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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p860-881 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2017v23n3p860-881

 

Os saberes "PSI" no diagnóstico de história da loucura de Michel Foucault

 

"PSI" knowledge in Foucault’s history of madness diagnosis

 

Los saberes "PSI" en el diagnóstico de locura y civilizaciónde Michel Foucault

 

 

Tiago Hercílio Baltazar*

 

 


Resumo

Investigaremos a primeira arqueologia realizada por Foucault, História da loucura, onde se encontram mobilizados expedientes teóricos para uma problematização histórico-filosófica dos saberes da radical "psi".Esta obra elabora uma perspectiva extra científica de saberes modernos como psicologia, psiquiatria e psicanálise, na qual eles emergem estruturados sobre um "postulado antropológico" que, segundo o diagnóstico filosófico de Foucault, lhes impõe limites e apontaria para o seu esgotamento na contemporaneidade. Faremos uma leitura detida de alguns conceitos e recortes efetuados pelo arqueólogo, com o objetivo de explicitar o plano de construção desta problematização, suas operações principais e o modo pelo qual as estratégias empregadas se articulam para compor o referido diagnóstico do presente.

Palavras-chave: Diagnóstico do presente. Michel Foucault. Arqueologia dos saberes "psi".


Abstract

We investigate the first archaeology elaborated by Foucault, history of madness, where we can find theoretical expedients mobilized for an historical philosophical problematization of the modern "psi" knowledge. This work elaborates an extra scientific perspective of knowledges such as psychology, psychiatry and psychoanalysis, where they emerge structured on an "anthropologcal postulate" which, according to the foucauldianphylosophical diagnosis, imposes to them limits and points at their exhaustion in contemporaneity. We will proceed on a careful reading of some concepts and cuttings made by the archaeologist, aiming at the explicitation of the problematization plan, its main operations and how the strategies used are articulated to compose the mentioned diagnosis of the present.

Keywords: Diagnosis of the present. Michelfoucault. Archaeology of "psi" knowledge.


Resumen

Investigamos la primera arqueología realizada por Foucault, Locura y civilización, donde se encuentran movilizados dispositivos teóricos para un cuestionamiento histórico-filosófico del conocimiento de radical "psi". Este trabajo desarrolla una perspectiva extra científica de estos conocimientos modernos, como la psicología, la psiquiatría y el psicoanálisis, en el que surgen estructurados sobre un "postulado antropológico" que, de acuerdo con el diagnóstico filosófico de Foucault, les imponen límites y apunta a su agotamiento en la actualidad. Vamos a hacer una lectura atenta de algunos conceptos y enfoques realizados por el arqueólogo, con el fin de explicar el plan de construcción de este cuestionamiento, sus operaciones principales y la forma en que las estrategias empleadas están vinculadas a componer el dicho diagnóstico.

Palabras clave: Diagnóstico del presente. Michel Foucault. Arqueología del saber "psi".


 

 

1. APRESENTAÇÃO

Este artigo apresenta parte dos resultados de nosso projeto de pesquisa realizado no período 2011-2013, com o título "História e diagnóstico na arqueologia de Michel Foucault". Orientando-se pelo aprofundamento do papel da história no pensamento de Foucault, buscamos relacionar as estratégias de problematização mobilizadas nas suas investigações arqueológicas como expedientes teóricos no interior de um processo de elaboração de diagnósticos. Os resultados desta pesquisa colaboraram para compreender a própria articulação interna das diversas estratégias de problematização da história, tentadas em cada arqueologia, bem como apresentar as diferentes formas de diagnóstico que elas implicaram. Tematizando as inflexões e deslocamentos no pensamento arqueológico de Foucault, chegamos à formulação de uma tese segundo a qual, de forma subjacente a todos os diagnósticos elaborados, a história é identificada pelo arqueólogo como um limite do saber moderno: o pensamento arqueológico culmina na exigência de radicalizar a abordagem da história como um caminho para pensar as transformações do presente nos idos de 1960. São esses elementos, fundamentalmente, que permearam o caloroso debate de Foucault com as tradições fenomenológica e marxista no mesmo período1.

No presente artigo, vamos tratar da história arqueológica e de seu consequente diagnóstico tal como foram elaborados em História da loucura: na idade clássica (Focault, 1961). Neste caso, a arqueologia tomou por objeto o acontecimento da emergência dos saberes da radical "psi" na passagem para o século XIX. Ela encontrará as condições de possibilidade destes saberes numa estrutura antropológica que se constituiuem relação auma tentativa de domínio da loucura, isto é, uma operação de "neutralização da diferença" pelas categorias da razão, que o arqueólogo então passa a investigar como pertinente aos limites desses mesmos saberes.

Frente à vasta possibilidade de referências existentes para a obra foucaultiana, somada à extensa produção do próprio autor, não é uma tarefa simples tomar as decisões quanto ao uso da literatura secundária. Nosso critério para justificar este recurso será atrelá-lo aos objetivos do artigo em cada um de seus momentos. Por isso, utilizamos conjuntamente autores e intérpretes clássicos, que estabelecem um plano básico para a compreensão da obra foucaultiana, e ao mesmo tempo autores circunstanciais, onde julgarmos haver maior desenvolvimento de alguma questão apontada por nós no decorrer de nossa investigação. Por se tratar, basicamente, de uma análise e interpretação de textos em formato de ensaio, nosso procedimento metodológico consistirá em explicitar e relacionar conceitos, extrair implicações e formular conclusões com base em passagens consideradas relevantes para cada uma dessas operações.

2. DA NAU AO HOSPITAL, DO HOSPITAL AO ASILO

Em História da Loucura Foucault descreve o momento em que o internamento mudava de função no fim do século XVIII. Para isso foi importante reconstruir um longo processo de captura e dominação da loucura pela razão que teve início no século XVI. A experiência renascentista da loucura envolvia duas vertentes; um lado trágico, fascinante e cósmico, forma de saber sobre a loucura que expressava a experiência trágica do homem no mundo, com figuras fantásticas que anunciam o fim dos tempos. Ao lado da qual havia uma experiência crítica e moral da loucura, que transparecia, sobretudo nas sátiras sobre a fraqueza, a ambição, a avareza e a presunção dos homens. A relação entre essas duas experiências era ambígua e conflituosa, tendo sido marcada por uma progressiva ironização crítica das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas, em que predominou um julgamento crítico centrado na questão da verdade e da moral.

Foucault analisa o Grande Internamento de 1656 como a expressão institucional de um espaço aberto pela época Clássica (séculos XVII e XVIII) em que a Razão internará indistintamente vagabundos, devassos, pródigos, criminosos, maus pagadores, dentre outros, como medida prática de instauração de uma ordem moral. Foucault busca renovar as análises recorrentes que superpõem esses acontecimentos – o internamento ou a existência de internados – ao desenvolvimento de uma prática médica que buscaria dar a esses necessitados um tratamento com base científica. Sua análise do acontecimento que chegou a internar um por cento de toda a população de Paris opera um deslocamento de foco: não parte da teoria médica, isto é, de como a medicina conhecia a loucura, mas busca compreender o aparecimento de uma percepção do louco a partir de uma interrogação das práticas, técnicas e processos relativos ao cotidiano das instituições e instâncias sociais (igreja, família, justiça, etc.).

