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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p811-821 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p811-821

 

As repetições e seus destinos na clínica psicanalítica: contribuições a partir do ensino de Lacan 1

 

The repetitions and their destinations in psychoanalytic practice: contributions from the teaching of Lacan

 

Las repeticiones y sus destinos en la práctica psicoanalítica: aportaciones desde la enseñanza de Lacan

 

 

Júlio Eduardo de Castro*

 

 


Resumo

Algumas contribuições pontuais de Jacques Lacan ao tema da ‘repetição’ são aqui abordadas a partir dos conhecidos registros da subjetividade humana: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Partimos do sentido coloquial do termo repetição, pressupomos a inovação freudiana e a retomada lacaniana de tal conceito para, daí, tirarmos algumas conseqüências de tal abordagem no que diz respeito à prática clínica do psicanalista, ou seja, ao desejo e ao saber do psicanalista. Estes dois termos se mostraram sensíveis ao fenômeno da repetição, que ocorre em dimensões diversificadas: a significante, a das imagens narcísicas, a do núcleo irredutível do sintoma, entre outras. Portanto, o desejo-saber do psicanalista mostrou-se como um eixo ético indispensável a toda e qualquer abordagem psicanalítica da repetição, principalmente por fundar-se na ética do desejo e na política do psicanalista (falta-a-ser).

Palavras-chave: Repetição. Real. Simbólico. Imaginário. Psicanálise em intensão.


Abstract

Some specific contributions of Jacques Lacan to the theme of ‘repeat’ are addressed here from the known records of human subjectivity: the Real, the Symbolic and the Imaginary. Starting from the colloquial sense of the word repetition, assuming the freudian innovation and lacanian resumption of such concept for, then, we take some consequences of such an approach concerning the clinical practice of the psychoanalyst, I mean, the desire and the knowledge of the psychoanalyst. These two terms were sensitive to the phenomenon of repetition, which occurs in diverse dimensions: the significant, the narcissistic images, the irreducible core symptom, among others. So desire-knowledge of the psychoanalyst showed up as an essential ethical way to any psychoanalytic approach of repetition, mainly for to found in the ethics of the desire and in the psychoanalyst’s politics (lackto- being).

Keywords: Repetition. Real. Symbolic. Imaginary. Psychoanalysis in intension.


Resumen

Algunas de las contribuciones específicas de Jacques Lacan sobre el tema de la ‘repetición’ se abordan aquí desde los registros conocidos de la subjetividad humana: lo Real, lo Simbólico y lo Imaginario. Partimos del sentido coloquial de la palabra repetición, asumimos la innovación freudiana y la reanudación lacaniana de lo concepto como para, por lo tanto, tomamos algunas de las consecuencias de este enfoque con respecto a la práctica clínica del psicoanalista, a lo deseo y a lo saber del psicoanalista. Estos dos términos eran sensibles al fenómeno de la repetición, que se produce en diversas dimensiones: la significante, la de las imágenes narcisistas, la del síntoma con su núcleo irreductible, entre otras. Así, el deseo-saber del psicoanalista se presentó como un eje ético esencial para cualquier enfoque psicoanalítico de la repetición, principalmente por fundar-se en la ética del deseo y en la política del psicoanalista (falta-a-ser).

Palabras clave: Repetición. Real. Simbólico. Imaginario. Psicoanálisis en intensión.


 

 

Não há o novo, sem o velho Como não há o velho, sem o novo E isso mantém a porta da contingência sempre entreaberta (autoria própria)

1. INTRODUÇÃO

Este artigo aborda algumas das principais contribuições de Lacan ao tema da repetição. Para tal, fizemos um breve voo panorâmico sobre o ensino de Lacan e daí extraímos algumas formulações teóricas dignas de nota, bem como algumas consequências clínicas inferidas a partir dessas mesmas formulações.

Partimos da acepção coloquial do morfema 'repetição' para, gradativamente, chegarmos aos desdobramentos clínicos que a abordagem lacaniana desse conceito freudiano promoveu dentro do campo psicanalítico, principalmente pelo viés do 'desejo do psicanalista' (Castro, 2013a; Castro & Ferrari, 2013b).

