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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p840-859 


ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p840-859

 

Mulheres na música: histórias que se cruzam

 

Women in the music: crossing stories

 

Mujeres en lamúsica: historias que se cruzan

 

 

Mayara Pacheco Coelho*; Marcos Vieira Silva**; Marília Novais da Mata Machado***

 

 


Resumo

Este trabalho é parte de pesquisa mais ampla que resgata a história da música em São João del-Rei/ MG, cidade que representa um polo de expressiva atividade musical e que conta com diferentes agremiações formais. Embora sua tradição musical se aproxime de 300 anos, há relatos da participação das mulheres no meio musical público são-joanense apenas a partir do final do século XIX. Num recorte teórico intergeracional, o objetivo específico da investigação aqui apresentada foi conhecer quem são as mulheres que vêem participando desse meio musical. Para tanto, foram entrevistadas dez musicistas nascidas ou criadas na cidade. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas privilegiando-se uma análise do discurso de perspectiva foucaultiana. Os resultados apontaram diferenças e semelhanças nas posições ocupadas por elas nas corporações, nas suas formações musicais, profissionalizações e restrições impostas pelo casamento e pela maternidade. Suas histórias se cruzam, emaranham-se, distanciam-se e se renovam.

Palavras-chave:Mulheres. Música. História. Geração. Análise do Discurso.


Abstract

This study is part of a larger research that rescues the history of music in São João del-Rei/ MG,city that is a center of expressive musical activity, and that has different formal associations. Although its musical tradition approaches 300 years, there are reports of women’s participation in the public music scene only after the late nineteenth century. With an intergenerational theoretical framework, the specific objective of the research here presented was to knowwho the women’s participating in this musical scene are. For this, ten female musicians born or living in the citywere interviewed. The interviews were recorded, transcribed and analyzed privileging a discourse analysis with a Foucault’s perspective.The results showed differences and similarities in the positions occupied by them in corporations, in their musical backgrounds, professional trainings and restrictions imposed by marriage and by motherhood. Their stories intersect, intermingle, move away and are renewed.

Keywords:Women. Music. History. Generation. Discourse analysis.


Resumen

Este estudio es parte de una investigación más amplia que rescata la historia de la música en São João del-Rei / MG, ciudad que es un centro de actividad musical expresiva, y que tiene diferentes asociaciones formales. A pesar de que su tradición musical se aproxima a 300 años, ha relatos de la participación de las mujeres en la escena musical pública sólo después de los finales del siglo XIX. Con un marco teórico entre generaciones, el objetivo específico de la investigación aquí presentada fue saber quiénes son las mujeres que participan en esta escena musical. Para esto, se entrevistó a diez mujeres músicas nacidas o residentes en la ciudad. Las entrevistas fueron grabadas, transcritas y analizadas privilegiando-se un análisis del discurso con la perspectiva de Foucault. Los resultados mostraron diferencias y similitudes en las posiciones ocupadas por ellas en las compañías y en sus estudios musicales, formación profesional y en las restricciones impuestas a ellas por matrimonio o por maternidad. Sus historias se cruzan, se mezclan, se alejan y se renuevan.

Palabras clave:Mujeres. Música. Historia. Generación. Análisis del discurso.


 

 

1. INTRODUÇÃO

São João del-Rei, mais que outras partes do estado de Minas Gerais e também do País, representa um polo de expressiva atividade musical. A cidade conta com dez agremiações formais, entre bandas e orquestras atuantes nos segmentos sacro e secular, popular e erudito. No convívio diário com esses grandes grupos, a música passa a fazer parte da construção das identidades dos são-joanenses. Embora a tradição musical local se aproxime dos 300 anos, relatos da participação pública das mulheres nesse meio só foram encontrados a partir do final do século XIX.

O interesse desta investigação recaiu sobre as mulheres envolvidas na atividade musical. Afinal, quem são essas mulheres musicistas?1 Como elas se veem nesse ambiente? Que histórias contariam? Que trajetórias seguiram? Quais os obstáculos identificados por elas? Assim, a partir do discurso de mulheres no cenário musical são-joanense, procurou-se conhecer diferentes gerações de musicistas, questões específicas às mulheres e possíveis semelhanças e diferenças entre as gerações.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A música, a cidade e a participação das mulheres

Esse recorte começa no início do século XVIII, na fundação do Arraial do Rio das Mortes, futura São João del-Rei. A primeira referência de uma corporação na região data de 1717, quatro anos após o Arraial ter sido elevado à categoria de vila. Como o desenvolvimento de bandas e orquestras da região se deu primordialmente pela formação das irmandades religiosas e pela construção das igrejas nos séculos XVIII e XIX, o fazer musical como atividade pública era uma prática quase exclusivamente dos homens, pois as mulheres eram proibidas nos rituais litúrgicos. Até mesmo as vozes femininas do coro eram cantadas por meninos e homens em falsete (Christófaro, 2003).

Assim, uma das hipóteses possíveis do aparecimento tardio das mulheres na atividade musical são-joanense está ligada à estreita relação da música com os ritos católicos que as excluíam. Nas igrejas, a fala e o canto lhes eram tolhidos (Castagna, 2011) e, durante séculos, elas foram aprisionadas em lugares ditos “femininos”, afastadas de postos na hierarquia da Igreja, além de consideradas objeto de recomendações que, na prática, eram interdições.

