SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número1"Eles ficam loucos com nós": as lógicas de corpo e gênero em adolescentes exploradas sexualmenteO cientificismo de Freud na encruzilhada do sistema da consciência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p19-39 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p19-39

 

O atendimento psicológico à queixa de indisciplina escolar na rede de saúde: reflexões críticas

 

Psychological assistance in the public health care network regarding complaints of indiscipline at school: critical reflections

 

La atención psicológica a la queja de indisciplina escolar en la red de salud: reflexiones críticas

 

 

Luizanil Benedita Xavier*; Jane Teresinha Domingues Cotrin**

 

 


Resumo

Este artigo apresenta reflexões decorrentes de uma pesquisa sobre a prática dos psicólogos que recebem crianças da rede pública de ensino do Município de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, com a queixa de indisciplina. A pesquisa objetivou investigar o significado que os psicólogos atribuem à indisciplina escolar; as abordagens teóricas em que se fundamentam; os instrumentos e, ou, metodologias que utilizam na sua prática e a contribuição da Psicologia às escolas. O estudo, de caráter qualitativo, foi realizado com psicólogos que atuam na área da saúde nesse Município e fundamenta-se na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano. Os resultados apontam que os psicólogos pesquisados recebem alta demanda de alunos com queixa escolar de indisciplina e, embora a concebam como fruto do modelo de organização da escola e da família, têm uma limitação significativa no trato dessa questão, que é o tipo de atendimento proposto na área da saúde.

Palavras-chave: Indisciplina. Indisciplina na escola. Atuação do psicólogo. Psicologia histórico-cultural. Rede pública de saúde.


Abstract

This article presents reflections arising from a research on psychologists’ practice assisting children from public schools in the city of Cuiabá, state of Mato Grosso, dealing with complaints of indiscipline. The present study is meant to investigate the significance psychologists attribute to indiscipline at school; the theoretical approaches they are based on; the tools and/or methodologies they use in their praxis; as well as the contribution Psychology provides to schools. This qualitative study investigated psychologists who work for the city healthcare network and is based on the historical and cultural perspective of human development. The results show that the psychologists who were surveyed assist a high number of students showing problems of indiscipline and although they understand the indiscipline as resulting from the organization of the school and the family model, they face a significant restriction to deal with the matter, which is the type of assistance proposed within the Healthcare network.

Keywords:Indiscipline. Indiscipline at school. Psychologists’ assistance. Cultural historical theory. Public healthcare network.


Resumen

Este artículo presenta reflexiones que surgen de la investigación sobre la práctica de los psicólogos que atienden niños de las escuelas públicas de la ciudad de Cuiabá, estado de Mato Grosso, por quejas de indisciplina. El estudio investigó la importancia que atribuyen los psicólogos a la disciplina escolar; los enfoques teóricos en que se fundamentan; herramientas y / o metodologías que utilizan en su práctica y la contribución de la psicología a las escuelas. El estudio, cualitativo, se llevó a cabo con psicólogos que trabajan en el área de Salud en el referido municipio y se basa en la perspectiva histórico-cultural del desarrollo humano. Los resultados muestran que los psicólogos encuestados reciben gran demanda de estudiantes con problemas escolares de indisciplina y, aunque la conciban como resultado del modelo de organización de la escuela y de la familia, tienen una limitación importante en el manejo de este problema: el tipo de servicio propuesto en el área de Salud.

Palabras clave: Indisciplina. La indisciplina escolar. Actuación del psicólogo. Psicología histórico-cultural. Salud pública.

1 INTRODUÇÃO

Algumas crianças não têm limites, são indisciplinadas e seus pais deveriam levá-las a um psicólogo. Esse discurso, registrado por estudantes do Curso de Psicologia que vivenciaram a experiência de Estágio Básico em Contextos Socioeducativos, realizado em uma unidade de educação infantil da rede pública de ensino do Município de Cuiabá, no ano de 2009, despertou a atenção sobre a prática do psicólogo diante do fenômeno da indisciplina escolar e fomentou a formulação de duas indagações. A primeira se refere ao encaminhamento: para quais psicólogos ou serviços os alunos de uma escola pública municipal são encaminhados quando apresentam algum tipo de problema; e a segunda se reporta à atuação do psicólogo diante dessa queixa. Ao obter, na unidade de educação infantil, a informação que os alunos eram encaminhados à rede pública de saúde, o objetivo deste estudo foi o de conhecer e discutir a prática dos psicólogos que atuam na rede de atenção à saúde, especificamente nas policlínicas do Município de Cuiabá que atendem crianças oriundas das escolas públicas e com queixa escolar de indisciplina.

O referencial teórico de análise partiu de uma perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano (Leite & Tuleski, 2011; Lessa & Facci, 2011; Mello, 2004; Oliveira, 1992; Rego, 1996) que, também, envolveu estudos da teoria sócio-histórica (Aguiar, Bock & Ozella, 2011; Bock, Furtado & Teixeira, 2008; Bock, 2011; Gonçalves, 2011) e outros estudos sobre a atuação do psicólogo em contextos educacionais na perspectiva crítica em Psicologia (Leonardo & Silva, 2009; Machado, 1991; Meira, 2000; Moysés & Colares, 2010). Foram utilizados, também, os estudos desenvolvidos por Cabral e Sawaya (2001) sobre a atuação do psicólogo em serviços de saúde e os estudos de Estrela (2002) e Szenczuk (2004) sobre a questão da indisciplina escolar.

Para a realização da revisão bibliográfica sobre o tema da pesquisa, foram utilizadas as bases de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), da Scientific Electronic Library Online (Scielo), dos Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic) e da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) Psicologia Brasil. O descritor utilizado foi: Psicologia e indisciplina escolar. Encontraram-se 12 artigos e 2 teses que tratam da questão da indisciplina escolar sob o foco da Psicologia. Destes, 6 trabalhos focam a intervenção psicológica (Tuleski et al., 2005; Mascarenhas, 2006; Braga & Morais, 2007; Reis & Vieira, 2008; Martins & Luz, 2010; Boarini, 2013).

Fenômeno considerado de ordem moral que, de modo geral, permeia o comportamento humano, a indisciplina, tem sido, na atualidade, objeto de estudo e análise em razão do seu elevado índice, especialmente no contexto escolar, uma vez que é nesse espaço que ela ganhou maior visibilidade por ser constante motivo de queixa dos professores e por ter alcançado os canais midiáticos, deixando de ser uma discussão interna dos profissionais da escola para ser pesquisada, analisada e discutida por profissionais implicados no mundo e com o mundo socioeducativo.