O uso cotidiano deste morfema, 'repetição', nos aponta, antes de tudo, para a dicotomia, mais especificamente para a antinomia 'velho' e 'novo', daí a epígrafe neste artigo. E mesmo que na vida cotidiana, ao modo de linguagem coloquial, a acepção de 'repetição' assinale uma presença ou manifestação que consiste na reprodução de uma palavra ou frase ou comportamento ou mesmo fenômeno do Universo, não encontramos aí qualquer redução absoluta desse morfema a termos como 'cópia' ou mesmo 'reprodução'. De modo que não haveria sinonímia exata/ absoluta entre 'repetição' e 'reprodução', no máximo poderia haver aproximação.

Isso significa dizer que, uma abordagem possível, mas não a única, de lidar com essa antinomia seria a lógica dialética, já presente na linguagem coloquial. Essa lógica já funciona pressupondo a impossibilidade de separar, de forma integral, estes dois termos: velho e novo. Isso porque o simples fato de uma repetição jamais se dar no mesmo espaço e tempo, muda algo naquilo que se repete, o fenômeno já não seria mais o mesmo, tal e qual o original. Entretanto, mesmo não havendo repetição ipsis litteris, sabemos que algo do fenômeno se conserva, sua estrutura que, por definição é fixa, dura (struct-dure).

Em termos dialéticos, podemos então afirmar que não há qualquer inovação que não tenha um pé na tradição, independente do intuito de contestá-la ou não. Do mesmo modo, não há tradição que não traga em si o germe de seu próprio ultrapassamento, devido ao simples fato de, como afirmamos antes, ela sempre ocorrer em outro momento e em outro contexto histórico, lugar em que as contingências ocorrem. Portanto, a repetição, em si mesma, reivindica a consideração de no mínimo dois tempos: seja na vida de um sujeito ou de outro fenômeno qualquer.

No título deste artigo, a simples inversão dos termos presentes no título da Jornada do PARLETRE: 'Os destinos da repetição na clínica psicanalítica' - bem como a pluralização da palavra ‘repetição’ - é o que lançamos como provocação inicial, justificadas pelo que se segue.

Quanto à inversão dos dois primeiros termos do título de tal Jornada, ela se justifica pela força desse conceito (repetição) dentro do campo psicanalítico. Por isso, tal conceito foi arrastado do fim para o início da frase-título deste artigo. Partimos do conceito, no que ele traz de plural, para chegarmos a seus destinos, e não o contrário. Essa opção foi estratégica, pois não há como negar que as repetições estão presentes em vários contextos da vida humana: o cotidiano, o educacional, o institucional, o clínico, o universitário e, até mesmo, o científico. E isso nos aponta não tanto para a existência de um conceito singular, mas sim para a multiplicidade do mesmo, ou seja, para a existência de modalidades diferenciadas da repetição a nos indicar aí a participação de diferentes dimensões/ registros em sua composição.

Quanto à opção por pluralizar a repetição – segundo o ensino de Lacan, um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1979) -, ela se justifica por uma razão didática, qual seja: a proposta de que abordamos o conceito de repetição, em suas manifestações clínicas, a partir dos diferentes registros ou dimensões da subjetividade humana ou psiquismo: o Simbólico, o Imaginário e o Real (Lacan, 1974-1975). Em outras palavras, que consideramos 'modos de repetição' em que algum registro se destacou ou prevaleceu sobre os demais, pressuposto que jamais encontraremos qualquer repetição em estado absoluto: puramente simbólica ou puramente imaginária ou puramente real. A repetição nos parece ser, antes de tudo, o resultado da combinação, em diferentes proporções, desses três registros, senão de um quarto registro, quando acrescida aí a dimensão do sinthoma (Lacan, 2007). Sua estrutura é, portanto, compósita. De modo que, pensar em 'modalidades de repetição', com a devida atenção ao registro que em cada uma predomina, nos possibilitou o exame deste conceito - a partir do ensino de Lacan e, principalmente, com os olhos voltados para as conseqüências clínicas que tal abordagem/ensino impôs.

2. A REPETIÇÃO E OS REGISTROS LACANIANOS DO SUJEITO 2

Do Simbólico – lugar em que o inconsciente se estrutura como linguagem – surge a 'insistência significante', tradução presente, no primeiro ensino de Lacan (1998a), para a 'compulsão à repetição' freudiana. Quando envolvido com a constituição do Simbólico, Lacan considera a repetição pelo viés do simbolismo freudiano. O sintoma como efeito metafórico do aparelho psíquico e o simbolismo presente nos sonhos (Freud, 1900), nos chistes (Freud, 1905) e na psicopatologia da vida cotidiana (Freud, 1901) são os elementos aí visados. No que diz respeito às formações do inconsciente (Lacan, 1999), tal insistência do significante nos remete àquilo que, nelas, foi cifrado em mensagem secreta, ou seja, àquilo que aí se metaforizou sob a ação, sob os auspícios do Nomedo- Pai. Nesse registro, no Simbólico, e graças à metonímia do desejo, o que se repete, principalmente quando devidamente interpretado, é deslocado para novas formas significantes, para novas metaforizações.