No século XIX, os primeiros conjuntos musicais eram compostos apenas pelos vocais. Eles eram formados por um tiple, isso é, por um menino cantor, por um contralto, homem cantando em falsete, por um tenor e um baixo (Neves, 1984). Ainda no mesmo século, a educação musical era um aparato de boa educação para meninas e senhoras. O ensino de rudimentos de música era previsto para as mulheres das classes mais altas, inclusive nos colégios exclusivos para moças. A prática musical era prescrita e incentivada apenas no âmbito doméstico e seu objetivo se restringia a entreter os convidados em pequenas reuniões e agradar aos maridos (Coelho & Vieira-Silva, 2012).

Apenas a partir do final do século XIX e início do século XX, na música religiosa, as mulheres passaram a entoar o canto da Verônica, que é um momento emblemático da celebração da Semana Santa. Ainda assim, havia restrições quanto à índole e a virgindade da moça (Queiroz & Vieira-Silva, 2006). Na música realizada fora das igrejas, a primeira participação pública feminina encontrada foi em 1879, na extinta Filarmônica S. Joanense (Guerra, 1968).

Abriu-se então espaço para outras atuações, como o acompanhamento de músicos na Rádio São João, a atuação junto à Orquestra do Cinema Mudo e as aulas de música (Coelho & Vieira-Silva, 2012). Em 1910, a Orquestra do Teatro Municipal de São João del-Rei, fundado em 1893, contava com três pianistas mulheres, atuando junto a onze homens. Ainda no início do século XX, a participação de mulheres teve forte vinculação com a caridade. A partir da década de 1930, essa participação se intensificou substancialmente: meninas, senhoritas e senhoras se destacaram nos cantos e no piano. Em 1936, houve um importante concerto em homenagem a músicos conterrâneos falecidos, mas, entre eles não havia nenhuma musicista. Todavia, foi a partir dos anos seguintes que se encontraram concertos e recitais propostos por mulheres (Coelho & Vieira-Silva, 2012).

De 1940 a 1945, destacando-se o Colégio Nossa Senhora das Dores2 como principal proponente, houve muitos concertos beneficentes. Nas décadas seguintes, é possível identificar várias mulheres compondo os coros das corporações e solistas de destaque como Mercês Bini Couto (piano) e Jupira Raposo (canto). Nos anos 1960 e 1970, as operetas realizadas pela Sociedade de Concertos Sinfônicos (também conhecida como Sinfônica) contaram com expressiva participação de mulheres (Coelho & Vieira-Silva, 2012). As duas orquestras mais tradicionais da região, a Lira Sanjoanense, fundada em 1776, e a Ribeiro Bastos, de 1790, atuam no segmento sacro e, igualmente, passaram, nos anos 1960 e 1970, a incluir mais mulheres. Sobre a participação delas junto às diretorias, encontraram-se dados que apontam a chegada de mulheres apenas em 1959, como secretárias (Guerra, 1968).

As primeiras fotografias encontradas da orquestra Ribeiro Bastos, mostram que o número de mulheres musicistas, em 1934, era de aproximadamente sete em um total de trinta homens. Já da década de 1940, encontrou-se um registro do coro feminino da Ribeiro composto por nove mulheres. Nos registros anuais da corporação, pode-se notar o aumento do número de mulheres, em sua maioria presentes no coro (Coelho, 2014). Em um registro oficial da Lira Sanjoanense, da década de 1960, as mulheres estão posicionadas à frente da corporação e já correspondiam à metade de seus componentes (Coelho, 2014).

No cenário da composição são-joanense, foram encontradas muitas referências aos grandes compositores dos séculos XVIII, XIX e XX (Neves, 1984; Scalzo & Nucci, 2012). Inclusive no Museu Regional de São João del-Rei, encontra-se uma linha do tempo da composição musical local. Nenhuma compositora foi elencada nesse registro. Porém, Mercês Bini Couto teve uma valsa publicada na Revista FonFon (1907-1945) e o hino da Sinfônica foi composto por uma mulher, Maria do Carmo Hilário, mais conhecida como Quiquinha (Coelho & Vieira-Silva, 2012).

Sobre o posto de maestrina ou regente, figura responsável por conduzir o grupo, Stella Neves (M. S. N., neste trabalho) é uma referência. Desde 1977 dividiu a regência da Ribeiro Bastos com seu irmão José Maria Neves, falecido em 2002. Porém, ela não foi a única regente mulher: Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas, a Bebel (B. L.), esteve à frente da Orquestra Ramalho de Tiradentes. Atualmente outro nome vem surgindo junto à regência: Mariana Jelen. Professora do Curso de Música da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), nascida em São Paulo, Jelen tornou-se a segunda regente da Banda Sinfônica do Santuário Bom Jesus de Matozinhos (Coelho, 2014).

Atualmente a atividade musical são-joanense conta com homens e mulheres, pois o acesso delas já não sofre as restrições culturais de outros tempos. Essa é uma característica que se estende tanto para as orquestras, quanto para as bandas. Nas primeiras, é forte a participação de mulheres em funções como violinista, coralista e flautista e, hoje, diferentemente do início do século XX, a presença de mulheres nas orquestras sacras representa metade de seus componentes (Coelho, 2014).

Nas bandas, onde a participação das mulheres se dá juntamente a um grupo composto em sua maioria por homens, esse movimento é mais lento, mas já assume um caráter de renovação. Não se pode dizer que quantitativamente elas se equiparam aos instrumentistas do sexo masculino, porém, percebe-se que até mesmo atividades e postos sempre associados aos homens estão sendo desempenhados por elas, como no caso de execução de alguns instrumentos como saxofone e trompete, a regência e os solos (Coelho, 2014).

