertura a possíveis ações diante da necessidade de prevenir o envolvimento de jovens nesse contexto.

Palavras-chave: Fenomenologia hermenêutica. Adolescente. Violência. Martin Heidegger.


Abstract

This research aims at comprehending how young offenders experience violence, under the perspective of Heidegger’s existential analytic, using narrative as methodological device. The interpretation was made from the senses that emerged on the narrated experience and from the dialogue between some heideggerian notions. The reports showed that violence exists since the childhood of these teenagers, and was witnessed in their own families. For them, violent behavior represents a form of imposing respect and admiration, and can be interpreted as an expression of the relations between being a teenager and the world that characterizes its own context of life. At the end, it is expected that this study contributes for a major comprehension of violence experience under teenagers’ look. Especially, it aims at promoting the opening of possibilities for favoring actions in order to prevent the involvement of teenagers in this context.

Keywords: Hermeneutic phenomenology. Teenager. Violence. Martin Heidegger.


Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo comprender cómo los adolescentes autores de infracciones experimentan la violencia, desde la perspectiva analítico-existencial de Heidegger, utilizando la narrativa como herramienta metodológica. La interpretación se hizo a partir de los significados que emergieron en la experiencia narrada y en el diálogo entre algunas nociones heideggerianas. Los relatos muestran que, desde la infancia de esos adolescentes, la violencia está presente, habiendo sido observada en la propia familia. Para ellos, la conducta violenta es una manera de ganarse el respeto y la admiración, y puede ser interpretada como una expresión de la relación entre el adolescente y el mundo que caracteriza su contexto de vida. Al final, se espera que este estudio contribuya a una mayor comprensión de la experiencia de la violencia desde la mirada del adolescente y, por encima de todo, fomentar la apertura a posibles acciones ante la necesidad de prevenir la participación de los jóvenes en este contexto.

Palabras clave: Fenomenología hermenéutica. Adolescente. Violencia. Martin Heidegger.

1. INTRODUÇÃO

Este estudo se propôs a abordar a experiência de violência de adolescentes autores de atos infracionais, egressos de medidas socioeducativas de privação/ restrição de liberdade. Partindo de uma perspectiva fenomenológicoexistencial, pretendeu-se ouvir os relatos desses jovens sobre suas experiências no contexto de violência no qual essa parcela da população está inserida. Assim, esta pesquisa teve como objetivo compreender como os adolescentes autores de atos infracionais experienciam a violência. Como objetivos específicos, almejou-se investigar quais os aspectos que permeiam a experiência de violar e ser violado; explicitar as implicações do cotidiano de confinamento para a vida dos entrevistados; investigar como os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estão sendo aplicados, com base nas narrativas dos participantes da pesquisa.

A violência é um termo complexo e com inúmeras definições e teorias que buscam explicação para esse fenômeno. Neste trabalho, a violência é entendida como um fenômeno multifacetado, temporal e histórico, nutrido e modelado com base em aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que se traduzem nas relações cotidianas entre os seres, a sociedade e o mundo.

A crescente violência no segmento juvenil é apresentada pelo levantamento feito em dados do Mapa da Violência (Waiselfisz, 2012). O documento revela um aumento de 150% na taxa de homicídio da população com idades entre 15 e 24 anos, comparada à taxa da população não jovem (de 0 a 14 e acima de 25 anos), no período de 2000 a 2010, no Brasil. Além do mais, o estudo ressalta o elevado percentual de morte masculina: 95%. No Estado do Rio Grande do Norte, os dados não destoam do resto do País.

Com base na estatística acima apresentada, surgiram algumas questões norteadoras desta pesquisa. Como os adolescentes autores de atos infracionais experienciam a violência em seu cotidiano? Como o jovem se percebe no mundo e num contexto de violência, seja como agente, expectador ou vítima? Quais os motivos favorecedores da sua entrada na violência? Quais são seus projetos? É nessa direção que este estudo se dispõe a trazer contribuições para as discussões que vêm sendo travadas no campo da saúde e segurança pública, nos quais se problematiza acerca dos motivos que levam os adolescentes a se envolverem em situações de violência. Acima de tudo, este estudo pode contribuir para reflexões, tanto da sociedade em geral como para as práticas em Psicologia e para a academia, sobre essa parcela da população, as suas necessidades e existências.

2. PENSANDO O SER ADOLESCENTE COM BASE NA ANALÍTICA EXISTENCIAL: BREVES APONTAMENTOS

O ECA (Lei Federal nº 8069,1990) considera o jovem até 18 anos como inimputável, ou seja, todo adolescente que porventura praticar um ato infracional não pode ser julgado como se fosse adulto, segundo doutrina que estabelece a criança e o adolescente como sujeitos de direito à proteção integral, o que não implica deixar o autor de ato infracional isento de consequências, mas o submeter às normas de legislação especial (Gallo & Williams, 2008).

Neste trabalho, entende-se a adolescência para além de uma fase de desenvolvimento, não somente como um período de transição do ser criança para o ser adulto, mas também como uma construção única, permeada por dilemas, questões, vivências singulares e variáveis de pessoa para pessoa. O adolescer se desvela como um momento da vida em que as possibilidades de ser e de existir no mundo em relação a um contexto social e histórico se encontram, ainda, mais exacerbadas na trama que constitui o ser no mundo (Azevedo & Dutra, 2012).