Do Imaginário, o que se repete são, antes de tudo, as identificações narcísicas [i(a)], a começar da referência ao corpo próprio, bem como as identificações ao Ideal do Outro [I(A)], principalmente quando refletidas, projetadas, ou melhor, localizadas na vida de um sujeito, principalmente em seus semblantes fálicos. Aqui há a interseção do Imaginário com o Simbólico, interseção essa em que Lacan situou 'o gozo do sentido' como uma modalidade específica do gozo fálico (Lacan, 1974-1975).

Do Real, podemos dizer que, antes de tudo é 'A Coisa' (Das Ding) que se repete ao modo de mais-gozar, de satisfação libidinal, de fixidez pulsional, de retorno ao mesmo lugar. Esta é a leitura da 'compulsão à repetição' presente no último ensino de Lacan (1982). Prontamente nesse momento de seu ensino, Lacan aborda a repetição pelo viés da pulsão freudiana, nitidamente pela pulsão de morte (Freud, 1920). O ponto de vista da economia libidinal é aí retomado como meio de abordagem da repetição, momento em que expressões como 'circuito da pulsão' e 'modalidades de gozo' ganham destaque. Desse registro, o Real, repete-se o que há de incurável no sintoma, seu núcleo irredutível a todo e qualquer sentido capturado pelo significante. Contudo, não se trata de repetição ipsis literis, tal e qual. Lacan não era ingênuo a ponto de desconsiderar que, o que retorna ao mesmo lugar, se dá em outro tempo e em outro contexto. Ele aí localizou a força da contingência, de tyché a abalar o reino de automaton (Lacan, 1988), principalmente ao assolar a ordem significante que lhe é característica. Ao lado da força da contingência, localizamos, no último ensino de Lacan, bem como na obra de Freud (1915, 1920), a força da pulsão - principalmente a de morte - como fator constante (Real) que visa à desagregação dos sistemas estruturados/garantidos pelo Simbólico. No que nos interessa aqui, a pulsão cumpre no psiquismo, além da função econômica (R), a função de ser uma contingência interna que, paradoxalmente, nutre libidinalmente e abala as repetições automatizadas (S).

2.1 Repetição e desejo-saber do psicanalista

Advertido é o qualificativo/adjetivo do qual Lacan faz uso, algumas vezes, para se referir ao desejo do psicanalista. Subentende-se aí que o psicanalista esteja advertido pelo que viveu, mais propriamente destitui-se, a partir de sua própria análise ou propriamente psicanálise em intensão, em intensidade. Se examinarmos de perto as coordenadas estabelecidas por Lacan para a finalização do processo psicanalítico, da psicanálise em intensão, observaremos que elas apontam radicalmente para o que o sujeito deixou para traz no caminho feito, e jamais pelo que ele aí pegou, adquiriu ou acumulou. Lacan é explícito ao dizer que o saber do psicanalista não é acumulativo (Lacan, 1997/1971-1972), justo por se fazer sobre a singularidade de cada sujeito. Ele, contudo, existe, não sendo jamais da ordem da posse. Podemos então dizer que o saber do psicanalista é um saber desapegado, porque relativo a quem o exerce e, ainda, sem aplicação universal. Saber, portanto, como se diz, peculiar, saber estilizado construído a partir das perdas inerentes à psicanálise em intensão. Nele, portanto, mais vale o curriculum mortis do que o curriculum vitae.

De modo que fórmulas como: destituição subjetiva, travessia da fantasia, ato do psicanalista, desejo do psicanalista, saber do psicanalista, discurso do psicanalista, estilo do psicanalista e política do psicanalista, pressupõem a preocupação de Lacan com a dimensão ética da psicanálise (Lacan, 1988) e, mais especificamente, com a formação de psicanalistas e com a transmissão em psicanálise. Nessa dimensão ética da psicanálise – como ética do desejo – destaca-se a política do psicanalista como fundada na falta-a-ser, principalmente ao deixar o psicanalisante a desejar, por si e a partir de si mesmo, sem nada desejar para/por ele, ou seja, sem se deixar influenciar, na direção do tratamento, pelos ideais do Outro [I (A)].