A perspectiva histórico-cultural surgiu num contexto de contestação às análises mecanicistas do desenvolvimento humano. Nessa perspectiva, o ser humano é considerado "Como um sujeito concreto que carrega, em seu psiquismo, marcas da história da humanidade e da sua própria história, e que para se humanizar, necessita se apropriar dos bens materiais e culturais já produzidos" (Lessa & Facci, 2011, p. 134).

A Psicologia histórico-cultural, conhecida no Brasil principalmente pelas obras de Vygotsky, pensa o fenômeno psicológico como uma experiência pessoal que se constitui no coletivo e na cultura. Esta última carrega possibilidades psíquicas de subjetividade que o ser humano vai reconstruindo em si próprio, a partir de sua atividade e intervenção transformadora sobre o mundo. Dessa maneira, ele se revela como um sujeito histórico que concomitantemente produz e é produzido pelas condições materiais. Segundo Bock (2011), o ser humano pode ser concebido como:

Um ser ativo, social, histórico e cultural; a sociedade, como produção histórica dos homens que, através do trabalho produzem sua vida material; as ideias como representações da realidade material; a realidade material, como fundada em contradições que se expressam nas ideias; e a história, como o movimento contraditório constante do fazer humano, no qual, a partir da base material, deve ser compreendida toda produção de ideias, incluindo a ciência e a Psicologia (Bock, 2011, pp. 17-18).

O homem é um ser de natureza social que, ao mesmo tempo em que é produzido pela cultura, também a produz e essa relação constitui condição essencial para o seu desenvolvimento (Mello, 2004). Corroborando tal pensamento, Oliveira (1992) assevera que a cultura, "torna-se parte da natureza humana num processo histórico que, ao longo do desenvolvimento da espécie e do indivíduo, molda o funcionamento psicológico do homem" (p. 24).

Ao propor estudar a indisciplina, nessa perspectiva, buscamos estudar o seu movimento e o movimento de transformação do ser humano que permite a apropriação e a compreensão de uma forma de estar no mundo como produto e produtor de relações e bens materiais. Dessa forma, compreendemos que a indisciplina se constrói como uma forma de agir dentro de um espaço histórico, cultural e social específicos e dependente das relações que neles se estabelecem. Tais relações dependem, inclusive, do tipo de instrumentos a que os alunos têm acesso e que fazem uso. Assim, são as condições materiais e imateriais que se oferecem na escola e na sociedade que produzem um padrão de comportamento aos alunos e não o contrário.

Os interesses humanos são históricos e sociais, ou seja, são criados nas crianças pela sociedade em que vivem e por tudo o que ocorre ao seu redor. Motivos, necessidades interesses são criados com base nas condições concretas de vida e educação. Desse modo, velhos motivos podem ser modificados, e novos podem ser ensinados ou criados. Isso significa que sempre é possível criar motivos que contribuam para o desenvolvimento de potencialidades e capacidades humanizadoras (Mello, 2004). Nessa perspectiva, "O desenvolvimento individual é sempre mediado pelo outro, que indica, delimita e atribui significados à realidade"(Rego, 1996, p. 94).

Nesse sentido, a educação cumpre um papel primordial no desenvolvimento, sendo que a escola representa o elemento indispensável "para a realização plena dos sujeitos que vivem em uma sociedade letrada, já que, neste contexto, as crianças são desafiadas a entender as bases dos sistemas de concepções científicas e a tomar consciência de seus próprios processos mentais" (Rego, 1996, p. 95), o que lhes possibilita a atualização de ideias, de conduta e de atitudes em seu espaço social.

Com base nessas considerações teóricas e para introduzir alguns apontamentos sobre indisciplina, recorreu-se ao dicionarista Ferreira (1986). Este anota que o vocábulo "indisciplina" é formado do prefixo "in" (do lat. in) "negação", "privação" + disciplina. Desse modo, literalmente, a indisciplina é, de fato, a negação da disciplina. Etimologicamente, a palavra "indisciplina" origina-se do seu antônimo "disciplina" que, conforme anota Estrela (2002), tem a mesma etimologia da palavra "discípulo", cuja origem vem do termo latino "pupilo" que, por sua vez, significa "instruir", "educar", "treinar", dando ideia de modelagem total de caráter (Ferreira, 1986, p. 938; Estrela, 2002, p. 17).

Em razão do seu caráter polissêmico, o termo disciplina é encontrado nos dicionários de Ferreira (1986) e Weiszflog (2000) com mais de sete significados. Destes, a princípio, destaca-se o sentido de disciplina como "regime de ordem imposta ou livremente consentida" (Ferreira, 1986, p. 595); "obediência à autoridade e relação de submissão de quem é ensinado para com aquele que ensina; observância de preceitos ou ordens escolares" (Weiszflog, 2000, p. 733). Por se tratar de um fenômeno relacional, envolvido em diferentes relações sociais, pode-se conceituar disciplina como meio e resultado daquilo que é almejado pelo professor e indisciplina, ao contrário, como aquilo que destoa, foge aos meios e resultados buscados (Szenczuk, 2004).

No meio educacional, costuma-se ter a visão de que disciplinado é aquele que obedece a regras estabelecidas.

É aquele que cede, sem questionar as regras e preceitos vigentes em determinada organização […] e indisciplinado é o que se rebela, que não acata e não se submete, nem tampouco se acomoda, e, agindo assim, provoca rupturas e questionamentos (Rego, 1996, p. 85).

Não obstante o prefixo in do vocábulo indisciplina figurar como um prefixo de negação da palavra disciplina, esse mesmo prefixo pode referir-se a movimento para dentro, quando equivale à sua variante em(Ferreira, 1986). Se fizermos o comparativo com outra língua (a língua inglesa, por exemplo), o in também se refere à preposição em, dentro de; ao advérbio dentro e à preposição a de para dentro, interior, interno, opondo-se, dessa maneira, ao out que é advérbio e preposição fora, fora de, conforme anota Viana (s.d.).