A estratégia de pensamento lançada por Foucault será investigar esse acontecimento a partir da distinção entre conhecimento e percepção, observando que essa medida de encarceramento não segue critérios de um conhecimento médico, mas que ela é de ordem ética e moral. A distinção entre conhecimento e percepção nos coloca diante daquilo que é próprio às análises históricas realizadas nessa que foi a primeira obra arqueológica de Foucault. Esse fenômeno é analisado em seus aspectos sociais, econômicos, jurídicos e políticos, permitindo que seja destacado o seu gesto positivo: o ato de internar não apenas exclui, mas produz um domínio de realidade e saber; instaura, em vista dos critérios que institui e exerce, um outro da sociedade. Assim, o internamento clássico cria um novo domínio de experiência, a percepção de uma população homogênea sob o signo da Desrazão (Machado, 2006, pp. 58-9).

O que é objeto dessa percepção social não é uma doença mental definida segundo critérios médicos. O Grande Internamento estaria ligado, na época Clássica, a uma "experiência ética da desrazão2" (Foucault, 2007, p. 93), isto é, a uma forma cultural que individualiza uma parcela da população segundo a ordem da razão clássica, que é uma razão ética e que fornece os critérios de uma ordenação social. Essa ordenação cria um objeto que é em suma o negativo da razão.3 Daí que, para Foucault, "a evidência do 'esteaqui é louco', que não admite contestação possível, não se baseia em nenhum domínio teórico sobre o que seja a loucura" (Foucault, 2007, p. 187).

Por outro lado, como uma outra dimensão do problema – e que parece contradizer a afirmação anterior, segundo a qual a percepção social da loucura na época Clássica não se orienta por critérios médicos – a medicina buscou de fato, nessa mesma época, integrar um conhecimento teórico sobre a loucura.

Todavia essas duas dimensões – percepção social e conhecimento médico – não se comunicam, não tratam de uma mesma coisa, que seria a loucura sendo tateada por cada uma delas a seu modo. A loucura não é um objeto da prática médica. Para evidenciar essa tese, Foucault busca, na própria heterogeneidade dos tipos internados sob o signo da desrazão, os indícios da ausência de um conhecimento médico cujos critérios definiriam o objeto loucura. Mesmo nos casos em que a prática médica voltou-se para as "perturbações do espírito", o fez a partir de uma racionalidade nosográfica que não se apoiava em observações empíricas e que jamais conseguiu assimilar um conhecimento sobre a loucura. A percepção que enclausurava os loucos não atinge a loucura como uma doença, o conhecimento médico não observa nem tem por objeto os internados.

Esta partilha sem recursos faz da era clássica uma era do entendimento para a existência da loucura. Não há possibilidade alguma de qualquer diálogo, de qualquer confronto entre uma prática que domina a contranatureza e a reduz ao silêncio e um conhecimento que tenta decifrar as verdades da natureza (Foucault, 2007, p. 173).

No entanto, apesar de formarem duas dimensões independentes, prática do internamento e consciência médica da loucura têm na Razão uma convergência quanto a seus princípios, isto é, "as categorias da desrazão estão presentes na própria objetivação da loucura pelo saber teórico da medicina clássica" (Machado, 2006, p. 64). Segundo Foucault, seria possível isolar uma experiência única “que sustenta, explica e justifica a prática do internamento e o ciclo do conhecimento” (Foucault, 2007, p. 175).4 Essa distinção entre dois domínios inassimiláveis e sua dependência da Razão como ordem da experiência clássica da desrazão, produzindo loucura social e epistemologicamente, servem a Foucault para desconstruir uma suposta autonomia da prática médica, questionando a ideia de que ela estaria voltada, desde o início, para o desenvolvimento terapêutico de suas técnicas.

Entre todos esses aspectos diversos da sensibilidade à loucura, a consciência médica não é inexistente – mas não é autônoma; com maior razão, não se deve supor que é ela que sustenta, ainda que obscuramente, todas as outras formas de experiência [...] dificilmente penetra no domínio constituído pelo internamento e pela sensibilidade social que nele se exprime (Foucault, 2007, p. 133).

Mas segundo a ótica das "narrativas oficiais", esses são apenas pequenos inconvenientes. Nesse momento em que os cientistas "psi" reconhecem sua pré-história, entendem que a ignorância dos homens do passado não permitia conferir aos doentes mentais verdadeiros cuidados clínicos porque a psiquiatria ainda não tinha nascido. Para eles, se a orientação básica dessas medidas sociais não podia satisfazer os critérios de ordem médica, ou se a consciência médica não podia assimilar esse fenômeno social, era porque o saber ainda não estava suficientemente desenvolvido. Assim, aquela percepção social, até então reconhecida apenas como mal-estar na sociedade, pouco a pouco teria sido formulada nos termos de um conhecimento científico sobre a loucura. Nessas narrativas podemos ver que, se a psiquiatria esteve ausente de início, por outro lado não deixou de manifestar o seu desenvolvimento de maneira persistente e sempre obstinada a atingir, finalmente, esse momento em que os espíritos iluminados de homens como Tuke e Pinel reconheciam humanamente os "doentes mentais".

Essas narrativas parecem sustentar-se no fato de que, a partir do desaparecimento da noção de Desrazão, no fim do século XVIII, os loucos efetivamente deixarão de ser apenas excluídos por uma medida de proteção social para serem também tratados. É para esse momento decisivo que se encaminham as análises de Foucault, tematizando tal acontecimento – segundo o qual a razão esclarecida passa a assumir definitivamente a tutela da loucura – a partir de uma dimensão que, segundo sua tese, escaparia àquelas narrativas. De que exatamente essa consciência psiquiátrica não pode se dar conta, segundo Foucault, e que seria ainda relativo ao seu próprio aparecimento? Em suma, os resultados dessas análises pretendem mostrar as "origens baixas" da psiquiatria uma vez que, em sua essência, "o que se chama de prática psiquiátrica é uma tática moral, contemporânea do fim do século XVIII, conservada nos ritos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismo" (Foucault, 2007, p. 501). Vejamos como Foucault chega a esta conclusão.

A psiquiatria não circunscreve um acontecimento relativo às suas origens porque se limita a operar a partir de suas próprias condições de possibilidade. Isso que lhe escapa, e que Foucault busca trazer à tona através de uma escavação arqueológica, é o processo de individualização do louco, ou de diferenciação entre desrazão e loucura que ocorreu na segunda metade do século XVIII. No nível epistemológico, apreendemos teorias que individualizam a loucura como um tipo de alienação, de afastamento da natureza e de sua própria essência e verdade por parte do sujeito; são os temas da sociedade, da civilização e dos costumes artificiais modernos que corrompem e degeneram as disposições naturais do homem.

É que a loucura é uma doença, conforme as ideias do século XVIII, porém não da natureza, nem do próprio homem, e sim da sociedade; emoções, incertezas, agitação, alimentação artificial, todas essas são causas de loucura admitidas por Tuke e seus contemporâneos. Produto de uma vida que se afasta da natureza [...] (Foucault, 2007, p. 468). No entanto, se essas elaborações teóricas permitem constatar uma transformação considerável em relação ao estatuto clássico da loucura, a arqueologia defenderá a tese de que é o acontecimento da segregação que é constitutivo da ciência que então se estabelece. Numa palavra, as condições de possibilidade da psiquiatria moderna não são teóricas, mas institucionais.