Hoje, pode-se dizer que as mulheres estão no Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier como professoras e alunas, assim como no Curso de Música da UFSJ, nas diretorias das corporações, na regência, nos coros e nas cordas, em posição de destaque como solistas e também primeiros instrumentos (Coelho, 2014). Porém, ainda é forte o assinalamento de lugares "apropriados" às mulheres, principalmente nas orquestras, e, mesmo ocupando outros postos dentro das corporações, ainda é muito forte a tradição de instrumentos ditos "tipicamente femininos". Pode-se perceber esse assinalamento, quando as próprias musicistas são questionadas sobre gênero e o fazer musical (Coelho, 2014; Coelho Vieira-Silva, & Machado, 2010).

Levando em consideração o que foi exposto até aqui, uma indagação insiste em se apresentar: sendo a arte um meio de afirmação do feminino (Azerêdo, 2007), como se afirmar como musicista se, para cada mulher que se destaca por meio de sua arte, seja ela qual for (Chiquinha Gonzaga, Virginia Wolf, Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Adélia Prado, Mercês Bini, entre outras), "resta um exército de marmanjos"? (Duprat, 2008, p. 11).

2.2 Articulações entre gênero e geração

Gênero se refere a uma categoria de análise tal como classe, etnia/raça, geração (Pedro, 2005). Atualmente, a definição da categoria gênero da historiadora Scott (1995) é a mais difundida no Brasil (Nuernberg, 2005). Essa historiadora propõe sua definição de gênero baseada em duas partes conectadas integralmente: (1) "gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos"e (2) "gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder" (Scott, 1995, p. 86).

O uso do termo gênero enfatiza as relações de poder que podem sim incluir o sexo, mas não são diretamente determinadas por ele, nem é responsável pela forma como a sexualidade se manifesta (Scott, 1995). Ao invés de se apresentar como uma categoria fixa e pré-estabelecida, como inicialmente foi concebida, gênero caracteriza-se por ser algo dinâmico e inter-relacional (Almeida, 2002). Hoje, sabe-se que a dicotomia que separa gênero como puramente cultural e sexo como biológico é um equívoco, pois essa correlação apenas substitui uma determinação por outra, perdendo assim o elemento performático na produção de “sujeitos generificados” (Azerêdo, 2007, p. 118).

Vive-se um momento de efervescência para as discussões de gênero. Hoje os movimentos são plurais e o termo "feminismos" é corriqueiramente utilizado. Diz-se de múltiplas vertentes com múltiplas bandeiras sendo levantadas ao mesmo tempo. Uma dessas vertentes se originou na década de 1980, nos EUA, juntamente ao surgimento da epidemia de AIDS: a Teoria Queer. O movimento Queer vem questionar se o sujeito do feminismo é mesmo a mulher. Em função de que boa parte da produção feminista é feita com o pressuposto de que gênero é a mulher, a Teoria Queer trata gênero como algo cultural: masculino e feminino estão em homens e mulheres (nos dois). Amplia-se assim o alcance do feminismo (Miskolci, 2012).

Muito já foi discutido sobre gênero e muito ainda tem-se a se discutir. Pensar sobre como as pesquisas de gênero estão sendo feitas é uma tarefa dos pesquisadores. O debate sobre como se constituem as diferenças e como os gêneros são instituídos em diferentes contextos como, por exemplo, nas organizações de trabalho, na escola, na mídia, entre outros, deve ser promovido no cotidiano (Coelho, 2014).

Contudo, mesmo que na atualidade as discussões sobre gênero encontrem campo fértil, ainda fala-se de "sujeitos com identidades fixas, impostas por uma rede de significações que nós mesmos tecemos, através de relações de poder" (Azerêdo, 2007, p. 34).

Mas o que debater em pleno século XXI, se, lá atrás, em 1949, Simone de Beauvoir titubeou ao escrever seu ensaio? Azerêdo (2007) nos adverte que muito já foi conquistado e mudanças vêm acontecendo desde então. Porém, alguma coisa ainda permanece intocada quando abordamos as relações de gênero.

Azerêdo (2007) propõe ainda a necessidade de se conhecer as mulheres buscando compreender que lugar elas ocupam, o que marca sua submissão frente aos preconceitos e o que marca sua saída para "novos mundos" (p. 34). O que marca assim a fuga de ciclos viciosos que aprisionam e condenam os gêneros a papéis sociais já estabelecidos ou à reprodução de papéis “adequados” aos homens e às mulheres (Coelho, 2014).

O conceito de geração segue uma perspectiva dinâmica, assim como gênero, e representa também uma categoria de análise. Por vezes, delimitou-se certo período de tempo como fórmula básica para determinar uma geração. Mas com o aumento da expectativa de vida, a aceleração do tempo vivido, as diferentes formas de vivenciá-lo, a diversificação dos meios de produção, juntamente com os avanços tecnológicos e as conexões aceleradas, pode-se dizer que o intervalo entre as gerações ficou mais curto. Isso significa que mais pessoas de idades e épocas diferentes convivem em diversos setores sociais (Carvalho, 2007).

