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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p60-78 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p60-78

 

Intersubjetividade na psicanálise: contornando a problemática solipsista ou rompendo com o pensamento moderno?

 

Intersubjectivity in psychoanalysis: surrounding the solipsistic issue or breaking up with modern thinking?

 

La intersubjetividad en el psicoanálisis: ¿eludiendo la problemática solipsista o rompiendo con el pensamiento moderno?

 

 

Mariana Gouvêa de Matos*; Carolina Lampreia**

 

 


Resumo

A dimensão da intersubjetividade como constitutiva da subjetividade pode ser considerada aquisição recente da teoria psicanalítica, constituindo-se em uma possibilidade teórica para contornar o solipsismo moderno. No campo filosófico, a problemática cartesiana acarretou o desenvolvimento do estudo da linguagem basicamente em duas direções, resultando em duas concepções dominantes de linguagem contrapostas na contemporaneidade: a objetivista/representacionista e a construtivista/pragmática. Neste artigo, pretendeu-se discutir o conceito de intersubjetividade tal como vem sendo utilizado pela psicanálise, debatendo os usos e as ideologias a ele subjacentes de acordo com essas duas concepções filosóficas de linguagem, por meio de um estudo teórico. Conclui-se que o uso do conceito de intersubjetividade pela psicanálise parece servir mais para contornar a problemática solipsista do que romper com o pensamento moderno.

Palavras-chave: Intersubjetividade. Psicanálise. Filosofia da linguagem. Solipsismo.


Abstract

The dimension of intersubjectivity as a constituent of subjectivity can be considered a recent acquisition of psychoanalytic theory, becoming a theoretical possibility to surround the modern solipsism. In the philosophical field, the Cartesian matter led to the development of the study of language in two basic directions, resulting in two dominant opposing conceptions of language in contemporary times: the objectivist/representational and the constructivist/pragmatic. In this article, the target was to discuss the concept of intersubjectivity as it has been used by psychoanalysis, discussing the uses and ideologies underlying the concept according to these two philosophical conceptions of language, through a theoretical study. We conclude that the use of the concept of intersubjectivity in psychoanalysis seems to be more useful to surround the solipsistic matter rather than break up with modern thinking.

Keywords:Intersubjectivity. Psychoanalysis. Philosophy of language. Solipsism.


Resumen

La dimensión de la intersubjetividad como constitutiva de la subjetividad puede considerarse como una reciente adquisición de la teoría psicoanalítica, convirtiéndose así en una posibilidad teórica para eludir el solipsismo moderno. En el campo filosófico, la problemática cartesiana conllevó el desarrollo del estudio del lenguaje en básicamente dos direcciones, dando lugar a dos concepciones dominantes del lenguaje contrapuestas en la época contemporánea: la objetivista/representacionista y la constructivista/ pragmática. En este artículo se buscó discutir el concepto de intersubjetividad tal como ha sido utilizado por el psicoanálisis, debatiendo los usos y las ideologías a él subyacentes, de acuerdo con estas dos concepciones filosóficas del lenguaje, a través de un estudio teórico. Llegamos a la conclusión que el uso del concepto de intersubjetividad en el psicoanálisis parece servir más para eludir la problemática solipsista que para romper con el pensamiento moderno.

Palabras clave: Intersubjetividad. Psicoanálisis. Filosofía del lenguaje. Solipsismo.

1 INTRODUÇÃO

 

É inevitável cairmos às vezes em uma discreta nostalgia que nos faz pensar se não era mais simples aquele tempo em que a moda filosófico-científica impunha uma segura distância entre eu e não eu, entre sujeito e objeto. Se um outro pudesse ser concebível, o seria apenas por analogia ao que somos. Afinal, só era possível conceber um conhecimento a partir do que se passava em uma consciência e toda comunicação precisava ser pensada em termos de uma comunicação entre um ego e outro ego, e o ego do outro era pensado à imagem e semelhança do meu (Coelho Junior & Figueiredo, 2012, p. 21).

A dimensão da intersubjetividade como constitutiva da subjetividade pode ser considerada aquisição recente das teorias psicológicas, posto que, em sua maioria, elas são herdeiras da tradição moderna cartesiana. Concebem, portanto, o Eu como unidade autoconstituída, independente da existência do Outro, marcando uma oposição entre sujeito e objeto. Na tentativa de se adequar ao modelo vigente, almejando alcançar o status científico, tais teorias psicológicas não se interessaram e até mesmo recusaram a noção de intersubjetividade por bastante tempo. Contudo a Psicologia tem se confrontado cada vez mais com a necessidade de reconhecimento da alteridade na constituição da subjetividade, parecendo não haver dúvidas no cenário contemporâneo a respeito da participação do Outro na constituição subjetiva (Vygotsky, 1981; 1984; 1987; Stern, 1992; Hobson;, 2002; Palmieri & Martins, 2008; Freitas, 2009; Feijoo, 2011; Coelho Junior & Figueiredo, 2012).