Será preciso pôr em ação, como mencionamos anteriormente, aquele deslocamento de foco para o nível institucional e prático da percepção e da sensibilidade social. Um caminho para extrapolar o domínio da prática médica seria perseguir “formas estruturadas de experiência” cujo esquema pudesse ser encontrado em níveis diversos.5 É desse modo que a transformação no espaço do internamento será analisada no contexto de uma nova reflexão econômica sobre a pobreza. Com o capitalismo nascente, "toda a política tradicional da assistência e da repressão do desemprego é posta em questão" (Foucault, 2007, p. 404). Na medida em que se compreendia o homem como criador de valor, caducava aquela lógica das formas clássicas de assistência que excluía parte da população da vida social como uma solução artificial para regular os preços e a miséria. Ideias liberais darão novo destino aos "pobres válidos", que podem trabalhar, organizando uma assistência domiciliar aos "pobres doentes".6 O Hospital Geral, estrutura visível e forma institucional da segregação até a segunda metade do século XVIII, apoiava-se na experiência da desrazão como critério de ordenação social. Se o internamento dessa massa deixa de ser uma prática, apagando-se a evidência da categoria desrazão para a sensibilidade social, esse espaço homogêneo do internamento será evacuado – mas ainda uma figura permaneceria internada isoladamente, justamente aquela que será mais tarde "reconhecida" por nós como doente mental.

Entretanto, contra essa retrospecção é preciso notar que o isolamento dessa figura não se deu através da aplicação de um critério prévio a um domínio da experiência. Ocorre aqui um fenômeno inverso, espécie de esquema de exclusões superpostas cujo sentido não deve ser procurado em seu resultado: removem-se os criminosos, os maus pagadores, os ociosos, os debochados ou de "ligação inconfessável", mas permanece um tipo que não podia trabalhar, nem ser cuidado em casa pela família devido a sua periculosidade; isto é, não se encaixando nas categorias de pobre válido ou doente, esse tipo permanece, sem outro destino, isolado e internado numa situação que constituirá o a priori concreto da percepção médica. Trata-se da mesma estratégia que Foucault utiliza ao afirmar que a intervenção do médico no espaço de internamento não se deu em virtude da constatação da necessidade de um tratamento científico aos internos:

No entanto, e isto é essencial, a intervenção do médico não se faz em virtude de um saber ou de um poder médico que ele deteria, que se justificaria por um corpo de conhecimentos objetivos. Não é como cientista que o homo medicustem autoridade no asilo, mas como sábio. Se a profissão médica é requisitada, é como garantia jurídica e moral, e não sob o título da ciência. Um homem de grandes conhecimentos, de virtude íntegra e com longa experiência do asilo poderia bem substituir o médico. Pois o trabalho médico é apenas parte de uma imensa tarefa moral que deve ser realizada no asilo e que é a única que pode assegurar a cura do insensato (Foucault, 2007, p. 497).

Para a época clássica, a arqueologia de Foucault encontra um esquema de exclusão e redução da loucura a uma condição de não-ser, que prepara o terreno para o aparecimento de uma ciência "psi". Acompanhar o desenvolvimento de conceitos no âmbito do exercício teórico da medicina, de algum modo produz a falsa impressão de continuidade na formação de suas técnicas, enquanto nesse nível institucional se encontra uma transformação radical do espaço de internamento. O que é preciso destacar, e que desconstrói definitivamente a ideia de um desenvolvimento autônomo da prática médica, nesse que seria o seu “estágio pré-psiquiátrico”, é que o isolamento do louco e a objetivação de sua loucura, a designação de guardiões e de cuidados, enfim, toda a reorganização do espaço de internamento em Asilo, se deu como o resultado de um complexo conjunto de práticas econômicas, políticas, de técnicas de controle demográfico, imperativos morais, etc.7 De algum modo, diz Foucault, o internamento foi terapêutico antes mesmo de ser médico. Como isso foi possível? É que seus procedimentos de cura foram na origem efetivamente técnicas de uma outra natureza, sua ação foi moral e política antes de ser propriamente científica. E essa herança a psiquiatria não poderá mascarar indefinidamente, isto é, aquele seu gesto constitutivo de uma tentativa de instaurar uma ordem moral e que marca o limite de sua "neutralidade" e de sua "objetividade".

A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com a desrazão [sic]; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética da desrazão [sic] e pelo escândalo da animalidade (Foucault, 2007, pp. 161-2).

Mas ao afirmarmos que esse acontecimento se deu como resultado de um conjunto de práticas mais amplasse corre o risco de falsear o problema se assim o mantivermos simplesmente no registro da causalidade (Foucault, 2007, p. 385), ou seja, da determinação das causas agentes nesse processo que levou a uma transformação como seu produto final (o que permitiu que a loucura fosse feita objeto da psiquiatria? o desenvolvimento do conhecimento médico? Fatores econômicos? Necessidades sociais? manipulações políticas? Uma combinação de todos esses fatores?). Para compreendermos o que está de fato em jogo nessa tese, é preciso observar que a questão é bem outra; trata-se do tipo de transformação que se está analisando e que diz respeito ao novo estatuto que terá a loucura a partir do fim do século XVIII. Essa nova realidade diz respeito a uma "reflexão antropológica" que será uma forma cultural no interior da qual se aloja a possibilidade de um tratamento psiquiátrico com o poder de curar. Vejamos o que isso quer dizer.

3. O CÍRCULO ANTROPOLÓGICO: HOMEM-LOUCURAVERDADE

Em História da loucura Foucault entende por reflexão antropológica um fato cultural próprio ao mundo ocidental a partir do século XIX, uma espécie de postulado segundo o qual o ser humano não se caracteriza por um certo relacionamento com a verdade, mas detém, como pertencente a ele de fato, simultaneamente ofertada e ocultada, uma verdade (Foucault, 2007, p. 522). Cabe notar que essa forma historicamente constituída não totaliza o modo de ser dos acontecimentos. Ao lado dela e ligada ao poder da experiência trágica da loucura está outra experiência: uma experiência lírica que aflora na obra de transgressores, aqueles que reencontram o furor da loucura e apontam para a desagregação dessa configuração moderna.

Em certa medida, a loucura investe seus poderes no circuito dessa forma antropológica. Antropologizada, ela exerce seu poder desde o interior do indivíduo como fascínio, absorvendo a reflexão num jogo que reenvia incessantemente do homem a sua loucura, e desta a sua própria verdade. Mas acontece também à loucura escapar a essa estrutura, forçando o dilaceramento dessa tentativa de dominá-la que a confina nos limites de uma natureza humana. Assim, o saber “psi”, herança mascarada de uma condenação moral, permanece como essa forma precária que tenta dominar a loucura numa dialética da alienação. Forma que alimenta as narrativas do devir da razão ocidental através da atestação da necessidade e da inevitabilidade de nossa condição atual, mas cujos limites se anunciam como o perigo de seu próprio dilaceramento por essa experiência trágica, que dela escapa para recuperar os seus poderes.