Fundamentado na perspectiva fenomenológico-existencial, Casanova (2009) afirma que uma das condições existenciais do ser-aí é a impossibilidade de fixar o ser em uma figura específica, ou seja, para entender o ser, faz-se necessário compreender sua dinamicidade e sua constituição em diversos modos de ser. Ou seja, ser adolescente é se deparar constantemente com a fluidez e não fixação das relações e sentidos. Sendo esses modos de ser correlacionados com o mundo, o Dasein se concretiza a partir das possibilidades que lhes são abertas e apresentadas por seu mundo. Jogado nessa imensidão de possibilidades e na facticidade do mundo, o ser-aí, na maioria das vezes, vê-se absorvido no campo dos entes, da impessoalidade, repetindo comportamentos anteriormente postos, como a disseminação da violência, assumindo, desse modo, comportamentos práticos em relação aos objetos, às coisas e aos demais entes e adotando as relações de ocupação. Jogado no mundo e imerso na imensidão das possibilidades, o ser-aí se deixa levar pelos movimentos do mundo, numa total absorção, sem se dar conta das possibilidades de seu "poder-ser" que lhe é próprio. Muitas vezes, o ser deixa-se levar pelo impessoal e se distancia de si, deparando-se com a angústia, que nasce como um desabrochar do próprio caráter de "poder-ser", sendo ela constitutiva do ser (Heidegger, 1927/2011)1 .

A questão a ser refletida está no posicionamento de Spanoudis (1981), ao dizer que o cotidiano do ser-aí é marcado pelo impessoal. Contudo, com o advento da tecnologia e a exacerbação do consumo, as preferências da opinião pública alcançaram um poder de imposição pelos meios de comunicação. Cada vez mais, o modo de ser dos homens está direcionado a esses valores e discursos massificados. O homem fica mais distante, protegido e acomodado com o que recebe, absorvendo sem refletir sobre o que o mundo oferece. Assim, ninguém se sente responsável, pois a responsabilidade estará sempre no outro. Ressalte-se que não se trata de um modo de ser vazio, mas sim um que acomoda a todos que estão distantes de si.

A filosofia de Heidegger foi elaborada com base nos questionamentos lançados ao mundo por esse pensador, emergidos a partir de questões do início do século XX. Contudo esse modo de pensar o homem e suas relações se faz valer no mundo presente, quando se abre espaço para refletir sobre a realidade atual das relações na sociedade contemporânea, incluindo-se a brasileira, que remetem a esse modo de ser e estar no mundo descrito por esse filósofo.

É como destacam Trassi e Malsavi (2010), quando afirmam que comumente se divulga a responsabilização de um problema social de um comportamento violento do adolescente como sendo, sempre, culpa deste. Com esse discurso, os demais desconsideram as conjunturas macrossociais e políticas, como a nova ordem econômica mundial, as mudanças tecnológicas, os padrões de relacionamento, consequências dos seus próprios atos e ações, e foca a responsabilidade sempre no individual. Assim, a sociedade se sente isenta da responsabilidade dos problemas que lhe afligem, alegando serem resultados de "patologias", "desestrutura familiar", "vícios de drogas", "pais ausentes". Essa busca por culpados e razões externas faz com que todos se distanciem da condição existencial de ser no mundo com os outros, mantendo-se, assim, na propagação do discurso do impessoal. Perder-se no impessoal significa manter-se nos modos de distorção e fechamento por meio da falação, da curiosidade e da ambiguidade (Heidegger, 2011).

Desse modo, como um ser lançado no mundo, o ser humano já se encontra imerso nos caminhos da impessoalidade, cabendo-lhe, apenas, buscar o retorno a si mesmo e sair do discurso sedimentado, fazendo um movimento de questionar o que já está posto e buscar a ele mesmo. Mas, como a impessoalidade é entendida como um modo de ser, existir já é de início um distanciar-se do próprio "poderser". Contudo o ser-aí pode suspender as possibilidades de "poder-ser" e adquirir um modo de ser baseado na aparente consistência, promovendo em si uma tranquilidade (Casanova, 2009).

O que se percebe é uma clara distinção, socialmente instituída, entre ser adolescente pobre e ser adolescente rico. Contudo, todo adolescente ama, estuda, briga, trabalha, batalha e se transforma. Além disso, ele precisa lutar com a adolescência, uma representação um tanto quanto monstruosa, sustentada pela imaginação de todos. Ou seja, partimos de uma perspectiva teórica na qual elaborar conclusões sobre a concepção atual de infância e da adolescência na contemporaneidade se torna uma tarefa impossível de ser realizada. A compreensão da impossibilidade de se tomarem as grandes narrativas como verdades cristalizadas, a certeza da multiplicidade de vivências e de seus significados que se ancoram nas também múltiplas historicidades, a aceitação da parcialidade das verdades são elementos que não podem ser deixados de lado (Frota, A. 2007).

3. TECENDO AS HISTÓRIAS DA PESQUISA

A pesquisa apresentada aqui, de inspiração fenomenológico-existencial, situa-se no âmbito das pesquisas qualitativas, que visam a alcançar os sentidos e significados atribuídos pelos colaboradores da pesquisa ao fenômeno estudado, como pensa Minayo (2000, p. 22):

Considerar o sujeito de estudo: gente, em determinada condição social, pertencente a determinado grupo social ou classe com suas crenças, valores e significados. Implica também considerar que o objeto das ciências é complexo, contraditório, inacabado e em permanente construção.