Detenhamo-nos agora na seguinte pergunta acerca do desejo do psicanalista: o que ele pode fazer/desfazer para com certas repetições do sujeito em análise? Ou, em outros termos, o que pode o desejo do psicanalista na condução/direção do processo psicanalítico?

2.2 As repetições na clínica psicanalítica

No Simbólico, devido ao tremor dos semblantes fálicos ocorrido na psicanálise em intensão, presenciamos, ao lado da desmetaforização das formações do inconsciente, o rearranjo significante, ou seja, presenciamos uma nova ordenação significante dentro deste registro. E esse rearranjo se dá por decorrência da queda de alguns ideais aos quais o sujeito se mantinha ancorado. Em termos freudianos, podemos dizer que o sujeito se desidentifica aí a alguns dos ideais do eu [i(a)]. Em Lacan, essa desidentificação se desdobra ainda em relação aos ideais do Outro [I(A)]. Nesse processo, em que há perda de alguns suportes identificatórios, perde-se, portanto, algo do valor subjetivo dado aos ideais que trabalhavam a favor do recalcamento secundário.

Não obstante, quando algumas identificações (secundárias) aos ideais do Outro caem, vemos estremecer algo no Imaginário: o abalo das imagens narcísicas primárias, a começar da imagem corporal [i(a)] e da identificação ao nome próprio [I(A)], identificações essas elementares à constituição do sujeito. Um efeito da destituição subjetiva promovida pela psicanálise em intensão sobre o Imaginário é exemplificado por Lacan por meio da ocorrência de sonhos com o despedaçamento do corpo, sonhos esses de angústia relatados por psicanalisantes no momento de finalização do processo psicanalítico.

No Real, uma das principais coordenadas estabelecidas por Lacan para a direção da cura, além das já mencionadas – coordenada essa formulada em termos éticos como "Não há relação sexual" e, em forma matêmica, como 'o significante que falta ao Outro' [] – passa necessariamente pela desabsolutização do Outro. O Outro, que já foi, no primeiro ensino (Lacan, 1998a), tido como lugar da língua, mais especificamente da fala, no último ensino se descaracteriza como sistema completo. Portanto, a incompletude do sistema foi o modo lacaniano de ler o tal 'rochedo da castração' por Freud atribuído à conclusão do processo psicanalítico. No entanto, tal rochedo e seu para-além foram abordados e, mais ainda com o dispositivo do 'passe' (Lacan, 2003a & 2003c), verificado por Lacan, só que do lado do psicanalista.

Outro aspecto digno de nota acerca do desejo do psicanalista que se configura no final das análises é o que Lacan distinguiu como 'surgimento de um desejo inédito'. O que seria isso?

O principal apoio epistêmico pressuposto por Lacan para formular tal ineditismo do desejo no final de análise foi, certamente, a invenção freudiana de um discurso original: o discurso do psicanalista. Freud, ao inventar um modo inédito de tratamento das neuroses, mais especificamente da histeria, nos trouxe ainda um modo incomum de fazer laço social por meio da frustração da demanda, do sujeito-psicanalisante, e da regra de abstinência, feita para o psicanalista.

Entendemos que tal desejo inédito envolve o relançamento de 'A Coisa' em outro tempo e em outro espaço/contexto na vida do sujeito-psicanalisante. Como disse, em linguagem literária, Ítalo Calvino (1991), no posfácio de O castelo dos destinos cruzados,

"[. . .] é hora de mudar de coisa”. Para a psicanálise não se muda de 'A Coisa', todavia pode-se sim mudar de posição subjetiva a expensas d’Ela. Certamente esse relançamento de 'A Coisa' é, em situação de final de análise, determinado pelo objeto a a agir sobre o sujeito (), relançamento, portanto, não tanto mais sob a influência/poder do eu. Assim sendo, o desejo inédito é a efetivação surpreendente do deslocamento de 'A Coisa' para o espaço e tempo subjetivos nesse momento de finalização. O fator surpresa aí presente se deve à perda de poder do eu em manter o sujeito aprisionado às identificações que favorecem o recalcamento. Esse também é o matema do ato do psicanalista [] (Lacan, 1967-1968) e a parte de cima do discurso do psicanalista (Lacan, 1992), ambos os matemas a nos dizer que o sujeito é agido, de modo inédito e, por isso mesmo imprevisível, pelo objeto a.