No próximo subcapítulo ("4. Uma história dos limites") vamos buscar compreender melhor o que é esse perigo de dilaceramento que a arqueologia constata em seu diagnóstico, discutindo as teses arqueológicas no horizonte de uma crítica da cultura. Por ora, vamos seguir próximos ao texto de Foucault e concentrar-nos em como o saber "psi" teve o seu terreno preparado através do confinamento da relação clássica entre homem e verdade no interior dessa estrutura antropológica moderna.

Na época clássica, a partilha entre razão e aquilo que ela rejeita significava a confrontação das fraquezas do indivíduo com a ordem verdadeira do cosmos, em cuja distância e aproximação se fazia o jogo do ser e do fantasma. Como distância de toda verdade e ausência de ser, a loucura jamais poderia conter uma verdade. Esse relacionamento do homem com a verdade será radicalmente transformado e reduzido ao nível do indivíduo: numa tentativa de domínio da loucura, ele será incessantemente reenviado a sua loucura e, dela, para sua verdade. A loucura passa a sustentar uma linguagem antropológica: no jogo que vai da verdade do homem ao momento de perda dessa verdade, essa linguagem visa, no nível do próprio homem, a uma verdade dessa verdade8. Em suma, a verdade dessa relação íntima do homem com sua essência reside agora no próprio homem; proximidade sempre perdida e sempre reencontrada, entre o homem e sua verdade, e que implica a possibilidade dele ser "estranho em relação a si mesmo, Alienado" (Foucault, 2007, pp. 509 ;521). Então o homem faz a partir de si mesmo o jogo do Dia e da Noite, que o autoriza a estabelecer enfim, de si para consigo, esse tipo de relação cuja profundidade inventada chamamos psicologia (Foucault, 2001, pp. 193-4).

Nesse momento em que nascia o Asilo moderno, o arqueólogo chama a atenção para uma operação precisa que então se realizava: aquela estrutura binária da desrazão clássica, que fazia da loucura uma espécie de "prova a contrario daquilo que é, em sua natureza positiva, a razão" (Foucault, 2007, p. 509), será substituída por uma dialética em que a loucura torna-se alienação, e sua cura, um retorno ao inalienável (Foucault, 2007, p. 470). Temos aqui duas formas completamente incompatíveis; a diferença entre elas não se explica por um ajustamento ou por um incremento no nível dos conhecimentos. Trata-se de uma operação a partir da qual a cura do louco será agora um retorno àquilo que ele jamais perdeu: a razão; e ao terapeuta caberá, portanto, apoiar-se no que há de "racional" no doente a fim de curá-lo (. Lebrun, 1985, p. 16). No processo em que o Asilo foi investido de um poder de curar, Foucault sublinha uma descontinuidade no âmbito epistemológico:

a verdade da loucura é a razão do homem, o que inverte inteiramente a concepção clássica, para a qual a experiência da desrazão [sic] na loucura contesta tudo o que pode haver de verdade no homem. Doravante, todo domínio objetivo sobre a loucura, todo conhecimento, toda verdade formulada sobre ela será a própria razão, a razão recoberta e triunfante, o desenlace da alienação (Foucault, 2007, p. 471, grifo nosso).

Essa operação, pela qual se busca neutralizar a diferença da razão numa dialética sempre recomeçada do Mesmo e do Outro, permite constatar o vínculo secreto da prática psiquiátrica moderna, relativo a um domínio de experiência que escapa ao seu olhar objetivo. A segregação clássica, no seu gesto de excluir, colocar a distância, alienar a desrazão, aparece na arqueologia como condição de possibilidade da doença mental. Quando ela se encontrar assim já distanciada, já segregada e isolada, é que a loucura poderá ser tomada como objeto de um conhecimento possível, num saber que pode pretender curá-la porque a descaracteriza enquanto sua alteridade.

Quanto aos que professam que a loucura só caiu sob o olhar serenamente científico do psiquiatra após ser libertada das velhas participações religiosas e éticas nas quais a Idade Média a havia encerrado, esses devem ser constantemente remetidos a esse momento decisivo em que a insanidade conquistou suas dimensões de objeto, ao partir para esse exílio onde durante séculos ficou muda; deve-se pôr-lhes diante dos olhos esse pecado original, e fazer reviver para eles a obscura condenação que lhes permitiu, e só ela, manter sobre a desrazão [sic], afinal, reduzida ao silêncio, esses discursos cuja neutralidade é proporcional à capacidade que eles têm para se esquecer dos fatos. Não é importante para nossa cultura que a desrazão [sic] só tenha podido tornar-se objeto de conhecimento na medida em que foi, preliminarmente, objeto de excomunhão? (Foucault, 2007, p. 105).

É uma sensibilidade moral, dada a distância de toda diferença assim condenada, que autoriza o saber objetivo dando-lhe um conteúdo. Conhecimento psiquiátrico da loucura – grande monólogo da razão sobre seu Outro. A linguagem da loucura reencontra seu poder a partir do século XIX não mais para falar do dilaceramento do mundo, do fim dos tempos ou do homem devorado pela animalidade. Ela reaparece com o poder de enviar o homem a sua própria verdade, linguagem na qual não mais transparecem as figuras invisíveis do mundo, mas as verdades secretas do homem (Foucault, 2007, p. 511). Aquilo que se sabe sobre o louco, para além de possíveis incrementos quanto ao "conteúdo objetivo dos conhecimentos científicos", assume uma significação radicalmente nova: o olhar que incide sobre o louco não avalia mais, do exterior, toda a distância que separa o homem da sua animalidade, agora ele não vê sem ver a si mesmo. E o louco, com isso, redobra seu poder de atração e fascinação (Foucault, 2007, pp. 511- 2). Para esse olhar que espreita na loucura uma verdade do homem, a loucura se oferece ainda como tema de reconhecimento, investindo o olhar e os que dela se aproximam com as familiaridades insidiosas de uma verdade comum a todos (Foucault, 2007, p. 512).

Mas "a reflexão não quer acolher esse reconhecimento", afirma Foucault – reconhecimento da sua herança de uma experiência ética da desrazão, e que a faz cúmplice daquela prática de instauração de uma ordem moral. Para protegerse de seu conteúdo imediato, essa reflexão vai dispersá-lo para reencontrá-lo "refratado à superfície da objetividade" (Foucault, 2007, p. 512).

Essa comunicação subterrânea entre o louco e aquele que o conhece, julga-o e condena-o, perdia seus valores realmente ameaçadores na medida em que o mal era rigorosamente objetivado, desenhado no espaço de um corpo e investido num processo puramente orgânico. Com isso, a medicina simultaneamente punha um fim a esse reconhecimento lírico e ocultava, na objetividade de uma constatação, a acusação moral que ela carregava. E o fato de ver esse mal, essa falta e essa cumplicidade dos homens tão velha quanto o mundo, assim claramente situados no espaço exterior, reduzidos ao silêncio das coisas e punidos apenas nos outros, dava ao conhecimento a inesgotável satisfação de ser inocentado na justiça feita e protegido de sua própria acusação pelo apoio de uma serena observação à distância (Foucault, 2007, pp. 515-6).

Daí porque a loucura, na modernidade, se ela diz a verdade do homem, é somente na medida em que o fecha na objetividade.