Assim, o intervalo entre as gerações é variável. Neste trabalho, não se restringiu a noção de geração a grupos etários. O movimento entre gerações é dialético, ou seja, para afirmar-se, uma geração nega sua antecedente ao mesmo tempo em que a perpetua (Moreira, 2001). Segundo Moreira (2001), Mannheim considera que os legados de uma geração para outra não podem ser considerados meros depósitos, recebidos de maneira passiva. As experiências são incorporadas também de forma dialética, pela interação entre as gerações e pela ação transformadora (Moreira, 2001). Assim sendo, as gerações não se substituem, mas se sucedem.

Na proposição mannheimiana, geração representa "um conjunto de pessoas que, tendo mais ou menos a mesma idade, estão identificadas pelas experiências históricas comuns através das quais produzem uma visão de mundo e uma gama de significações compartilhadas para os acontecimentos da vida" (Moreira, 2001, p. 69). Pertencer a uma mesma geração não significa que os indivíduos conviveram em algum momento histórico, mas sim que estavam em certa posição para viver determinados acontecimentos.

Moreira (2001) também propõe que o argumento fundamental de Mannheim é a relação entre mudança social e as gerações. O autor considera que as mudanças são frutos dos conflitos geracionais. Dessa forma, o processo de mudança é marcado pela conservação, pelas diversas interpretações dos legados recebidos e pelo advento de novas práticas sociais.

Ferrari3(1874) também aborda essa relação entre as gerações e mudança social. Esse autor italiano propõe serem necessárias quatro gerações para se avaliar as mudanças. A primeira geração é a dos "precursores"; a segunda, a "revolucionária", contesta a primeira; a seguinte é a "reativa", ou seja, aquela que reage à segunda e retoma valores da primeira, mostrando-se mais resistente a mudanças; e, por último, há a geração "resolutiva", que produz soluções inovadoras para os impasses.

Deve-se pensar gênero e geração para além de categorias teóricas, pois são também categorias de ação política. Essas duas dimensões estão relacionadas: ambas fundamentam a vida social. As gerações são partes essenciais da dinâmica coletiva (Motta, 2002) e gênero perpassa e atravessa as relações sociais.

Ao longo da investigação, mudanças relacionadas à atividade musical de mulheres na região das Vertentes foram percebidas. Procurou-se então compreender os diferentes recortes da dinâmica das gerações a partir de suas inserções na sociedade, de questões de gênero, faixa etária e contexto, entre outros atravessamentos. Azerêdo (2007) propõe que a atividade musical é uma possibilidade de afirmação de mulheres. Representa a afirmação de mulheres múltiplas: artistas, musicistas, professoras e alunas de música. Representa ainda possibilidade de expressão, modos de ser e de se constituir como sujeitos.

Essas propostas foram de suma importância na tentativa de compreender como gênero perpassa a atividade musical de mulheres de diferentes gerações e, também, para acompanhar a conservação e/ou renovação de valores e as possíveis mudanças nas trajetórias.

3. MÉTODO

Para o desenvolvimento desta investigação, optou-se pela realização de entrevistas em profundidade, como método de obtenção de informações. Foram realizadas dez entrevistas com musicistas nascidas em São João del-Rei ou moradoras da cidade há anos e atuantes na atividade musical local. A idade das musicistas entrevistadas variou de 21 a 89 anos, ou seja, elas nasceram entre 1924 e 1992.

Para a realização das entrevistas foram obedecidos os seguintes pré-requisitos éticos: permissão para a gravação, bem como esclarecimento sobre sua finalidade; utilização do termo de livre consentimento (TCLE), que consiste em um documento assinado pela pesquisadora e pelas participantes contendo informações pertinentes sobre a realização do estudo e sobre sua divulgação.

O contato com essas musicistas se deu através do Professor Abgar Campos Tirado e da aluna do Curso de Música da UFSJ, Mariza Mateiro, que se prontificou a passar nas salas de aula do Departamento de Música (DMUSI) e a mobilizar as colegas de curso para participarem da investigação. O Prof. Antônio Carlos Guimarães, do DMUSI, também indicou um contato para uma possível conversa.

Como grande conhecedor da história da música local, o Prof. Abgar Campos Tirado ofereceu uma lista de musicistas de vários momentos do cenário musical são-joanense. Foram então selecionadas as mais velhas. O primeiro contato com essas musicistas foi feito por telefone e assim as conversas foram marcadas. Com idade acima de 80 anos, foram contatadas cinco musicistas: L. C. e C. M., ambas com 89 anos; L. A. e M. S. N.4, 85 anos, e M. C. S., 80 anos.

B. L., de 68 anos, atuante na música são-joanense desde a infância, foi contatada também por intermédio do Prof. Tirado. Chegou-se a três outras entrevistadas, em uma visita ao DMUSI/UFSJ, com a ajuda da aluna Mariza. Quinze alunas concordaram em conceder entrevistas para a pesquisa. Porém, foram selecionadas aquelas nascidas ou residentes há muitos anos em São João del-Rei e atuantes na música local. São elas: M. L. V., 50 anos; J. B., 30 anos, e J. F., 21 anos. A aluna L. S., 24 anos, foi contatada com a ajuda do Prof. Antônio Carlos Guimarães.

As entrevistas foram realizadas de acordo com a disponibilidade de cada uma das musicistas, em local e horário pré-estabelecidos. Sete entrevistas foram realizadas nas casas das próprias musicistas, uma no Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier e outras duas na sede de uma das orquestras da cidade.