A narrativa, estratégia de pesquisa adotada neste estudo, tem sido utilizada em várias pesquisas (Azevedo & Dutra, 2012; Dutra, 2002; Maux & Dutra, 2009; Schmidt, 1990). Conforme pensa Dutra (2002), ao narrar a sua experiência, a pessoa "nos introduz na sua vida, sensibilizando-nos e coloca-nos como participantes de sua experiência, fazendo do pesquisador um sujeito dessa experiência" (p. 371). Compreender a experiência do outro, tal como no estudo aqui relatado,

Representa uma tarefa de extrema complexidade, uma vez que o homem constitui-se numa subjetividade que pensa, sente e tem na linguagem a expressão da sua existência. […] A narrativa, portanto, ao considerar essa dimensão do mundo vivido, nos sinaliza com a possibilidade de nos aproximarmos do outro, sem que se perca a principal característica que o distingue no mundo, que é a existência (Dutra, 2002, pp. 377-378).

A entrevista-narrativa foi realizada de forma individual, gravada em áudio e conduzida pela pesquisadora, e teve como ponto de partida uma questão inicial: "Me fale um pouco sobre suas experiências de violência[…]".

As entrevistas2 foram realizadas com dois adolescentes de 16 e 17 anos, egressos de medida socioeducativa de restrição de liberdade. Estes foram acessados por meio do Programa de Encaminhamento ao Mercado de Trabalho (Proent), projeto vinculado à Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (Fundac/ RN) e que tem como atividade principal servir de intermédio entre o jovem e as possibilidades de estágio e atuação profissional. Os adolescentes foram apresentados à pesquisadora, que lhes informou sobre a pesquisa e convidou-os a participarem. Durante a realização da pesquisa, todos os procedimentos éticos foram seguidos, de acordo com as recomendações da Associação Americana de Psicologia (APA), como a solicitação da assinatura dos adolescentes, bem como dos seus responsáveis, do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Após as entrevistas, a pesquisadora registrou as informações absorvidas das narrativas utilizando um diário de registros e impressões que serviu para interpretação e análise.

Após as transcrições das narrativas, estas foram interpretadas a partir dos sentidos que se revelaram no discurso, das impressões da pesquisadora e do diálogo com os autores, tal como sugerem Maux e Dutra (2009). Dessa forma, com base nos sentidos e das vivências do que se interroga, pode-se chegar a um maior desvelamento do fenômeno em questão, no sentido de "ampliar a compreensão do aspecto da existência humana a que se lançou" (Bruns & Trindade, 2001, p. 80). Por fim, após a leitura e interpretação das narrativas, foi promovido um diálogo dos relatos com a revisão bibliográfica, os pressupostos teóricos e as impressões pessoais do pesquisador, buscando alcançar os objetivos do trabalho e responder às questões anteriormente levantadas sobre o fenômeno de como os adolescentes autores de atos infracionais vivenciam a violência em seu cotidiano a partir de suas experiências. Essas experiências, sentidos e impressões, serão acessadas pelo leitor a partir de agora, com a apresentação do diário de campo da pesquisadora e com as narrativas dos adolescentes.

O primeiro, Rauan, 3 16 anos, filho mais novo de três, nasceu e cresceu numa cidade do interior do Rio Grande do Norte, com cerca de 40 mil habitantes. Atualmente mora com sua mãe em Natal, capital do Estado, e está cursando o oitavo ano do ensino fundamental. Cumpriu nove meses de medida socioeducativa de semiliberdade por agressão e tentativa de homicídio. Obteve redução de medida devido a seu bom comportamento e hoje cumpre medida de liberdade assistida, tendo como dever, delegado pelo juiz, apresentar-se a cada três meses no Fórum, expondo o boletim escolar com boas notas. Viveu com seus pais e irmãs no interior até os 11 anos, quando houve a separação de seus genitores. Com isso, sua mãe decidiu ir morar na capital do Estado levando as duas filhas mais velhas e deixando o menino mais novo com o pai. Essa decisão foi tomada devido à necessidade de se manter na capital, pois suas filhas mais velhas já podiam trabalhar em casa de família e assim ajudá-la nas despesas, enquanto o mais novo ficaria na companhia do pai. Com a separação e a partida da mãe, Rauan relata que seu pai teve depressão e passou a viver em cima de uma cama. Deixou de trabalhar, de comer, somente fazia fumar cigarro e dormir. Não dava a devida atenção ao filho e foi a partir dessas circunstâncias que Rauan começou a se envolver com drogas e a praticar crimes para manter o seu vício.