Winnicott representa um marco nessa mudança de enfoque vivida dentro da psicanálise (Loparic, 2006). Quando o autor afirma, em 1960, que o bebê é algo que não existe, isto é, separado dos cuidados maternos, coloca, de certa forma, a questão da intersubjetividade como subjacente à apropriação subjetiva do bebê, enfatizando a necessidade do caráter interpessoal da relação na constituição psíquica.

Na atualidade, autores como Ogden (1989; 1996) e Roussillon (2004; 2010) são referências importantes no debate sobre a intersubjetividade no meio psicanalítico. Roussillon (2004; 2010) concebe intersubjetividade como o encontro de um sujeito, com suas pulsões e vida psíquica inconsciente, com um objeto, que é também outro sujeito, com suas pulsões e vida psíquica inconsciente. Com essa noção de intersubjetividade, o autor busca considerar o Outro como sujeito que constitui o Eu, não somente como objeto intrapsíquico, mas em sua dimensão intersubjetiva, salientando o fato de o objeto ser também outro sujeito e admitindo a importância da alteridade no campo da experiência concreta. Entre as contribuições de Ogden está o conceito "posição autista contígua" (Ogden, 1996). Com esse conceito, o autor procura descrever um nível bastante primitivo de experiência psíquica, no qual a experiência da sensorialidade, do contato da pele do bebê com a pele do cuidador, é o principal meio para a formação dos rudimentos iniciais do self.

No campo filosófico, o questionamento ao projeto moderno cartesiano ganhou força na passagem do século XIX para o século XX, relacionado, sobretudo, à centralidade atribuída à noção de subjetividade nas teorias racionalistas e empiristas. Nesse contexto, o estudo da linguagem emergiu como uma possível resposta aos problemas epistemológicos, tanto para a Filosofia como para outras áreas do conhecimento, e, apesar de diferentes correntes filosóficas abordarem a questão de diferentes formas, o ponto de partida na linguagem passou a ser comum a todas, tornando-se central na contemporaneidade (Marcondes, 1997).

A Filosofia contemporânea pode ser compreendida, basicamente, como resultante das críticas ao solipsismo moderno cartesiano, realizadas por Hegel e Marx, por um lado, e Leibniz e Kant, por outro. Hegel e Marx apontaram para a problemática da análise subjetivista e assinalaram o caráter histórico e cultural da própria subjetividade, o que gerou a incoerência de considerá-la como originária, como fundamento da possibilidade de conhecer o real. Leibniz e Kant também ressaltaram a questão do solipsismo, mas focando na impossibilidade de explicação sobre a forma como a mente poderia ter acesso ao real (Marcondes, 1992; 1997; 1999; 2008; Coutinho, 1996).

A partir dessas críticas, os estudos filosóficos sobre linguagem se desenvolveram basicamente em duas direções, resultando em duas concepções dominantes de linguagem contrapostas na contemporaneidade (Coutinho, 1996). Por um lado, aproximando-se das ideias de Leibniz e Kant, a linguagem passou a ser estudada do ponto de vista lógico, como tentativa de garantia do caráter objetivo do conhecimento. Por outro, desenvolveu-se uma interpretação da linguagem como um sistema sociocultural, que propicia a comunicação humana e constitui o significado da experiência, aproximando-se mais do posicionamento de Hegel e Marx (Giusti, 2012).

A primeira concepção tem entre seus representantes o representacionismo, o demarcacionismo e o realismo (Coutinho, 1996). Segundo essa concepção de linguagem, a mesma deve ser compreendida de forma lógica, por meio da construção de sistemas formais e da adoção de métodos quantitativos. A relação das estruturas formais da linguagem com a realidade, considerada de um ponto de vista lógico, é, assim, passível de análise, independentemente de sua relação com a consciência individual (Marcondes, 1997). A fim de superar o subjetivismo e o psicologismo dominantes na tradição moderna, busca-se fundamentar a ciência em um sistema lógico-dedutivo capaz de estabelecer verdades (Marcondes, 1992). Neste artigo, essa abordagem será denominada objetivismo/representacionismo. Isso significa que ela pressupõe uma realidade objetiva que é representada pela linguagem.

A segunda concepção tem como representantes o convencionalismo, o pragmatismo e o relativismo (Coutinho, 1996). Denominaremos tal abordagem construtivista/pragmática, no sentido de que a realidade é fruto de uma construção da linguagem, entendida como uma prática social. As correntes dessa concepção de linguagem propõem que a construção dos significados se dá no contexto de atividades humanas e que pensamentos subjetivos e processos mentais são construções da linguagem e de seus significados. Nesse sentido, as práticas sociais constroem a subjetividade (Marcondes, 1997). Segundo Marcondes (1992), o modelo construtivista tenta superar o subjetivismo, porém sem cair em um extremo oposto objetivista, que exclui o papel dos agentes sociais na formação da experiência individual.

Considerando as modificações ocorridas no âmbito da Filosofia decorrentes da problemática solipsista inerente ao projeto epistemológico moderno, este trabalho pretende discutir a apropriação pela Psicologia, e mais especificamente pela psicanálise, do conceito de intersubjetividade, problematizando seu estatuto. Pretende-se discutir o conceito de intersubjetividade tal como vem sendo utilizado pela psicanálise, e debater sobre os usos e as ideologias a ele subjacentes, com base nas duas concepções filosóficas de linguagem existentes na contemporaneidade, representadas por Frege, Russell e pelo "primeiro" Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus por um lado, e, por outro, Austin e o "segundo" Wittgenstein das Investigações Filosóficas (Marcondes, 1997).