Considerando-se esses significados do prefixo in, o termo indisciplina também poderia ser interpretado não como uma desobediência a um regime imposto, mas como uma disciplina própria, interna da pessoa. Dessa maneira, o indivíduo seria visto como alguém que tem dificuldade de abstrair da sua própria disciplina para assimilar uma disciplina coletiva, ou de alguém que sente a ausência de pertencimento a um grupo ou a um contexto, ou, ainda, alguém cujo interesse não foi despertado para vivenciar a disciplina proposta. Também entendemos que a falta do uso cotidiano de instrumentos que levem à disciplina coletiva e à autonomia inibe a construção de um tipo de comportamento que se requer na escola.

A indisciplina no contexto escolar relaciona-se ao não cumprimento de regras postas pela escola como imprescindíveis ao seu funcionamento. E, evidentemente, a disciplina está se referindo às regras que os adultos, responsáveis pela escola, impõem aos alunos, crendo ser essencial a sua obediência a fim de garantir um eficiente aprendizado. Assim, "para cada escola e para cada professor esse princípio será traduzido de diferentes modos" (Bock, Furtado & Teixeira, 2008, p. 275).

Ao discutir as causas da indisciplina, Rego (1996) afirma que, com muita frequência, os educadores veem a indisciplina na sala de aula como um "sinal dos tempos modernos" (p. 87), um reflexo da pobreza e da violência; ou atribuem a culpa pelo comportamento indisciplinado à educação recebida na família, à dissolução do modelo nuclear familiar. Em contrapartida, outros profissionais que atuam na Educação e muitos pais atribuem ao professor a responsabilidade da indisciplina escolar. Assim, a culpa pela indisciplina é atribuída ao aluno, à família e ao professor, excetuando-se a escola como um sistema que os direciona (Rego, 1996).

Vygotsky destaca que a relação dos seres humanos entre si e com o mundo é mediada por mecanismos técnicos e sistemas de signos, construídos historicamente, assim como outros elementos existentes no ambiente humano carregados de significado cultural. Ele também chama a atenção para a importância do papel de mediador que outras pessoas podem exercer nos processos de formação das potencialidades psíquicas e comportamentais do ser humano, pois, nesse modelo, o desenvolvimento do individual é mediado por outras pessoas do grupo social (Rego, 1996, pp. 93-94).

Nessa perspectiva, a atuação do psicólogo não objetiva desvendar os motivos de um "comportamento inadequado", mas se compromete com a construção de condições dignas de vida e busca compreender as circunstâncias sociais e culturais em que os comportamentos ocorrem. Assim, "A atuação do psicólogo diante das queixas escolares não deve se pautar em um modelo classificatório que indicam indivíduos aptos ou não aptos, saudáveis ou doentes, adequados ou inadequados, competentes ou incompetentes" (Leonardo & Silva, 2009, p. 9).

Consenso entre os autores encontrados na revisão bibliográfica sobre o tema (Tuleski et al., 2005; Mascarenhas, 2006; Braga & Morais, 2007; Reis & Vieira, 2008; Martins & Luz, 2010; Boarini, 2013), a indisciplina escolar é fenômeno produzido ou intensificado no interior das escolas, e seu enfrentamento deve partir do coletivo envolvido. As intervenções psicológicas devem ocorrer no sentido de mobilizar a comunidade escolar para a reflexão, crítica e a proposição de projetos que viabilizem novos comportamentos diante dos problemas escolares.

No processo de subjetivação, o sujeito é constituído por multifárias experiências (em meio aos contextos histórico, cultural e social), que moldam seu funcionamento psicológico e o humaniza. Naturalmente, o comportamento de indisciplina, nos seus múltiplos conceitos, aspectos e expressões, insere-se nesse processo.

Lidar com esse indivíduo capaz de subjetivar-se e, concomitantemente, subjetivar o meio social no qual está inserido, em um processo contínuo de movimento e transformação, exige dos profissionais mediadores do desenvolvimento e da aprendizagem humana, de modo geral, e do psicólogo, em particular, uma compreensão ampla do meio material, social, cultural e histórico, e das relações que são estabelecidas nesse contexto, isto é, o psicólogo necessita compreender a realidade constitutiva do fenômeno psicológico para atuar dinamicamente sobre ele.

2 DESCRIÇÃO DA PESQUISA

Com o objetivo geral de conhecer e discutir, à luz da Psicologia históricocultural, a prática dos psicólogos que atuam na rede de atenção à saúde, especificamente nas policlínicas do Município de Cuiabá que atendem crianças oriundas das escolas públicas com queixa escolar de indisciplina, a pesquisa teve os seguintes objetivos específicos: investigar o significado que os psicólogos atribuem à indisciplina escolar; as abordagens teóricas em que se fundamentam; os instrumentos e, ou, metodologias que utilizam na sua prática; e a contribuição da Psicologia às escolas.

Na estrutura organizacional da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), as policlínicas subordinam-se à Diretoria de Atenção Secundária – Coordenação de Atenção Secundária, oferecendo um atendimento considerado de média complexidade que reúnem serviços especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico (Cuiabá, 2011).

As policlínicas são unidades institucionais descentralizadas de saúde que ofertam serviços ambulatoriais especializados (por agendamento) nos dias úteis e pronto-atendimento (infantil e adulto) em urgência e emergência 24 horas. Entre os serviços de especialidade médica, destacam-se clínica-geral, pediatria, cardiologia, psiquiatria e psicologia (Cuiabá, s.d.). Dessa maneira, essas unidades recebem, entre outras demandas, aquelas encaminhadas pelas escolas.

Atualmente, o Município de Cuiabá tem quatro policlínicas em funcionamento, que estão geograficamente distribuídas por região (regionais Oeste, Norte, Sul e Leste). A coleta de dados foi realizada entre os meses de março e abril de 2012. Os participantes da pesquisa foram os quatro psicólogos que atuam nessas policlínicas e que foram identificados no decorrer da pesquisa como P1, P2, P3 e P4. Sendo um deles do sexo masculino e os demais do sexo feminino, na faixa etária de 28 a 52 anos; entre 3 a 10 anos de formados; e, entre 1 e 9 anos de atuação na área. O participante P3 tinha pós-graduação em Gestão em Saúde Pública. Os demais não informaram.

A partir de uma abordagem qualitativa, buscou-se compreender o processo mediante o qual os profissionais atuam com o fenômeno pesquisado. Para Bogdan e Biklen (1994), nesse tipo de pesquisa, a entrevista é um dos principais instrumentos de coleta de dados, pois permite tratar de temas complexos e favorece o aprofundamento da relação entre pesquisador e entrevistados.