Agora, toda loucura e o todo da loucura deverão ter seu equivalente externo ou, melhor dizendo, a essência mesma da loucura será objetivar o homem, escorraçá-lo para fora de si mesmo, estendê-lo finalmente ao nível de uma natureza pura e simples, ao nível das coisas (Foucault, 2007, p. 516).

É somente nessa estrutura em que a loucura reenvia à verdade do homem, tornando-a apreensível objetivamente, que o caminho se abre para aqueles que pretendem buscar apreender o homem na sua natureza, ou melhor, buscar uma natureza da loucura como virtualidade desviante da natureza humana. O desviante, o negativo, é agora ponto de partida para se chegar à verdade; o patológico (excluído de antemão pela razão clássica como erro, falsidade, ilusão) torna-se o próprio objeto de conhecimento:

É que o momento essencial da objetivação [da verdade], no homem, constitui uma coisa única com a passagem para a loucura. A loucura é a forma mais pura, a forma principal e primeira do movimento com o qual a verdade do homem passa para o lado do objeto e se torna acessível a uma percepção científica. O homem só se torna natureza para si mesmo na medida em que é capaz de loucura. Esta, como passagem espontânea para a objetividade, é momento constitutivo no devir-objeto do homem (Foucault, 2007, p. 518).

O Asilo cura porque a loucura da qual ele trata constitui, lado a lado com o homem, sua verdade; pois "a loucura não mais falará do não-ser, mas do ser do homem, no conteúdo daquilo que ele é e no esquecimento desse conteúdo" (Foucault, 2007, p. 509). É isso que caracteriza o pensamento moderno para Foucault em História da Loucura, "essa estrutura antropológica de três termos – o homem, sua loucura e sua verdade" (Foucault, 2007, p. 515), que substituiu aquela estrutura clássica binária (razão-desrazão), de modo que tudo aquilo que era mero signo do falso e do não-ser, e que jamais poderia constituir objeto positivo para a ciência, será agora fonte de saber.9Do homem ao homem verdadeiro, diz Foucault, o caminho passa agora pelo homem louco (Foucault, 2007, p. 518). A loucura se psicologiza num tipo de operação bem mais radical do que a anterior, uma vez que não é mais a de uma simples segregação, mas uma operação que impõe a todos e a cada um uma vigília constante sobre si mesmo.

Como conclusão acerca do que Foucault entende em História da loucura por essa estrutura antropológica podemos dizer que, a partir do século XIX, se constituiu uma tentativa de domínio da loucura que se caracteriza no seu modo de ser como uma reflexão antropologizante, isto é, como ação de refazer a evidência de uma verdade do homem, no homem; refazer incessantemente a positividade do conhecimento que descobre uma verdade do antropos, e cuja condição de possibilidade foi a segregação clássica e moral da desrazão. Essa reflexão consiste num movimento contínuo de objetivação da loucura, confinando o homem numa relação de si para consigo como operação que extrai dessa interioridade uma Verdade acerca de toda experiência da loucura e do próprio homem. Estabelecendo com a loucura uma relação à distância, monológica – monólogo da razão sobre a loucura reduzida ao silêncio –, o “discurso psi”, então capaz de verdade, mascara o conteúdo de uma condenação moral da loucura, inerente ao modo como ele se constituiu historicamente, e que tem por finalidade a neutralização de toda diferença da razão para atestar a sua necessidade e legitimar o saber que produz.

Grande reestruturação no saber ocidental com a passagem para o século XIX, portanto. Mas Foucault não pretende fazer da história uma ruptura. Se privilegia acontecimentos descontínuos em toda a diferença que introduzem, retraçandoos na sua verticalidade, é para inserir a positividade do saber psiquiátrico, bem como a evidência da doença mental, no conjunto das operações complexas que as prepararam e que as mantêm todos os dias. Essa descrição fornece uma perspectiva conflitante com as narrativas que se colocam como ponto de chegada e, a partir daí, projetam uma visão retrospectiva em que se naturalizam objetos de forma trans-histórica (a doença mental), refazendo-se indefinidamente a positividade do presente. E para Foucault é justamente do presente que se trata. No entanto, cuidamos até aqui apenas do modo como essas narrativas se tornam problemáticas nas análises de História da loucura. É preciso, a partir de agora, ver como isso é um expediente teórico funcional para a crítica do presente, bem como também é preciso extrair suas implicações.

4. UMA HISTÓRIA DOS LIMITES

Os discursos relativos aos saberes sobre o homem, localizados na época Moderna, formam a unidade temática da arqueologia, e dentre eles vimos que a psiquiatria foi privilegiada num primeiro momento. É como alvo de críticas que Foucault “privilegiou” a psiquiatria, a fim de mostrar como ela é insuficiente para dar conta de sua própria existência. O que é o inverso de afirmar que ele privilegie seu discurso para a investigação de seu acontecimento. Diferentemente da história unidisciplinar das ciências e da epistemologia, a arqueologia leva em consideração um conjunto heterogêneo de discursos e práticas sem privilegiar o discurso de uma determinada disciplina científica para entender o que se passa com suas técnicas, teorias, conceitos e objetos.

Nesses discursos Foucault vai constatar uma insuficiência; por isso, será exigida uma mudança de olhar sobre a história, que permita flagrar tal fragilidade, motivo pelo qual se operou o deslocamento de foco que mencionamos anteriormente. Finalmente poderemos compreender – e essa é a hipótese que estamos perseguindo – que toda a condução dessa investigação que problematiza a história se justifica na medida do que ela tem a dizer sobre o presente.

A arqueologia torna patente como o discurso "psi" se aloja de maneira cômoda no novo espaço aberto pela segregação clássica, limitando-se a reproduzir a linguagem da alienação e selando um compromisso estéril com a dialética do homem moderno. A tese de Foucault é que, no âmbito desse positivismo que impõe seus mitos de objetividade científica, fica encoberta justamente a reorganização (ou descontinuidade) a partir da qual ele mesmo tornou-se possível. Daí a atitude crítica de Foucault diante dos "discursos sérios"10, deixando de lado a história dos tipos psicológicos para fazer "a história daquilo que tornou possível o próprio aparecimento de uma psicologia" (Foucault, 2007, p. 522). A história da progressiva humanização dos loucos, imprimindo à bruta dispersão desses acontecimentos a orientação finalista da verdade, esconde uma série de operações que organizaram o mundo asilar, os métodos de cura e a experiência concreta da loucura (Foucault, 2007, p. 476).

Para Foucault, o fato do homem moderno e a loucura medicalizada serem contemporâneos um do outro, enfrentando-se numa dialética sempre recomeçada do Mesmo e do Outro, constitui o sinal de uma insuficiência. Era preciso renunciar a um saber sobre a loucura para se interrogar, diferentemente, sobre o que foi essa ruptura e como ela tornou possíveis esses discursos.

Renunciar ao conforto das verdades terminais e nunca se deixar guiar pelo que podemos saber sobre a loucura. Nenhum dos conceitos da psicopatologia deverá, mesmo e sobretudo no jogo implícito das retrospecções, exercer um papel organizador (Foucault, 2002a, p. 152).