2 CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS DE LINGUAGEM: REPRESENTACIONISMO E PRAGMÁTICA

2.1 Objetivismo/Representacionismo

A forma de compreensão da ciência segundo a abordagem objetivista/ representacionista tem origem no século XVII, com a formulação do projeto da ciência moderna, remontando suas raízes, portanto, às tradições racionalista de Descartes e empirista de Locke, Hume e Berkeley. No século XX, foi representada principalmente pelo empirismo lógico (Coutinho, 1996). A concepção representacionista de linguagem tem como principal característica a vinculação com a noção de verdade em correspondência com a realidade objetiva, sendo associada à busca do conhecimento do real (Giusti, 2012).

Com o propósito de fundamentar o conhecimento científico na lógica, Frege, Russell e o "primeiro" Wittgenstein do Tractatus Logico-Philosophicus aparecem como os principais autores dessa abordagem. Segundo essa posição filosófica, existe uma realidade única, universal, objetiva, que constitui a experiência humana, o modo pelo qual percebemos essa realidade. As palavras designam objetos e têm um significado, existindo uma equivalência entre o significado da palavra e o objeto que esta designa. Existe, portanto, uma essência na linguagem humana. O significado é algo inerente ao signo, independentemente do contexto no qual é utilizado (Marcondes, 1997; 1999; 2008).

De acordo com essa visão de linguagem, a lógica é o que nos possibilita ter acesso à realidade, sendo a única forma de fundamentar a ciência, garantindo seu caráter objetivo e universal. A lógica é, nesse sentido, o meio pelo qual se pode compreender a realidade expressa pela linguagem. O problema cartesiano de que o conhecimento se dá a partir de um sujeito, excluindo, portanto, a possibilidade de ser objetivo, já que é impossível controlar a influência dos valores subjetivos no processo de apreensão da verdade científica, tenta aqui ser resolvido pela correspondência lógica entre as estruturas formais da linguagem e a realidade. Dessa forma, essa corrente filosófica tenta analisar a realidade, independentemente de sua relação com a consciência individual. Existe uma verdade que pode ser desvelada por meio de análise lógica, não tendo o meio social nenhuma influência na construção dessa realidade. Tal abordagem exclui o papel dos agentes sociais na formação da experiência individual, não fazendo sentido, dessa forma, a noção de intersubjetividade como constitutiva da subjetividade, já que a realidade do sujeito está dada, independentemente da influência do outro e do meio.

2.2 Construtivismo/Pragmática

Os autores mais expressivos da abordagem construtivista/pragmática são Austin (1962) e o "segundo" Wittgenstein (1958), das Investigações Filosóficas que problematizaram a visão representacional de linguagem, propondo a noção de linguagem como prática social. A principal crítica dessa abordagem ao objetivismo está relacionada à noção de verdade como correspondência da linguagem com a realidade, apontando para a inviabilidade de uma correspondência "correta", para a falta de acesso a uma realidade que independa da linguagem e para a existência de uma multiplicidade de linguagens possíveis (Coutinho, 1996).

A Filosofia da linguagem do "segundo" Wittgenstein rompe com a noção de signo como representante de uma realidade em si. O autor propõe que os signos não representam ou descrevem a realidade, mas são utilizados para fazer algo, sendo apenas na ação que os signos adquirem vida, ou seja, tomados fora do contexto de uso, não tem nenhum significado. A linguagem é uma forma de ação e, para compreendê-la, não só é necessário levar em consideração o contexto no qual está inserida como também compreender que, com frequência, ela própria modifica o contexto, intervindo na realidade, criando novas realidades (Marcondes, 2008; Faria & Rodrigues, 2011; Santos, 2011).

Wittgenstein (1958) atribui ao signo a dimensão do uso, sua natureza social e sua função no contexto de uma prática social. Apresenta como alternativa à visão representacional a noção de jogos de linguagem, que define como "a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada" (§7). A principal característica dos jogos de linguagem é sua pluralidade, sua diversidade. Constantemente, observa-se o surgimento de novos jogos e o desaparecimento de outros, sendo a linguagem viva, dinâmica (Marcondes, 1997). Entende-se a linguagem como inseparável do uso que se faz dela, da realização de atos no contexto de atividades. Nesse sentido, Wittgenstein (1958) postula que a compreensão de um signo só pode se dar por meio da análise de seu uso cotidiano, examinando os diversos contextos nos quais é utilizado com diferentes objetivos.

Passa-se a compreender a linguagem como uma prática social, não privada. Não é a subjetividade que constrói os significados, mas as práticas, as formas de vida (Marcondes, 1997; Rodrigues, 2010; Faria & Rodrigues, 2011). Nesse sentido, segundo esse referencial, também a subjetividade passa a ser entendida como construída pelas práticas sociais. É nas relações interpessoais que os significados e as subjetividades se constroem, sendo a noção de intersubjetividade, portanto, condizente com essa corrente de pensamento.