A segunda, Rayane, 17 anos, filha única de seus pais, porém com mais três irmãos (dois por parte da mãe e um do pai), nasceu e cresceu em Natal e hoje mora com a mãe, o padrasto e dois irmãos. Rayane relata que, desde os 6 anos, gostava de arrumar briga e confusão na escola e em casa com a mãe. Por causa desses conflitos, quando ela tinha 8 anos, sua mãe acionou o Conselho Tutelar e solicitou que esse órgão encaminhasse sua filha para a Casa de Passagem (instituição que acolhe crianças em situação de risco e violência). Rayane foi destituída da mãe e acolhida pela Casa de Passagem II, que abriga crianças de 7 a 12 anos e depois foi para a Casa de Passagem III, destinada a adolescentes de 12 a 18 anos. Aos 14 anos, Rayane foi encaminhada para o Centro Educacional (CEDUC) da Fundac/RN, acusada de agredir um funcionário da casa e por danos ao patrimônio público, cumprindo sete meses de medida socioeducativa de internação. Hoje, Rayane cumpre medida de liberdade assistida e faz aulas de violão. Ela foi a primeira adolescente do Estado que cumpria medida socioeducativa de internação e estudava, isso devido a seus esforços e articulações com as autoridades competentes, já que não era oferecido aos adolescentes internos educação escolar. Ela hoje está cursando o nono ano do ensino fundamental e trabalha como estagiária num órgão do governo do Estado do Rio Grande do Norte, além de ser representante oficial dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Estado.

As narrativas tiveram como ponto inicial a possibilidade de relato das experiências de violência que os próprios adolescentes já tinham vivenciado. Os dois começaram pela violência que cometeram antes de ir para os Ceduc. "O que aconteceu foi que eu estudava num colégio do interior e tinha um rapaz de 23 anos de idade que bagunçava muito comigo, dizia que ia me bater. E o que aconteceu foi que eu furei ele com a faca" (Rauan). "Antes de eu ir para o Ceduc, eu era muito violenta, quebrava cadeira. O povo falava comigo, e eu não escutava ninguém. Eu era muito estressada, eu queria logo bater nas pessoas, quebrar as coisas na cabeça, eu era ruim naquele tempo" (Rayane).

Os dois relataram essas experiências com naturalidade e tranquilidade, como parte integrante e constitutiva de si e da história de cada um. Narravam com detalhes os fatos, as circunstâncias e os sentimentos envolvidos nesse momento, destacando-os como cruciais para o crescimento e mudança de atitude. Assumiam, assim, a responsabilidade de suas atitudes, mas, ao mesmo tempo, evocavam as suas peculiaridades familiares como parte integrante dos seus atos. Contudo reduzir a existência desses seres a esse fato narrado seria reduzi-la apenas a um momento. Como destaca Heidegger (2011) na sua analítica existencial, o Dasein enquanto ser-aí se apresenta como um ser de possibilidades. Ou seja, não é possível que se encontre uma resposta ou um único resultado que trace o perfil, um comportamento previsível, um fato determinante na existência do ser, muito menos que produza um adolescente violento. Do mesmo modo, é impossível determinar as circunstâncias que levaram esses adolescentes a cometer delitos, aliados a diferentes modos de ser e estar no mundo, considerando as diferentes histórias que revelam os sentidos e modos de ser que perpassam a existência desses indivíduos. Deve-se, portanto, romper fronteiras de conceitos preestabelecidos para dar margem a cada detalhe narrado, cada fato exposto por esses jovens e compreender as suas experiências.

É possível pensar que esses adolescentes, por suas histórias de vida, já estariam presos a um contexto de violência? Barus-Michel (2008) traça uma reflexão sobre o destino, palavra definida como a fatalidade a que estariam sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo. Muitas vezes, o destino é tido como o responsável por todos os acontecimentos e percalços do homem, sendo utilizado como desculpa pelas atitudes e funcionando como motivador dos próprios comportamentos no âmbito do individual, além de servir como resposta rápida e tranquilizadora de toda a sociedade, quando esta se defronta com acontecimentos que provocam mobilização e são realizados por outro. Ou seja, por vezes, ocorre de demandar à genética explicações sobre certas características individuais, socialmente incômodas, se estas seriam determinadas por anomalias ou particularidades ligadas aos genes, como é o caso do comportamento violento dos adolescentes. Assim, retira-se o fardo da sociedade e deposita-se a responsabilidade em um conceito pronto e imposto, o destino de violência dos adolescentes.

Contudo esses adolescentes revelaram, em suas narrativas, uma proximidade e constante vinculação das suas ações e experiências com a violência mais além do que algo predeterminado. Uma violência que se apresenta e pulsa no cotidiano de cada um deles, presente nas famílias, na pobreza, no abandono, na luta pela sobrevivência, nos desejos não satisfeitos, na falta de liberdade, na falta de um direcionamento do existir. Sentimentos e situações que ampliam cada vez mais a angústia, a ansiedade, a incerteza, a insegurança e, às vezes, o seu próprio poder, que se apresentam mediante os mais diversos tipos de violência (Frota T., 2007).

Rauan, narrando sua trajetória até seu primeiro contato com as drogas, destaca a separação dos pais como fator importante.

Antes era tudo bem. A gente era evangélico, era tranquilo, foi uma infância boa. Depois da separação, meu pai ficou muito mal, começou a fumar cigarro, ficava só deitado, não comia, angustiado. Foi a partir desse momento que eu fiquei livre, solto, não tinha alguém que cuidasse bem de mim, né? E foi a partir daí que eu comecei (Rauan).

Já Rayane descreve o seu dia a dia, em casa e na escola, como motivador e reforçador para seus comportamentos violentos.

Desde os seis anos que eu brigo. Na escola eu batia nos meninos. Quando eu fazia as coisas erradas no colégio, minha mãe dava em mim, dava em mim, e era pior, porque, quando eu voltava, fazia pior. Ficava irada com ela e aí eu fugia de casa, chegava no outro dia (Rayane).