As entrevistas foram gravadas, com permissão das entrevistadas, e foram transcritas para análise. O tempo de interação foi variado e o de gravação também. A duração média das entrevistas foi de 40 minutos; porém, algumas duraram mais de uma hora e outras vinte e poucos minutos. O tempo de conversa não foi um fator determinante da qualidade da interação.

Para o tratamento das informações, baseou-se na análise arqueológica do discurso, adotando-se uma perspectiva foucaultiana, fundamentada na leitura atenta e na descrição. O arquivo da pesquisa foi formado por dez corpora, cada corpus constituído por uma das transcrições de entrevista realizada. O trabalho de análise consistiu em ler e reler as transcrições. Adotou-se uma acepção ampla de discurso: "realidade material de coisa pronunciada ou escrita" (Foucault, 1996, p. 8) e a sugerida por Maingueneau (2006): "atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados" (p. 43), lembrando que esse autor – linguista e analista do discurso – fundamentou-se, igualmente, em teorias foucaultianas, entre outras. O discurso se associa a condições de produção determinadas. Sua análise consiste na articulação texto-contexto. O texto em questão compreende as falas transcritas a partir das entrevistas realizadas e o contexto se refere às condições de produção das falas (ou de discurso) e à sua formação discursiva.

O termo contexto é chave em análise do discurso. Embora seja muito utilizado em pesquisas nas Ciências Sociais e Humanas, é necessário situá-lo. Diz respeito a como a fala ou a escrita foram produzidas e em que condições surgiram. Há que se conhecer também a história de quem fala ou escreve: a quem se dirige, a que regras se submete e por que profere ou escreve um discurso determinado (Machado, 2008).

O termo condições de produção do discurso alude igualmente ao contexto, assim como a noção foucaultiana de formação/prática discursiva. Como, para Foucault, discurso designa "conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas" (Maingueneau, 2006, pp. 67- 68), formação/prática discursiva faz referência a determinado tempo e espaço e ao conjunto de regras históricas, sociais, econômicas, geográficas e linguísticas que atuam sobre as condições de produção do discurso (Foucault, 1987).

Enfatizar a relação entre o que se fala, como se fala e o contexto social e histórico no qual o discurso foi produzido foi o ponto central da análise. Para o contexto de produção do discurso, não apenas a história da música em São João del-Rei e região, mas também os atores inseridos nessa realidade foram considerados, tendo como marco inicial a sociedade são-joanense do final séc. XIX, quando a participação de mulheres foi evidenciada no meio musical, e, como marco final, o ano das entrevistas (2013).

A análise ocorreu em dois momentos interdependentes e não necessariamente sequenciais, como propõem Machado et al. (2013): no primeiro, foram investigadas as múltiplas determinações do discurso (sociais, econômicas, históricas, culturais etc.), isso é, o contexto de produção e a formação discursiva das entrevistadas; no segundo, foi analisado o texto, ou seja, as entrevistas transcritas, considerando-se as peculiaridades da língua.

Nesse segundo momento foram utilizados marcadores linguísticos e conversacionais. Os primeiros são aqueles encontrados na língua, assinalados com negritos nas citações de falas das entrevistadas (o "eu", por exemplo). Os segundos, conversacionais, designam elementos verbais e não verbais característicos da interação; eles desempenham papel de sinalizadores no discurso (Charaudeau & Maingueneau, 2006), ou seja, marcam a produção discursiva e estabelecem elos entre o contexto e o que é dito ou escrito. O principal marcador utilizado foi o termo-pivô. Esse dispositivo auxiliar que, segundo Maingueneau (2006), dominou os primeiros trabalhos de análise do discurso, consiste em selecionar a priori palavras-chave (ou termos-pivô) "consideradas representativas de uma formação discursiva" (Maingueneau, 2006, p. 77).

Como marcadores de gênero procurou-se por ele, eles, para se referir aos homens, pai, marido, namorado, filho(s), homem(ns), mulher(es), masculino, feminino, feminilidade, menino, menina, diferenças, preconceito. E como norteador para identificar geração, foi proposta a pergunta: "com quem estou?" ou "com quem estava?", para apreender as diferentes gerações ou grupos com os quais cada uma das entrevistadas se identifica.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO DA ANÁLISE

4.1 Histórias que se cruzam

Foram entrevistadas duas pianistas (L. C., 89 anos, e J. B., 30); duas violinistas (L. S, 24, e J. F., 21); três cantoras (C. M., 89 anos, L. A., 85, e M. C. S., 80); uma flautista, cantora, regente e professora de música (B. L., 68); outra regente (M. S. N., 85) e uma flautista, saxofonista e professora de música (M. L. V., 50 anos).

Das dez musicistas entrevistadas, três estudaram música em casa ou no colégio; as outras sete se formaram pelo Conservatório Estadual de Música Pe. José Maria Xavier. Dessas sete, quatro se formaram ou estão se formando no Curso de Música da UFSJ. Hoje, com a abertura do curso, se tornou mais acessível passar pelo aprendizado formal e conquistar o diploma universitário em Música.

A análise evidenciou pontos convergentes e pontos divergentes na trajetória dessas mulheres. Por meio da análise tornou-se também possível descrever as quatro gerações de musicistas envolvidas na mudança social, como propõe Ferrari (1874). A noção de geração representa a mediação entre o tempo individual e o tempo de todos. Assim sendo, os sujeitos são marcados por aquilo que receberam de seu tempo e também por seus contemporâneos (Moreira, 2001).