A entrevista foi orientada por um roteiro previamente elaborado, contendo as seguintes questões: demandas encaminhadas pelas escolas; definição de indisciplina escolar; causas da indisciplina escolar; instrumentos ou métodos utilizados no atendimento; contribuições da Psicologia para as escolas, no que se refere à queixa de indisciplina escolar.

3 RESULTADOS

Os resultados apontam que os psicólogos participantes da pesquisa recebem uma alta demanda de crianças com queixas escolares encaminhadas pelas escolas, entre elas a indisciplina, conforme nos mostram as declarações:

Eu recebo muita demanda de escolas, através da própria escola, através da própria família que vem aqui, através de Conselho Tutelar, através do Juizado. […]. As queixas são as mais variadas. Assim, são crianças com dislexia, discalculia, indisciplina, hiperatividade (P1).

Sim. Eu recebo muitos pacientes que vêm com seus pais, avós, tios. Sempre com um bilhetinho da escola solicitando atendimento. Às vezes, nem vem com um papel formal. Também recebo crianças que tem um… Pode-se dizer que tem um fracasso escolar que começa por ter uma indisciplina, mas que tem facilidade na aprendizagem. Mas, por elas não obedecerem ao professor, acabam se indispondo e acabam ficando para trás […] Crianças que conversam e que atrapalham a aula (P2).

"Eu recebo. Até que no momento está menos, porque dei uma barrada […]. E a queixa é baixo rendimento escolar, problema de aprendizagem e hiperatividade […]. Muita, muita indisciplina" (P3).

"A demanda é bem alta. Eu acredito que fica assim em segundo lugar […]. Primeiro vem a demanda espontânea, dos pais, dos avós e às vezes dos padrinhos […]; e, em segundo, da escola. Muita demanda mesmo" (P4).

Os profissionais relatam que as queixas escolares de indisciplina partem inicialmente das escolas e chegam à rede de saúde por meio dos familiares, alguns inclusive com a intervenção do Conselho Tutelar ou Juizado. As respostas corroboram algumas pesquisas (Machado, 1991; Cabral & Sawaya, 2001) que apontam que a queixa escolar tem sido uma das demandas mais frequentes dos psicólogos que atendem crianças na área da saúde no Brasil.

O comportamento considerado inadequado pelos profissionais que atuam nas escolas tem sido cada vez mais interpretado como uma patologia que acomete a criança e que, se tratada, é passível de cura. Para Moysés e Colares (2010), "Nas sociedades ocidentais, é crescente o descolamento de problemas inerentes à vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas" (p. 72). Assim, questões sociais são transformadas em problemas individuais e devem ser solucionados por profissionais do campo da saúde.

Nota-se que o fato da indisciplina escolar ser pensada como um fenômeno psicológico individual estimula o encaminhamento do aluno para uma avaliação clínica, a fim de se descobrirem as causas desse "problema". A maneira de situar a problemática da indisciplina reforça uma espécie de psicologização do cotidiano escolar. Essa forma de compreender tem encontrado adeptos tanto na área da Saúde como na área da Educação e fortalecido a crença de que os problemas escolares são causados por problemas alheios à organização escolar.

Os profissionais participantes desta pesquisa apontam que a escola tem grande necessidade de manter os alunos passivos em sala de aula. É o que se reconhece nas falas quando definiram o que é indisciplina:

Indisciplina, pra mim, é tudo que foge daquelas normas que a escola tanto almeja […]. Fila, ficar quieto, fila para tudo, ficar quieto para assistir a quatro horas de aula, o tempo todo não conversar, não atrapalhar a aula do professor. Isso não é indisciplina pra mim, mas é o que me vem como indisciplina, como é tachado de indisciplina, como chega até aqui como indisciplina. […] Eles associam, sim (os professores), o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade à indisciplina, porque os alunos não conseguem simplesmente ficar sentados quatro horas por tarde, por manhã, absorvendo o currículo […] que é eleito aí como o adequado para eles (P1).

Então é muito difícil esse padrão de disciplina. A professora quer que a criança fique quietinha no lugar dela. A criança tem facilidade de aprendizagem, já entendeu, mas ela tem que ficar quieta – uma criança de 7 anos de idade -, porque outros alunos ainda não entenderam, então, assim, a professora considera isso uma indisciplina, eu já não considero. Então, assim, é isso que eu procuro conversar com os pais e pontuar para eles. É claro que a criança tem que ter um limite. Mas, às vezes, eu vejo que ela é vítima da escola (P2).

Os profissionais destacam o conceito que a escola tem de disciplina, sinônimo de obediência às regras e passividade, independentemente do que o aluno é capaz de produzir ou das dificuldades que o cumprimento de tais regras impõe. Também veem como natural o fato de as crianças se movimentarem na sala de aula, não dando conta de permanecerem sentadas por longas horas.

Nesses termos, os autores estudados também revelam que o fato de as crianças se movimentarem na sala de aula pode não indicar um comportamento indisciplinado. Como assinalam Bock, Furtado & Teixeira (2008), "Um clima vivo em sala de aula, com interesse e participação, jamais deve ser confundido com indisciplina" (p. 276).

O participante (P1) também define indisciplina como uma ação que fere a outra pessoa. "Indisciplina, para mim […], é quando entra violência no meio, eu acho que aí é […]. Isso tem um caráter realmente quando você tá ferindo a outra pessoa, o outro colega" (P1).

Ou seja, a indisciplina ocorre quando há desrespeito e a intenção de ferir outra pessoa e não somente infração às normas escolares ou sociais. Compreendemos que há, nessa definição, uma preocupação em não banalizar a questão da indisciplina, generalizando-a para todos os casos em que as regras não são cumpridas.

Essa ideia contraria estudos como o de Estrela (2002), que aponta que a indisciplina não deve ser vista como violência. Para esse autor, tal proposição se configura como uma generalização indevida, pois, se a indisciplina pode manifestar-se pela violência, na maioria dos casos, ela não é violência e nem delinquência. Grande parte dos comportamentos de indisciplina na escola evidencia infração a normas escolares ou sociais que têm como função principal assegurar as condições de funcionamento do ensino-aprendizagem e garantir a socialização de alunos, mas raras vezes infringem as normas legais que asseguram a ordem na sociedade civil. Porém destacamos que, para o profissional entrevistado, as questões de disciplina/indisciplina presentes no cotidiano escolar não devem ser vistas como questões graves a serem encaminhadas para atendimento. Isso somente seria necessário se envolvesse situações de violência com o outro.