Imaginar que os avanços da medicina transformam, na sua autonomia, nossa relação com a loucura e, consequentemente, o seu estatuto em nossa sociedade (da possessão ao internamento, dele a cuidados mais humanizados e, num futuro talvez próximo, sua solução definitiva), seria supor como inalterável aquilo que sem dúvida é o mais precário, o mais frágil acerca de nossa cultura e de nós mesmos11; seria imaginar como repousando em uma verdade plena aquilo que é o mais provisório; ou supor como estável aquilo que é o mais dependente das diversas práticas recorrentes que o sustentam. Esse saber "recobre mais do que designa o movimento que fecha sobre si a experiência da loucura"; isto é, Foucault desconfia que o saber psiquiátrico não dê conta do fato de que a doença mental esteja articulada "nessa implicação na qual ela é tomada, ao mesmo tempo, num saber psiquiátrico e em uma reflexão de tipo antropológico" (Foucault, 2001, p. 443); a psiquiatria não se dá conta, em suma, de que ao longo do século XIX o louco não será conhecido ou reconhecido senão sobre o fundo de uma antropologia implícita (Foucault, 2007, p. 521).

A mudança de olhar sobre a história consistiu em mostrar que a verdade da loucura não se identifica com as práticas científicas que a descobrem, não se deduz dos métodos apropriados para enunciá-la ou dos ajustamentos recíprocos entre sujeito e objeto. O saber "psi" é indissociável desse seu acontecimento na história, cativo de práticas muito heterogêneas, não científicas e não orientadas por uma finalidade humanitária. Interrogar, portanto, o saber sobre a loucura não é suficiente para alcançar essa transformação relativa à constituição da forma cultural moderna em que vivemos; não poderá dar conta, dito de outro modo, de responder o que somos nós – nós que, diferentemente de outras épocas, tratamos a loucura a partir de um saber especializado.

Podemos observar que a estratégia utilizada por Foucault é a de compreender uma cultura a partir daquilo que ela rejeita e exclui; os limites encontrados para essas formas presentes em que nos reconhecemos são como linhas que desenham a silhueta desta cultura em que estamos implicados; seus valores, a sintaxe de sua linguagem, a positividade de seu saber, são criados e mantidos a partir dos limites que a circunscrevem no lugar de onde ela fala e em que exerce suas escolhas. Não se trata, para Foucault, de negar a existência da doença mental12, da loucura patologizada na época moderna, mas de compreender que essa época retira a realidade desse objeto de percepção (social ou médica), extrai sua evidência, em suma, dessa região cujos limites definem uma cultura na sua identidade própria. Foucault se interessa pelo modo como estão articulados, na geografia de uma cultura, todos aqueles elementos que produzem, para ela mesma, a evidência de seus objetos e de seus saberes. A partilha, mais que o partilhado; o gesto, mais que a objetividade. Por isso se pode afirmar que História da loucura trata das práticas que designam a loucura, do poder que a exclui e do saber como aquilo que se encarregou de, uma vez feita a partilha, montar a guarda e vigiar todos esses limites.

Para isso será preciso interrogar a relação de nossa cultura com aquilo que ela exclui, retraçando no tempo essa verticalidade constante que confronta a cultura europeia com aquilo que ela não é. Isso será feito através de um entrelaçamento de filosofia e história permeado por uma crítica da cultura. Motivo pelo qual uma história da razão aparece como problema, pois não permite uma relação com aquilo que ela exclui senão neutralizando-o. A interrogação de Foucault parte da suspeita de que essa alteridade, mantida no silêncio pela calma do saber psiquiátrico13, seria a abertura para uma contestação radical de nossa cultura.

Tendo neutralizado a loucura na sua diferença, submetendo-a à condição de objeto para o saber "psi", o Ocidente narra uma história na qual se produz a impressão de que nosso presente é da ordem de uma conquista e de um acabamento, o resultado de um desenvolvimento necessário. Mascarando assim sua contingência, fez de uma evidência frágil uma verdade absoluta, de uma possibilidade entre tantas outras um desdobramento inevitável. Daí que a crítica, em História da loucura, tenha se apoiado numa “experiência trágica da loucura” para se colocar contra o apaziguamento racional dos acontecimentos pela dialética da história, em torno da qual todas as experiências refutadas gravitam como seus fantasmas e seu “Exterior” (Foucault, 2001, p. 189). A crítica visa ao desenlace da tensão constitutiva da identidade de uma cultura; crítica que, tocando-lhe os limites, promove a abertura para além de si mesma. Eis aí o grande postulado da arqueologia e de todo o pensamento de Foucault que começa a aparecer: a dialética da história não serve para compreender o presente.

A aposta no prefácio original da obra em 1961 é a de uma investigação que trataria menos da identidade que da questão dos limites de uma cultura; trataria menos do que foi construído, no sentido de que a história é a obra dos homens por excelência, e mais da ausência de obra. Portanto, a interrogação pelos limites de uma cultura, tendo em vista que ela pretende dizer algo de nós mesmos, passa por recusar a plenitude daquilo que constitui nossa cultura na sua identidade.

Mas assim como Foucault não nega a existência da doença mental, não pretende negar a história da constituição da identidade dessa cultura, mas sim, num caso como no outro, destituí-las de sua necessidade e generalidade, reconduzindo sua evidência aos acontecimentos que a fabricaram. Interrogar uma cultura sobre os seus limites é problematizar sua história, é buscar "nos confins da história" aquele dilaceramento que é como o nascimento mesmo de sua história (Foucault, 2001, p. 189). A loucura reduzida ao silêncio é um dos signos do limite de nossa cultura – ao lado do "Oriente inacessível", do "sonho", das "interdições sexuais" (Foucault, 2001, pp. 189-90). E o limite do saber sobre a loucura, como vimos anteriormente neste capítulo, foi constatado na sua herança de uma prática de segregação relativa a uma experiência ética da desrazão clássica; experiência que esse saber tenta mascarar sob a aparente objetividade científica. Daí uma questão que se colocava: "não é importante para nossa cultura que a desrazão só tenha podido tornar-se objeto de conhecimento na medida em que foi, preliminarmente, objeto de excomunhão?" (Foucault, 2007, p. 105).

O interesse da arqueologia não se reduz a um desmonte do positivismo ou da psicologia científica. Não se trata de mera "desconstrução desinteressada", mas do enfrentamento crítico dos "perigos" constitutivos de nosso presente. Trata-se de forçar essa fragilidade ao invés de buscar cobri-la e remendá-la; trata-se de atingir o seu limite e dilaceramento ao invés de jurar sua verdade. O que, afinal, essa interrogação crítica pôde dizer de nós mesmos? Onde ela nos levou? Ela pode dizer, em primeiro lugar, que

a percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história. Essa estrutura é constitutiva do que é sentido e não-sentido, ou melhor, dessa reciprocidade pela qual são ligados um ao outro; só ela pode dar conta desse fato geral de que não pode haver na nossa cultura razão sem loucura [...] (Foucault, 2002, p. 157).