Foram consideradas "precursoras" as musicistas na faixa etária de 80 a 90 anos, por serem as mais antigas na atividade musical. Aquelas primeiras mulheres evidenciadas desde 1879 na atividade musical pública são-joanense não foram esquecidas. Porém L. C., C. M., L. A., M. S. N. e M. C. S. são as "precursoras" das gerações de musicistas que as sucederam. Nascidas entre 1924 e 1933, essas mulheres compartilham a mesma educação: algumas estudaram no Colégio João dos Santos e as que tinham melhores condições financeiras se formaram pelo Colégio Nossa Senhora das Dores. Participaram então do Orfeão do Colégio. L. A., 85 anos, fez parte do primeiro Orfeão do Nossa Senhora das Dores, em 1944.

Os corpora revelam que apenas uma dessas musicistas ainda atua no cenário musical. Uma faleceu recentemente e as outras não cantam nem tocam mais. Consideram-se já com idade avançada, o que dificulta tudo: as que cantavam acreditam que perderam a voz; a pianista sofre com a perda da visão e com artrose, o que dificulta seus movimentos. Vejam-se algumas de suas falas: "Hoje eu perdi minha voz, não tenho mais a voz que tinha" (L. A., 85 anos). "Eu queria continuar a tocar [...] eu fui deixando [...] eu peguei essa artrose [...] e hoje em dia, eu não gosto de passar nem perto do piano [chora] [...] Eu não consigo tocar mais nada" (L. C., 89 anos).

Há também queixas sobre dificuldade de locomoção e falta de companhia. Uma característica presente em três das cinco trajetórias se refere às mudanças na configuração das corporações: as três musicistas relatam que as pessoas já não são mais as mesmas, muitas envelheceram também e outras tantas faleceram.

Outros pontos dessas cinco trajetórias se entrecruzam. Três musicistas se casaram e duas delas deixaram de atuar no meio público após o casamento. Expressões como "ele me tirou de tudo" e "depois que casa, você sabe como é que é" foram recorrentes no discurso. Após o falecimento dos cônjuges, as duas retomaram o ofício musical que anteriormente era restrito às reuniões familiares. Uma delas inclusive assumiu cargo de presidente efetiva de uma orquestra. Eis fragmentos de discurso que enunciam: "Eu perdi meu marido, aí eu falei: – Bom, agora eu vou continuar" (L. C., 89 anos). "Quando ele faleceu, eu tinha 31 anos de casada [pausa] [...] voltei a cantar [risinhos]!" (L. A., 85 anos)

Das cinco musicistas com idade acima de 80 anos, três participaram da Lira Sanjoanense e da Sociedade de Concertos Sinfônicos. Duas delas participaram do boom das operetas realizadas pela Sinfônica entre 1960 e 1973. M. C. S. desempenhou a função de ponto e C. M. atuou em "Sonho de valsa", de Oscar Strauss, e em "A viúva alegre", de F. Lehár. Essa última opereta estreou pela Sociedade de Concertos Sinfônicos em 1956. C. M. participou da primeira montagem e foi destaque nas críticas da época (Guerra, 1968).

Outro ponto evidenciado se refere ao nervosismo e à ansiedade frente à atividade musical. Dessas cinco musicistas, quatro relataram timidez, tremedeira nas mãos e nas pernas, engasgos e falhas na voz. Nesse grupo de mulheres, características muito semelhantes foram evidenciadas, como as interdições, o casamento como um impedimento, os nervosismos e a insegurança frente à atividade musical. Entretanto, pontos que distanciam suas trajetórias também foram notados.

Dentre as musicistas que se casaram, está M. S. N. que nunca abandonou a música. Para ela o casamento não representou um obstáculo, talvez por ter convivido com a tradição musical familiar e por ter se casado com um músico e companheiro de orquestra. Pelos papéis assumidos, foi preciso coragem e uma postura rígida, segundo ela mesma: um espelho para os demais. Pelos seus setenta e três anos ininterruptos na música, traços da geração “revolucionária” foram evidenciados em sua trajetória.

Já B. L., 68 anos, num movimento intermediário, compartilhou com a primeira geração algumas experiências, como ter participado das operetas nos anos 1960 e 1970. Ainda muito jovem atuou em "Sonho de valsa", "A viúva alegre" e "Princesa das Czardas". Ela se recorda que precisou de autorização judicial para viajar a primeira vez com a Sinfônica, porque tinha apenas quinze anos na época. Em "Conde de Luxemburgo", representou papel de destaque.

B. L. pode ser considerada uma representante da geração “revolucionária”: ela bateu o pé a favor da música, o que não aconteceu com a maioria das precursoras e ainda se dividiu entre muitas tarefas para dar conta dos compromissos: casa, filhos, trabalho, aulas no Conservatório da cidade, cursos de especialização, entre tantas outras atividades: "No princípio ele [o marido] estranhou um pouco, mas como ele já me conheceu na música, falei: – Uma coisa que eu não largo é música! [...]. Nunca deixei de fazer música" (B. L., 68 anos).

M. L. V., 50 anos, também tem um pé na geração "revolucionária". No início da carreira como professora no Conservatório, mesmo o regime da instituição sendo contratual e sendo ela auxiliar de enfermagem formada, a música era a sua primeira escolha profissional. Depois de treze anos lecionando flauta doce e transversal, ela decidiu aprender um novo instrumento: o saxofone. Hoje, dando aula nessa área, ela vivencia as dificuldades que a escolha lhe impõe. O ciúme dos colegas homens é um exemplo que ela relata.