3 O CONCEITO DE INTERSUBJETIVIDADE

3.1 Na Psicologia

A tradição epistemológica moderna, a partir de Descartes, pressupõe uma separação tal entre o Eu e o Outro, entre a consciência e o mundo, que coloca em questão o problema epistemológico a respeito do estabelecimento de pontes entre os polos. Tanto o Eu como o mundo e a outra consciência têm um caráter objetivo e já vêm prontos. Como seria possível, então, conhecer outra consciência, pressupondo a dicotomia existente entre o Eu e o mundo?

No contexto europeu, no início do século XX, houve uma primeira tentativa de superação das dualidades cartesianas no campo da Psicologia. A Filosofia fenomenológica de Husserl começou a abalar o panorama determinado pelo pensamento moderno, trazendo contribuições importantes para o tema da intersubjetividade (Coelho Junior, 2002; Piva et al., 2010). A fenomenologia propõe uma consciência aberta ao mundo, que possibilita ao Eu conhecer outras consciências. Contudo tal acesso não se dá senão de forma mediada, somente por meio da própria consciência individual. Tenta-se romper com o solipsismo, mas o Eu e a consciência continuam a ter prevalência na possibilidade de conhecimento do mundo, ainda se mantendo em uma tradição cartesiana de autocentramento. Uma segunda possibilidade de solução para a problemática cartesiana surge ainda da tradição fenomenológica, que passa a conceber a intersubjetividade como constituída a partir de experiências de compartilhamento da realidade, propondo as noções de corpo vivido, percepção e coconstrução da realidade (Coelho Junior & Figueiredo, 2012).

Nos Estados Unidos, no início do século XX até a década de 1930, os trabalhos de George H. Mead sobre o behaviorismo social apontam para outra corrente filosófica empenhada na tentativa de romper com a problemática do solipsismo. Com consequências importantes para a Psicologia e para a Sociologia, Mead (1934) propôs uma concepção do Eu totalmente fundamentada no caráter social e intersubjetivo dos gestos e comportamentos dos indivíduos. Para Mead, a consciência vem sempre depois da interação com os outros:

 

O indivíduo experiência a si mesmo como tal, não diretamente, mas apenas indiretamente, a partir dos pontos de vista particulares dos outros membros do mesmo grupo social [] ele se torna um objeto para si mesmo apenas ao tomar as atitudes dos outros indivíduos com relação a ele em um ambiente social (Mead, 1934, p. 138).

A partir dessas duas tradições (fenomenológica e behaviorista social), outras correntes foram se apropriando do debate acerca da influência do Outro na formação do Eu, e atualmente parece não haver mais dúvidas no campo da Psicologia a respeito de tal influência. Contudo, diferentes correntes psicológicas se apropriaram do conceito de intersubjetividade de diferentes formas, cada uma a sua maneira. Coelho Junior e Figueiredo (2012) apontam para quatro matrizes filosóficas que se constituíram na tentativa de abordar o conceito de intersubjetividade: a intersubjetividade transubjetiva, a intersubjetividade traumática, a intersubjetividade interpessoal e a intersubjetividade intrapsíquica.

A primeira, representada por Scheler, Heidegger e Merleau-Ponty, concebe a alteridade como anterior ao processo de subjetivação, como inaugural, constituindo um solo transubjetivo que antecede a possibilidade de o Eu se opor ou mesmo se relacionar com o Outro. A segunda, cujo representante é Lévinas, concebe a intersubjetividade como sempre traumática: existe um Outro que precede o Eu, que o constitui, mas que também o traumatiza e exige dele trabalho. A terceira matriz intersubjetiva refere-se ao pragmatismo social e ao interacionismo simbólico, e o enfoque é nas interações interpessoais: "Ninguém pode ter acesso a si e à sua consciência, mais ainda, ninguém pode se dotar de um mim e de uma consciência senão pela mediação do outro e de suas respostas" (Coelho Junior & Figueiredo, 2012, p. 31). Aqui são notórias as contribuições da Psicologia do desenvolvimento, especialmente nas figuras de Vygotsky, Stern e Hobson.

Vygotsky (1987), psicólogo soviético do início do século XX, considerou que, desde os primeiros dias de seu desenvolvimento, as atividades da criança adquirem um significado próprio dentro de um sistema social, pela mediação exercida por outras pessoas, sendo a noção de internalização a chave para a compreensão da ação dessa influência. Ele considerou que "A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da Psicologia humana; é a base do salto qualitativo da Psicologia animal para a Psicologia humana" (Vygotsky, 1984, p. 65).

Para ele, qualquer função psicológica aparece duas vezes, ou em dois planos: primeiro no plano social, como categoria interpsicológica; e depois no plano individual, como categoria intrapsicológica. Isso acontece porque, no processo de desenvolvimento, a criança começa a usar, em relação a si própria, as mesmas formas de comportamento que os outros usaram em relação a ela. Em outras palavras, para Vygotsky (1981), tudo o que é interno às funções mentais superiores foi uma vez externo, e as relações entre as funções mentais superiores foram, em uma época anterior, relações atuais entre pessoas.