Pode dizer que nossa razão, desde o seu nascimento, jamais deixou de estar ao lado do que ela nomeia loucura; que essa "necessidade de loucura", portanto, diz respeito em última análise à possibilidade de nossa própria história (Foucault, 2001, p. 191). Em suma, a arqueologia diz que a evidência de nossa realidade repousa sobre aquilo que foi excluído e que, portanto, permanece perigosamente constitutivo dessa mesma realidade. Por tudo isso, perguntar ao especialista em loucos pela verdade do homem seria permanecer no terreno do Mesmo. Era preciso ironizar as evidências, narrar tantas outras ficções para renovar nossa percepção, "em face de algumas palavras decisivas que tramaram o devir da razão ocidental" (Foucault, 2001, p. 190). O "ingênuo", as "narrativas oficiais", a "história progressista", a "perspectiva positivista", muitas vezes somos nós mesmos que o encarnamos, nós os leitores, aqueles com quem Foucault busca um diálogo. Somos ironizados14 em nossas perspectivas ao longo de toda a obra porque a desconstrução histórica realizada por Foucault não tem o efeito imediato de uma Revelação. Mais exatamente, o diagnóstico de Foucault não vai oferecer uma verdade sobre o presente, mas consistirá num exercício constante para reaprender a olhar, para onde olhar e onde procurar. O papel desse interlocutor ironizado reaparecerá nas obras seguintes, como veremos, sempre no intuito de formular uma nova perspectiva sobre nós mesmos e sobre o nosso tempo.

No texto La folie,l"absenced"oeuvre, Foucault (1964) se põe numa atividade ficcionante para imaginar como seríamos vistos por aqueles que não são mais como nós, que nos olham por sobre seus ombros e que não podem nos compreender, de modo a produzir um estranhamento diante disso que para nós é tão evidente que já nem percebemos: o que aparece como estranho, e que agora é tão familiar, não é um determinado saber ou técnica sobre a doença mental e o modo de tratá-la, mas, muito mais do que isso, o poder revelador da loucura em nossa sociedade, a relação profunda e patética que mantemos com ela, interpelando-a pela verdade do homem, toda essa experiência em que se dá o movimento de perda e de retorno da verdade.

Assim, marcar-se-á a viva imagem da razão com ferro em brasa. O jogo bastante familiar de nos mirarmos do outro lado de nós mesmos na loucura, e de nos pormos na escuta de vozes que, vindas de muito longe, nos dizem do modo mais próximo possível o que somos, esse jogo, com suas regras, suas táticas, suas invenções, suas astúcias, suas ilegalidades toleradas, não será mais, e para sempre, senão um ritual complexo cujas significações terão sido reduzidas a cinzas. Alguma coisa como as grandes cerimônias de troca e de rivalidade nas sociedades arcaicas. Alguma coisa como a atenção ambígua que a razão grega dava aos seus oráculos. Ou como a instituição gêmea, a partir do século XIV cristão, das práticas e dos processos de bruxaria. Entre as mãos das culturas historiadoras não restará mais nada a não ser as medidas codificadas da internação, as técnicas da medicina e, do outro lado, a inclusão repentina, irruptiva, em nossa linguagem, da fala dos excluídos (Foucault, 2002, p. 211).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Utilizando um jargão fenomenológico, talvez pudéssemos dizer que Foucault está inteiramente contido na menor de suas obras. E de fato em História da loucura se encontram inúmeros "traços foucaultianos": a descontinuidade como metodologia de problematização; o modo de referir um conceito ou objeto não à atividade que o descobre ou ao movimento que dele se aproxima, mas ao conjunto de práticas no interior das quais ele é constituído; o rompimento com a orientação teleológica para evidenciar a arbitrariedade dos acontecimentos; o eco da contrar referência filosófica nietzschiana; a ironia que desloca nossa relação habitual com os fatos históricos e, consequentemente, nossa compreensão de nós mesmos e de nosso presente; a ficção como exercício filosófico; a recusa em descrever os fatos no registro da explicação causal – todas essas são características da sua extensa pesquisa centrada na questão das práticas e dos saberes sobre o homem na época Moderna. Mas é preciso examinar tudo isso com maior cuidado, pois a arqueologia não é um sistema; ela é feita na realidade de vários ensaios, em que cada obra é uma experiência e uma tentativa de problematização que guarda suas apostas, que revisa e retifica seus instrumentos.

A história arqueológica de Foucault inverteu o procedimento de uma história evolutiva dos conhecimentos. Sua história da loucura narra não o descobrimento, mas o encobrimento, a dominação daquela que havia sido uma “experiência trágica”, originária e fundamental da loucura. Era necessário desviar, construir uma problematização da história que permitisse ao arqueólogo chegar à alteridade por uma via que não fosse aquela da sua captura, integração e dominação nas malhas da Razão. Se, nessa arqueologia, Pinel não quebrou correntes15, mas sim “acorrentou ao louco o homem e sua verdade” (Foucault, 2007, p. 522), foi porque Foucault, ao falar da loucura, não fez uso das categorias da razão, e por isso não a reduziu ao silêncio, como fazem as narrativas “psi” oficiais. Apreender a loucura a partir das "estruturas do trágico" foi o caminho aberto por Foucault para dizer o caráter histórico da verdade dos discursos "psi"; mostrar a fragilidade das condições que os tornaram possíveis; situar o saber moderno sobre a loucura no conjunto das práticas que a dominam, controlam, descaracterizam-na como diferença da razão.

Todavia, se por um lado História da loucura fez a denúncia das ilusões retrospectivas e do "falso gesto libertador de Pinel", por outro trouxe implícito um prejuízo que mais tarde será reconhecido pelo próprio Foucault. O prejuízo consistiria precisamente em dar margem a uma leitura na qual a experiência trágica da loucura teria uma dimensão trans-histórica. Malgrado as descontinuidades, capturas, deslocamentos, etc., a loucura permaneceria na arqueologia como uma experiência fundamental; e "fundamental" remeteria a um momento anterior à história e, portanto, irredutível a toda história. Tal prejuízo daria margem, em suma, para que se compreenda "fundamental" em sentido ontológico.

Não pretendemos negar esse prejuízo em História da loucura, mas demonstrar que ele não é exatamente um erro a ser solucionado, nem marcará uma ruptura no pensamento de Foucault, como afirmam alguns intérpretes. Aquilo que Dreyfus e Rabinow apontaram como uma "condição ontológica inatingível de pura alteridade [...] 'algo como uma loucura pura, buscada e encoberta por todas estas diferentes formas culturais" (Dreyfus & Rabinow, 1985, p. 4), foi na realidade o modo pelo qual Foucault buscou problematizar a história. Seria muito pouco questionar em que medida esse "resquício hermenêutico" haveria comprometido a tese de Foucault. Seria perder de vista aquilo que é decisivo em suas análises e que, como vimos, é a problematização da história e o seu resultado positivo enquanto elaboração de um diagnóstico filosófico. A consistência dessa problematização e sua relevância para a crítica do presente ficou constatada no modo como História da loucura respondeu à chave de leitura que propusemos. Em síntese, como se organizou esta problematização?

A verticalidade das análises nesta primeira arqueologia buscava ultrapassar o âmbito dos discursos na direção das práticas institucionais, investigando seu papel na constituição dos conceitos, teorias, etc. Tratava-se de investigar como as categorias de desrazão e alienação estiveram ligadas ao funcionamento cotidiano e à organização das instituições de reclusão, aos acontecimentos no espaço social, à economia, às transformações demográficas, etc. Esse modo de relacionar discursos e práticas institucionais consistiu numa via para contestar a autonomia da produção teórico-científica como explicação das transformações no estatuto da loucura em nossa sociedade.