Ao apontar para as causas da indisciplina, os profissionais também se voltam para a família como responsáveis pelo "mau comportamento" da criança na escola.

"A indisciplina, eu acho que faltam aí a lei, regras, assim, castração. Os pais têm que fazer a função de castrar esse filho para poder inserir ele numa sociedade ou até mesmo na escola" (P4).

"A queixa é que não respeita, xinga os professores […], sai da sala de aula sem falar nada. Não tem aquela regra. Eu acho que vem um pouco, também, da formação familiar" (P3).

Indisciplina, eu acho que assim […], a criança tem que ter uma estrutura de casa, dos pais. Porque assim, eu não considero um transtorno, eu não considero, assim, uma patologia e nem uma instabilidade da criança. A escola também não é obrigada […], não tem essa função de educar essa criança, em nível de referências simbólicas […]. Tem a função de educar didaticamente (P4).

Nesse caso, embora a indisciplina não seja um problema apontado especificamente como da criança, acaba recaindo sobre ela, já que diz respeito à sua família. Ou seja, a indisciplina na escola tem como causa a falta de uma conduta adequada dos pais.

Compreendemos que a parceria família-escola é importante para o processo de escolarização da criança. Os pais devem ter responsabilidades nesse processo e são importantes parceiros na busca de soluções para os problemas enfrentados no cotidiano escolar. Mas compreendemos, também, que o comportamento da criança depende das relações e circunstâncias que esta vivencia nas relações familiares e fora delas, como na escola. Assim, a família influencia significativamente o comportamento da criança na escola, mas não o determina. As crianças cujos pais não lhes deram limites podem, inicialmente, comportar-se dessa maneira na escola, mas, depois, passam a responder ao próprio ambiente em que estão inseridas.

Consideramos que P4 tem razão quando diz que a escola somente tem a função de educar didaticamente a criança, uma vez que educar na escola é algo diferente da educação que a criança recebe em casa. Educar para a aprendizagem de conteúdos escolares requer outros processos mentais e conceitos que não somente os que a criança traz de casa. Porém entendemos que, independentemente do contexto familiar, e exatamente por isso, a escola precisa educar para a escola, para essa outra perspectiva que se abrirá na vida das crianças. Ou seja, a escola não é obrigada a fazer o papel dos pais, mas somente poderá atender as crianças se puder educá-las a desenvolver novos comportamentos que se exigem nesse espaço.

Há um tipo de atenção e disciplina necessárias à convivência com os familiares e outro que se faz na escola. Como dito anteriormente, é necessário aprender a atenção e a disciplina que a escola requer, que é diferente da vida cotidiana (Leite & Tuleski, 2011). Nesse caso, entendemos que a família tem uma atuação restrita quanto ao que será aprendido e desenvolvido na escola.

Na perspectiva histórico-cultural, a família, como o primeiro contexto de socialização, exerce, indubitavelmente, grande influência sobre a criança e o jovem. A atitude dos pais, suas práticas, o contexto cultural em que a criança vive e os instrumentos que utiliza são aspectos que interferem no desenvolvimento individual e, consequentemente, influenciam o comportamento da criança na escola. Dessa maneira, não é possível negar a importância e o impacto que a educação familiar tem sobre o indivíduo. Entretanto, o seu poder não é absoluto e irrestrito, pois os traços que caracterizam a criança e o jovem, ao longo do seu desenvolvimento, não dependem exclusivamente das experiências vividas no interior da família, mas das inúmeras aprendizagens que o indivíduo realizará em diferentes contextos socializadores, como na escola (Rego, 1996).

A crença que a indisciplina também é uma questão familiar explica e, ao mesmo tempo, é fruto do tipo de atendimento oferecido e da abordagem teórica que a explica, conforme os relatos a seguir:

"Mas assim, minha escuta, minhas interpretações, meu modo de enxergar a dinâmica é da criança e da família da criança, eu incluo a família da criança no trabalho que eu faço, na medida em que eles estão próximos" (P1).

"Então, assim, eu procuro conversar com os pais também sempre que possível" (P2).

Eu oriento as mães, o pai, a avó, porque eu acho que, também em casa, devem ser passadas as regras, os limites. […]. Em casa é que tem que dar essa maior base. Os pais também depositam tudo… Fica na expectativa do psicólogo, que nós vamos dar conta de tudo. Mas, eu devolvo isso para eles. Eu devolvo. Falei: olha, nós vamos fazer um trabalho em conjunto (P3).

Então, assim […], não castra essa criança. Deixa ela crescer, deixa ela se desenvolver sozinha. Então, assim, quando eu percebo que tem alguma coisa em relação a isso, eu trabalho muito com os pais essa questão da indisciplina. Por quê? Porque, assim, os pais são a referência dessa criança. Então, assim, se a gente não trabalhar isso com os pais, não fizer essa devolutiva assertiva, orientando […]. Então, eu gosto muito de trabalhar associado à criança a família, nessa questão da indisciplina (P4).

Embasados em proposições psicanalíticas, embora apontem as questões escolares para os problemas de indisciplina, deixam recair sobre as crianças um olhar individualizante e que se volta para a queixa como um sintoma produzido pela falta de uma postura mais rígida dos pais. Assim, os pais são chamados, pelos profissionais, a perceberem o papel que lhes cabe na educação das crianças. Os profissionais ressaltam que tanto os pais quanto as escolas compreendem que o fenômeno da indisciplina escolar deve ser tratado nos consultórios psicológicos. Porém, mesmo apontando, anteriormente, que a escola tem uma participação importante na produção do fenômeno, revelam a crença na dupla responsabilidade (pais e escola) e declaram que sempre fica "aquele jogo de empurra mesmo, não é da família, não é da escola. É da família e da escola" (P1).

Para os profissionais, nenhuma dessas instituições podem se eximir de assumirem essa responsabilidade. Por outro lado, os psicólogos compreendem que a Psicologia pode dar contribuição importante e apontam que é preciso promover uma aproximação entre os eixos (família, escola e Psicologia), para buscar caminhos que possam solucionar ou minimizar essa questão.

Os psicólogos apontaram, também, que o modo como o sistema escolar está organizado pode não colaborar para que a disciplina aconteça, como é possível conferir nas falas:

"São muitas crianças para uma professora; uma ou duas" (P2).