A partir das relações estabelecidas ao longo da vida desses adolescentes, cabe aqui a construção de uma reflexão sobre o cuidado em Heidegger (2011). Segundo os escritos desse autor, o ser-aí se configura a partir da sua relação com os demais entes e o mundo, na maioria das vezes, absorvendo as orientações dadas pelo mundo circundante. Essas relações, em suma, são pautadas pelo conceito de utensílio e uso, ou seja, o ser se relaciona com os entes como utensílios dotados de uma funcionalidade, assumindo um comportamento prático com relação aos objetos e as coisas (Casanova, 2009).

Quando as relações acontecem entre os seres, o cuidado ocorre na forma de solicitude (Fürsorge). O conceito de coexistência remete sempre para o ser-aí do outro. Desse modo, corresponde à relação que o ser-aí estabelece com outro ser-aí. Não é possível ocupar-se com outro ser-aí, pois ele não é um utensílio (Almeida, 2008).

Refletindo sobre as relações vivenciadas por esses adolescentes, destacam-se as relações familiares frágeis nas quais os próprios filhos se sentiram desalojados e desprovidos de atenção paternal e maternal. Não cabe julgar esses pais, acusandoos de abandono ou egoísmo, talvez suas angústias e conflitos pessoais ressoassem nos seus comportamentos para com seus filhos. Por exemplo, quando o pai, imerso no seu sofrimento diante da separação, não podia oferecer a devida atenção para seu filho. Quando a mãe, abandonada pelo seu marido, sustentando sua filha sozinha, não via alternativa a não ser agir de forma violenta com esta. Eles também estavam cuidando, relacionando-se com seus filhos, de forma própria. Embora seja possível uma compreensão com relação à situação dos pais, o que se viu foi que, com relação ao amparo dessas famílias para com as crianças, não havia um continente, um suporte, e assim a vida deles ganhou um sentido em direção a uma revolta de vida.

Fernandes (2011) afirma que cada eu é um mundo, não um mundo fechado em si mesmo, mas um mundo de abertura, disposição e compreensão. Sendo este sempre aberto para o outro, que também exerce um papel de modelador e constituinte desse mundo; ou seja, qualquer mundo é, na verdade, um ser-com de muitos mundos. Heidegger destaca que as relações são baseadas no "ser no mundo com os outros" e que essa relação se revela nas inúmeras e constantes relações do Dasein e os demais entes. Essas relações podem ser entendidas de duas formas diferentes, por meio do cuidado. A palavra "cuidado" (Sorge) é usada para expressar essa característica ontológica do Dasein de estar sempre referido a outro ente, relacionando-se e revelando-se por meio da abertura de sentido. O modo das relações com os "entes cujo modo de ser é simplesmente dado" (Vorhandenheit) foi denominado por Heidegger de "ocupação" (Besorgen), e o modo das relações com os entes também dotados do seu modo de ser, de "preocupação" (Fürsorge). Destaca-se que, de acordo com a analítica existencial heideggeriana, o modo mais imediato de o Dasein se relacionar com os outros entes se dá sempre por meio da ocupação, do manuseio e uso, subordinados ao "para-que" dos instrumentos (Sá, 2010). Vale lembrar que as ideias de Heidegger contidas em sua ontologia, a analítica da existência, estão sendo pensadas nesta pesquisa no seu sentido ôntico, de modo que se constituem como ideias inspiradoras para uma interpretação das experiências aqui focalizadas.

Imersos em um campo de uso, não se usam apenas os utensílios ou objetos do cotidiano, mas operacionalizam-se, ao mesmo tempo, conceitos, sentimentos, bem como os demais seres (Casanova, 2009). Cuidando na forma de utensílio, quando este não serve mais, é descartado e entregue a outro para que este se responsabilize. Situação vista quando a mãe entregou Rayane às autoridades competentes, institucionalizando o cuidado de sua filha.

Orionte e Sousa (2005) afirmaram que, para muitos, existe um mito que, nesses espaços de acolhimento institucional, a criança terá acesso ao estabelecimento de vínculos afetivos, educação, alimentação, condições básicas para o desenvolvimento de qualquer criança. No entanto, nesse mesmo espaço, a violência, o desamparo, a negligência, os conflitos e os abusos se instalam com maior frequência. E é exatamente por esses, entre tantos outros motivos, que as crianças são encaminhadas para abrigos, já que se acredita que ali elas poderão receber os cuidados que a família, no momento, não pode lhes oferecer.

4. LANÇANDO OLHARES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS

O Dasein é, por condição existencial, sempre um ser no mundo, ou seja, alguém que se revela na "pre-sença" diante do mundo no qual se encontra. Este é tido por ele como um tipo de desafio a ser conhecido e enfrentado, pois, quando se percebe nele, já está aí inserido, mergulhado na sua cotidianidade. Por já estar jogado no mundo, este já o fez prisioneiro. Contudo cabe destacar que o ser no mundo não é apenas vítima do acaso, que absorve as imposições mundanas e assiste a seu existir com passividade, mas também é uma agente de transformação, capaz de organizar as coisas conforme as suas necessidades, pois somente esse ente, chamado Dasein, tem a capacidade de criar e dar total sentido a seus projetos, exercendo assim suas possibilidades (Naves, 2009).