Hobson e Stern, psiquiatras inglês e norte-americano respectivamente, ambos com formação psicanalítica, seguem esse mesmo enfoque social da construção intersubjetiva do Eu, apoiando-se em observações e experimentos da Psicologia do desenvolvimento. Stern (1992) o fez para entender a clínica do adulto e escreveu o já clássico O mundo interpessoal do bebê, no qual descreve o desenvolvimento de diferentes sensos de eu: o emergente, o nuclear, o subjetivo e o verbal. Para Stern (1992), os bebês começam a experienciar o senso de um eu emergente desde o nascimento; eles estão predispostos a serem seletivamente responsivos a eventos sociais externos. O senso de eu nuclear é um senso de eu experiencial:

 

O senso de um eu nuclear é uma perspectiva que se apoia na ação de muitas capacidades interpessoais. E quando essa perspectiva se forma, o mundo social subjetivo é alterado e a experiência interpessoal opera em um domínio diferente, o domínio de um relacionar-se nuclear (Stern, 1992, p. 21, grifo das autoras).

Em seguida, entre o sétimo e nono mês de vida, surge o senso de eu subjetivo ao qual Stern dá particular importância. É nesse momento que, segundo o autor,

 

[os bebês] "descobrem" que existem outras mentes lá fora. [] O eu e o outro [] agora incluem estados mentais subjetivos sentimentos, motivos, intenções. [] Esses estados mentais tornam-se agora o sujeito em questão do relacionar-se. Esse novo senso de um eu subjetivo abre a possibilidade para a intersubjetividade entre o bebê e o progenitor e opera em um novo domínio do relacionar-se o domínio de relacionar-se intersubjetivo (Stern, 1992, p. 21, grifo das autoras).

Assim como para Stern, para Hobson (2002), o bebê humano nasce com a capacidade de ser sensível e responsivo às emoções de outros seres humanos, assim como de expressar suas próprias emoções. Ao longo das interações com seu cuidador, os bebês aprendem por meio de outras pessoas e respondem ao mundo de acordo com a outra pessoa. Segundo Hobson (2002), a criança começa reagindo ao mundo em seus próprios termos. Por exemplo, ela pode achar um brinquedo fascinante, mas então ela percebe que sua mãe reage a ele com desgosto ou medo. E, de acordo com a reação da mãe, o brinquedo deixa de ser fascinante para a criança; seu significado mudou por causa daquilo que ele significa para a outra pessoa. Hobson (2002) afirma:

 

Essas descobertas são realmente importantes. Estamos testemunhando o começo de uma revolução copernicana em bebês de apenas doze meses de idade. […] O mundo não é simplesmente um mundo para mim, um mundo que tem significado por causa daquilo que sinto sobre ele ou daquilo que faço com ele. O mundo também tem significados para os outros, e o significado para outra pessoa pode afetar o significado que tem para mim (Hobson, 2002, p. 73).

Voltando às matrizes intersubjetivas propostas por Coelho Junior e Figueiredo (2012), a quarta dimensão intersubjetiva refere-se ao plano dos objetos internos e das fantasias, tendo como representantes, de acordo com os autores, Klein, Fairbairn e Winnicott. Aqui a presença da experiência intersubjetiva não necessariamente coincide com a presença de um Outro na realidade externa. O que aparece como foco da questão intersubjetiva nessa matriz são as questões referentes à experiência com os objetos internos no plano intrapsíquico.

A terceira matriz intersubjetiva, a interpessoal, é homóloga à visão construtivista de linguagem explicitada neste artigo; e a quarta matriz, a intrapsíquica, é referente à tradição psicanalítica. Buscaremos nos concentrar na imbricação entre ambas.

3.3 Na psicanálise: da intersubjetividade intrapsíquica à intersubjetividade interpessoal

O conceito de contratransferência é um dos possíveis indícios na obra de Freud que apontavam para a posterior apropriação do termo intersubjetividade pela psicanálise. Posteriormente, Ferenczi (2011a; 2011b) teve grande importância na investigação das emoções do analista suscitadas pelo analisando e ressaltou a importância da utilização da contratransferência no processo psicanalítico, atentando para o fato de que as emoções despertadas no analista poderiam colaborar para a compreensão do caso. O autor admitiu a participação ativa do observador no fenômeno observado, confrontando com a neutralidade científica pretendida na época. Além disso, Ferenczi apontou para a relação real entre ambos (Piva et al., 2010).

A obra de Melanie Klein também foi importante no processo de apropriação do conceito de intersubjetividade pela psicanálise por introduzir a noção de relação objetal na constituição psíquica. Sua inovação foi estabelecer uma ligação entre a experiência pulsional proposta por Freud e a relação com os objetos: o outro passou a ser imprescindível no processo de apropriação subjetiva. Contudo a teoria se refere ao Outro dentro da mente do bebê, pois, para Klein, as relações de objeto se dão em meio às fantasias intrapsíquicas do bebê. O Outro real tem pouca importância, ao passo que o Outro da fantasia é enfatizado. Mesmo introduzindo a noção de relação de objeto, o pensamento kleiniano não resolveu a problemática do solipsismo, não rompendo com o modelo cartesiano, pois privilegiou os conteúdos da mente, compreendendo-os como mais verdadeiros que os objetos externos reais (Reis, 2012).