Eu acho, também, que numa sala de aula, um professor para cuidar de, não sei, umas 20, 25 crianças de 6 anos é meio difícil, é meio complicado. Eu acho que […] fica muito sobrecarregado também para os professores, é muita criança para só um professor (P3).

Dessa maneira, é possível observar que a indisciplina se configura, na visão dos psicólogos entrevistados, como algo que também está situado no meio e dependente de seus atores, inclusive de sua organização.

No contexto escolar, a indisciplina pode ser vista como a não observância de preceitos ou ordens escolares (Weiszflog, 2000, p. 1148), mas também como uma resposta à falta de interesse pelas atividades escolares, bem como a dificuldade que alguém tenha para abstrair de sua própria disciplina para assimilar uma disciplina coletiva, ou de alguém que sente a ausência de pertencimento a um grupo ou a um contexto, ou ainda, alguém cujo interesse não foi despertado para vivenciar a disciplina proposta. Por essa razão é que, "para cada escola e para cada professor, esse princípio será traduzido de diferentes modos" (Bock, Furtado & Teixeira, 2008, p. 275).

Os participantes também apontam a motivação dos alunos como importantes fatores que contribuem para a indisciplina:

"Não gostam de ir à escola, não gostam de escrever. Porque para uns a escola é chata" (P1).

"Não é atrativa, não tem nada […]. É aquela coisa de reproduzir. Passa no quadro, escreve, passa no quadro, escreve, passa no quadro, escreve" (P3).

"Porque os alunos não conseguem simplesmente ficar sentados quatro horas por tarde, por manhã, absorvendo o currículo […] que é eleito aí como o adequado para eles" (P1).

Assim, para os participantes da pesquisa, interesses e motivos pode estar entre as causas desencadeantes da indisciplina na escola.

Em relação à abordagem, instrumentos e métodos utilizados, todos os psicólogos entrevistados declararam que utilizam a abordagem psicanalítica como base do atendimento nas policlínicas. Alguns declararam que trabalham com o inconsciente e a associação livre. E quase todos recorrem a outros recursos, como a ludoterapia e o teste House, Tree, Person (HTP).

Então, assim, é basicamente psicanálise, mas eu não dou tarefa para a criança fazer em casa […]. Mas eu tenho uma leitura da história da criança, história orgânica, as vivências que a criança tem. Então eu não diria que é puramente psicanalítica a minha abordagem. É escuta, observação do comportamento. Eu utilizo dos instrumentos lúdicos. Por vezes, teste psicológico, que são aqueles de atenção, memória, da bateria cepa […], HTP, mas me utilizo pouco, assim, de testes psicológicos, mas é análise documental (P1).

"A minha fundamentação teórica é a psicanálise. Então, eu trabalho com o sujeito, com o inconsciente, com a associação livre. Eu direciono a minha clínica na policlínica" (P2).

"É a psicanalítica mesmo […]. Eu trabalho com a ludoterapia […]. Então é mais o HTP, mesmo assim para desenho. […] Eu trabalho para ver a memória, para ver a atenção deles" (P3).

"É psicanálise […]. Então, assim, eu trabalho aqui com associação livre, porque eu acredito que você tem que escutar muito; trabalho com brinquedos […]. Eu gosto muito do HTP" (P4)

Destaca-se que todos os entrevistados utilizam o modelo clínico de atendimento. Porém apontam o quanto isso pode ser contraditório quando a queixa é escolar. Dois participantes revelam:

Lá na policlínica é um local de saúde mental; de problemas com criança que está depressiva, a criança não come, não dorme. Não é, não seria um local indicado para tratar problemas escolares. Essa interface da escola com a saúde não acontece ainda (P2)

"Eu acredito, assim, é como se mandassem ali uma máquina estragada para você consertar. Conserta aí. Hora que estiver consertado, ele volta para a escola" (P4).

Os profissionais se mostraram incomodados com essa situação, já que apontam que esse é um problema que deve ser refletido pela escola.

Aguiar, Bock e Ozella (2011, p. 172) propõem que o psicólogo volte o seu olhar para o indivíduo contextualizado social e culturalmente, a fim de poder promover uma intervenção capaz de contribuir para ampliar a consciência que o grupo tem sobre a realidade que o circunda e o instrumentalizar para agir no sentido de transformar as dificuldades que essa realidade lhe apresenta. Para Rego (1996, p. 84), mais do que responder a inúmeras questões relacionadas ao complexo tema da indisciplina, os postulados de Vygotsky instigam algumas inquietações e levam a formular melhor as perguntas, a ampliar o olhar sobre o problema. Reformular a pergunta significa mudar de foco. Se esse era a criança, agora deve ser as circunstâncias que determinaram seu comportamento. Somente assim será possível pensar em um indivíduo em movimento.

Na opinião de Meira (2000), é imprescindível que os profissionais rompam com o modelo clínico tradicional de atuação que, entre outras coisas, separa as atividades de ensino e os “problemas” do aluno relacionados a seu comportamento e desempenho acadêmico. Dessa maneira, é possível situar mais adequadamente os processos psicológicos no interior do processo pedagógico, garantindo sua especificidade de atuação. Embora por caminhos diferentes, os profissionais de Psicologia que desenvolvem atividades de atendimento individual ou em grupo (seja em clínicas particulares, públicas ou ligadas a universidades, seja em unidade de saúde) podem ter um papel importante na transformação da realidade escolar, desde que não se limitem a trabalhar com os alunos que foram encaminhados com queixas escolares, mas procurem agir com as famílias e escolas (Meira, 2000).

Como investir, porém, em uma atuação que busca investigar as circunstâncias institucionais se a proposta de serviço das policlínicas é de atenção secundária, ou seja, de reabilitação?

Em relação ao apontamento de não tratar problemas escolares em espaço destinado ao tratamento de saúde mental, cabe resgatar que, de fato, institucionalmente, as policlínicas se constituem em um locus que oferta serviços ambulatoriais especializados, entre estes o de Psicologia e pronto-atendimento em urgência e emergência 24 horas.

Sendo assim e considerando a alta demanda do serviço versus a escassez de profissionais para atendê-la, como dispor de tempo suficiente para ir para a escola compreender e intervir no fenômeno da indisciplina, considerando que essa é uma tarefa que demanda um tempo considerável? Um dos participantes ressalta a escassez de profissionais para o atendimento: "Aqui sou só eu, somente eu" (P1).