Ao longo das narrativas, foi possível perceber que ocorre uma mudança de sentido com relação à violência. Essa mesma violência que, para esses adolescentes, lá nas primeiras experiências, causava medo, espanto e repulsa, passou a ter outra conotação quando praticada por eles e por seus pares. Quando os adolescentes passam a ser agentes, a violência é experienciada como promotora de status e respeito. Eles são reconhecidos por suas práticas violentas, temidos pelos mais fortes e admirados pelos mais fracos, como contam os próprios adolescentes. Descrevendo como se sentia quando batia nos colegas da escola, Rayane exalta: "A tal! Rapaz, o prazer de ouvir 'É […] Rayane, é ruim! Rayane é bicha ruim, é! Vá mexer com Rayane!'. Assim, a pessoa se sente segura quando dá nas outras".

Nessa fala, o que se vê é uma reprodução de um comportamento valorizado pelos demais, uma produção, disseminação e manutenção de um estigma de que quem é forte e violento deve ser temido e valorizado. Isso remete a status, a reconhecimento, a identificação e imposição do seu ser na forma mais impositiva de existir, na manutenção do poder, o qual circula e determina a forma das relações entre os jovens, pautadas nas práticas de dominação e violência. Obter poder é se sobressair num mundo de disputa e riscos iminentes. As condutas ditas transgressoras não representam apenas uma ruptura com as regras e normas institucionais. Elas encobrem, na maioria das vezes, o enfrentamento de uma situação geradora de ansiedade que representa, antes de tudo, a busca da autonomia (Orionte & Sousa, 2005).

Com essa valorização e disseminação da violência, entendida como geradora de poder, ascensão e reconhecimento, quando esses jovens escolheram dar sentido a sua vida e existência a partir dela, não aparentou ter sido algo estranho. Na analítica existencial de Heidegger, a liberdade em si é algo intrínseco ao homem, mesmo que ele não tenha consciência. A liberdade é a capacidade, inerente ao homem, de estar disposto sempre a buscar uma nova maneira de ser, de se expressar, de um novo ser si mesmo. Contudo é também pelo poder que essa liberdade aponta que é possível fugir das possibilidades outras, das responsabilidades e, com isso, permanecer aprisionados no impessoal (Naves, 2009). Significa transferir a responsabilidade do "poder-ser" livre pelo viver, sempre na tutela do discurso cotidiano e passar a vida toda no falatório, distante de qualquer contanto com o "poder-ser" mais próprio. Mas, ainda que se esteja preso e absorvido pelo mundo, também será possível exercer a liberdade e poder assumir essa condição.

Escolher não seguir os comportamentos de violência que, desde a infância, apresentavam-se na vida desses adolescentes como naturais, era sim uma possibilidade que esses jovens tinham, de acordo com a sua condição existencial, de liberdade existencial. Seguir um caminho diferente do não envolvimento, de uma vida pautada em condutas socialmente aceitas, são discursos muito fáceis de serem reproduzidos e cobrados. Contudo toda a violência que os jovens cometeram, presenciaram ou dela foram vítimas está pautada num contexto social de tensões, desigualdade e exclusão. Para esses adolescentes conseguirem escolher um caminho diferente da violência, é necessário um alto grau de desapego do mundo que lhes rodeia, dos sentidos que lhes foram apresentados. Faz-se necessária, também, uma sensível compreensão da sua experiência, dos sentidos que lhes foram atribuídos, das possibilidades e perspectivas de futuro, tudo isso independentemente daquilo que o meio propõe. Pois estar no mundo implica obrigatoriamente ser sempre alguém com outro e para o outro, e, na realidade desses adolescentes, esse outro sempre esteve envolto em algum tipo de violência.

Teresa Frota (2007) afirma que os discursos sobre situações e comportamentos violentos são inevitáveis e repetitivos, pois fazem parte do contexto de vida desses adolescentes, de seu cotidiano e por isso estão presentes em suas falas. A violência está em tudo, até mesmo nos rituais que se repetem incontáveis vezes, especialmente na chegada de novos meninos para cumprirem pena. Os menores são vítimas dos maiores ou mais experientes. Esses adolescentes carregam suas ações de crueldade até mesmo entre seus pares. A violência é sempre resposta a outra violência. Nesse sentido, a história de violências e crueldades está, ao mesmo tempo, inscrita nas relações sociais cotidianas como um aspecto inseparável das demais expressões que vão se revelando nos seus modos de ser. Existir nesse mundo de repetições e valorização da violência é aprender a lidar com seus próprios medos e angústias, é procurar ser na inospitalidade desse contexto.

"Quando eu me vi aquela situação ali, eu vi ‘aquilo né vida pra mim não’. O que eu sentia era medo! Medo[…] Só[…] Eu só sentia medo" (Rauan).

"Quando minha mãe me entregou para a instituição, eu comecei a chorar, porque eu fiquei com medo de ir pra casa de passagem" (Rayane).

Esses relatos destacam a visão diferenciada que esses adolescentes têm das práticas de violência e como esta influencia as relações entre os jovens. Violência entendida como forma de autovalorização, reconhecimento e sensação de ser importante diante dos demais. Nessa mesma ideia, Junqueira e Jacob (2006) realizaram uma pesquisa na qual os autores apresentaram evidências de que as motivações centrais da maioria dos jovens na prática de atos violentos são, por um lado, o prazer em humilhar a vítima e, por outro, a vontade de mostrar para os pares que eles merecem ser classificados como "homens duros" (ou valentões), que conseguem se impor no mundo. Embora esteja claro, devemos destacar que a experiência de cometer atos de violência não pode ser interpretada de forma isolada, muito menos pode ser estudada fora do tempo. Porque, necessariamente, as experiências de violência acontecem imersas num fluxo temporal específico, no qual o ser se encontra inserido e implicado num mundo, numa historicidade (Junqueira & Jacob, 2006; Heidegger, 2011).