E para se entender a natureza, o caráter desse objeto (a), não devemos nos esquecer que é preciso desubstantivá-lo de seus apoios no corpo, pois ele é caracterizado, no ensino de Lacan, como 'lugar da falta', como 'objeto insólito', ou seja, por princípio, sem essência, sem conteúdo. É, portanto, necessário considerá-lo como:

a) o olhar sem a imagem;
b) o olfato sem o odor;
c) o tato sem o contato; o paladar sem o gosto;
d) a voz muda e sem o verbo e a escuta sem o som.

Pois é ele, ao lado das contingências da ex-sistência, que nos traz uma chance de que, do mesmo que se repete, possa surgir algo diferente, seja a renovação, seja a reinvenção, ou seja, o relançamento de 'A Coisa' na vida de um sujeito que levou a termo sua experiência com a psicanálise em intensão.

Já que afirmamos anteriormente que uma psicanálise vale mais pelo que o sujeito deixa pelo caminho. A título de conclusão podemos, portanto, asseverar segundo a obra de Freud e o ensino de Lacan que, na psicanálise em intensão, o sujeito desaprende ou passa a desacreditar: em alguns dos próprios mecanismos narcísicos [i(a)]; em algumas das identificações aos ideais do Outro [I(a)]; no absolutismo do Outro [], seja ele incorporado na língua ou mesmo na razão; nos semblantes fálicos que envolvem o objeto a; na cura absoluta do sintoma.

Frente a isso, cabe ao sujeito, já psicanalista, haver-se com o que há de incurável, de repetitivo - mesmo que em novas formas - no seu sintoma, no seu narcisismo, bem como no circuito da pulsão que, como sabemos, é fixo e vazio no que tange ao objeto. Haver-se, ainda, por decorrência da psicanálise em intensão, com a desubstantivação dos apoios corporais do objeto a (seio, fezes, olhar e voz), para assim suportar o lugar da falta na causa do desejo, principalmente ao direcionar a cura/tratamento de outro sujeito.

Ter abordado a repetição a partir da pluralização desse conceito fundamental da psicanálise e da combinação de registros (R, S, I) nos permitiu aproximar do desejo do psicanalista bem como do saber aí pressuposto, não somente pelo que a castração lhe advertiu, como também por sua sustentação na chamada douta ignorância (Lacan, 1997). E isso uma vez mais nos confirmou a hipótese de que, sobretudo no campo psicanalítico, a abordagem da teoria e de seus conceitos pressupõe a dimensão ética que subjaz à doutrina. Daí o nosso cuidado ao ter examinado o conceito de repetição na doutrina e ainda em seu para além, ou seja, em seus princípios elementares/fundamentais, aqui manifestos nas considerações acerca da dimensão ética em jogo e, por isso mesmo, em algumas de suas consequências clínicas.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 04 de agosto de 2014 e aprovado para publicação em 19 de março de 2015.

 

 

1 Artigo derivado das conferências de abertura da IX Jornada Regional de Psicanálise do PARLETRE: Instituição Psicanalítica – Divinópolis (MG), em 17/05/2014, e da XII Semana Acadêmica de Psicologia da UFSJ, em 12/06/2014. As considerações sobre as repetições aqui expostas – mesmo que breves e esquemáticas naquilo que diz respeito ao ensino de Lacan – objetivam ser um estímulo a estudos e pesquisas mais específicas e aprofundadas sobre as contribuições deste psicanalista-autor ao campo da psicanálise.

*Psicanalista e pesquisador do ‘Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise’ (NUPEP) da ‘Universidade Federal de São João Del Rei’ (UFSJ); Mestre em Educação (PUC-Rio); Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Pós-Doutor em Psicologia (PUCMinas).E-mail: jecastrojec4@gmail.com.
2 A partir desta seção, sempre que se tornou importante para fins de ilustração, acrescentamos (entre colchetes ou parênteses) o matema lacaniano na sequência do que está formulado em palavras. Tais matemas são encontrados no conhecido 'grafo do desejo' (Lacan, 1998b) e na 'teoria dos discursos' (Lacan, 1992 & Lacan, 2003b).

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