Fairbairn e Winnicott, apesar de aparecerem como representantes da quarta matriz da intersubjetividade proposta por Coelho Junior e Figueiredo (2012), contribuíram significativamente para uma mudança filosófica relacionada à constituição da subjetividade dentro da psicanálise (Loparic, 2006; Reis, 2012). Os autores apontaram para a motivação humana para a busca de contato com Outros reais, entendidos agora como imprescindíveis ao desenvolvimento saudável do self. O surgimento dessa nova perspectiva, segundo Reis (2012), trouxe consigo o que se tornaria central para a psicanálise nos próximos 50 anos: a ideia de que "os seres humanos dependem uns dos outros e que são ligados uns aos outros por uma relação" (Reis, 2012, pp. 222-223). Para alicerçar essa nova visão de sujeito, era necessário basear-se em outro arcabouço filosófico, e essa corrente da psicanálise começou então a se apoiar nos trabalhos de Hegel. Os psicanalistas passaram a conceber as relações de objeto segundo a noção de constituição subjetiva proposta por Hegel, que se daria por meio de um processo dialógico, e a situarem o sujeito em uma profunda relação com o Outro (Reis, 2012).

Como explicitado anteriormente, a obra de Winnicott representa um marco na mudança de enfoque da psicanálise (Loparic, 2006). Para Winnicott (2006), os bebês são bastante afetados por tudo o que acontece, devido ao fato de serem extremamente dependentes no início de suas vidas. São dependentes devido às necessidades do corpo, mas também a um tipo sutil de necessidade de contato humano. "Talvez o bebê precise deixar-se envolver pelo ritmo respiratório da mãe, ou mesmo ouvir os batimentos cardíacos de um adulto. Talvez lhe seja necessário sentir o cheiro da mãe ou do pai […]" (Winnicott, 2006, p. 75). A sensação de segurança do bebê, mesmo quando está sozinho, somente pode se desenvolver graças a uma assistência satisfatória, quando tem alguém que se preocupe com ele. Em grande parte, devido à obra do autor, os estudos psicanalíticos das interações precoces entre os bebês e o mundo adulto passaram a dialogar com a primeira matriz (a transubjetiva) e, posteriormente, com a terceira matriz intersubjetiva (a interpessoal) propostas por Coelho Junior e Figueiredo (2012). Quando Winnicott (1982) diz que um bebê não existe sem os cuidados da mãe, parece conceber a alteridade como inaugural, como na primeira matriz intersubjetiva. Contudo sua célebre frase pode também ser lida à luz das trocas interpessoais, indicando que o bebê não é capaz de dotar-se da noção de Eu sem o apoio de Outros, apesar de seu potencial para trocas.

As pesquisas no campo do desenvolvimento, por exemplo, as contribuições de Stern (1992), foram extremamente importantes para aproximar as teorias psicanalíticas da terceira matriz intersubjetiva, pois apontam para o papel ativo do bebê nas trocas interpessoais (Araújo & Lerner, 2010).

Nesse sentido, Roussillon (2010) afirma que não se deve conceber na atualidade a noção de um estágio anobjetal, resultante de uma indiferenciação absoluta. Há de se levar em consideração a quantidade de pesquisas que apontam para a percepção que, desde o início, o bebê tem das figuras mais próximas, da diferença no modo como se relaciona com objetos animados ou inanimados e da capacidade que tem de imitar as expressões humanas. O bebê é capaz de perceber os ritmos dos objetos e diferenciá-los à sua maneira, demonstrando ser suscetível às trocas intersubjetivas. Segundo o autor, é impossível, contudo, evitar a dependência, apesar de esperar-se que ela se transforme com o tempo e passe a apresentar uma intensidade moderada, admissível ao narcisismo. O contexto em que somos concebidos e nascemos consiste na união particular de um casal em um dado momento histórico e é marcado por uma dependência primitiva absoluta.

Roussillon (2010) atenta para um prazer específico do encontro nesse momento de dependência absoluta e para uma necessidade de compartilhamento de prazer que é fundamental na constituição do afeto de prazer. Para que o prazer seja experimentado enquanto tal, é necessário que seja compartilhado: não há pulsionalidade possível sem a experiência intersubjetiva. A pulsão adquire um valor de mensagem, endereçada ao outro, e o prazer é sentido numa dança que marca o encontro entre o sujeito e o Outro. Para que haja experiência de satisfação, é necessário que o vínculo estabelecido seja suficientemente seguro, para que o objeto seja progressivamente percebido e concebido como Outro, duplo de si. Para o autor, o conceito de intersubjetividade é, nesse sentido, concebido como integrando uma dimensão inconsciente da subjetividade que perpassa a questão da pulsão e do sexual.