Por outro lado, é possível perceber traços conservadores e, portanto, reativos, em seu discurso. Sua entrada no Curso Superior de Música da UFSJ, por exemplo, não representa uma escolha puramente pessoal. Assim como outras colegas de trabalho, M. L. V. se viu esbarrando em exigências do Estado para que todos os professores do Conservatório fossem habilitados. Ter apenas o curso técnico já não era suficiente para lecionar na escola. Embora tenha adiado esse passo, em 2011 ela entrou para o Curso de Música como portadora de diploma, pois já era graduada em Filosofia pela mesma universidade. Porém bateu-lhe a insegurança e o medo de não conseguir administrar casa, trabalho e estudos: "Eu fiquei com medo de não dar conta [...] dar aula, fazer faculdade, casa [...] apesar de eu não ter filho."(M. L. V., 50 anos).

No discurso de J. B., 30 anos, há um predomínio de características da geração "reativa". Embora ela seja totalmente contra a organização dos grandes grupos musicais das Vertentes e tenha uma visão completamente diferente de quem atua nesse segmento, ela acredita que seus dois anos no coro da Ribeiro Bastos serviram como experiência. Diferentemente das outras entrevistadas, ela diz acreditar que essas instituições estão fadadas ao fim e se posiciona veementemente na contraposição profissionalismo/amadorismo: para ela, as corporações amadoras de São João del-Rei escravizam seus membros.

Hoje em dia, tudo o que eu olho... eu olho para essas instituições... eu acho que é por isso, eu olho com uma certa distância e falo: – Nossa, não tem mais nada que posso aprender ali. Eu acho que justamente porque eu já aprendi o que eu tinha que ter aprendido, entendeu? [...] E ali [na Ribeiro Bastos] eu aprendi muita coisa de música, muita coisa assim, de prática de música [...] (J. B., 30 anos)

Por outro lado, ela retorna à primeira geração nos planos para o futuro: seu desejo é dar aula particular de piano. Ela então se volta às precursoras, mas ao mesmo tempo se mostra resistente a mudanças. Ela abdicou tentar mudar a realidade da música em São João del-Rei, tanto nas corporações quanto no Curso de Música. Ela acredita que há um ranço que impregna as relações na cidade e se diz cansada de se indispor com as pessoas na busca por mudanças.

Perante as gerações aqui apresentadas, L. S., 24 anos, e J. F., 21 anos, representam a geração "resolutiva", aquela que consegue produzir soluções para os impasses. São muito dinâmicas e estão absorvidas numa cultura imediatista. Com a facilidade do acesso a canais de vídeos online, como o Youtube, elas podem se aperfeiçoar conferindo apresentações de musicistas renomados (as) a qualquer hora.

A abertura do Curso de Música da UFSJ representou uma conquista para essas jovens que cresceram no percurso conservatório/ orquestra. Viver de música para essa geração é o resultado de muito trabalho, tarefa não alcançada pelas precursoras, como bem pontuou M. C. S., 80 anos, em seu depoimento: “Se eu fosse viver de música eu morria de fome, porque nunca ganhei nada de música”. (M. C. S., 80 anos).

J. F. é a primeira geração de mulheres de sua família a entrar para a universidade e se profissionalizar. Sua relação com as outras mulheres da família se evidenciou em sua fala, assim como as mudanças familiares que promoveu, a possibilidade de profissionalização que criou e sua realização pessoal como mulher. A tensão rebeldia vs. submissão foi expressa em sua fala: ela revelou que a mãe voltou a estudar, mas enfrentou as resistências do companheiro. Sua própria entrada no mercado de trabalho também foi tardia por causa da criação dos filhos e da não aceitação do marido de suas atividades fora de casa.

A mãe projetara na filha seus desejos, entre os quais a atividade musical. J. F. foi muito incentivada pelos pais, principalmente pela mãe que a acompanhou de perto nos estudos. Hoje ela é motivo de orgulho e exemplo: a mãe que sempre sonhou em aprender música agora vê a filha como professora. J. F. se formou em setembro de 2013 e pretende continuar sua carreira como instrumentista e como educadora musical.

L. S. teve sua primeira filha ainda muito jovem, aos 16 anos. Aos dezoito, em época de vestibular, engravidou da segunda. Não seguiu adiante com a vontade de cursar Engenharia Civil, pois teria que se mudar da cidade, mas, devido a sua trajetória no Conservatório e na orquestra Ribeiro Bastos como violinista, se inscreveu na primeira turma de Música da UFSJ. Sentiu na pele o cansaço do desafio: conciliar a maternidade e o ingresso na faculdade. Na criação das duas primeiras filhas, L. S. contou exclusivamente com a ajuda da mãe; o pai das meninas nunca foi presente. Quase no final da graduação, ela engravidou do terceiro filho e, hoje, se desdobra na criação dos três, agora com a ajuda do noivo.

[...] Apesar dele não ser músico, ele entende totalmente a minha vida. Mas porque eu coloquei isso [...] Me conheceu na música [...] Mesmo assim não aceita, eu tenho que toda hora bater o pé [...] Não aceita porque viaja muito, tem ensaio direto [...] Aí, agora ele, sabe? Entende mais. Mas foi difícil, teve uma época que nossa, não tava dando conta. Falei: – Ah, então vou te largar, porque [rindo] dá certo não! (L. S., 24 anos).