Assim, valores como coragem, agressividade, força e, mesmo a crueldade, assumem, na composição do imaginário desses adolescentes, um lugar de destaque, concorrendo para a aceitação desses jovens e adolescentes em determinados grupos bem como para o arranjo de sua identidade e sobrevivência cotidiana (Frota, T., 2007).

Lançar essa especificidade e compreensão de violência à reflexão é propor um exercício de abertura, para sair da visão preconceituosa de "adolescente perigoso" e adentrar numa realidade desses adolescentes. O ser excluído traduz-se na falta de ganhos, de alojamento, de cuidados, de instrução, de atenção, de poder exercer sua cidadania. A falta de oportunidades para o indivíduo e sua família afeta seu sentido de existência e suas expectativas de futuro (Feijoo & Assis, 2004). Contudo o ser não se desprende de sua condição existencial de ser um ser de possibilidades e desbravador de sentidos, seja qual for seu contexto histórico e temporal no qual sua existência simplesmente é.

Dutra (2006) constatou que, de acordo com a percepção de alguns jovens entrevistados sobre a exclusão social, a pobreza, a má influência de amigos, a falta de emprego e, principalmente, a falta de apoio familiar, de afeto e desavenças, estão relacionados aos motivos que podem favorecer o jovem a atos de violência, mas não é possível dizer que esses fatores são determinantes. Tais evidências evocam alguns pressupostos da ontologia heideggeriana, ao afirmar que o homem é um Dasein, ser no mundo, que, ao mesmo tempo em que constitui o mundo, também é constituído por ele. Portanto não é possível ignorar as condições de pobreza, de exclusão social, das experiências e sentidos atribuídos por esses jovens. Conforme todos os seres no mundo estão mergulhados nas situações do mundo, estes são, a todo tempo, afetados por elas. E como seres que sentem, pensam e falam, reagem, cada um à sua maneira, às situações que se apresentam ao longo da existência do modo como são percebidas.

5. "PODER-SER" ADOLESCENTE

O que pode ser visto é que não é somente a violência que afeta a vida desses adolescentes. O contexto e as consequentes experiências passam pela falta de tudo, principalmente oportunidade de estudos, educação, trabalho e lazer. Se na própria casa não existem condições mínimas de desenvolvimento, imagine dentro de uma instituição que não oferece mais nada além do confinamento! O contexto familiar desses adolescentes é de dificuldade econômica, cultural e de informação. Falta estrutura física e apoio emocional, o que não difere muito da realidade dos Ceduc.

O artigo 120, parágrafo 1º, do ECA determina que é obrigatória a escolarização e profissionalização do adolescente que cumpre medida socioeducativa de semiliberdade, bem como o artigo 124, alínea XI, que determina o mesmo para medida de internação. Contudo o que foi visto e relatado pelos adolescentes foi um total descumprimento das determinações do ECA, com relação à escolarização e profissionalização. Não existe escola dentro das unidades de internação; já na semiliberdade, os adolescentes são matriculados, no entanto não recebem o valetransporte para poderem ir ao colégio.

Outro ponto levantado pelos adolescentes foi a possibilidade de se ter um trabalho e o quanto isso seria transformador, na visão deles, tanto para eles quanto para os demais jovens. Trabalhar seria uma forma de produzir, de se sentir ativo e útil, além de ocupar o tempo tão longo e entediante que é quando se está confinado. Entre os trabalhos que poderiam ser desenvolvidos, os próprios adolescentes destacaram a necessidade de oficinas diversificadas para preencher o tempo e tentar envolver os jovens com atividades que lhes satisfaçam e, ao mesmo tempo, pudessem ser úteis para sua sobrevivência e vida profissional futura. Os próprios funcionários reconhecem que não existem recursos nem incentivos, dificultando, assim, o trabalho educativo e a efetivação do ECA, que poderia ser de grande importância para o futuro dos meninos infratores (Frota T., 2007).

Os adolescentes entrevistados apresentaram, em suas narrativas, um discurso que difere do senso comum, o de que adolescentes violentos têm somente duas possibilidades: morte ou cadeia. Rayane e Rauan nos apresentaram a possibilidade mais genuína de ser e "poder-ser" nas adversidades da vida e sonhar, sonhar sempre. Mostraram que é possível sair do imposto e previsto socialmente e buscar aquilo que faz sentido para si, o seu próprio desejo.

Na minha segunda audiência, o juiz ia me dar uma semiliberdade. Aí eu questionei e argumentei que estudava, trabalhava, tinha minha família e que o que fiz não tinha sido tão grave assim pra ele me deixar mais seis meses lá dentro de semiliberdade. Aí ele: 'Você quer ser defensora?'. Eu disse 'É'. "Pois a primeira defesa que você fez e deu certo foi a sua" (Rayane).