Também para Ogden, a noção de intersubjetividade se faz importante no entendimento da constituição psíquica. Por meio da noção "posição autista contígua", o autor sugere uma organização psicológica baseada na ordenação da experiência sensorial (particularmente das sensações na superfície da pele), na qual se origina a experiência do self (Ogden, 1996). A palavra contígua é referente aos corpos que se tocam, ao contato pele a pele do cuidador com o bebê. O ritmo impresso pelo cuidador bem como seu tom de voz ao embalar a criança promovem conexões, organizando a experiência. A "posição autista contígua" é, para Ogden, o modo mais primitivo de atribuir sentido à experiência. A forma como se dá essa experiência é definida como autística, pois é sentida, diz respeito às impressões sensoriais deixadas pelo objeto quando este toca a pele do bebê. É uma posição pré-simbólica caracterizada por uma forma de relação com o objeto na qual este é a experiência sensorial. O autor aponta para a posição autista contígua como inerente ao processo de tornar-se humano, já que marca o início do funcionamento mental. Tal posição funda a base sensorial que sustentará as vivências primordiais de superfície. A experiência autista contígua se dá na interação entre o bebê e um objeto externo real: o contato pele a pele é essencial para a organização de um sentido rudimentar de "eu-dade" e para o estabelecimento das relações objetais infantis (Ogden, 1989; 1996; Cesar, 2011; Coelho Junior, 2002; Sampaio, 2013).

Nesse sentido, psicanalistas contemporâneos, ao integrarem a noção de intersubjetividade em suas teorias, buscam considerar o Outro como sujeito que constitui o Eu em uma dimensão intersubjetiva, salientando o fato de o objeto ser também outro sujeito (Santos & Zornig, 2014).

Green (1988) pontua que, no começo do desenvolvimento das teorias objetais - momento no qual o objetivo era descrever "a interação do self com o objeto em termos de processos internos" (Green, 1988, p. 53) -, não foi dada a devida atenção ao fato de que a expressão "relação objetal" contém em si a palavra relação, que, para ele, é a de maior importância. Assinala que o interesse dos psicanalistas deveria ter se concentrado naquilo que está entre os dois termos. Algo que é unido por ações, "ou entre os efeitos das diferentes ações. Em outras palavras, o estudo das relações é antes o dos elos que o dos termos unidos por eles" (Green, 1988, p. 53).

Tal perspectiva acarreta mudanças na clínica psicanalítica na Contemporaneidade, que passa a apresentar um deslocamento do conhecimento do próprio mundo interno do analista e do mundo interno do paciente para o que está entre o analista e o paciente, espaço esse nomeado por Winnicott como espaço transicional. Green (1988) situa a comunicação do paciente nesse espaço transicional entre paciente e analista, como uma ponte entre dois mundos internos, da mesma forma que a interpretação que o analista faz ao paciente, que também é transmitida via comunicação. O analista passa a ter acesso ao que acontece no paciente, conforme observa o efeito que a comunicação exerce sobre ele próprio, pois o autor propõe que o que acontece nos analistas consiste em algo análogo ou homólogo ao que se passa no paciente, apesar de não poder assegurar que de fato as impressões afetivas do analista são correlatas do que está se passando no paciente. Nesse sentido, a psicanálise parece ter rompido com a ideia de que somente é possível saber o que se passa internamente nos pacientes devido ao que eles contam aos analistas, passando a valorizar aspectos constratransferênciais, em vez de tentar evitá-los.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A INTERSUBJETIVIDADE PSICANALÍTICA E AS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS DE LINGUAGEM CONTEMPORÂNEAS

Nos últimos anos, é possível observar uma revolução no pensamento em diversos campos do conhecimento, decorrente de maior diálogo entre eles. Reis (2012) aponta para trocas entre neurocientistas, antropólogos, linguistas, psicanalistas e observadores de bebês as quais teriam propiciado uma visão de mundo completamente nova. Ressalta que, para os pensadores desses campos, o corpo e a consciência não são mais compreendidos como fechados em si mesmos, mas como abertos e socialmente interativos.

O debate decorrente do uso do conceito intersubjetividade pela teoria psicanalítica nos remete basicamente à discussão de duas questões: em que medida a psicanálise rompeu com o modelo científico moderno ao adotar o conceito de intersubjetividade? E em que medida a tentativa de contornar a problemática solipsista consiste em uma reafirmação do modelo objetivista?

Há algumas décadas, alguns psicanalistas (Green, 1988; Ogden, 1989; 1996; Roussillon, 2004; 2010) vêm se aproximando da concepção filosófica construtivista/pragmática, compartilhando, de certa forma, a noção de que o sujeito é constituído por outros reais, por meio da intersubjetividade, considerando as relações interpessoais. Essas duas correntes de pensamento compartilham também a descrença em uma realidade em si, apontando para uma realidade construída socialmente.