L.S. está sempre correndo e com a agenda lotada: está terminando a graduação; é violinista da Ribeiro Bastos, spalla da orquestra da Universidade, participa da Sinfônica e do grupo Capela Del Rey, dá aulas de violino, toca em casamentos e eventos, viaja com as corporações e pretende fazer Mestrado. Ela se encontra nesse turbilhão e, mesmo ainda tão jovem, diz que atingiu seus objetivos como mãe, instrumentista e educadora musical.

Outro atravessamento de gênero na performance musical se refere à maternidade. L. S. contou que, no dia a dia, encontra muitas pessoas que questionam como se pode ser uma boa musicista e ainda cuidar dos filhos, como se as duas coisas não pudessem caminhar juntas.

[...] De ficar falando: – Nossa, coitada! Ela tem filho! Ela não dá conta! [...] Essas coisas eu ouvi muito [...] já falaram pra mim, assim. Ou então: – Você é muito doida, você teve três filhos e ainda faz faculdade. Sabe? Mas quem me conhece sabe [...] que eu dei conta, que fiz sem problemas (L. S., 24 anos).

Acompanhando essas trajetórias narradas, fica cada vez mais claro como as gerações estão interconectadas. Os elos entre passado, presente e futuro ora se misturam, ora se dissipam, ora se refletem.

5. CONCLUSÕES

Ao longo de todo o trabalho árduo de análise e de imersão no discurso, foi possível conhecer com mais propriedade cada história e como ela está inserida numa rede complexa e como as histórias se cruzam, se esbarram, se distanciam, se renovam. No percurso realizado foi possível perceber como as experiências são incorporadas e como elas refletem a construção da ordem social.

Ao final desse percurso, é importante salientar que a análise apresentada e as articulações propostas são apenas uma aproximação entre tantas outras possíveis. A análise do discurso permite uma gama bem mais extensa de análises. Mas a construção de cada uma seria sempre determinada pelo olhar e pela implicação do pesquisador relativos ao material e ao tema.

A criação do Curso de Música, um acontecimento recente na cultura musical das Vertentes, e a possibilidade de profissionalização na área, sem a necessidade de se deixar São João del-Rei, fomentam as discussões sobre a música que é realizada na cidade. Podemos dizer que há cisões entre aqueles que lutam pela preservação da tradição musical tricentenária e aqueles que acreditam que a tradição precisa ser sim alimentada, mas também restaurada.

Percebe-se que a configuração das corporações da região das Vertentes vem sendo alterada. Hoje, diferentemente do início do século XX, a presença de mulheres nas orquestras sacras já representa metade de seus componentes. Nas bandas, onde a participação das mulheres se dá juntamente a um grupo composto em sua maioria por homens, esse movimento é mais lento, mas já assume um caráter de renovação.

Acredita-se que "nem a conservação, nem a transformação, acontecem de forma linear" (Moreira, 2001, p. 73). Portanto, "talvez a imagem de uma espiral" seja a mais adequada para representar o movimento geracional. Os movimentos de ir e vir e as mudanças no interior das famílias também devem ser levados em consideração quando nos referimos às gerações. Hoje dizemos de famílias múltiplas.

O diálogo com as proposições de Ferrari (1874) permite pensar como se dá a passagem dos legados geracionais. Assim, a análise aqui apresentada não objetivou condenar nenhuma das colaboradoras a "precursoras", "revolucionárias", "reativas" ou "resolutivas". O objetivo deste trabalho se resumiu especificamente a tentar identificar no discurso dessas mulheres características que as aproximem de cada uma das gerações envolvidas na mudança social, como propõe Ferrari (1874).

Acompanhando as trajetórias, fica cada vez mais claro como as gerações estão interconectadas. História social e história individual estão completamente intrincadas. Como fios emaranhados, as gerações são tecidas pela mesma roca. E, assim, a roda da vida continua girando indefinidamente.

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Texto recebido em 07 de agosto de 2014 e aprovado para publicação em 14 de setembro de 2015.

 

 

* Professora no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), unidade Americana/SP; Mestre em Psicologia, linha Processos Psicossociais e Socioeducativos, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: mayarapachecocoelho@ gmail.com. com.
** Professor Associado III do Departamento de Psicologia da UFSJ. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP, com estágio Pós Doutoral em História da Psicologia Comunitária. Coordenador do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP/UFSJ). E-mail: mvsilva@ufsj.edu.br.
** Doutora pela Universidade de Paris Norte (Paris XIII); Pós-doutora pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi professora titular na UFMG, pesquisadora visitante e professora senior na UFSJ. E-mail: marilianmm@gmail.com.
1 Utiliza-se aqui a denominação musicista(s) para designar as mulheres no ofício da música. Musicista, no entanto, é substantivo comum de dois gêneros, usado para se referir a homens e a mulheres. Habitualmente, quando se refere a homens, emprega-se músico. O uso da palavra música para se referir a mulheres que fazem música, como proposto no Dicionário Musical Brasileiro de Mário de Andrade (1989), causa estranhamento, pois a palavra música se refere principalmente à arte e técnica de combinar sons de forma melodiosa.
2 Até então um colégio particular exclusivo para meninas e moças.
3 Giuseppe Ferrari (1812-1876), filósofo, historiador e político italiano. Suas teses, especialmente as políticas, continuam a ser estudadas e adotadas ainda no séc. XXI. No Brasil, ele é citado, entre outros, por Moreira (2001).
4 4 M. S. N. faleceu em 28 de abril de 2013, aos 85 anos.

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