Assim, essa primeira história arqueológica de Foucault relacionou a emergência dos modernos saberes da radical "psi" às suas condições concretas de possibilidade, como uma estrutura antropológica, historicamente constituída, que sustenta e ao mesmo tempo impõe os limites dessas formas de saber diante de uma experiência trágica que ameaça retornar do silenciamento imposto pelas categorias da Razão ocidental. As grandes linhas da problematização arqueológica da história encontram-se, portanto, já estabelecidas em História da loucura. A história das rupturas elabora um diagnóstico crítico dos limites, como constatação de uma nova experiência em que se revelam as insuficiências das formas supostamente plenas de verdade operadas por discursos e saberes.

No entanto, Foucault descobrirá relações e mecanismos mais complexos no nível do discurso e do poder, os quais aparecem para a análise arqueológica como uma espécie de recalcitrância. Essa complexidade se traduz para Foucault numa exigência de especificação desses mecanismos, sem a qual haveria margem para se compreender as relações entre práticas e discursos no modo simples de um paralelismo. É o que ocorre quando se concebe o discurso como legitimação, tradução, efeito ou ideologia; quando se imagina, por exemplo, que o discurso "psi" é mera tentativa de mascarar a instauração de uma ordem moral cuja origem remontaria ao Renascimento. É a relativa "autonomia dos discursos" que haveria sido até então negligenciada por Foucault, motivando um deslocamento de ênfase na análise arqueológica, levado a cabo na passagem para suas próximas obras. Assinalamos aqui um testemunho de Foucault a respeito:

Tomei como exemplo o domínio epistemológico da medicina e o das instituições de repressão, de hospitalização, de seguros aos desempregados, de controle administrativo da saúde pública, etc. Mas me dei conta, nesses dois primeiros livros, de que as coisas eram mais complicadas do que eu supunha, que os domínios discursivos não obedeciam sempre a estruturas que lhes eram comuns com seus domínios práticos e institucionais associados, que eles obedeciam, ao contrário, a estruturas comuns a outros domínios epistemológicos, que havia um isomorfismo dos discursos entre si em uma época dada (Foucault, 2008, p. 67).

O que podemos justificadamente observar nesse momento é uma mudança na estratégia metodológica da problematização, inaugurando uma nova aposta teórica na arqueologia. A novidade a partir de O nascimento da clínica (Foucault, 1963), ainda que não seja o momento da consolidação efetiva dessa estratégia, será uma sistematização do material de análise, segundo a qual o nível institucional é gradativamente colocado entre parênteses, permitindo assim uma especificação dos dispositivos que conferem uma determinada autonomia aos discursos. Nosso objetivo, perseguindo esse deslocamento, será compreender como essas transformações nos modos de problematização implicarão, por sua vez, em novas formas de diagnóstico. A continuidade de nossa investigação consistirá no conteúdo de publicações futuras, onde investigaremos as arqueologias de O nascimento da clínica (Foucault, 1963) e de As palavras e as coisas (Foucault, 1966).

REFERÊNCIAS

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*Psicólogo. Doutorando pelo Departamento de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná.E-mail: tiago. baltazar@ig.com.br.
1 Cf. Baltazar, T. H. (2014). História e diagnóstico na arqueologia de Michel Foucault. (Dissertação mestrado). Programa de Pós- Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas.
2 Substituímos nesta tradução o termo "desatino" por "desrazão", entendendo que este é mais fiel ao original déraison.
3"Essa percepção da desrazão não é médica, mas ética. O sistema que organiza o tipo de percepção do louco que se encontra na base do processo de internação é estruturado pela razão e pela moral ou, em outros termos, pela razão clássica que é uma razão ética. E o objeto constituído por essa percepção é o submundo moral da desrazão como desordem de costumes e negatividade do pensament"” (Machado, 2006, p. 60).
4Cf. a Introdução à Segunda Parte de História da loucura.
5Nesse aspecto Foucault se considera inspirado pela obra de Georges Dumézil (Cf. La folie n’existe que dans une societé, in: Foucault, 2001, p. 196).
6Ver sobre isso o capítulo 11 de Focault História da loucura: "A Nova Divisão", principalmente pp. 404-15.
7Sobre essas transformações relativas aos espaços de internamento, e a segregação clássica como condição de possibilidade para que a loucura seja feita objeto de tratamento numa estrutura de alienação, ver o interessante artigo de Salma Muchail (2004), "O Mesmo e o Outro: faces da história da loucura"; In: Foucault, simplesmente, pp. 37-48.
8"A loucura sustenta agora uma linguagem antropológica visando simultaneamente, e num equívoco donde ela retira, para o mundo moderno, seus poderes de inquietação, à verdade do homem e à perda dessa verdade e, por conseguinte, à verdade dessa verdade" (Foucault, 2007, p. 509).
9Por isso o paradoxo da psicologia positiva, segundo entendia Foucault em 1961: "O paradoxo da psicologia 'positiva' do século XIX é o de só ter sido possível a partir do momento da negatividade: a psicologia da personalidade por uma análise do desenvolvimento; a psicologia da memória pelas amnésias, da linguagem pelas afasias, da inteligência pela debilidade mental. A verdade do homem só é dita no momento do seu desaparecimento; ela só se manifesta quando já se tornou outra coisa que não ela mesm" (Foucault, 2007, p. 518).
10A expressão é de Dreyfus e Rabinow (1983), referindo-se ao discurso do cientista que pretende enunciar a Verdade.
11"Para dizer a verdade, essa ideia supõe inalterável aquilo que, sem dúvida, é o mais precário, muito mais precário do que as constâncias do patológico: a relação de uma cultura com aquilo mesmo que ela exclui, e mais precisamente a relação da nossa com essa verdade de si mesma, longínqua e inversa, que ela descobre e recobre na loucura" (Foucault, 2001, p. 441).
12"Me fizeram dizer que a loucura não existia, enquanto que o problema era absolutamente inverso: tratava-se de saber como a loucura, sob as diferentes definições recebidas, em um dado momento, pôde ser integrada em um campo institucional que a constituía como doença mental tendo um certo lugar ao lado de outras doenças" (Foucault, 1994, p. 726).
13"Em nossa época, a experiência da loucura se faz na calma de um saber que, por conhecê-la demasiado, esquece-a" (Foucault, 2001, p. 193).
14Sobre o tema da ironianaescrita de Foucault, Cf. Jordan, M. D. Foucault and the important earnestness of theory (In: Foucault Studies, n. 14, pp. 7-19, Setembro, 2012.). Esse artigo trata sobretudo de como a ironia de Foucault é funcional para frustrar o leitor na sua exigência por uma teoria sobre a sexualidade, pois isso significaria corroborar o tratamento desse tema sem contudo escapar ao domínio de uma scientiasexualis. Apesar do artigo tratar especificamente de História da sexualidade, vol. I, sugerimos que se pode concluir o mesmo acerca da função da ironia na escrita de Foucault para outras obras suas.
15"O que esse estranho relato na verdade oculta é um quiasma decisivo na mitologia da loucura" (Foucault, 2007, p. 471). "O mito de Pinel, como o de Tuke, oculta todo um movimento discursivo que vale ao mesmo tempo como descrição da alienação e análise de sua supressão" (Foucault, 2007, p. 475).

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