É por constituir-se exatamente como um ser de possibilidades, e livre para alcançá-las, que o Dasein é capaz de assumir, por si, a condição de projeto destinado à realização, isto é, ele tem capacidade de, estando consciente de sua situação de abandonado à sua própria responsabilidade, guiar-se em meio ao mundo e traçar seu próprio projeto de ser. Contudo, perceber-se distante das suas possibilidades de ser autêntico e retirar-se da categoria do impessoal exige uma opção dura, mas firme, em favor da possibilidade de um projeto por parte do eu mais próprio. Enfim, o que se espera do Dasein é que aquele potencial inerente para assumir sua existência diante de suas potencialidades, o que, de forma nenhuma, é algo que se consegue sem esforços contínuos e inúmeras renúncias no transcorrer da existência, para que ocorra e se torne presente (Naves, 2009).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas desses jovens trazem peculiaridades de duas possibilidades de existir imersos na violência, contudo apresentam também possibilidades de ser na forma mais sutil de existir. São relatos de violência vista desde a infância, violência sofrida nas mais diversas formas, desde a física até a social, e também a violência praticada. Esta que se apresentou, durante as narrativas, como uma necessidade de se impor e existir num mundo que valoriza e reproduz estereótipos de poder.

Por hora, foi apresentada uma compreensão dessas experiências únicas de ser adolescentes num contexto de violência, mostrando peculiaridades de dois jovens que não queriam ser um problema social, mas que foram lançados num mundo inóspito e cruel, o qual os absorve para as tramas mais sutis de ser, misturando significações e sentidos num espectro fluido que é o viver. Quando se reflete, então, sobre as marcas históricas e contextuais da violência na vida desses dois adolescentes, é impossível não refletir o papel que a sociedade e os seres humanos, seres co-originários a este mundo, exercem diante dessa realidade. Ainda que se leve em conta essa realidade de segregação, violência e estigmas sociais que vem sendo perpassada e arraigada ao longo de gerações, ainda que seja possível discernir que não há como eliminar por completo todo um percurso histórico impregnado de preconceitos e estereótipos acerca do jovem e a violência, a sociedade não deve manter-se distante e indiferente, fugindo a olhar ao redor e ver o, até então, invisível, retratado por esses adolescentes por meio de suas experiências.

A partir da compreensão desenvolvida pelas interpretações das histórias desses adolescentes, podemos pensar também qual o papel da Psicologia diante desse contexto. Ser psicólogo é, também, permitir-se questionar a posição, não somente social, mas como profissionais da Psicologia diante desse contexto de jovens e violência. O trabalho do psicólogo nesses contextos de medidas socioeducativas deve estar pautado no envolvimento e na construção de práticas que contribuam para a aplicação das políticas públicas de referência, baseado no que preconiza o ECA e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), ou seja, deverá o profissional buscar integralizar suas práticas, articulando-as com o Estado, a família, a sociedade e o indivíduo, garantindo a proteção integral do adolescente e os seus direitos, como também assegurar as possibilidades de transformação das mentalidades ainda orientadas pela doutrina da exclusão. Atuação esta que está referenciada na cartilha produzida pelo Conselho Federal de Psicologia (2012).

Então que profissionais são esses? Que práticas estão sendo executadas nesses contextos? Como a Psicologia poderia agregar valor e conhecimento a esse campo? Sabe-se que hoje as áreas de atuação da Psicologia jurídica, sistema prisional, medidas socioeducativas e violação de direitos estão absorvendo profissionais psicólogos. Mas será que a formação prepara os profissionais para essa imersão numa nova realidade? Ou apenas repercutem discursos preestabelecidos e tidos como aceitos, contudo permanecem agindo nos moldes arcaicos de controle, vigilância e exclusão? São questionamentos que devem ser revistos e refletidos por todos aqueles que desejam praticar a Psicologia, seja qual for o campo de atuação.

Espera-se que o que foi apresentado neste estudo bem como as reflexões preliminares empreendidas pelas narrativas desses adolescentes possam contribuir para uma maior compreensão da experiência de violência sob o olhar do adolescente autor de ato infracional. E ainda, promover abertura para as possibilidades de promover ações diante da necessidade de prevenir o envolvimento de jovens nesse contexto. A discussão desse assunto, adolescente e violência, não é recente e nem pouco abordada. O que mais se apresentam no dia a dia são matérias jornalísticas sobre fatos violentos envolvendo adolescentes, artigos discutindo o assunto, especialistas opinando sobre, debates, fóruns, leituras. Contudo se destaca a necessidade de discutir essas questões, como forma de pensar e propor alternativas para diminuir e, ou, amenizar o problema que é o envolvimento de adolescentes com a violência. Entretanto o que se percebe é um gasto excessivo com debates e discussões absurdas, como a diminuição da maioridade penal. A sociedade não deve perder o foco principal do ECA para esses adolescentes, mas sim compreender o contexto e ações de cada indivíduo na tentativa de buscar formas de reintegração social, oportunidade de vida, educação e valores, conforme a Constituição brasileira.

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Texto recebido em 28 de fevereiro de 2014 e aprovado para publicação em 29 de outubro de 2015.

 

 

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: kaynellypsi@yahoo.com.br.
** Professora doutora do Departamento de Psicologia da UFRN. E-mail: elza_dutra@hotmail.com.
1A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.

2As entrevistas foram realizadas no período entre 15 de maio a 22 de junho de 2013.


3Os nomes dos adolescentes são fictícios, com o intuito de preservar a identidade destes.


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