De modo geral, os psicólogos avaliam que a Psicologia tem muito a contribuir em relação à queixa de indisciplina escolar e o quanto estar presente na escola conversando com os professores pode ajudar nesse processo.

Nós temos uma análise crítica dessa tamanha medicamentalização. Ritalina sendo como uma pílula do sossego para o professor […]. A criança de fato concentra melhor, mas aí tem os efeitos colaterais […]. Então a gente tem uma análise crítica em cima dessa medicamentalização exacerbada […] e nós temos propostas de melhoras na educação, nós fizemos reflexões junto dos professores (P1).

"Mas a Psicologia tem um papel fundamental" (P2).

O psicólogo tem que estar trabalhando na escola junto com os professores, diretores para fazer essa mudança […]. Acho que tem que fazer um trabalho em conjunto. Porque não adianta fazer separado, porque a criança é uma só, então tem que fazer um trabalho em conjunto (P3).

Os profissionais apontam que a Psicologia pode contribuir muito em relação à queixa de indisciplina escolar, discutindo criticamente o uso abusivo de medicamentos e promovendo melhorias na Educação por meio de reflexões em conjunto com os professores; conscientizando que o espaço da Psicologia na policlínica não se destina a tratar de problemas escolares, mas sim de saúde mental; orientando os pais da criança sobre o papel deles no processo educativo e diminuindo o distanciamento que ainda existe nas relações entre a Psicologia e Educação. Apontam várias vezes a necessidade de se fazer a aproximação do psicólogo com os professores, considerando a concepção do sujeito como um ser singular, mas novamente se veem limitados diante de uma proposta de atuação que é clínica e dos próprios objetivos do serviço em que atuam. Isso causa uma reação em cadeia que não só não rompe com o que está posto, como o alimenta. Ou seja, há uma inadequação no processo de encaminhar as crianças para as policlínicas, já que não há profissionais disponíveis para o tipo de atendimento que a queixa requer, mas os encaminhamentos e os atendimentos continuam, solidificando a ideia de que a criança tem uma patologia. Assim, a discussão imprescindível que deve permear a queixa de indisciplina escolar sucumbe ao pragmatismo do trabalho burocrático que as instâncias escola e policlínica realizam.

Isso significa que, ao solidificarmos um tipo de atendimento para uma determinada queixa, estamos construindo o sujeito dessa queixa, concretamente.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse em realizar esta pesquisa ocorreu a partir do eco de um discurso realizado em um contexto escolar de que crianças indisciplinadas deveriam ser encaminhadas para psicólogos. Uma vez que a indisciplina escolar tem se configurado como um dos principais desafios da educação contemporânea e que os psicólogos são convocados a se implicarem com essa questão, julgou-se importante avançar a compreensão sobre a prática do psicólogo que atende tal demanda.

A princípio, buscou-se saber a quais psicólogos esses alunos poderiam ser encaminhados e, em seguida, como os profissionais de Psicologia que recebem a queixa escolar de indisciplina a compreendem e fazem o enfrentamento desse fenômeno. A investigação preliminar permitiu identificar que há uma demanda significativa de crianças que estudam na rede pública municipal e estadual de educação que são encaminhadas para as policlínicas, que dentre os serviços de especialidade ofertam atendimento psicológico que recebem as mais variadas demandas, inclusive de queixas escolares e que há muito poucos profissionais para a demanda existente.

Também foi possível identificar que o encaminhamento de alunos às policlínicas caracteriza-se como alta demanda e que tanto as escolas quanto os pais das crianças fazem esse encaminhamento; a concepção que psicólogos têm da indisciplina e, especialmente, da indisciplina escolar contraria a visão que busca manter a criança dócil e passiva em sala de aula. Dessa forma, os profissionais corroboram com as ideias de autores estudados de que movimento, vivacidade e interesse em sala de aula não devem ser confundidos com indisciplina; os profissionais que enfrentam o fenômeno da indisciplina escolar atuam no modelo clínico fundamentados na abordagem psicanalítica e que também utilizam como recursos de atendimento a ludoterapia, o teste HTP e orientação aos pais; e que a Psicologia tem muito a contribuir em relação à queixa de indisciplina escolar, promovendo a articulação entre a própria Psicologia, a família e a escola para não tratar somente o aluno, como se a indisciplina fosse algo inerente ao comportamento deste, ou atribuir somente à escola ou à família a construção social desse fenômeno, mas para que, articulados, possam refletir, estudar e encontrar caminhos e recursos para solucionar ou minimizar a queixa.

Destaca-se que os psicólogos entrevistados demonstraram certa inquietação diante do volume de encaminhamentos que recebem de crianças, oriundas das escolas, com a queixa escolar de indisciplina. Em seus discursos apontam que essa é uma responsabilidade da escola e manifestam o desejo de ir às escolas para, em parceria com os educadores, buscarem ampliar o entendimento sobre o fenômeno e encontrar outras estratégias para enfrentá-lo.

Não obstante essa idealização, pergunta-se se é esse o real papel da policlínica, uma vez que sua finalidade precípua é a de realizar o atendimento clínico da demanda recebida. Diante dessa realidade, cria-se um impasse de difícil resolução, uma vez que escola e clínica se atravessam somente por encaminhamentos de crianças, mas não estabelecem uma relação dialógica que permitiria uma reflexão sobre o que ocorre com essas crianças ditas indisciplinadas.

Abre-se aqui um novo questionamento, a que não temos a pretensão de responder, que é o entendimento que se tem sobre a função dos psicólogos e sua atuação nos diferentes serviços oferecidos à população. É relativamente fácil encontrarmos nos Municípios a contratação de um único profissional para atender às múltiplas demandas dos munícipes, sejam elas clínicas, institucionais, comunitárias, sem que se veja nisso a mínima contradição ou impossibilidade. Mas essa pesquisa revelou como o tipo de serviço buscado pelas escolas e oferecido pelos Estados e Municípios pode limitar a busca por soluções mais significativas para todos: para a escola, para as crianças e suas famílias, e também para os psicólogos.

Finalizando, compreendemos que, para além da discussão teórica da indisciplina, é necessário nos voltarmos para as questões políticas dos serviços e dos encaminhamentos que concretizam ou podem romper com a demanda e suas vicissitudes.