Contudo, para os filósofos pragmáticos da linguagem (Wittgenstein, 1958; Austin, 1962), os conceitos são construídos com base nos sistemas de crenças: a criança nasce em uma cultura que age baseada num sistema de crenças, dentro de uma forma de vida que irá constituir e dar significado aos jogos de linguagem e, dessa maneira, aos conceitos. Nesse sentido, segundo essa visão, os conceitos se formam com base em práticas sociais, não tendo, portanto, o estatuto de verdade. O mundo é concebido em termos de processos, e as teorias devem funcionar para o que se propõe, não para se aproximarem da verdade.

Nesse aspecto a psicanálise parece diferenciar-se da visão construtivista/ pragmática. Por ter sido fundada em um momento histórico no qual o conhecimento, para ser considerado científico, deveria ser objetivo e mensurável, a psicanálise, mesmo tendo descentrado a noção racional de sujeito ao afirmar o conceito de Inconsciente, foi, em seu princípio, permeada por ideais positivistas de precisão e rigor, como a neutralidade do observador. Além disso, o foco nos aspectos intrapsíquicos era extremamente condizente com o projeto epistemológico moderno. Nesse sentido, para romper com o pensamento fundacional, de acordo com o que propõem teóricos, como o "segundo" Wittgenstein, seria necessário propor outra ciência, caso contrário estaríamos experimentando mudanças de paradigma dentro de um mesmo arcabouço teórico, sem romper com o projeto epistemológico moderno.

Dessa forma, segundo teóricos construtivistas, apesar do fato de as recentes postulações psicanalíticas apontarem para um encaminhamento da problemática solipsista moderna propondo a noção de intersubjetividade de forma cada vez mais próxima àquela sugerida pela visão pragmática de linguagem, o conceito ainda estaria servindo a uma lógica objetivista/representacional. Enquanto se substitui um modelo por outro, sem rejeição do pensamento fundacional, a psicanálise estaria ainda atrelada à concepção iluminista de verdade e de objetividade, consequentemente compreendendo o conhecimento científico de forma objetivista. Isso se daria devido à busca da universalização dos conceitos psicanalíticos, apesar da atribuição da historicidade das experiências. Quando Green (1988) afirma que não foi dada devida atenção à palavra relação na expressão "relação objetal" e assinala que o interesse dos psicanalistas deveria ter se concentrado naquilo que está entre os dois termos, por exemplo, sugere a noção de que houve um erro no passado e de que hoje a teoria estaria mais próxima da verdade. Aí se encontra uma fonte de crítica construtivista, já que o uso do conceito intersubjetividade parece servir mais como uma solução à problemática cartesiana do que a uma mudança de visão a respeito do conhecimento científico.

A ideia wittgensteiniana, contudo, de que mudanças paradigmáticas dentro de um mesmo arcabouço teórico com base cartesiana não rompem com o pensamento fundacional, não sendo, portanto, passíveis de serem consideradas construtivistas, parece-nos um tanto questionável. Seria, dentro dessa perspectiva, necessário negar, de certa forma, não somente as contribuições freudianas como também a Psicologia como ciência, visto que ambas nasceram em meio à tradição epistemológica moderna. Porém, segundo a própria perspectiva construtivista, os conceitos se formam a partir de práticas sociais, da cultura na qual estamos inseridos. É inegável que tanto a tradição psicanalítica como a psicológica façam parte do sistema de crenças no qual estamos inseridos, não sendo, portanto, possível negá-las diante da elaboração de novos conceitos. Nesse sentido, romper com o pensamento fundacional inaugurando novas ciências não nos parece um caminho viável para proporcionar mudanças em relação à forma como se dá o conhecimento científico. Acaba por ser também uma medida que impõe um ideal normativo, que termina por sugerir que o conhecimento que rejeita o pensamento fundacional é mais valioso que o que não o faz, sendo, portanto, em certa medida, mais verdadeiro.

Certamente a psicanálise ainda carrega valores de base cartesiana. A mudança de paradigma que parece ter ocorrido no meio psicanalítico encontra suas raízes na tentativa de contornar a problemática solipsista no pensamento freudiano. É daí que partem autores como Klein, Bion e Winnicott, preocupados com a questão de como se dá a compreensão da existência de outras mentes nos bebês. Essa questão parece ter sido resolvida com a mudança filosófica que levou o conceito de intersubjetividade, no sentido de trocas com o Outro na realidade, a se tornar central para a compreensão da construção subjetiva na psicanálise. O que ocorreu foi uma mudança de enfoque dentro da própria teoria e não um rompimento com o modelo de conhecimento moderno, como proposto pela visão pragmática de linguagem. Nesse sentido, a psicanálise parece situar-se, na Contemporaneidade, na tensão entre o modelo de conhecimento construtivista e o modelo objetivista, entre o intersubjetivo e o subjetivo, não rompendo com o projeto epistemológico moderno, mas contornando a problemática solipsista.

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Texto recebido em 14 de novembro de 2014 e aprovado para publicação em 29 de outubro de 2015.

 

 

* Mestranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Endereço: Rua Senador Vergueiro, 210, apto. 701, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. CEP: 22230-001. Telefone: (21) 99742-1303. E-mail: mariana.g.matos@hotmail.com.
**Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), professora aposentada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia da PUC Rio.E-mail: lampreia@aaa.puc-rio..

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