REFERÊNCIAS

Aguiar, W. M. J., Bock, A. M. B. & Ozella, S. (2011). A orientação profissional com adolescentes: um exemplo de prática na abordagem sócio-histórica. In A. M. B. Bock, M. G. M. Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia sóciohistórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. (pp. 163-178). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Boarini, M. L. (2013, janeiro/junho). Indisciplina escolar: uma construção coletiva. Psicologia Escolar e Educacional, 17(1), 123-131. Recuperado a partir de http://www.scielo.br/pdf/pee/v17n1/a13v17n1        [ Links ]

Bock, A. M. B. (2011). A Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. In A. M. B. Bock, M. G. M. Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. (pp. 15-36). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Bock, A. M. B., Furtado, O. & Teixeira, M. L. T. (2008). Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

Bogdan, R. & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto.         [ Links ]

Braga, S. G. & Morais, M. L. S. (2007, outubro/dezembro). Queixa escolar: atuação do psicólogo e interfaces com a educação. Psicologia USP, 18(4), 35- 51. Recuperado a partir de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicousp/v18n4/ v18n4a03.pdf        [ Links ]

Cabral, E. & Sawaya, S. M. (2001). Concepções e atuação profissional diante das queixas escolares: os psicólogos nos serviços públicos de saúde. Estudos de Psicologia, 6(2), 143-155. Recuperado a partir de http://www.scielo.br/ pdf/%0D/epsic/v6n2/7269.pdf        [ Links ]

Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. Secretaria Municipal de Saúde. (s.d.). Cartilha do usuário do SUS/Cuiabá. Cuiabá: Secretaria Municipal de Saúde.         [ Links ]

Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. Secretaria Municipal de Saúde. (2011). Recuperado a partir dehttp://www.cuiaba.mt.gov.br/secretarias/saude.         [ Links ]

Estrela, M. T. (2002). Relação pedagógica disciplina e indisciplina na aula. Porto: Porto.         [ Links ]

Ferreira, A. B. H. (1986). Indisciplina. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2a ed. Rev. Ampl.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Gonçalves, M. G. M. (2011). A Psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade: a historicidade como noção básica. In A. M. B. Bock, M. G. M. Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. (pp. 38-52). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Leite, H. A. & Tuleski, S. C. (2011, janeiro/junho). Psicologia histórico-cultural e desenvolvimento da atenção voluntária: novo entendimento para o TDAH. Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 111-119. Recuperado a partir de http:// www.scielo.br/pdf/pee/v15n1/12.pdf        [ Links ]

Leonardo, N. S. T. & Silva, V. G. (2009). Psicólogo atuando diante das queixas escolares. In Anais, 9 Congresso Brasileiro de Psicologia Escolar e Educacional. (pp. 12-13), São Paulo: Abrapee. Recuperado a partir de https://abrapee.files. wordpress.com/2012/02/anais-ix-conpe_2009_issn-1981-2566.pdf

Lessa, P. V. & Facci, M. G. D. (2011, janeiro/junho). A atuação do psicólogo no ensino público do Estado do Paraná. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 131-141. Recuperado a partir de http://www.scielo.br/pdf/pee/v15n1/14.pdf        [ Links ]

Machado, M. A. (1991). Inventando uma intervenção na escola pública. (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, São Paulo.         [ Links ]

Martins, L. C. & Luz, I. R. (2010, janeiro/junho). Cultura escolar e indisciplina: em busca de soluções criativas. Psicologia da Educação, 30, 43-56. Recuperado a partir dehttp://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n30/n30a04.pdf        [ Links ]

Mascarenhas, S. (2006). Gestão do bullying e da indisciplina e qualidade do bem-estar psicossocial de docentes e discentes do Brasil (Rondônia). Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, 7(1), 95-107. Recuperado a partir de http://www. redalyc.org/articulo.oa?id=36270108        [ Links ]

Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. In E. Tanamachi, M. Proença & M. Rocha. (Orgs.). Psicologia e Educação: desafios teórico-práticos. (pp. 35-71). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Mello, S. A. (2004). A escola de Vygotsky. In K. Carrara (Org.), Introdução à Psicologia da educação. (pp. 135-155). São Paulo: Avercamp.         [ Links ]

Weiszflog, W. (2000). Indisciplina. In Weiszflog, W. Michaelis: moderno dicionário de língua portuguesa: edição exclusiva (Vols. 1-2). Rio de Janeiro: Reader’s Digest Brasil; São Paulo: Melhoramentos.         [ Links ]

Moysés, M. A. A. & Colares, C. A. L. (2010). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional Queixa Escolar. (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes. (pp. 71-110). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Oliveira, M. K. (1992). Vygotsky e o processo de formação de conceitos. In Y. LaTaille, M. K. Oliveira & H. Dantas. (Orgs.), Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. (pp. 23-34). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Rego, T. C. R. (1996). A indisciplina e o processo educativo: uma análise na perspectiva vygotskiana. In J. G. Aquino (Org.), Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. (pp. 83-101). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Reis, A. C. & Vieira, A. Z. (2008). Indisciplina e intervenção psicológica em sala de aula: relato de experiência. Caderno de Psicopedagogia, 7(12). Recuperado a partir de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cap/v7n12/v7n12a05.pdf        [ Links ]

Szenczuk, D. P. (2004). (In)Disciplina escolar: um estudo da produção discente nos programas de pós-graduação em Educação (1981-2001). (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Educação, Curitiba. Recuperado a partir de https://acervodigital.ufpr. br/bitstream/handle/1884/34704/R%20-%20D%20-%20DOROTEA%20 PASCNUKI%20SZENCZUK.pdf?sequence=1&isAllowed=y        [ Links ]

Tuleski, S. C., Eidt, N. M., Menechinni, A. N., Silva, E. F., Sponchiado, D. & Colchon, P. D. (2005, janeiro/junho). Voltando o olhar para o professor: a psicologia e a pedagogia caminhando juntas. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, 17(1), 129-137. Recuperado a partir de http://www.scielo.br/ pdf/rdpsi/v17n1/v17n1a10.pdf        [ Links ]

Viana, M. C. (s.d.). Indisciplina. Completo dicionário de português-inglês – inglêsportuguês. São Paulo: Didática Paulista.         [ Links ]

Texto recebido em 26 de outubro de 2015 e aprovado para publicação em 5 de setembro de 2016.

 

 

* Especialista em Comportamento Humano nas Organizações e em saúde Pública, psicóloga. Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).E-mail: luizanilxavier@gmail.com..
**Doutora em Psicologia, mestra em Educação, professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFMT, psicóloga.E-mail: janecotrin@gmail.com..

Creative Commons License